quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel - Capítulo 12



— Capítulo XII —
Fuga Para O Vau




QUANDO FRODO VOLTOU A SI, ainda apertava o Anel desesperadamente na mão. Estava deitado perto da fogueira, que agora estava alta e produzia uma chama forte. Os três companheiros se debruçavam sobre ele.
— O que aconteceu? Onde está o rei pálido? — perguntou ele ansiosamente.
Os amigos, ao ouvi-lo falar, por alguns momentos ficaram tão enlevados que não conseguiram responder, nem tampouco entenderam a pergunta.
Finalmente Frodo soube através de Sam que eles não tinham visto nada além das formas sombrias vindo na direção deles. De repente, para seu pavor, Sam descobrira que seu patrão tinha desaparecido: naquele momento, a figura negra passou correndo por ele, que caiu. Sam escutara a voz de Frodo, mas parecera-lhe que ela vinha de um ponto muito distante, ou de baixo da terra, gritando palavras estranhas. Nenhum deles pôde ver mais nada, até que tropeçaram no corpo de Frodo, que parecia morto, com o rosto virado no capim e caído sobre a espada. Passolargo ordenou que o carregassem até perto do fogo, e depois desapareceu.
Isso já fazia algum tempo.
Sam estava ficando visivelmente desconfiado de Passolargo outra vez, enquanto conversavam ele voltou, surgindo de repente das sombras. Assustaram-se, e Sam, empunhando a espada, ficou de pé, protegendo Frodo, mas Passolargo se ajoelhou rapidamente ao lado dele.
— Não sou nenhum Cavaleiro Negro, Sam — disse ele suavemente — Nem sou aliado deles. Estive tentando descobrir alguma coisa através de seus movimentos, mas não percebi nada. Não consigo entender por que foram embora, e por que não atacam de novo. Mas não senti a presença deles em nenhum ponto aqui por perto.
Passolargo ficou muito preocupado ao escutar o que Frodo tinha a dizer, balançou a cabeça e suspirou. Então pediu a Pippin e Merry que aquecessem a maior quantidade possível de água em suas pequenas chaleiras, e que banhassem o ferimento de Frodo.
— Mantenham o fogo bem forte, e mantenham Frodo aquecido! — disse ele. Depois se levantou e se afastou, chamando Sam — Acho que posso entender melhor as coisas agora — disse ele em voz baixa — Parece que só havia cinco inimigos. Por que não estavam todos aqui, não sei, mas não acho que esperavam encontrar resistência. Retiraram-se por enquanto. Mas receio que não estejam longe. Voltarão quando chegar outra noite, se não conseguirmos escapar. Estão apenas esperando, porque acham que seu propósito está quase realizado, e que o Anel não pode ir muito mais longe. Receio, Sam, que acreditam que seu patrão tem um ferimento mortal, que fará com que se submeta à vontade deles. Veremos!
Sam sufocou as lágrimas.
— Não se desespere! — disse Passolargo — Agora deve confiar em mim. O seu Frodo é feito de uma fibra mais resistente do que eu havia imaginado, embora Gandalf tivesse me prevenido. Ele não foi assassinado, e acho que resistirá ao poder maligno do ferimento por mais tempo do que o inimigo espera. Farei o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo e curá-lo. Protejam-no bem enquanto eu estiver fora!
Saiu apressado e desapareceu de novo na escuridão.
Frodo cochilava, embora a dor causada pelo ferimento crescesse lentamente, e um frio mortal começasse a se espalhar pelo seu corpo, partindo do ombro e atingindo o braço e o flanco. Os amigos cuidavam dele, aquecendo-lhe o corpo e banhando o ferimento. A noite passou, lenta e cansativa. A aurora começava a crescer no céu, e o valezinho se enchia de uma luz cinzenta, quando Passolargo finalmente retornou.
— Olhem! — gritou ele, abaixando-se e pegando do chão uma capa preta que tinha ficado ali, escondida pela escuridão. Cerca de trinta centímetros acima da bainha inferior havia um rasgo. — Isto foi o golpe da espada de Frodo — disse ele — Receio que tenha sido o único ferimento que fez no inimigo, pois não está danificada, mas todas as espadas que perfuram esse terrível Rei são destruídas. Mais terrível para ele foi ouvir o nome de Elbereth. E mais fatal para Frodo foi isto!
Abaixou-se de novo e levantou uma faca comprida e fina, que emitia um brilho frio. Conforme Passolargo a ergueu, eles viram que a lâmina estava chanfrada perto da extremidade, e que a ponta estava quebrada. Mas nesse mesmo momento, enquanto a faca era erguida perante a luz crescente, eles observaram atônitos: a lâmina pareceu derreter, e sumiu como fumaça no ar, deixando apenas o cabo na mão de Passolargo.
— Infelizmente — disse ele — Foi essa maldita faca que causou o ferimento em Frodo. Atualmente, poucos têm o poder de cura capaz de fazer frente a armas tão malignas. Mas farei o que puder.
Sentou-se no chão, e tomando o cabo do punhal, colocou-o sobre os joelhos, e cantou uma canção lenta, numa língua estranha. Depois, pondo-o de lado, voltou-se para Frodo e, num tom suave, pronunciou palavras que os outros não conseguiram entender. Da bolsa acoplada ao seu cinto, retirou as folhas longas de uma planta.
— Essas folhas — disse ele — Caminhei muito para encontrá-las, pois esta planta não nasce nas colinas sem vegetação. Mas nas moitas que ficam lá adiante, ao sul da Estrada, consegui encontrá-la pelo cheiro das folhas — esmagou uma folha nos dedos, e ela emanou uma fragrância doce e pungente — Foi sorte tê-la encontrado, pois esta é uma planta medicinal que os homens do Oeste trouxeram para a Terra-Média. Athelas é o nome que lhe davam, e atualmente alguns pés crescem esparsos, perto dos lugares onde eles moraram ou acamparam antigamente. A planta não é conhecida no Norte, a não ser por alguns daqueles que vagam pelas Terras Ermas. Tem grandes poderes, mas sobre um ferimento como esse sua eficácia pode ser pequena.
Jogou as folhas na água fervente e banhou o ombro de Frodo. A fragrância do vapor era reconfortante, e os que não estavam feridos sentiram suas mentes acalmadas e lúcidas. A erva também teve certo poder sobre o ferimento, pois Frodo sentiu que a dor e também a sensação de frio cediam, mas a vida não voltou ao seu braço, e ele não podia movê-lo ou levantar a mão. Arrependia-se amargamente de sua tolice, reprovando sua pouca determinação. Agora percebia que, tendo colocado o Anel, havia obedecido não apenas ao seu próprio desejo, mas também à vontade imperativa dos inimigos. Perguntava-se se ficaria mutilado para o resto da vida, e como conseguiriam prosseguir a viagem agora. Sentia-se fraco demais para ficar em pé.
Os outros estavam discutindo justamente essa questão. Logo decidiram deixar o Topo do Vento o mais rápido possível.
— Agora acho — disse Passolargo — Que o Inimigo esteve vigiando este lugar já por alguns dias. Se Gandalf passou por aqui, foi forçado a ir embora, e não voltará mais. De qualquer forma, corremos grande perigo depois do escurecer, desde o ataque da noite passada, e dificilmente encontraremos um perigo maior, onde quer que estejamos.
Logo que o dia raiou por completo, comeram algo rapidamente e embalaram a bagagem. Para Frodo era impossível caminhar, então eles dividiram a maior parte da bagagem entre os quatro, colocando-o montado no pônei. Nos últimos dias, o pobre animal tinha melhorado, de forma inesperada, já parecia mais gordo e forte, e tinha começado a demonstrar afeição pelos novos donos, especialmente por Sam. O tratamento de Bill Samambaia devia ter sido muito duro, para que a viagem por esse lugar deserto lhe parecesse tão melhor que sua vida anterior.
Partiram em direção ao sul. Isso significaria atravessar a Estrada, mas era o caminho mais curto até a região mais arborizada. E eles precisavam de lenha. Passolargo tinha recomendado que Frodo fosse mantido aquecido, especialmente à noite, e, além disso, o fogo representaria alguma proteção para todos eles. Diminuir o trajeto cortando caminho, atalhando uma outra grande volta da Estrada, também estava nos planos dele: a Leste do Topo do Vento a Estrada mudava de rumo e fazia uma grande curva para o Norte.
Prosseguiram lenta e cuidadosamente, contornando a encosta sul da colina, e em pouco tempo estavam na borda da Estrada. Não havia sinal dos Cavaleiros.
Mas no momento em que a atravessaram correndo, escutaram dois gritos: uma voz fria chamando, e uma voz fria respondendo.
Tremendo, jogaram-se para frente, dirigindo-se para as moitas que ficavam adiante. A região à frente descia em direção ao sul, mas era deserta e sem trilhas: arbustos e árvores raquíticas cresciam em trechos densos, com grandes espaços vazios entre eles. O capim era ralo, áspero e cinzento, as folhas nas moitas estavam amareladas e caindo. Era uma região triste, e a viagem era lenta e melancólica. Falavam pouco enquanto avançavam. O coração de Frodo estava penalizado ao ver os outros andando ao seu lado, cabisbaixos, com as costas curvadas sob o peso da bagagem. Até mesmo Passolargo parecia cansado e triste.
Antes que o primeiro dia de viagem terminasse, a dor de Frodo começou a aumentar de novo, mas ele não mencionou o fato por um bom tempo. Quatro dias se passaram, sem que o chão ou a paisagem mudassem de modo significativo, a não ser pelo Topo do Vento, que sumia lentamente atrás deles, e pelas montanhas distantes, que ficavam um pouco mais próximas. Mas, desde aquele grito distante, não tinham visto ou ouvido sinais de que o Inimigo estivesse vigiando ou seguindo seus passos. As horas escuras eram as mais temidas, e eles montavam guarda, revezando pares durante a noite, esperando ver, a qualquer momento, figuras negras surgindo na noite cinzenta, mal iluminada pela lua velada de nuvens. Apesar disso, nada viram, nada escutaram, exceto o suspiro das folhas esbranquiçadas e do capim. Nenhuma vez sentiram a presença maligna que os tinha rondado antes do ataque no valezinho.
Parecia bom demais esperar que os Cavaleiros já tivessem perdido sua trilha. Quem sabe se não estavam esperando, preparando alguma emboscada, nalguma passagem estreita?
Ao final do quinto dia, o solo começou de novo a subir, lentamente, saindo do vasto e raso vale no qual tinham descido. Passolargo agora mudara o curso outra vez, dirigindo-se para o nordeste, e no fim do sexto dia tinham chegado ao topo de uma ladeira de subida difícil, vendo à frente um amontoado de colinas cobertas por florestas, à direita, um rio cinzento brilhava pálido na fraca luz do sol. Na distância, entretanto, vislumbravam um outro rio, num vale pedregoso, meio velado pela névoa.
— Receio que devemos voltar para a Estrada neste ponto, e continuar nela por mais um trecho — disse Passolargo — Chegamos ao Rio Fontegris, que os elfos chamam de Mitheithel. Ele corre da Charneca Etten, os morros dos trolls ao Norte de Valfenda, e se junta ao Ruidoságua mais para o Sul. Alguns o chamam de Rio Cinzento depois desse ponto. É um grande volume de água, no trecho anterior ao seu encontro com o Mar. Não há como atravessá-lo abaixo de suas cabeceiras na Charneca Etten, a não ser utilizando a última Ponte, pela qual a Estrada atravessa.
— O que é aquele outro rio que estamos vendo lá adiante? — perguntou Merry.
— Aquele é o Ruidoságua, o Brunem de Valfenda — respondeu Passolargo — A Estrada vai acompanhando a borda das colinas por muitas milhas, desde a Ponte até o Vau do Brunem. Mas ainda não pensei em como o atravessaremos. Um rio de cada vez! Teremos sorte se não encontrarmos a última Ponte tomada pelo inimigo.
No dia seguinte pela manhã, atingiram de novo a beira da Estrada. Sam e Passolargo foram na frente, mas não havia sinal de viajantes ou cavaleiros. Naquele ponto, sob a sombra das colinas, tinha chovido. Passolargo julgou que a chuva tinha caído dois dias antes, e que tinha apagado as pegadas. Nenhum cavaleiro tinha passado por ali desde então, pelo que podia ver.
Apressaram-se pela Estrada o mais rápido que conseguiram e, depois de uma ou duas milhas, depararam com a última Ponte, na base de uma ladeira curta e íngreme. Tinham receado encontrar figuras negras esperando ali, mas não viram nenhuma.
Passolargo fez com que eles se abrigassem numa moita ao lado da Estrada, enquanto foi na frente explorar a região. Logo ele voltou correndo.
— Não vejo sinal do Inimigo — disse ele — E gostaria muito de saber o que isso significa. Mas encontrei algo muito estranho.
Estendeu a mão, mostrando uma pedra singular, de um verde-claro.
— Encontrei-a na lama, no meio da Ponte — disse ele — É um berilo, uma pedra élfica. Se foi colocada lá, ou se caiu por acaso, não posso dizer; mas me traz esperança. Tomarei a pedra como um sinal de que podemos atravessar a Ponte, mas depois dela não devemos nos arriscar a continuar na Estrada, sem algum outro sinal mais evidente.
Mais uma vez prosseguiram. Atravessaram a Ponte a salvo, não escutando nenhum ruído, a não ser o da água em torvelinho contra seus três grandes arcos. Uma milha mais adiante encontraram um desfiladeiro estreito que conduzia para o Norte, através das terras íngremes à esquerda da Estrada. Neste ponto, Passolargo deixou a Estrada, e logo estavam todos perdidos num lugar sombrio, de árvores escuras distribuídas entre os pés de colinas taciturnas.
Os hobbits ficaram contentes por deixar a região melancólica e a perigosa Estrada para trás, mas esse novo trecho parecia hostil e ameaçador.
Conforme avançavam, as colinas à frente ficavam cada vez mais altas. Aqui e ali, sobre topos e cordilheiras, podiam ver os restos de antigas muralhas de pedra, e ruínas de torres: tinham uma aparência agourenta. Frodo, que não estava andando, tinha tempo para olhar à frente e pensar. Lembrava-se do relato que Bilbo fizera de sua viagem, e das torres ameaçadoras sobre as colinas ao Norte da Estrada, na região próxima à floresta dos trolls, onde sua primeira aventura séria tinha ocorrido. Frodo supunha estar agora na mesma região, e imaginava se por acaso passariam pelo mesmo ponto.
— Quem mora por aqui? — perguntou ele — E quem construiu essas torres? Essa região pertence aos trolls?
— Não — disse Passolargo — Os trolls não constroem nada. Ninguém mora aqui. Os homens moraram numa certa época, eras atrás, mas ninguém permanece agora. Tornaram-se um povo mau, dizem as lendas, pois foram dominados pela sombra de Angmar. Mas todos foram destruídos na guerra que exterminou o Reino do Norte. Mas tudo isso faz muito tempo, e as colinas os esqueceram, embora uma sombra ainda cubra a região.
— Onde você aprendeu essas histórias, se toda a região está vazia e esquecida? — perguntou Peregrin — Aves e animais não contam histórias desse tipo.
— Os herdeiros de Elendil não esquecem todas as coisas passadas — disse Passolargo — E muitas outras coisas que posso contar são relembradas em Valfenda.
— Você esteve muitas vezes em Valfenda? — perguntou Frodo.
— Estive — disse Passolargo — Morei lá uma época, e ainda volto quando posso. Ali está meu coração, mas meu destino não é me acomodar em paz, mesmo na bela casa de Elrond.
As colinas agora começavam a enclausurá-los. Atrás, a Estrada continuava seu caminho em direção ao Rio Brunem, mas ambos agora estavam escondidos. Os viajantes chegaram a um vale comprido, estreito, profundo, escuro e silencioso. Árvores com raízes velhas e retorcidas se debruçavam sobre abismos, e se amontoavam em ladeiras íngremes cobertas de pinheiros.
Os hobbits ficaram muito cansados. Avançavam devagar, pois tinham de fazer seu caminho em meio a uma região sem trilhas, cheia de árvores e rochas caídas. Evitavam ao máximo escalar as encostas, por causa de Frodo, e também porque era realmente difícil achar algum caminho que os tirasse dos vales estreitos.
Já estavam havia dois dias nessa região quando o clima se tornou úmido. O vento começou a soprar continuamente do Oeste, derramando a água dos mares distantes sobre as cabeças pretas das colinas, na forma de uma chuva fina que alagava tudo. Ao cair da noite estavam todos ensopados, e o acampamento que fizeram não tinha conforto, pois não conseguiram acender fogueira alguma.
No dia seguinte, as colinas à frente ficaram ainda mais altas e íngremes, o que os forçou a mudar de rumo, indo para o Norte. Passolargo parecia estar ficando ansioso: já estavam a quase dez dias do Topo do Vento, e a reserva de provisões estava começando a ficar escassa. Continuava a chover. Naquela noite, acamparam numa saliência rochosa com uma muralha de pedra atrás deles, na qual havia uma caverna não muito profunda, uma simples concavidade na encosta.
Frodo estava inquieto. O frio e a umidade faziam com que seu ferimento doesse mais que nunca, e a dor e o sentimento de frio mortal impediam que dormisse. Ficava deitado, virando-se de um lado para o outro e escutando, cheio de terror, os furtivos ruídos da noite: vento nas fendas das rochas, água gotejando, um estalo, a queda repentina e estrepitosa de uma rocha desprendida. Sentiu que figuras negras se aproximavam para sufocá-lo, mas, quando se sentou, não viu nada além das costas de Passolargo, sentado e arqueado para frente, fumando seu cachimbo, vigiando. Deitou-se de novo e entrou num sonho agitado, no qual ele caminhava sobre a grama de seu jardim no Condado, mas a imagem parecia apagada e fraca, menos nítida que as sombras altas e negras que olhavam sobre a cerca-viva. De manhã, acordou e viu que a chuva tinha parado.
As nuvens ainda estavam densas, mas iam se desfazendo, e pálidas faixas azuis apareciam por entre elas. O vento estava mudando de novo. Não partiram cedo. Imediatamente após um desjejum frio e pouco reconfortante, Passolargo saiu sozinho, dizendo aos outros que ficassem sob o abrigo da encosta até que ele voltasse. Ia escalar, se pudesse, para dar uma olhada na configuração do terreno. Quando voltou, não estava confiante.
— Desviamos demais para o Norte — disse ele — E temos de achar um caminho para voltar outra vez em direção ao sul. Se continuarmos por onde estamos indo, acabaremos chegando nos Vales Etten, muito ao Norte de Valfenda. Ali é região de trolls, que eu conheço pouco. Talvez pudéssemos achar um caminho e chegar a Valfenda pelo Norte, mas isso levaria muito tempo, pois não sei o caminho, e nossa comida não seria suficiente. De uma maneira ou de outra, temos de achar o Vau do Brunem.
Pelo resto daquele dia, avançaram aos tropeços sobre o solo pedregoso.
Encontraram uma passagem entre duas colinas, que os conduziu a um vale que ia do sul para o Leste, a direção que queriam tomar, mas no fim do dia descobriram que seu caminho estava novamente bloqueado por uma cordilheira, os topos escuros, contrastando com o céu, quebravam-se em muitas pontas nuas, como os dentes de um serrote cego.
Podiam escolher entre voltar ou escalar.
Decidiram tentar a escalada, que resultou em muita dificuldade. Logo Frodo foi obrigado a descer do pônei e caminhar, o que fazia à custa de muito esforço. Mesmo assim, várias vezes quase perderam as esperanças de conseguir levar o pônei colina acima, ou até de achar uma trilha para eles mesmos, carregados de coisas como estavam. A luz já tinha quase se extinguido, e estavam exaustos, quando finalmente atingiram o topo. Tinham escalado até um passo estreito entre dois pontos mais altos, e o terreno descia íngreme novamente, apenas um pouco à frente. Frodo se jogou no chão e ficou deitado, tremendo. Seu braço esquerdo estava paralisado, e sentia como se garras de gelo segurassem seu ombro e flanco. As árvores e rochas ao redor pareciam sombrias e escuras.
— Não podemos continuar — disse Merry a Passolargo — Receio que isso tenha sido demais para Frodo. Estou terrivelmente aflito por ele. Que devemos fazer? Você acha que poderão curá-lo em Valfenda, se chegarmos lá?
— Veremos — respondeu Passolargo — Não há mais nada que eu possa fazer nesta região deserta, e é principalmente por causa do ferimento dele que estou tão ansioso por continuar. Mas concordo que não podemos prosseguir esta noite.
— Qual é o problema com meu patrão? — perguntou Sam em voz baixa, olhando desesperado para Passolargo — O ferimento foi pequeno, e já está fechado. Não se vê nada a não ser uma marca fria e branca em seu ombro.
— Frodo foi tocado pelas armas do Inimigo — disse Passolargo — E há algum veneno ou malefício em ação, que está além da minha habilidade de expulsar. Mas não perca a esperança, Sam!
A noite era fria sobre o alto desfiladeiro. Acenderam uma pequena fogueira sob as raízes retorcidas de um velho pinheiro, que se curvava sobre uma cavidade rasa: parecia que uma pedra tinha sido extraída dali. Sentaram-se, uns aconchegados aos outros.
O vento soprava frio através da passagem, e eles escutaram as copas das árvores abaixo gemendo e suspirando. Frodo entrara numa espécie de delírio, imaginando que asas escuras e infinitas pairavam sobre ele, e que montando as asas estavam perseguidores que o procuravam em todas as concavidades das colinas.
O dia amanheceu claro e bonito, o ar estava limpo, e a luz era pálida no céu recentemente lavado pela chuva. Os corações se sentiram mais fortes, mas eles queriam que o sol aquecesse suas pernas e braços, que estavam enregelados e duros. Assim que ficou claro, Passolargo foi olhar a região do ponto que ficava ao Leste da passagem, levando Merry consigo. O sol tinha se levantado, e brilhava forte, quando voltou com notícias mais animadoras. Estavam agora indo mais ou menos na direção correta. Se continuassem pela encosta da cordilheira, teriam as Montanhas à sua esquerda. Alguma distância à frente, Passolargo tinha visto um trecho do Ruidoságua de novo, e sabia que, embora estivesse escondida, a Estrada para o Vau não estava longe do Rio, e ficava na margem mais próxima do ponto onde estavam.
— Devemos voltar para a Estrada de novo — disse ele — Não há esperança de acharmos uma trilha através destas colinas. Apesar de todo o perigo que correremos ali, a Estrada é o único caminho para o Vau.
Logo após comerem, partiram novamente. Desceram devagar a encosta sul da cordilheira, mas o caminho foi bem mais fácil do que esperavam, pois a descida era muito menos íngreme desse lado, e logo Frodo pôde montar de novo. O pobre e velho pônei de Bill Samambaia estava desenvolvendo um talento inesperado para achar uma trilha, e para evitar ao máximo qualquer solavanco que pudesse perturbar seu montador.
Os ânimos do grupo se elevaram de novo. Até Frodo se sentia muito melhor na luz da manhã, mas de quando em quando uma névoa parecia obscurecer sua visão, e ele passava as mãos sobre os olhos.
Pippin estava um pouco à frente dos outros. De repente, voltou-se e gritou:
— Há uma trilha aqui!
Quando os outros o alcançaram, viram que não tinha si do engano: via-se claramente o início de uma trilha, que subia com muitas curvas, saindo da floresta abaixo, e desaparecia no topo da colina atrás deles. Em alguns pontos, estava agora apagada e coberta de vegetação, ou sufocada por árvores e pedras caídas; mas parecia ter sido muito usada em alguma época.
Era uma trilha feita por braços fortes e pés pesados. Aqui e ali velhas árvores tinham sido cortadas ou arrancadas, e grandes rochas cortadas ou colocadas de lado para abrir caminho.
Seguiram a trilha por um tempo, pois ela oferecia o caminho mais fácil até lá embaixo, mas iam com cuidado, e a ansiedade aumentou quando chegaram na floresta escura, e a trilha ficou mais plana e larga. De súbito, saindo de uma faixa de pinheiros, viram uma ladeira íngreme que descia, e virava para a esquerda num ângulo fechado, contornando uma saliência rochosa da colina. Quando atingiram a curva, viram que a trilha continuava numa faixa plana sob a parede de um rochedo baixo coberto de árvores. Na muralha de pedra havia uma porta entreaberta, que pendia torta e aberta, presa por uma grande dobradiça.
Do lado de fora da porta, pararam. Havia uma caverna semelhante a uma câmara de pedra atrás dela, mas na escuridão não se via nada. Passolargo, Sam e Merry, empurrando com toda a força que tinham, conseguiram abrir a porta um pouco mais, e então Passolargo e Merry entraram. Não foram muito longe, pois no chão havia muitos ossos velhos, e nada mais se via perto da porta, a não ser algumas vasilhas grandes e vazias, e potes quebrados.
— Certamente, esta é uma toca de trolls, se é que isso existe! — disse Pippin — Venham, vocês dois, e vamos sair daqui. Agora sabemos quem fez a trilha, e é melhor irmos embora rápido.
— Não vejo necessidade, eu acho — disse Passolargo, saindo — Certamente, esta é uma toca de trolls, mas parece abandonada há muito tempo. Não acho que precisamos ficar com medo. Mas vamos descer com cuidado, e veremos.
A trilha continuava de novo depois da porta e, virando mais uma vez para a direita através do espaço plano, mergulhava numa ladeira coberta por vegetação densa.
Pippin, não querendo demonstrar a Passolargo que ainda sentia medo, foi à frente com Merry. Sam e Passolargo vieram atrás, um de cada lado do pônei de Frodo, pois agora a trilha era larga o suficiente para permitir que quatro ou cinco hobbits andassem lado a lado. Mas não tinham ido muito longe quando Pippin voltou correndo, seguido por Merry.
Os dois pareciam apavorados.
— Há trolls! — ofegou Pippin — Ali embaixo, numa clareira na floresta, não muito distante. Vimo-los de relance entre os troncos de árvores. São muito grandes!
— Vamos lá dar uma olhada — disse Passolargo, pegando um pau.
Frodo não disse nada, mas Sam parecia amedrontado.
Agora o sol estava alto, brilhando através dos ramos seminus das árvores, iluminando a clareira com raios de luz intensa. Pararam de repente na borda, e espiaram através dos troncos das árvores, segurando a respiração. Ali estavam os trolls: três grandes trolls. Um estava agachado, enquanto os outros dois o observavam.
Passolargo avançou indiferente.
— Levante, pedra velha! — disse ele, arrebentando o pau no troll agachado.

[FIG. 14] OS TROLLS DE PEDRA


Nada aconteceu.
Pasmos, os hobbits ficaram de boca aberta, e depois até Frodo riu.
— Bem! — disse ele — Estamos esquecendo a história de nossa família! Estes devem ser exatamente aqueles três que foram capturados por Gandalf, e que estavam discutindo sobre a melhor maneira de se cozinhar treze anões e um hobbit.
— Não tinha ideia de que estivéssemos perto do lugar! — disse Pippin, que conhecia bem a história.
Bilbo e Frodo sempre a contavam, mas na verdade ele nunca acreditara nela completamente. Mesmo agora, olhava para os trolls de pedra com suspeita, imaginando se algum tipo de mágica não os traria de volta à vida novamente.
— Vocês estão esquecendo não só a história da família, mas também tudo o que sabiam sobre trolls — disse Passolargo — Estamos em plena luz do dia, com o sol brilhando, e vocês voltam tentando me assustar com uma história de trolls vivos esperando por nós na clareira! De qualquer forma, poderiam ter notado que um deles tem um velho ninho de passarinho atrás da orelha. Esse é um enfeite muito singular para um troll vivo.
Todos riram.
Frodo sentiu seu ânimo renascer: a lembrança da primeira aventura bem-sucedida de Bilbo era encorajadora. O sol, também, estava quente e reconfortante, e a névoa que cobria seus olhos parecia estar se desvanecendo um pouco. Descansaram por um tempo na clareira, e fizeram a refeição do meio-dia bem embaixo da sombra das grandes pernas dos trolls.
— Alguém não poderia cantar uma canção, nessa hora em que o sol está tão alto? — disse Merry, quando tinham terminado de comer — Não escutamos uma canção ou história há dias.
— Desde o Topo do Vento — disse Frodo. Os outros olharam para ele — Não se preocupem comigo! — acrescentou — Sinto-me muito melhor, mas não acho que poderia cantar. Talvez Sam consiga cavar alguma coisa em sua memória.
— Vamos lá, Sam! — disse Merry — Existem mais coisas armazenadas na sua memória do que você dá a conhecer.
— Não sei nada disso — disse Sam — Mas será que esta cairia bem? Não é exatamente o que eu chamaria de poesia, se é que me entendem: apenas um pouco de besteira. Mas essas imagens antigas daqui me fizeram lembrar — em pé, com as mãos atrás das costas, como se estivesse na escola, começou a cantar uma melodia antiga.

 

Troll no calabouço, só sem alvoroço,

Sentado resmunga, roendo um velho osso;

Por anos sem conta, roía a mesma ponta,

Pois carne jamais encontrava.

Rosnava! Chiava!

Sentado, sozinho, em seu calabouço,

E carne jamais encontrava.

Surge Tom agora de bota e de espora.

E já vai dizendo: — O que você devora?

Parece, isso sim, a canela do tio Tom,

Que devia estar em sua sepultura.

Dura! Escura!

Já faz um tempão que meu tio foi embora,

E eu achava que estava em sua sepultura.

— Bem, diz o safado, o osso foi roubado.

Mas pra que é que serve um osso enterrado?

Já estava bem frio, feito gelo, o titio,

Antes de eu pegar sua canela.

Bela! Gela!

E ele a quis dar para um velho coitado,

Já que não precisava mais dela.

Diz Tom: — Não consigo entender como o amigo,

Sem ter permissão, vai e leva consigo

Chanca ou canela de minha parentela.

Então me dá logo esse osso!

Grosso! Insosso!

É dele, eu te digo, o que tinha consigo.

Então me dá logo esse osso!

— Por uma bagatela, diz Troll tagarela,

Também como você e rôo sua canela.

Essa carne macia, que gostosa seria!

Deixa eu dar uma mordida.

Urdida! Ardida!

Já cansei de roer esta velha canela.

Tô afim de você por comida.

Mas quando Troll julgava que o jantar agarrava,

Percebeu que sua mão nada mais segurava.

Rápido, num zás, Tom passou para trás

E meteu-lhe a botina.

Sina! Atina!

Um bom chute no assento, Tom pensava,

E agora vai ver que ele atina!

Mas dura qual caroço é a carne com osso

De um troll instalado em seu calabouço,

Melhor é chutar uma pedra tumular

Porque assento de troll nada sente.

Mente? Tente!

Riu Troll quando Tom gemeu em alvoroço,

Sabendo o que um dedão sente.

E Tom hoje anda coxo, depois que voltou mocho

Seu pé sem botina está sempre meio roxo.

Mas Troll numa boa, continua sempre à toa,

Roendo seu osso roubado.

Dado! Fado!

Sentado, só, velho e chocho,

Roendo seu osso roubado!

 

— Bem, isso é um aviso para todos nós — riu Merry — Foi bom que você usou um pau, e não a mão, Passolargo!
— De onde você desenterrou essa, Sam? — perguntou Pippin — Nunca escutei essa letra antes.
Sam murmurou algo inaudível.
— Da própria cabeça dele, é claro — disse Frodo — Estou aprendendo muito sobre Sam Gamgi nesta viagem. Primeiro era um conspirador, agora um bufão. Vai acabar se revelando um mago, ou um guerreiro!
— Espero que não — disse Sam — Não quero ser nenhum dos dois!
De tarde, avançaram, descendo pela floresta. Provavelmente estavam seguindo a mesma trilha que Gandalf, Bilbo e os anões tinham usado havia muitos anos. Depois de algumas milhas, saíram no topo de um barranco alto sobre a Estrada. Nesse ponto, a Estrada já tinha deixado o Fontegris bem atrás em seu vale estreito, e agora se prendia ao sopé das colinas, rolando e ziguezagueando em direção ao Leste, entre florestas e encostas cobertas por urzais, seguindo para o Vau e as Montanhas. Não muito abaixo do barranco, Passolargo apontou para uma rocha sobre o capim. Nela estavam entalhadas, de forma rude e agora bem gastas, runas de anões e marcas secretas.
— Vejam! — disse Merry — Aquela deve ser a pedra que marcava o lugar onde o ouro dos trolls estava escondido. Quanto você acha que restou da parte de Bilbo, Frodo?
Frodo olhou a pedra, desejando que Bilbo não tivesse trazido para casa nenhum tesouro mais perigoso, nem mais difícil de abandonar.
— Nada! — disse ele — Bilbo doou tudo. Disse-me que não sentia que o tesouro era realmente dele, uma vez que vinha de ladrões.
A Estrada se estendia quieta, sob as sombras compridas do início da noite. Não se via qualquer sinal de viajantes. Como agora não havia outro caminho que pudessem tomar, desceram o barranco, e virando à esquerda avançaram o mais rápido possível. Logo uma saliência nas colinas bloqueou a luz do sol que se deitava rápido no Oeste. Um vento frio descia ao seu encontro, vindo das montanhas à frente.
Estavam começando a procurar um lugar fora da Estrada, onde pudessem acampar durante a noite, quando ouviram um som que trouxe um pavor repentino de volta aos seus corações: o ruído de cascos atrás deles.
Olharam para trás, mas não podiam enxergar muito longe por causa das várias curvas da Estrada. Com a máxima velocidade possível, deixaram aos tropeços o caminho batido, penetrando na densa vegetação de urzais e mirtilos que cobria as encostas acima, até que chegaram num pequeno trecho coberto por densas aveleiras. Ao espiarem por entre os arbustos, puderam ver a Estrada, apagada e cinzenta sob a luz que enfraquecia, cerca de dez metros abaixo de onde estavam.
O som dos cascos se aproximou. Avançavam rápido, com um suave clipete-clipete-clipe. Então ouviram baixinho, como que carregado pela brisa, um som suave, como se pequenos sinos estivessem tocando.
— Esse não parece um cavalo dos Cavaleiros Negros! — disse Frodo, escutando atentamente.
Os outros hobbits concordaram esperançosos, mas todos permaneceram cheios de suspeitas. Tinham sentido medo de perseguições por tanto tempo que qualquer som atrás deles parecia agourento e hostil. Mas Passolargo agora se curvava para frente, e, abaixando-se até o chão, com uma mão sobre a orelha, fez uma expressão de alegria.
A luz desaparecia, e as folhas e arbustos farfalhavam suavemente. Os sinos agora soavam alto e mais perto, clipete-clipe, vinham as patas em trote rápido. De repente apareceu, lá embaixo, um cavalo branco, reluzindo nas sombras, correndo muito. No crepúsculo, a testeira brilhava e reluzia, como se estivesse adornada com pedras que pareciam estrelas. A capa do cavaleiro flutuava nas suas costas, e o capuz estava jogado para trás, o cabelo dourado esvoaçava brilhante no vento veloz. Frodo teve a impressão de que uma luz branca brilhava através da figura e das vestes do cavaleiro, como se viesse através de um véu tênue.
Passolargo pulou do esconderijo e correu em direção à Estrada, saltando com um grito através do urzal, mas antes mesmo que tivesse se movido ou gritado, o cavaleiro puxou as rédeas e parou, olhando para cima em direção à moita onde estavam. Quando viu Passolargo, desceu do cavalo e correu para encontrá-lo, gritando:
— Ai na vedui Dúnadan! Alae govannen!
A fala e a voz clara, musical, não deixavam dúvidas nos corações: o cavaleiro era do povo élfico. Nenhuma outra criatura habitante do vasto mundo tinha uma voz tão bela e agradável de escutar. Mas parecia haver um tom de aflição naquele chamado, e eles viram que agora ele falava com Passolargo cheio de ansiedade e urgência. Logo Passolargo fez um sinal, e os hobbits saíram dos arbustos, correndo para a Estrada.
— Este é Glorfindel, que mora na casa de Elrond — disse ele.
— Salve, que bom que finalmente os encontrei! — disse o Senhor-Élfico a Frodo — Fui enviado de Valfenda para encontrá-los. Temíamos que estivessem correndo perigo na estrada.
— Então Gandalf chegou a Valfenda — gritou Frodo cheio de alegria.
— Não. Ainda não tinha chegado quando parti, mas isso já faz muitos dias — respondeu Glorfindel — Elrond recebeu uma notícia que o preocupou. Alguns de meu povo, viajando por sua terra além do Baranduin, souberam que as coisas deram errado, e enviaram mensagens o mais rápido possível. Disseram que os Nove estavam espalhados, e que vocês estavam perdidos, carregando um fardo pesado, sem orientação, pois Gandalf não tinha voltado. Até mesmo em Valfenda existem poucas pessoas que podem cavalgar abertamente contra os Nove, mas do jeito que as coisas estavam, Elrond enviou mensageiros para o Norte, Oeste e Sul. Pensou-se que vocês poderiam ter mudado de direção para evitar os perseguidores, e perdido o rumo nesse lugar deserto. A parte designada a mim foi pegar a Estrada, e eu cheguei até a Ponte de Mitheithel, deixando ali um sinal, há sete dias. Três dos servidores de Sauron estiveram na Ponte, mas retiraram-se e os persegui em direção ao Norte. Também encontrei outros dois, mas eles rumaram para o sul. Desde então tenho procurado sua trilha. Há dois dias a encontrei, e a segui através da Ponte, hoje observei o ponto por onde voltaram e desceram das colinas de novo. Mas venham! Não há tempo para mais notícias. Já que estão aqui, devemos correr o perigo da Estrada e ir. Há cinco deles atrás de nós, e quando encontrarem suas pegadas na Estrada, virão atrás de vocês como o vento. E não são todos. Onde estão os outros, eu não sei. Receio que o Vau já esteja tomado pelos inimigos.
Enquanto Glorfindel falava, as sombras da noite aumentaram. Frodo sentiu um grande cansaço tomando conta de seu corpo. Desde que o sol começara a se pôr, a névoa sobre seus olhos tinha ficado mais densa, e ele sentia que uma sombra começava a se instalar entre ele e os rostos dos amigos. Agora a dor o acometia, e ele sentia frio. Estava zonzo, e se agarrava ao braço de Sam.
— Meu patrão está doente e ferido — disse Sam furioso — Ele não pode continuar montando depois do cair da noite. Precisa descansar.
Glorfindel segurou Frodo, que quase caía ao chão, e tomando-o gentilmente nos braços, olhou seu rosto com grande ansiedade. Rapidamente, Passolargo contou-lhe sobre o ataque ao acampamento no Topo do Vento, e da faca mortal. Pegou o cabo, que tinha guardado, estendendo-o ao elfo. Glorfindel tremeu ao pegá-lo, mas continuou observando-o com grande atenção.
— Há coisas maléficas escritas neste cabo — disse ele — Apesar de seus olhos não poderem vê-las. Guarde-o, Aragorn, até que cheguemos à casa de Elrond! Mas tenha cuidado, e toque-o o menos possível. Infelizmente, os ferimentos causados por esta faca estão além de meu poder de cura. Farei o que puder, mas o que acho mais necessário agora é partir sem descanso.
Ele procurou o ferimento no ombro de Frodo com os dedos, e seu rosto ficou mais sério, como se o que tivesse concluído o preocupasse. Mas Frodo sentiu que o frio diminuía em seu flanco e braço, um pequeno calor se espalhava do ombro para a mão, e a dor ficou mais suportável. A escuridão do início da noite parecia ficar menos densa, como se uma nuvem tivesse sido retirada. Via de novo os rostos dos amigos mais claramente, e retornou a seu coração um bocado de nova esperança e força.
— Você montará meu cavalo — disse Glorfindel — Vou encurtar o estribo até a aba da sela, e você deve sentar-se o mais firme que conseguir. Mas não precisa ter medo: meu cavalo não deixa cair nenhum cavaleiro que eu ordene que ele conduza. Seu passo é leve e suave, se o perigo chegar perto demais, ele o levará para longe com uma velocidade que nem os cavalos do Inimigo podem alcançar.
— Não, ele não deve fazer isso! — disse Frodo — Não vou montá-lo, se ele me levar para Valfenda ou qualquer outro lugar, deixando meus amigos para trás e em perigo.
Glorfindel sorriu.
— Duvido muito que seus amigos fiquem em perigo se não estiverem com você — disse ele — A perseguição continuaria atrás de você, deixando-nos em paz. É você, Frodo, e o que você carrega, que nos traz todo o perigo.
Frodo não teve resposta para aquilo, e foi persuadido a montar o cavalo branco de Glorfindel.
O pônei foi então carregado com a maioria dos fardos dos outros, de modo que agora todos marcharam mais facilmente, e por um período avançaram com boa velocidade, mas os hobbits começaram a ter dificuldade em acompanhar o ritmo dos pés rápidos e descansados do elfo. E adiante ele os conduziu, para dentro da escuridão, e continuou em frente, sob as nuvens densas da noite. Não havia lua nem estrelas. Só quando viram a aurora cinzenta é que permitiu que parassem. Sam, Merry e Pippin estavam naquela hora quase dormindo sobre as pernas cambaleantes; e até mesmo Passolargo dava sinais de cansaço, que se manifestava em seus ombros curvados. Frodo montava o cavalo num sonho escuro.
Abrigaram-se sob o urzal que ficava a alguns metros da borda da estrada, e adormeceram imediatamente. Parecia-lhes que mal tinham fechado os olhos, quando Glorfindel, que tinha montado guarda enquanto dormiam, acordou-os de novo. O sol já tinha subido bastante no céu, e as nuvens e a névoa da noite tinham se dissipado.
— Bebam isso — disse a eles Glorfindel, derramando para um de cada vez um pouco de uma bebida, de um frasco de couro adornado de prata.
O líquido era transparente como água, não tinha gosto, e ao contato com a boca não era nem frio nem quente, mas parecia que força e vigor fluíam-lhes para os braços e as pernas ao beberem dele. Depois disso, comer o pão velho e as frutas secas (que era tudo o que restava agora) parecia satisfazer-lhes a fome mais do que os melhores desjejuns do Condado.
Tinham descansado menos que cinco horas quando pegaram a Estrada de novo.
Glorfindel ainda forçou a viagem, e só permitiu duas paradas rápidas durante todo o dia de marcha. Desse jeito, cobriram quase vinte milhas antes do cair da noite, e chegaram a um ponto onde a Estrada fazia uma curva à direita, e descia em direção ao fundo do vale, indo direto para o Brunem. Até agora, não tinha havido sinais ou ruídos da perseguição, mas frequentemente Glorfindel parava para escutar por uns momentos, quando eles ficavam para trás, e uma expressão ansiosa cobria seu rosto. Uma ou duas vezes, dirigiu-se a Passolargo na língua élfica.
Mas por mais ansiosos que os guias estivessem, era ponto pacífico que os hobbits não podiam mais prosseguir aquela noite. Iam tropeçando, zonzos e cansados. A dor de Frodo tinha redobrado, e durante o dia as coisas à sua volta tinham se embaçado em sombras de um cinza fantasmagórico. Ele quase recebeu com alegria a chegada da noite, pois então o mundo parecia menos pálido e vazio.
Os hobbits ainda estavam cansados quando partiram de novo, no dia seguinte bem cedo. Ainda havia muitas milhas a percorrer até o Vau, e eles avançavam mancando, no melhor ritmo possível.
— Nosso perigo ficará maior um pouco antes de atingirmos o rio — disse Glorfindel — Meu coração me adverte que os perseguidores estão vindo rápido atrás de nós, e outros perigos podem estar à espera no Vau.
A Estrada ainda descia a colina íngreme, e agora em alguns pontos havia bastante capim dos dois lados, no qual os hobbits iam pisando quando podiam, para aliviar o cansaço dos pés. No fim da tarde, chegaram a um lugar onde a Estrada entrava abruptamente embaixo da sombra escura de pinheiros altos, e então mergulhava num valo profundo, com paredes íngremes e úmidas de pedra vermelha. Ecos reverberavam à medida que avançavam com pressa e parecia haver o ruído de muitos passos, seguindo os passos deles. De repente, como se por um portão de luz, a Estrada saiu novamente da extremidade do túnel para o espaço aberto. Ali, na base de uma subida íngreme, viram adiante um trecho comprido e plano, e além dele o Vau de Valfenda. Na margem oposta, havia um barranco inclinado e escuro, marcado por uma trilha tortuosa; mais além, as montanhas altas subiam, saliência após saliência, e pico além de pico, para dentro do céu que se apagava. Ainda se ouvia um som como o de pés perseguindo-os no valo, um ruído que se apressava, como se um vento se levantasse, derramando-se através dos ramos dos pinheiros.
Num momento, Glorfindel se virou para escutar, e então jogou-se para frente com um grito:
— Fujam! — gritou ele — Fujam! O Inimigo está nos alcançando!
O cavalo branco saltou para frente. Os hobbits correram, descendo a ladeira. Glorfindel e Passolargo seguiam na retaguarda. Tinham atravessado apenas metade daquele espaço plano, quando de repente escutaram o galope de cavalos. Saindo por entre as árvores que tinham deixado havia pouco, viram um Cavaleiro Negro a galope. Puxou as rédeas de seu cavalo e parou, oscilando na sela. Um outro o seguiu, e depois outro, e mais dois ainda.
— Vá embora! Galope! — gritou Glorfindel para Frodo.
Ele não obedeceu imediatamente, pois uma estranha relutância o segurava.
Fazendo o cavalo andar, voltou-se e olhou para trás. Os Cavaleiros pareciam montar seus grandes cavalos como estátuas ameaçadoras sobre uma colina, enquanto toda a floresta e as terras à sua volta se retraíam dentro de uma espécie de névoa. De repente, percebeu que eles, em silêncio, ordenavam que esperasse. Então, de imediato, o medo e o ódio acordaram dentro dele. Sua mão abandonou a rédea e empunhou a espada, e com um clarão vermelho a desembainhou.
— Galope! Galope! — gritou Glorfindel, e então, alto e bom som, gritou para o cavalo na língua élfica —Noro lim, noro lim, Asfaloth!
Imediatamente, o cavalo saltou e correu como o vento ao longo do último trecho da Estrada. No mesmo momento, os cavalos negros vieram descendo a colina em perseguição, e dos Cavaleiros vinha um grito terrível, como aquele que Frodo escutara enchendo a floresta de terror na Quarta Leste, lá longe.
Houve resposta e para a infelicidade de Frodo e seus amigos, das árvores e rochas à sua esquerda, quatro outros Cavaleiros saíram em disparada. Dois vinham na direção de Frodo, dois galopavam alucinadamente para o Vau, para impedir sua fuga. Frodo tinha a impressão de que corriam como o vento, ficando rapidamente maiores e mais escuros, à medida que o trajeto que faziam convergia com o dele.
Frodo por um instante olho para trás, por sobre os ombros. Não conseguia mais ver os amigos. Os Cavaleiros estavam ficando para trás: nem mesmo seus grandes animais eram páreo em velocidade para o cavalo branco de Glorfindel. Olhou para frente de novo, e perdeu as esperanças. Parecia não haver chance de atingir o Vau antes de ser interceptado pelos outros, que esperavam numa emboscada. Agora podia vê-los com nitidez: parecia que tinham deixado de lado os capuzes e as capas pretas, e estavam vestidos de branco e cinza. As espadas estavam nuas nas mãos pálidas, elmos cobriam suas cabeças. Os olhos frios brilhavam, e eles o chamavam com vozes cruéis.
Agora o medo havia tomado conta da mente de Frodo. Não pensou mais em sua espada. Nenhum grito partiu dele. Fechou os olhos e agarrou-se à crina do cavalo. O vento assobiava em seus ouvidos, e os sinos dos arreios tilintavam frenética e estriduladamente. Um sopro de frio mortal o atravessou como uma lança quando, num último esforço, semelhante a um clarão de fogo branco, o cavalo élfico, como se estivesse voando, passou bem diante do rosto do Cavaleiro que ia na frente.
Frodo ouviu a água espirrar, espumando sob seus pés. Sentiu-a avançar e depois se afastar, quando o cavalo deixava o rio e se esforçava para subir o caminho de pedra. Estava subindo o barranco inclinado.
Tinha atravessado o Vau.
Mas os perseguidores vinham logo atrás. No topo do barranco, o cavalo parou e se voltou, relinchando furiosamente. Havia Nove Cavaleiros na beira da água lá embaixo, e o ânimo de Frodo fraquejou diante da ameaça daqueles rostos voltados para cima. Não conseguia pensar em nada que pudesse impedir que eles atravessassem o Vau com a rapidez com que ele o fizera, e sentia que era inútil tentar escapar pelo caminho comprido e incerto que ia do Vau até o limite de Valfenda, se os Cavaleiros chegassem a atravessar. De qualquer maneira, sentiu-se forçado a parar. O ódio mais uma vez se agitava nele, mas não tinha mais força para se recusar.
De repente, o Cavaleiro mais próximo esporeou seu cavalo, forçando-o a avançar. O cavalo refreou ao toque da água, empinando nas patas traseiras.
Com grande esforço, Frodo sentou-se ereto e brandiu a espada.
— Voltem! — gritou ele — Voltem para a Terra de Mordor, e não me sigam mais! — sua voz soava fina e trêmula aos seus próprios ouvidos.
Os Cavaleiros pararam, mas Frodo não tinha o poder de Tom Bombadil. Seus inimigos riam dele, com um riso rude e arrepiante.
— Volte! Volte! — gritavam eles — Vamos levá-lo para Mordor!
— Voltem! — sussurrou ele.
— O Anel! O Anel! — gritavam eles com vozes mortais, e imediatamente o líder forçou o cavalo para dentro da água, seguido de perto por outros dois.
— Por Elbereth e Lúthien, a Bela — disse Frodo num último esforço, levantando a espada — Vocês não terão nem o Anel, nem a mim!
Então o líder, que já tinha atravessado o Vau até a metade, levantou-se nos estribos, ameaçador, e ergueu a mão. Frodo foi tomado por uma espécie de adormecimento. Sentia a língua aderindo à boca, e o coração batendo com dificuldade. Sua espada quebrou e caiu da mão trêmula.
O cavalo élfico empinou, bufando.
O cavalo negro que vinha à frente já tinha quase saído da água.
Naquele momento, houve um trovão e um estrondo: um ruído enorme de águas fazendo rolar muitas pedras. Com a visão embaçada, Frodo conseguiu distinguir o movimento do rio embaixo dele se levantando, e descendo seu curso veio uma cavalaria emplumada de ondas brancas. Parecia a Frodo que chamas brancas piscavam nas cristas das ondas, e ele imaginou enxergar no meio da água cavaleiros brancos sobre cavalos brancos, com crinas espumantes. Os três Cavaleiros que ainda estavam na água sucumbiram: desapareceram, subitamente cobertos pela espuma furiosa. Os que estavam atrás recuaram, com medo.
Com os sentidos já bem fracos, Frodo escutou gritos, e teve a impressão de ver, atrás dos Cavaleiros que hesitavam na beira da água, uma figura brilhante de luz branca, e atrás dela corriam pequenas formas sombrias, acenando com chamas, que brilhavam na névoa cinzenta que caía sobre o mundo. Os cavalos negros ficaram alucinados, e, pulando para frente, apavorados, conduziram os cavaleiros para dentro da enchente que avançava. Seus gritos agudos foram afogados no ruído do rio, que os carregava para longe.
Então Frodo sentiu que estava caindo, e o ruído e a confusão pareceram aumentar e engoli-lo, juntamente com os inimigos. Não escutou nem viu mais nada.

[FIG. 15] FUGA PARA O VAU





 continua...




Aqui termina o Livro I, a PRIMEIRA PARTE deste volume.

* * *

Amanhã começaremos a SEGUNDA PARTE de "A Sociedade do Anel",
no capítulo 1 do Livro II






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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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