segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 73



LXXIII

A PROMESSA




E
ra efetivamente Morrel, que desde a véspera não sossegava. Com o instinto peculiar aos apaixonados e às mães, adivinhara que depois do regresso da Sra. de Saint-Méran e da morte do marquês se passaria qualquer coisa em casa de Villefort que interessaria ao seu amor por Valentine.
Como vimos, os seus pressentimentos tinham-se concretizado e já não era uma simples inquietação que o trazia, sobressaltado e trêmulo, ao portão dos castanheiros. Mas Valentine não estava prevenida de que Morrel a esperava, pois habitualmente ele não vinha àquela hora, e foi por mero acaso ou, se preferir, por feliz coincidência, que a jovem desceu ao jardim. Quando apareceu, Morrel chamou-a e ela correu para o portão.
— O senhor a esta hora? — admirou-se.
— Sim, pobre amiga — respondeu Morrel — Venho buscar e trazer más notícias.
— Nesse caso, estamos na casa da desgraça — observou Valentine — Fale, Maximilien. Mas na verdade a soma de sofrimentos é já mais do que suficiente.
— Querida Valentine — começou Morrel, procurando conter a sua própria emoção para falar convenientemente — Ouça-me com atenção, suplico-lhe, porque tudo o que lhe vou dizer é solene. Quando conta casar?
— Escute — disse por sua vez Valentine — Não quero esconder-lhe nada, Maximilien. Esta manhã falou-se do meu casamento, e a minha avó, com quem contava como um apoio que me não faltaria, não só se declarou a favor do casamento, como ainda o deseja a tal ponto que só o fato de o Sr. d’Epinay estar ausente o atrasa. Mas no dia seguinte ao da sua chegada o contrato será assinado.
Um doloroso suspiro saiu do peito do rapaz, que olhou longa e tristemente a jovem.
— Meu Deus — perguntou em voz baixa — É horrível ouvir dizer tranquilamente à mulher que se ama: “O momento do seu suplício está marcado; terá lugar dentro de poucas horas. Mas não importa, tem de ser assim e pela minha parte não lhe levantarei nenhuma oposição”. Pois bem, uma vez que, segundo diz, só se espera a chegada do Sr. d’Epinay para assinar o contrato e a Valentine será dele no dia seguinte ao da chegada, será já amanhã que pertencerá ao Sr. d’Epinay, pois ele chegou a Paris esta manhã.
Valentine soltou um grito.
— Encontrava-me em casa de Monte Cristo há uma hora — disse Morrel — Conversávamos, ele a respeito do luto desta casa e eu acerca do luto de Valentine, quando de súbito rodou uma carruagem no pátio. Ouça, até ali não acreditava em pressentimentos, Valentine; mas agora sou forçado a acreditar. O ruído daquela carruagem arrepiou-me; pouco depois ouvi passos na escada. Os passos sonoros do comendador não apavoraram mais D. João do que me apavoraram aqueles passos. Por fim, a porta abriu-se. Albert de Morcerf entrou à frente e eu ia a duvidar de mim mesmo, ia crer que me enganara, quando atrás dele apareceu outro rapaz e o Conde gritou: “Ah, o Sr. Barão Franz d’Epinay!”. Para me conter, apelei para tudo o que possuo de energia e coragem no coração. Talvez tenha empalidecido, talvez tenha tremido; mas sem dúvida nenhuma fiquei de sorriso nos lábios. No entanto, passados cinco minutos sai sem ter ouvido uma palavra do que se disse durante esses cinco minutos. Estava aniquilado.
— Pobre Maximilien! — murmurou Valentine.
— Aqui tem, Valentine. Agora responda-me, como a um homem a quem a sua resposta dará a morte ou a vida: que conta fazer?
Valentine baixou a cabeça; estava acabrunhada.
— Ouça — disse Morrel — Não é a primeira vez que pensa na situação em que nos encontramos. É uma situação grave, penosa, suprema. Não creio que seja este o momento para nos entregarmos a uma dor estéril; isso é bom para aqueles que sentem prazer em sofrer e beber as suas lágrimas resignadamente. Há pessoas assim e Deus lhes terá sem dúvida em conta no Céu a sua resignação na terra. Mas todo aquele que sinta vontade de lutar não perde um tempo precioso e retribui imediatamente ao destino o golpe que dele recebeu. Está disposta a lutar contra a adversidade, Valentine? Responda, pois é isso que lhe venho pedir.
Valentine estremeceu e cravou em Morrel uns grandes olhos assustados. A idéia de resistir ao pai, à avó, a toda a família, enfim, nem sequer lhe ocorrera.
— Que me diz, Maximilien? — perguntou Valentine — A que chama luta? Oh, isso é um sacrilégio! O quê, eu lutar contra a ordem de meu pai, contra a vontade de minha avó moribunda?! É impossível!
Morrel fez um movimento.
— O senhor é um coração demasiado nobre para me não compreender, e compreende-me muito bem, querido Maximilien, pois vejo-o calado. Lutar, eu? Deus me livre! Não, não. Guardo toda a minha energia para lutar contra mim mesma e beber as minhas lágrimas, como o senhor diz. Quanto a afligir meu pai, quanto a perturbar os últimos momentos da minha avó, nunca!
— Tem toda a razão — respondeu fleumaticamente Morrel.
— Como o senhor me diz isso, meu Deus! — exclamou Valentine, magoada.
— Digo-lhe isto como um homem que a admira, menina — acrescentou Maximilien.
— Menina! — exclamou Valentine — Menina! Oh, o egoísta, não vê o meu desespero e finge não me compreender!
— Engana-se. Pelo contrário, compreendo-a perfeitamente. Não quer contrariar o Sr. de Villefort nem quer desobedecer à marquesa e amanhã assinará o contrato que a ligará ao seu marido.
— Mas, meu Deus, posso porventura fazer outra coisa?
— Não apele para mim, menina, pois sou um mau juiz nessa causa e o meu egoísmo me cegará — respondeu Morrel, cuja voz abafada e os punhos cerrados denotavam exasperação crescente.
— Que me proporia, Morrel, se me encontrasse disposta a aceitar a sua proposta? Vamos, responda. Não basta dizer que faço mal, é preciso dar um conselho.
— Diz-me isso seriamente, Valentine? Quer de fato que a aconselhe? Responda.
— Decerto, querido Maximilien, porque se o conselho for bom, o seguirei. Bem sabe que tenho em alta conta a sua opinião.
— Valentine — disse Morrel, acabando de afastar uma tábua solta — Dê-me a sua mão como prova de que me perdoa a minha irritação. Como vê, estou com a cabeça num caos e há uma hora que as idéias mais disparatadas me atravessam o espírito. Oh, no caso de recusar o meu conselho!...
— Venha esse conselho.
— Aqui o tem, Valentine.
A jovem ergueu os olhos ao céu e soltou um suspiro.
— Sou livre — prosseguiu Maximilien — E suficientemente rico para nós dois. Juro-lhe que será minha mulher antes de os meus lábios lhe pousarem na testa.
— O senhor me assusta — disse a jovem.
— Venha comigo — continuou Morrel — A levarei para casa da minha irmã, que é digna de ser sua irmã. Embarcaremos para Argel, para Inglaterra ou para a América, se não preferir que nos retiremos para qualquer província e aí esperaremos, para regressar a Paris, que os nossos amigos vençam a resistência da sua família.
Valentine abanou a cabeça.
— Já o esperava, Maximilien — disse — É um conselho de insensato e eu seria ainda mais insensata do que o senhor se o não detivesse imediatamente com esta simples palavra: impossível, Morrel, impossível.
— Seguirá portanto o seu destino tal como o acaso o traçar e sem sequer tentar combatê-lo? — perguntou Morrel, contristado.
— Seguirei. Nem que tenha de morrer por isso!
— Está bem, Valentine — admitiu Maximilien — Repito-lhe mais uma vez que tem razão. De tato, eu é que sou um louco, enquanto a Valentine me prova que a paixão cega os espíritos mais justos. Obrigado, portanto, a si que raciocina sem paixão. Pronto, o caso está arrumado: amanhã será irrevogavelmente prometida ao Sr. Franz d’Epinay, não por via dessa formalidade teatral inventada para desenlace das comédias, e que se chama a assinatura do contrato, mas sim por sua própria vontade.
— Mais uma vez me desespera, Maximilien! — perguntou Valentine — Mais uma vez revolve o punhal na chaga? Diga-me, que faria se a sua irmã escutasse um conselho como o que acaba de me dar?
— Menina — respondeu Morrel, com um sorriso amargo — Sou um egoísta, como disse, e na minha qualidade de egoísta não penso no que fariam os outros na minha posição, mas sim no que conto fazer eu. Penso que a conheço há um ano e que, desde o dia em que a conheci, depositei todas as minhas oportunidades de felicidade no seu amor; que chegou um dia em que me disse que me amava; que nesse dia colocaria todas as minhas esperanças de futuro na sua posse. Era a minha vida. Agora não penso em mais nada; digo apenas para comigo que a sorte mudou, que esperava ganhar o Céu e o perdi. Isto acontece todos os dias, quando um jogador perde não só o que tem, mas também o que não tem.
Morrel pronunciou estas palavras com uma calma perfeita. Valentine fitou-o um instante com os seus grandes olhos perscrutadores, procurando não deixar que os de Morrel penetrassem até à agitação que lhe turbilhonava já no fundo do coração.
— Mas enfim, que vai fazer? — perguntou Valentine.
— Vou ter a honra de lhe dizer adeus, menina, tomando como testemunha Deus, que escuta as minhas palavras e lê no fundo do meu coração, de que lhe desejo uma vida bastante calma, bastante feliz e bastante cheia para que nela não haja lugar para a minha recordação.
— Oh! — murmurou Valentine.
— Adeus, Valentine, adeus! — disse Morrel, inclinando-se.
— Aonde vai? — gritou ela, estendendo a mão através das grades e agarrando Maximilien pela sobrecasaca, pois compreendia pela sua agitação interior que a calma do seu apaixonado não podia ser verdadeira — Aonde vai?
— Vou providenciar para não trazer nova perturbação à sua família e dar um exemplo que poderão seguir todos os homens honestos e dedicados que se encontrarem na minha situação.
— Antes de me deixar, diga-me o que vai fazer, Maximilien.
O jovem sorriu tristemente.
— Oh, fale, fale, suplico-lhe! — pediu Valentine.
— A sua resolução mudou, Valentine?
— Não pode mudar, infeliz! Sabe isso muito bem! — gritou a jovem.
— Então, adeus, Valentine!
Valentine abanou o portão com uma força de que ninguém a julgaria capaz. E como Morrel se afastasse, passou as mãos através das grades e juntou-as, torcendo os braços.
— Que vai fazer? Quero saber! — gritou — Aonde vai?
— Oh, esteja tranqüila! — respondeu Maximilien, parando a três passos do portão — Não tenho intenção de tomar outro homem responsável pelos rigores que o destino me reserva. Outro a ameaçaria, de ir procurar o Sr. Franz, de o provocar e de se bater com ele, mas tudo isso seria insensato. Qual é o papel do Sr. Franz no meio de tudo isto? Viu-me esta manhã pela primeira vez e já esqueceu que me viu. Nem sequer sabia da minha existência quando das convenções estabelecidas entre as suas duas famílias, em que ficou decidido que seriam um para o outro. Não tenho, portanto nada a ver com o Sr. Franz e juro-lhe que o não irei desafiar nem acusar de nada.
— Em quem se vingar então? Em mim?
— Em si, Valentine? Oh, não, Deus me defenda! A mulher é sagrada, e a mulher que se ama é santa.
— Em si mesmo, então, desgraçado, em si mesmo?
— Não sou eu o culpado? — observou Morrel.
— Maximilien — disse Valentine — Maximilien, venha cá, ordeno-lho!
Maximilien aproximou-se com o seu sorriso meigo, e se não fosse a sua palidez, se poderia julgá-lo no seu estado normal.
— Ouça, minha querida, minha adorada Valentine — disse na sua voz melodiosa e grave — As pessoas como nós, que nunca tiveram um pensamento de que tivessem de corar diante de ninguém, perante os seus pais e perante Deus, as pessoas como nós podem ler no coração um do outro como num livro aberto. Nunca armei em romântico, não sou um herói melancólico, nem tomo atitudes de Manfredo nem de Antony. Mas sem palavras, sem protestos, sem juramentos, dei-lhe a minha vida. Falta-me e tem motivo para proceder assim, já lho disse e repito-lho. Mas enfim, perco-a e a minha vida está perdida. A partir do momento em que se afastar de mim, Valentine, ficarei sozinho no mundo. A minha irmã é feliz com o marido, um marido que para mim não passa de um cunhado, isto é, de um homem ligado a mim apenas pelas convenções sociais. Ninguém necessita, portanto de mim neste mundo, a minha existência é inútil. Eis o que farei: esperarei até ao último segundo que esteja casada, pois não quero perder a sombra de uma dessas probabilidades inesperadas que às vezes nos reserva o acaso, porque, enfim, daqui até lá o Sr. Franz d’Epinay pode morrer, no momento em que se aproximarem um raio pode cair sobre o altar... tudo parece crível ao condenado à morte e para ele os milagres entram na classe do possível desde que se trate da salvação da sua vida. Esperarei, pois repito, até ao derradeiro momento, e quando a minha infelicidade for certa, irremediável, sem esperança, escreverei uma carta confidencial ao meu cunhado e outra ao prefeito da Polícia para o pôr ao corrente das minhas intenções, e num recanto de qualquer bosque, à beira de qualquer fosso, na margem de qualquer rio, farei saltar os miolos, tão certo como eu ser filho do homem mais honesto que alguma vez viveu na França.
Um tremor convulso agitou os membros de Valentine. Largou o portão, que segurava com ambas as mãos, os braços caíram-lhe ao longo do corpo e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. O rapaz ficou diante dela, sombrio e resoluto.
— Oh, por piedade, por piedade! — exclamou Valentine — Viverá, não é verdade?
— Palavra de honra que não — respondeu Maximilien — Mas que lhe interessa isso? Cumprirá o seu dever e ficará com a consciência tranqüila.
Valentine caiu de joelhos e comprimiu o coração, que parecia querer rebentar-lhe.
— Maximilien — disse — Maximilien, meu amigo, meu irmão na Terra, meu verdadeiro esposo no Céu, suplico-te que faças, como eu, que vivas com o sofrimento. Talvez um dia nos juntemos...
— Adeus, Valentine! — repetiu Morrel.
— Meu Deus — disse Valentine, erguendo as mãos ao céu com uma expressão sublime — Bem vê que fiz tudo o que podia para me conservar filha submissa: pedi, supliquei, implorei, mas ele não ouviu nem os meus pedidos, nem as minhas súplicas, nem as minhas lágrimas. Pois bem — continuou, enxugando as lágrimas e recuperando a sua firmeza — Não quero morrer de remorsos, prefiro morrer de vergonha. Viverá, Maximilien, e não serei de ninguém a não ser de si. A que horas? Em que momento? Imediatamente? Fale, ordene, estou pronta.
Morrel, que dera de novo alguns passos para se afastar, voltou para trás e, pálido de alegria, com o coração dilatado, estendeu através das grades as mãos a Valentine.
— Valentine — disse — Querida amiga, não me fale assim ou então terei de me deixar morrer. Por que motivo a deveria à violência, se me ama como a amo? Quer obrigar-me a viver apenas por humanidade? Nesse caso, prefiro morrer.
— Na verdade — murmurou Valentine — Quem é que me ama no mundo? Ele. Quem me tem confortado em todos os meus sofrimentos? Ele. Em quem deposito as minhas esperanças, em quem se fixa o meu olhar transviado, em que descansa o meu coração ensangüentado? Nele, nele, sempre nele. Pois bem, tem também razão, Maximilien: te seguirei, deixarei a casa paterna, tudo. Oh, como sou ingrata! — exclamou Valentine, soluçando — Tudo... até do meu avô me esquecia!
— Não — atalhou Maximilien — Não o deixarás. Disse-me que o Sr. Noirtier pareceu manifestar simpatia por mim. Pois antes de fugir conte-lhe tudo, fará do seu consentimento um escudo perante Deus. Depois, assim que casarmos irá viver conosco. Em vez de um neto terá dois. Disseste-me como te falava e como lhe respondias, depressa aprenderei essa linguagem comovente de sinais, Valentine. Oh, juro-te que em vez do desespero que nos espera é a felicidade que te prometo!
— Repara, Maximilien, repara como é grande a tua influência sobre mim... quase me faz acreditar no que me diz, e, no entanto o que me diz é insensato, pois o meu pai me amaldiçoará. Conheço-lhe o coração inflexível e sei que nunca me perdoará. Por isso, escute-me, Maximilien: se por artifício, por súplica ou por acidente, sei lá... se, enfim, por qualquer meio conseguir adiar o casamento, esperará por mim?
— Esperarei, juro-o, desde que me jures também que esse horrível casamento não se realizará e que, ainda que te arrastem perante o magistrado, perante o padre, dirá não.
— Juro, Maximilien, pelo que tenho de mais sagrado no mundo, pela memória da minha mãe!
— Esperemos então — disse Morrel.
— Sim, esperemos — repetiu Valentine, que respirou ao ouvir esta palavra — Há tantas coisas que podem salvar infelizes como nós.
— Confio em ti, Valentine — acrescentou Morrel — Tudo o que fizer estará bem feito. No entanto, se não fizerem caso das suas súplicas, se o teu pai e a Sra. de Saint-Méran exigirem que o Sr. Franz d’Epinay seja chamado amanhã para assinar o contrato...
— Nesse caso, tem a minha palavra, Morrel.
— Em vez de assinar...
— Virei ter contigo e fugiremos. Mas, entretanto não tentemos Deus, Morrel; não nos vejamos. E um milagre que ainda não nos tenham surpreendido, uma graça da Providência. Se nos surpreendessem, se soubessem como nos encontramos, estaria tudo perdido.
— Tem razão, Valentine. Mas como saber...
— Pelo tabelião, o Sr. Deschamps.
— Conheço-o.
— E por mim mesma. Te escreverei, acredite. Meu Deus, este casamento Maximilien, me é tão odioso como a você!
— Ainda bem, ainda bem! Obrigado, minha Valentine. Adorada — disse Morrel — Está tudo combinado, então: assim que souber a hora, correrei aqui, transporá este muro nos meus braços, o que não será difícil, uma carruagem te esperará a porta da cerca, subirá para ela comigo e te levarei para casa da minha irmã. Lá, incógnitos, se quiser, ou abertamente, se o desejar, teremos a consciência da nossa força e da nossa vontade e não nos deixaremos degolar como o cordeiro que só se defende com os seus balidos.
— Seja — concordou Valentine — Por minha vez, digo-te: Maximilien, o que fizer estará bem feito.
— Oh!...
— Então, está contente com a tua mulher? — perguntou tristemente a jovem.
— Minha Valentine adorada, é bem pouco dizer que sim.
— Diz sempre.
Valentine aproximara-se, ou antes, aproximara os lábios da grade, e as suas palavras deslizavam, com o seu hálito perfumado, até aos lábios de Morrel, que colava a boca do outro lado do frio e inexorável tapume.
— Adeus! — despediu-se Valentine, arrancando-se àquele enleio.
— Adeus!
— Me escreverá?
— Sim.
— Obrigado, querida mulher! Adeus.
Ouviu-se o ruído de um beijo inocente e perdido e Valentine fugiu por baixo das tílias. Morrel escutou os últimos ruídos do seu vestido ao roçar na vegetação e dos seus pés a fazerem ranger o saibro, ergueu os olhos ao céu com um sorriso inefável para agradecer a Deus permitir-lhe ser amado assim, e desapareceu por seu turno.
O rapaz regressou a casa e esperou durante todo o resto da noite e durante todo o dia seguinte sem receber nada. Por fim, dois dias depois, por volta das dez horas da manhã, quando se preparava para ir procurar o Sr. Deschamps, o tabelião, recebeu pelo correio um bilhetinho que reconheceu ser de Valentine, embora nunca lhe tivesse visto a letra. Era concebido nestes termos:


Lágrimas, súplicas, rogos, nada conseguiram. Ontem, estive durante duas horas na Igreja de São Filipe do Roule, e durante essas duas horas pedi a Deus do fundo da alma. Mas Deus mostra-se insensível como os homens e a assinatura do contrato está marcada para esta noite às nove horas. Só tenho uma palavra, tal como só tenho um coração, Morrel; e essa palavra dei-la. Quanto ao coração, é teu! Portanto, esta noite, às nove horas menos um quarto, te espero no portão.
Tua mulher,

Valentine de Villefort.

P.S. A minha pobre avó vai de mal a pior. Ontem, a sua exaltação transformou-se em delírio; hoje, o seu delírio é quase loucura. Me amará muito, não é verdade, Morrel, para me esquecer de que a deixarei neste estado? Creio que escondem ao avô Noirtier que a assinatura do contrato está marcada para esta noite.


Morrel não se contentou com as informações que lhe dava Valentine. Foi a casa do tabelião, que lhe confirmou a notícia de que a assinatura do contrato estava marcada para as nove horas da noite.
Em seguida passou por casa de Monte Cristo e foi lá que soube o resto: Franz viera anunciar a cerimônia; pela sua parte, a Sra. de Villefort escrevera ao Conde pedindo-lhe desculpa por o não convidá-lo, mas a morte do Sr. de Saint-Méran e o estado em que se encontrava a viúva lançavam sobre a reunião um véu de tristeza, que não queria nublasse a fronte do Conde, a quem desejava as maiores felicidades.
Na véspera, Franz fora apresentado à Sra. de Saint-Méran, que deixara o leito para essa apresentação e para ele voltara imediatamente.
Como é fácil de compreender, Morrel encontrava-se num estado de agitação que não podia escapar a um olhar tão penetrante como era o do Conde. Por isso, Monte Cristo foi para com ele mais afetuoso do que nunca; tão afetuoso que por duas ou três vezes Maximilien esteve prestes a contar-lhe tudo. Recordou-se, porém, da promessa formal feita a Valentine e o seu segredo permaneceu-lhe no fundo do coração.
O jovem releu vinte vezes durante o dia a carta de Valentine. Era a primeira vez que ela lhe escrevia e logo naquelas circunstâncias. Todas as vezes que relia a carta, Maximilien renovava a si mesmo o juramento de tornar Valentine feliz. Com efeito, que autoridade não tem a moça que toma uma resolução tão corajosa! Que dedicação não merece da parte daquele a quem tudo sacrifica! Como deve ser realmente para o seu apaixonado o primeiro e mais digno objeto do seu culto! É simultaneamente rainha e mulher e um coração não basta para lhe agradecer e para a amar.
Morrel pensava com inexprimível agitação no momento em que Valentine chegaria e diria:
“Aqui estou, Maximilien, sou tua!”
Organizara pormenorizadamente a fuga: escondera duas escadas na luzerna do cercado; esperava-os um cabriolé, que o próprio Maximilien conduziria; nada de criados, nada de luzes; só virada a esquina da primeira rua acenderiam as lanternas, a fim de evitarem, por um excesso de precauções, cair nas mãos da Polícia.
De vez em quando todo o corpo de Morrel era percorrido por arrepios. Pensava no momento em que, do alto do muro, protegeria a descida de Valentine e em que sentiria trêmula e abandonada nos seus braços aquela a quem nunca apertara mais do que a mão e beijara a ponta dos dedos. Mas quando chegou a tarde, quando Morrel sentiu aproximar-se a hora, experimentou a necessidade de estar só. O sangue fervia-lhe, as simples perguntas ou até apenas a voz de um amigo o teriam irritado. Fechou-se no seu quarto e tentou ler; mas o seu olhar deslizou pelas páginas sem nada compreender do que nelas estava escrito, e acabou por largar o livro para voltar a desenhar pela segunda vez o seu plano, as suas escadas e o seu terreno.
Por fim a hora aproximou-se.
Nunca um homem deveras apaixonado deixou os relógios marcarem tranquilamente o tempo. Morrel atormentou de tal forma os seus que eles acabaram por marcar oito e meia às seis horas. Disse então para consigo que era tempo de ir, que nove horas era efetivamente a hora da assinatura do contrato, mas que segundo todas as probabilidades, Valentine não esperaria por essa assinatura inútil, e depois de tudo isto Morrel cometeu a proeza de partir da Rua Meslay às oito e meia no seu relógio de sala e entrar no cercado quando davam oito horas em São Filipe do Rouie!
Cavalo e cabriolé foram escondidos atrás de um casebre em ruínas, em que Morrel costumava abrigar-se. Pouco a pouco anoiteceu e as folhagens do jardim transformaram-se em frondosos tufos de um negro opaco.
Morrel saiu então do casebre e foi espreitar, com o coração palpitante, pelo buraco do portão. Não havia ainda ninguém.
Soaram oito e meia.
Passou mais meia hora. Morrel passeava de um lado para o outro, e a intervalos cada vez mais curtos espreitava pelas tábuas. O jardim escurecia de momento a momento, mas nas trevas em vão se procuraria o vestido branco de Valentine e no silêncio inutilmente se tentaria distinguir o ruído dos seus passos. A casa, que se divisava através da folhagem, permanecia às escuras e não apresentava nenhuma das características de uma casa que se abre para um acontecimento tão importante como é a assinatura de um contrato de casamento.
Morrel consultou o seu relógio, que marcava nove horas e três quartos; mas quase imediatamente a mesma voz do relógio já ouvida duas ou três vezes retificou o erro do relógio de bolso batendo nove e meia.
Passava já meia hora da que a própria Valentine marcara: ela dissera nove horas, para menos, que não para mais. Aquele foi o momento mais terrível para o coração do rapaz, no qual cada segundo caía como um martelo de chumbo.
O mais tênue ruído da folhagem, o mais pequeno sopro do vento faziam-no apurar o ouvido e cobriam-lhe a testa de suor. Então, muito trêmulo, prendia a escada e, para não perder tempo, punha o pé no primeiro degrau. No meio destas alternâncias de dúvida e esperança, destas dilatações e destes apertos de coração, soaram dez horas na igreja.
— Oh! — murmurou Maximilien, com terror — É impossível que a assinatura de um contrato dure tanto tempo, a menos que se verifiquem acontecimentos imprevistos. Já avaliei todas as hipóteses e calculei o tempo que duram todas as formalidades, e não há dúvida que aconteceu qualquer coisa.
E então, ora passeava agitado diante do portão, ora ia apoiar a testa escaldante no ferro gelado. Teria Valentine desmaiado depois do contrato ou fora detida na fuga? Estas eram as duas únicas hipóteses em que o jovem se podia deter, ambas desesperantes.
A idéia a que se agarrou foi a de que, em plena fuga, as forças tinham faltado a Valentine e esta caíra sem sentidos no meio de alguma alameda.
— Oh, sendo assim — gritou, correndo para o cimo da escada — A perderei e por minha culpa!
O demônio que lhe segredara este pensamento já não o deixou e passou a sussurrar-lho ao ouvido com aquela persistência que faz com que certas dúvidas, ao cabo de um instante, pela força do raciocínio, se transformem em convicções. Os seus olhos, que procuravam devassar a escuridão crescente, julgavam distinguir na alameda sombria um corpo caído. Morrel arriscou-se a chamar e pareceu-lhe que o vento lhe trazia um gemido inarticulado.
Por fim, deram dez e meia.
Era-lhe impossível conter-se mais tempo; todas as hipóteses eram admissíveis. As têmporas de Maximilien latejavam com força e passavam-lhe nuvens diante dos olhos. Encavalitou-se no muro e saltou para o outro lado. Estava na casa de Villefort, onde acabava de entrar por escalamento. Lembrou-se das conseqüências que lhe poderia acarretar semelhante procedimento, mas não viera até ali para recuar. Num instante encontrou-se na extremidade do maciço. Do ponto onde estava via-se a casa.
Então, Morrel assegurou-se de uma coisa de que já suspeitara ao tentar ver através das árvores: em lugar das luzes que pensava ver brilhar em cada janela, como é natural nos dias de cerimônia, só viu a massa cinzenta do edifício, velada ainda por uma grande cortina de sombra projetada por uma nuvem imensa que tapava a Lua.
De vez em quando, como que transviada, passava a correr uma luz diante de três janelas do primeiro andar. Essas três janelas eram as dos aposentos da Sra. de Saint-Méran. Outra luz permanecia imóvel atrás dos cortinados vermelhos do quarto da Sra. de Villefort.
Morrel adivinhou tudo isto. Tantas vezes, para acompanhar Valentine em pensamento a qualquer hora do dia, esboçara a planta da casa, que a conhecia sem a ter visto. O rapaz ficou ainda mais assustado com aquela escuridão e aquele silêncio do que ficara com a ausência de Valentine.
Desorientado, louco de dor, decidido a arriscar tudo para tornar a ver Valentine e assegurar-se da desgraça que pressentia, fosse qual fosse, Morrel alcançou a orla do maciço e preparava-se para atravessar o mais rapidamente possível o jardim, em campo aberto, quando um som de vozes ainda bastante afastado, mas que o vento lhe trazia, chegou até si.
Ao ouvir tal barulho, recuou um passo; já meio saído da folhagem, embrenhou-se nela completamente e ficou imóvel e calado, mergulhado na obscuridade.
A sua resolução estava tomada: se fosse Valentine, sozinha, a avisaria com uma palavra à sua passagem; se Valentine estivesse acompanhada, pelo menos a veria e se asseguraria de que não lhe acontecera nenhum mal; se fossem estranhos, apanharia algumas palavras do seu diálogo, que talvez lhe permitissem compreender aquele mistério, até ali incompreensível.
A Lua saiu então da nuvem que a ocultava e Morrel viu aparecer Villefort à porta da entrada principal, acompanhado de um homem vestido de preto. Desceram os degraus e dirigiram-se para o maciço. Ainda não tinham dado quatro passos quando Morrel reconheceu o Dr. de Avrigny no homem vestido de preto.
Ao ver que vinham na sua direção, o jovem recuou maquinalmente diante deles, até encontrar o tronco de um sicômoro que formava o centro do maciço; ai foi obrigado a parar. Em breve o saibro deixou de ranger sob os passos dos dois passeantes.
— Ah, caro doutor, decididamente, o Céu declara-se contra a minha casa! — disse o Procurador Régio — Que morte horrível! Que golpe inesperado! Não tente confortar-me; infelizmente, a chaga é demasiado viva e profunda! Morte, morte!
Um suor frio gelou a fronte do rapaz e o fez bater os dentes. Quem teria morrido naquela casa que o próprio Villefort dizia amaldiçoada?
— Meu caro Sr. de Villefort — respondeu o médico, num tom que redobrou o terror do rapaz — Não o trouxe aqui para o confortar, muito pelo contrário.
— Que quer dizer? — perguntou o Procurador Régio, assustado.
— Quero dizer que atrás da desgraça que acaba de lhe acontecer existe outra talvez ainda maior.
— Oh, meu Deus! — murmurou Villefort, juntando as mãos — Que mais me vai dizer?
— Estamos bem sós, meu amigo?
— Sim, estamos absolutamente sós... mas que significam todas essas precauções?
— Significam que tenho uma confidência terrível a fazer-lhe — respondeu o médico — Sentemo-nos.
Villefort mais se deixou cair do que se sentou no banco. O médico ficou de pé diante dele, com uma das mãos pousada no ombro do magistrado. Morrel, gelado de terror, tinha uma das mãos na testa e com a outra comprimia o coração, cujas pulsações receava se ouvissem.
“Morte, morte!”, repetia em pensamento com a voz do coração.
E ele próprio se sentia morrer.
— Fale, doutor, escuto-o — disse Villefort — Fira, estou preparado para tudo.
— A Sra. de Saint-Méran era de fato muito idosa, sem dúvida, mas gozava de excelente saúde.
Morrel respirou pela primeira vez nos últimos dez minutos.
— O desgosto matou-a — disse Villefort — Sim, o desgosto, doutor! Há quarenta anos que estava habituada a viver com o marquês...
— Não foi o desgosto, meu caro Villefort — perguntou o médico — O desgosto pode matar, embora os casos sejam raros, mas não mata num dia, mas não mata numa hora, mas não mata em dez minutos.
Villefort não respondeu nada; apenas levantou a cabeça, que até ali conservara baixa, e fitou o médico com olhos esgazeados.
— Assistiu à agonia? — perguntou o Sr. de Avrigny.
— Assisti — respondeu o Procurador Régio — O senhor disse-me em voz baixa para não me afastar.
— Notou os sintomas do mal a que a Sra. de Saint-Méran sucumbiu?
— Certamente. A Sra. de Saint-Méran teve três ataques sucessivos com poucos minutos de intervalo uns dos outros e de cada vez mais próximos e mais graves. Quando o senhor chegou, havia já alguns minutos que a Sra. de Saint-Méran estava arquejante; teve então uma crise, que tomei por um simples ataque de nervos; mas só me comecei a assustar realmente quando a vi soerguer-se na cama, com os membros e o pescoço estendidos. Então, pelo seu rosto, doutor, compreendi que o caso era mais grave do que supunha. Passada a crise, procurei os seus olhos, mas já os não encontrei, doutor. O senhor segurava-lhe no pulso e contava as pulsações, e a segunda crise surgiu antes de o meu amigo se virar para mim. Essa segunda crise foi mais terrível do que a primeira. Verificaram-se os mesmos movimentos nervosos e a boca contraiu-se e tornou-se roxa. À terceira, expirou. Já depois do fim da primeira eu tinha reconhecido o tétano, e o senhor confirmou-me tal opinião.
— Sim, diante de toda as pessoas — salientou o médico — Mas agora estamos sós.
— Que me vai dizer, meu Deus?
— Que os sintomas do tétano e do envenenamento por produtos vegetais são absolutamente os mesmos.
O Sr. de Villefort levantou-se. Em seguida, depois de um instante de imobilidade e silêncio, voltou a deixar-se cair no banco.
— Meu Deus, doutor, pensou bem no que acaba de me dizer?
Morrel não sabia se sonhava ou se estava acordado.
— Ouça — disse o médico — Conheço a importância da minha declaração e o cargo do homem a quem a faço.
— É ao magistrado ou ao amigo que fala? — perguntou Villefort.
— Ao amigo, apenas ao amigo, neste momento. As semelhanças entre os sintomas do tétano e os sintomas do envenenamento por substâncias vegetais são de tal modo grandes que se tivesse de assinar o que lhe digo declaro-lhe que hesitaria. Por isso, repito-lhe, não é ao magistrado que me dirijo, é ao amigo. Pois bem, ao amigo digo: durante os três quartos de hora que durou, estudei a agonia, as convulsões e a morte da Sra. de Saint-Méran, e é minha convicção que não só a Sra. de Saint-Méran morreu envenenada, como ainda direi... sim, direi que conheço o veneno que a matou.
— Senhor, senhor!
— Tudo se conjuga, repare: sonolência interrompida por crises nervosas, sobre-excitação do cérebro, torpor dos centros... a Sra. de Saint-Méran sucumbiu a uma dose violenta de brucina ou estricnina, que por acaso, sem dúvida, que por erro, talvez, lhe administraram.
Villefort pegou na mão do médico.
— Oh, é impossível! — exclamou — Sonho, meu Deus! Sonho! É horrível ouvir dizer semelhantes coisas por um homem como o senhor! Em nome do Céu, suplico-lhe, caro doutor, que me diga que pode estar enganado!
— Sem dúvida que posso, mas...
— Mas?...
— Mas não creio.
— Doutor, tenha compaixão de mim. Há alguns dias acontecem-me tantas coisas inauditas que creio na possibilidade de enlouquecer.
— Mais alguém além de mim viu a Sra. de Saint-Méran?
— Ninguém.
— Mandaram aviar à farmácia alguma receita que me não tenham mostrado?
— Nenhuma.
— A Sra. de Saint-Méran tinha inimigos?
— Nunca os conheci.
— Alguém tinha interesse na sua morte?
— Não, meu Deus, não! A minha filha é a sua única herdeira. Valentine sozinha... oh, se semelhante pensamento me assaltasse me apunhalaria para castigar o meu coração por ter sido capaz de abrigar um só instante tal pensamento!
— Deus não permita, caro amigo — perguntou o Sr. de Avrigny — Que não tenha de acusar alguém! Refiro-me apenas a um acidente, compreende? A um erro. Mas acidente ou erro, o fato aí está a falar em voz baixa à minha consciência e a exigir que a minha consciência lhe fale em voz alta. Informe-se.
— Com quem? Como? De quê?
— Vejamos: Barrois, o criado velho, não teria se enganado e dado à Sra. de Saint-Méran alguma poção preparada para o seu amo?
— Para o meu pai?
— Sim.
— Mas como poderia uma poção preparada para o Sr. Noirtier envenenar a Sra. de Saint-Méran?
— Nada mais simples: como sabe, em certas doenças os venenos atuam como um remédio. A paralisia é uma dessas doenças. Há cerca de três meses, depois de ter empregado tudo para restituir o movimento e a palavra ao Sr. Noirtier, decidi tentar um último meio; há três meses, repito, que o trato com brucina. Assim, na última poção que lhe receitei entravam seis centigramas de brucina; seis centigramas sem ação sobre os órgãos paralisados do Sr. Noirtier, e aos quais, aliás ele se acostumou por meio de doses sucessivas, seis centigramas bastam para matar qualquer outra pessoa que não seja ele.
— Meu caro doutor, não há nenhuma comunicação entre os aposentos do Sr. Noirtier e os da Sra. de Saint-Méran, e nunca Barrois entraria no quarto da minha sogra. Enfim, doutor, permita-me que lhe diga que, embora o considere o homem mais competente e, sobretudo mais consciencioso do mundo, embora em todas as circunstâncias a sua palavra seja para mim, uma luz que me guia, à semelhança da luz do Sol, pois bem, doutor, pois bem... apesar dessa convicção, necessito de me apoiar neste axioma: errare humanum est.
— Escute, Villefort — replicou o médico — Existe algum colega meu em quem tenha tanta confiança como em mim?
—Porque pergunta isso? Aonde quer chegar?
— Chame-o, e lhe direi o que vi, o que notei, e faremos a autópsia.
— E encontrarão vestígios do veneno?
— Não, do veneno, não; não disse isso. Mas verificaremos a irritação do sistema nervoso, reconheceremos a asfixia patente, incontestável, e lhe diremos: “Caro Villefort, se foi por negligência que o caso aconteceu, vigie os seus criados; se foi por ódio, vigie os seus inimigos”.
— Oh, meu Deus, que está propondo, Avrigny?! — respondeu Villefort, abatido — A partir do momento em que haja outro, além do senhor, metido no segredo, me imporá proceder a um inquérito, e um inquérito em minha casa é impossível! No entanto — prosseguiu o Procurador Régio, contendo-se e olhando o médico com inquietação — No entanto, se quer, se o exige absolutamente, eu o farei. Com efeito, talvez deva dar seguimento ao caso... o meu cargo impõe-me. Mas, doutor, semelhante idéia aflige-me e entristece-me antecipadamente, como vê: introduzir na minha casa tanto escândalo depois de tanta dor... oh, a minha mulher e a minha filha morreriam! E eu, eu, doutor, o senhor bem sabe que um homem não chega aonde eu cheguei, um homem não é procurador régio durante vinte e cinco anos sem ter arranjado bom número de inimigos. Os meus são numerosos. Este caso, uma vez divulgado, será para eles um triunfo que os fará pular de alegria e a mim me cobrir de vergonha. Doutor, desculpe-me estas idéias mundanas. Se o senhor fosse um padre, não ousaria dizer-lhe isto; mas o senhor é um homem e conhece os outros homens. Doutor, doutor, o senhor não me disse nada, não é verdade?
— Meu caro Sr. de Villefort — respondeu o médico, abalado  — O meu primeiro dever é a humanidade. Teria salvado a Sra. de Saint-Méran se a ciência a pudesse salvar, mas ela está morta e eu devo-me aos vivos. Sepultemos no mais profundo dos nossos corações esse terrível segredo. Se os olhos de alguém se abrirem a tal respeito, permitirei que se impute à minha ignorância o silêncio que guardarei. Entretanto, senhor, continue a procurar, procure ativamente, pois talvez as coisas não fiquem por ai... e quando descobrir o culpado, se o descobrir, serei eu que lhe direi: “O senhor é um magistrado, faça o que quiser”.
— Oh, obrigado, obrigado, doutor! — exclamou Villefort, com indizível alegria — Nunca tive melhor amigo do que o senhor.
E como se temesse que o Sr. de Avrigny voltasse com a palavra atrás, levantou-se e arrastou o médico para os lados da casa.
Afastaram-se.
Morrel, como se tivesse necessidade de respirar, deitou a cabeça tora do arvoredo e a Lua iluminou-lhe o rosto tão pálido que o poderiam tomar por um fantasma.
— Deus protege-me de uma evidente mas terrível forma — murmurou — Mas Valentine, Valentine, pobre amiga, resistirá ela a tanto sofrimento?
A medida que proferia estas palavras, olhava alternadamente as janelas dos cortinados vermelhos e as três janelas de cortinados brancos. A luz desaparecera quase completamente da janela dos cortinados vermelhos. Sem dúvida a Sra. de Villefort acabava de apagar o candeeiro e a lamparina mal se refletia nos vidros.
Na extremidade do edifício, pelo contrário, viu abrir uma das três janelas de cortinados brancos. Uma vela colocada na chaminé projetou no exterior alguns raios da sua luz pálida e uma sombra veio por instantes à varanda. Morrel estremeceu; parecia-lhe ter ouvido um soluço.
Não era de admirar que aquela alma, habitualmente tão corajosa e tão forte, mas agora perturbada e exaltada pelas duas mais fortes paixões humanas, o amor e o medo, tivesse enfraquecido ao ponto de sofrer alucinações supersticiosas.
Embora fosse impossível, oculto como estava, que o olhar de Valentine o distinguisse, julgou ser chamado pela sombra da janela; o seu espírito perturbado dizia-lho e o seu coração ardente repetia-lho. Este duplo erro transformou-se numa realidade irresistível e, por um desses incompreensíveis impulsos da juventude, Morrel saltou para fora do seu esconderijo e em duas passadas, com risco de ser visto, de assustar Valentine e de esta dar o alarme por meio de algum grito involuntário, transpôs o jardim, que o luar tornava amplo e branco como um lago, e, depois de alcançar o renque de laranjeiras que se estendia diante da casa, atingiu os degraus da escadaria, que subiu rapidamente, e empurrou a porta, que se abriu sem resistência diante dele.
Valentine não o vira. Os seus olhos erguidos para o céu seguiam uma nuvem prateada que deslizava no azul e cuja forma era a de um fantasma a subir ao céu. O seu espírito exaltado segredava-lhe que era a alma da avó.
Entretanto, Morrel atravessara a antecâmara e encontrara o corrimão da escada. A passadeira que cobria os degraus abafava-lhe os passos. Aliás, Morrel chegara a tal ponto de exaltação que nem a presença do próprio Villefort o teria assustado. Se Villefort lhe aparecesse, a sua resolução estava tomada: se aproximaria dele, lhe confessaria tudo e lhe pediria desculpa e que aprovasse aquele amor que o ligava à filha e a filha a ele.
Morrel estava louco.
Por sorte, não encontrou ninguém.
E foi então que o conhecimento que adquirira através de Valentine da planta interior da casa lhe serviu. Chegou sem novidade ao cimo da escada, e como, uma vez lá, procurasse orientar-se, um soluço que reconheceu indicou-lhe o caminho que devia seguir. Virou-se. Uma porta entreaberta deixava chegar até ele o reflexo de uma luz e o som da voz que gemia.
Empurrou essa porta e entrou.
Ao fundo de uma alcova, debaixo do lençol branco que lhe cobria a cabeça e lhe desenhava a forma, jazia a morta, mais assustadora ainda aos olhos de Morrel depois da revelação do segredo de que o acaso o tornara possuidor. Ao lado da cama, de joelhos, com a cabeça escondida nas almofadas de uma grande poltrona, Valentine, trêmula e agitada pelos soluços, estendia por cima da cabeça, que se não via, as mãos juntas e hirtas.
Deixara a janela, que ficara aberta, e rezava em voz alta num tom que comoveria o coração mais insensível. As palavras safam-lhe dos lábios, rápidas, incoerentes, ininteligíveis, de tal forma a dor lhe apertava a garganta com os seus tentáculos ardentes.
O luar, insinuando-se através da abertura das persianas, tornava mais pálida a luz da vela e cobria de tons fúnebres aquele quadro desolador.
Morrel não pode resistir àquele espetáculo. Não era de uma devoção exemplar nem era fácil de impressionar, mas Valentine a sofrer, a chorar, a torcer os braços na sua presença, era mais do que podia suportar em silêncio. Soltou um suspiro, murmurou um nome e a cabeça imersa em lágrimas e contrastante com o veludo da poltrona, uma cabeça de Madalena, de Correggio, ergueu-se e ficou virada para ele.
Valentine viu-o e não demonstrou qualquer surpresa. Não existem emoções intermédias num coração ocupado por um desespero supremo. Morrel estendeu a mão à amiga. Como única desculpa de não ter ido ao seu encontro, Valentine indicou-lhe o cadáver jacente sob o lençol fúnebre e recomeçou a soluçar.
Nem um nem outro ousava falar naquele quarto. Ambos hesitavam em quebrar aquele silêncio que parecia imposto pela Morte, de pé em qualquer canto e com o dedo nos lábios. Por fim, Valentine foi a primeira a aventurar-se.
— Amigo, como está aqui? — perguntou — Diria “Seja bem-vindo”, se não fosse a Morte quem lhe abriu a porta desta casa.
— Valentine — disse Morrel com voz trêmula e de mãos juntas — Esperei-a desde as oito e meia. Como a não visse vir, inquietei-me, saltei o muro e penetrei no jardim. Então, vozes que falavam do fatal acidente...
— Que vozes? — perguntou Valentine.
Morrel estremeceu, pois toda a conversa do médico e do Sr. de Villefort lhe acudiu ao espírito, e através do lençol julgava ver os braços contorcidos, o pescoço rígido e os lábios roxos da morta.
— Vozes dos seus criados revelaram-me tudo.
— Mas vir aqui equivale a perder-nos, meu amigo — observou Valentine, sem terror e sem cólera.
— Perdoe-me — respondeu Morrel, no mesmo tom — Vou-me retirar.
— Não — perguntou Valentine — O encontrariam. Fique.
— Mas se vem alguém?
A jovem abanou a cabeça.
— Não virá ninguém, esteja descansado — disse — Está ali a nossa proteção.
E indicou o cadáver moldado pelo lençol.
— Mas que foi leito do Sr. d’Epinay? Diga-me, suplico-lhe — pediu Morrel.
— O Sr. Franz chegou para assinar o contrato no momento em que a minha boa avó exalava o último suspiro.
— Graças a Deus! — exclamou Morrel, com uma sensação de alegria egoísta, pois pensava para consigo mesmo que aquela morte retardaria indefinidamente o casamento de Valentine.
— Mas o que redobra a minha dor — continuou a jovem, como se tal sensação devesse receber imediatamente castigo — É que a pobre e querida avó ordenou, ao morrer, que se efetuasse o casamento o mais cedo possível. Também ela, meu Deus! Julgando proteger-me, também ela agia contra mim.
— Escute! — sussurrou Morrel.
Os dois jovens ficaram silenciosos. Ouviu-se abrir uma porta e passos fazerem estalar o par qué do corredor e os degraus da escada.
— É o meu pai que sai do seu gabinete — disse Valentine.
— E acompanha o médico — acrescentou Morrel.
— Como sabe que é o médico? — perguntou Valentine, surpreendida.
— Presumo — respondeu Morrel.
Valentine olhou o rapaz. Entretanto, ouviu-se fechar a porta da rua. O Sr. de Villefort foi ainda dar outra volta à chave da do jardim e em seguida voltou a subir a escada. Chegado à antecâmara, parou um instante, como se hesitasse se devia entrar no seu quarto ou no quarto da Sra. de Saint-Méran. Morrel correu para trás de um reposteiro. Valentine não fez um gesto; diria que uma dor suprema a colocava acima dos temores vulgares.
O Sr. de Villefort entrou no seu quarto.
— Agora — disse Valentine — O senhor não pode sair nem pela porta do jardim, nem pela da rua.
Morrel olhou a jovem atônito.
— Agora — continuou ela — Só há uma saída possível e segura: a dos aposentos do meu avô.
Levantou-se.
— Venha — disse.
— Aonde? — perguntou Maximilien.
— Aos aposentos do meu avô.
— Eu, aos aposentos do Sr. Noirtier?!
— Sim.
— Já pensou no que vai fazer, Valentine?
— Já e há muito tempo. Só tenho esse amigo no mundo e ambos precisamos dele... venha.
— Cautela, Valentine — aconselhou Morrel, hesitando em fazer o que a jovem lhe ordenava — Cautela! A venda caiu-me dos olhos e vindo aqui pratiquei um ato de demência. Está bem certa do que vai fazer, querida amiga?
— Estou — respondeu Valentine — E só tenho um escrúpulo no mundo: deixar sós os restos mortais da minha pobre avó, que me encarreguei de velar.
— Valentine, a morte é sagrada por si mesma — observou Morrel.
— Pois é — concordou a jovem — De resto, a ausência será curta. Venha.
Valentine atravessou o corredor e desceu uma escadinha que levava aos aposentos de Noirtier. Morrel seguiu-a em bicos de pés. Chegados ao patamar dos aposentos, encontraram o velho criado.
— Barrois, feche a porta e não deixe entrar ninguém — ordenou-lhe Valentine.
Foi a primeira a entrar.
Noirtier, ainda na sua poltrona, atento ao mais pequeno ruído, informado pelo seu velho criado de tudo o que se passava, olhava ansiosamente para a entrada do quarto. Viu Valentine e os seus olhos brilharam.
Havia no andar e na atitude da jovem algo de grave e solene que impressionou o velho. Por isso, de brilhantes que estavam os seus olhos, tornaram-se interrogadores.
— Querido avô — disse ela em tom breve — Escuta-me bem. Sabes que a avozinha Saint-Méran morreu há uma hora e que, excetuando você, agora não tenho mais ninguém que me ame no mundo?
Uma expressão de infinita ternura passou pelos olhos do velho.
— Portanto, só a você, não é verdade, posso confiar os meus desgostos e as minhas esperanças?
O paralítico fez sinal que sim.
Valentine tomou Maximilien pela mão.
— Então, olha bem para este senhor.
O velho pousou os olhos perscrutadores e levemente atônitos em Morrel.
— É o senhor Maximilien Morrel — continuou Valentine — O filho daquele honesto comerciante de Marselha de quem sem dúvida ouviste falar...
— Sim — indicou o velho.
— É um nome irrepreensível, que Maximilien está em vias de tornar glorioso, porque aos trinta anos é capitão de sipaios e oficial da Legião de Honra.
O velho fez sinal de que se lembrava dele.
— Pois bem, avozinho — disse Valentine, ajoelhando diante do velho e indicando Maximilien com a mão — Amo-o e só serei dele! Se me obrigarem a casar com outro, me deixarei morrer ou me matarei.
Os olhos do paralítico exprimiam um mundo de pensamentos tumultuosos.
— Você gosta do Sr. Maximilien Morrel, não é verdade, avozinho? — perguntou a jovem.
— Gosto — indicou o velho, imóvel.
— E pode proteger-nos, visto sermos também seus filhos, da vontade do meu pai?
Noirtier pousou o seu olhar inteligente em Morrel, como que para lhe dizer:
“É conforme...”
Maximilien compreendeu.
— Valentine — disse — Tem um dever sagrado a cumprir no quarto da sua avó; quer dar-me a honra de permitir que converse um instante com o Sr. Noirtier?
— Sim, sim, é isso — indicou o olhar do velho.
Depois fitou Valentine com inquietação.
— Como conseguirá compreender-te, não é o que queres dizer, querido avô?
— É.
— Oh, esteja descansado! Temos falado tantas vezes de ti que ele sabe bem como te falo.
Depois, virando-se para Maximilien com um sorriso adorável, apesar de velado por profunda tristeza, disse:
— Ele sabe tudo o que eu sei.
Valentine levantou-se, aproximou uma cadeira para Morrel recomendou a Barrois que não deixasse entrar ninguém e, depois de beijar ternamente o avô e de se despedir tristemente de Morrel, saiu.
Então Morrel, para provar a Noirtier que tinha a confiança de Valentine e conhecia todos os seus segredos, pegou no dicionário, na pena e no papel e colocou tudo em cima de uma mesa onde havia um candeeiro.
— Mas primeiro — disse — Permita-me, senhor, que lhe diga quem sou, como amo Mademoiselle Valentine e quais são as minhas intenções a seu respeito.
— Escuto-o — deu a entender Noirtier.
Constituía um espetáculo deveras impressionante ver como aquele velho, aparentemente um fardo inútil, se tornara o único protetor, o único apoio, o único juiz de dois apaixonados jovens, belos, fortes e no começo da vida. O seu rosto, de uma nobreza e de uma austeridade notáveis, impunha-se a Morrel, que começou a falar com voz incerta.
Contou então como conhecera e amara Valentine, e como Valentine, no seu isolamento e na sua infelicidade, acolhera a oferta da sua dedicação. Revelou-lhe quais eram o seu nascimento, a sua posição e a sua fortuna, e por mais de uma vez, quando interrogou com a vista o paralítico, ele lhe respondeu também com a vista:
— Está bem, continue.
— Agora — disse Morrel quando concluiu a primeira parte da sua narrativa — Agora que já lhe revelei, senhor, o meu amor e as minhas esperanças, devo revelar-lhe também os nossos projetos?
— Deve — respondeu o velho.
— Muito bem. Eis o que tínhamos resolvido.
E contou tudo a Noirtier: como um cabriolé os esperava no cercado, como contava raptar Valentine, levá-la para casa da irmã e casar com ela e como, depois, estavam dispostos a esperar, numa respeitosa expectativa, o perdão do Sr. de Villefort.
— Não — disse o Sr. Noirtier.
— Não? — repetiu Morrel — Não é assim que devemos proceder?
— Não.
— Quer dizer que este projeto não tem o seu assentimento?
— Não.
— Nesse caso, há outro meio — respondeu Morrel.
O olhar interrogador do velho perguntou:
— Qual?
— Irei — continuou Maximilien — Irei procurar o Sr. Franz d’Epinay, ainda bem que lhe posso dizer isto na ausência de Mademoiselle de Villefort, e me comportarei com ele de maneira a obrigá-lo a ser um homem galante...
O olhar de Noirtier continuou a interrogar.
— Que farei?
— Sim.
— Isto: irei procurá-lo, como lhe dizia, lhe revelarei os laços que me ligam a Mademoiselle de Villefort, e se ele for um homem delicado provará a sua delicadeza renunciando espontaneamente à mão da sua noiva. A partir desse momento, lhe serei dedicado até à morte. Mas se recusar, quer por interesse, quer por um orgulho ridículo o levar a persistir, depois de lhe provar que com a sua atitude coagiria uma mulher que me pertence, que Valentine me ama e não pode amar outro além de mim, me baterei com ele dando-lhe todas as vantagens, e o matarei ou ele me matará. Se o matar, não casará com Valentine; se me matar, estou certo de que Valentine não casará com ele.
Noirtier observava com indizível prazer aquela nobre e sincera fisionomia em que se espelhavam todos os sentimentos que a boca exprimia, acrescentando-lhos, através da expressão de um belo rosto, tudo o que a cor acrescenta a um desenho vigoroso e real.
No entanto, quando Morrel acabou de falar, Noirtier fechou os olhos diversas vezes, o que era, como se sabe, a sua maneira de dizer não.
— Não? — repetiu Morrel — Portanto, o senhor desaprova o segundo projeto, como já desaprovou o primeiro?
— Sim, desaprovo-o — respondeu o velho.
— Que fazer então, senhor? — perguntou Morrel — As últimas palavras da Sra. de Saint-Méran foram que o casamento da neta se não fizesse esperar. Deverei deixar que os acontecimentos se consumam?
Noirtier ficou imóvel.
— Sim, compreendo — disse Morrel — Devo esperar.
— Sim.
— Mas qualquer atraso nos perderá senhor — observou o rapaz — Sozinha, Valentine não tem força e a coagirão como a uma criança. Entrado aqui milagrosamente para saber o que se passava e não menos milagrosamente na sua presença, não posso razoavelmente esperar que a sorte me continue a bafejar. Acredite, só é possível optar por um ou por outro dos dois partidos que lhe indiquei, desculpe esta vaidade à minha juventude, para chegarmos a uma solução. Diga-me qual dos dois prefere. Autoriza Mademoiselle Valentine a confiar-se à minha honra?
— Não.
— Prefere que vá procurar o Sr. d’Epinay?
— Não.
— Mas, meu Deus, de quem nos virá o socorro que esperamos, do Céu?
O velho sorriu com os olhos, como tinha o hábito de sorrir quando lhe falavam do Céu. Ficara sempre um bocadinho de ateísmo nas idéias do velho jacobino.
— Do acaso? — insistiu Morrel.
— Não.
— Do senhor?
— Sim.
— Do senhor?...
— Sim — repetiu o velho.
— Compreende bem o que lhe peço, senhor? Desculpe a minha insistência, porque a minha vida está na sua resposta: a nossa salvação virá do senhor?
— Sim.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Assume essa responsabilidade?
— Assumo.
E havia no olhar que fazia esta afirmação tal firmeza que não era possível duvidar quer da sua vontade, quer da sua força.
— Oh, obrigado, senhor, obrigado cem vezes! Mas como, a não ser que um milagre do Senhor lhe restitua a palavra, o gesto, o movimento, como poderá, preso a essa poltrona, mudo e imóvel, como poderá opor-se ao casamento?
Um sorriso iluminou o rosto do velho, sorriso estranho como o daqueles olhos numa fisionomia imóvel.
— Portanto, devo esperar? — perguntou o rapaz.
— Deve.
— Mas o contrato?
Reapareceu o mesmo sorriso.
— Quer dizer que não será assinado?
— Quero — respondeu Noirtier.
— Assim, o contrato não será mesmo assinado! — exclamou Morrel — Oh, desculpe, senhor! Quando nos anunciam uma grande felicidade, é legítimo duvidar. O contrato não será assinado?...
— Não — respondeu o paralítico.
Apesar desta segurança, Morrel hesitava em acreditar. Aquela promessa de um velho impotente era tão estranha que em vez de provir de uma força de vontade podia emanar de um enfraquecimento de órgãos. Não é natural que o insensato que ignora a sua loucura pretenda realizar coisas superiores às suas forças? O fraco fala dos pesos que levanta, o tímido, dos gigantes que enfrenta, o pobre dos tesouros que maneja, o mais humilde camponês, no cúmulo do seu orgulho, julga-se Júpiter.
Quer porque Noirtier tivesse adivinhado a indecisão do rapaz, quer porque não confiasse completamente na docilidade que mostrara, olhou-o fixamente.
— Que deseja, senhor? — perguntou Morrel — Que lhe renove a minha promessa de nada fazer?
O olhar de Noirtier permaneceu fixo e firme, como se quisesse dizer que lhe não bastava uma promessa. Depois passou do rosto para a mão.
— Quer que jure, senhor? — perguntou Maximilien.
— Quero — respondeu o paralítico com a mesma solenidade — Quero.
Morrel compreendeu que o velho atribuía grande importância ao juramento. Estendeu a mão.
— Juro-lhe pela minha honra — disse — Esperar o que decidir para agir contra o Sr. d’Epinay.
— Bem — disseram os olhos do velho.
— Agora, senhor, quer que me retire? — perguntou Morrel.
— Quero.
— Sem tornar a ver Mademoiselle Valentine?
— Sim.
Morrel fez sinal de que estava pronto a obedecer.
— Agora — prosseguiu — Permite-me, senhor, que o seu neto o beije como beijou há pouco a sua neta?
Não havia motivo para se enganar com a expressão dos olhos de Noirtier. O rapaz pousou os lábios na testa do velho, no mesmo lugar onde Valentine pousara os dela.
Depois, cumprimentou segunda vez o velho e saiu. Encontrou no patamar o velho criado. Prevenido por Valentine, este esperava Morrel e guiou-o através dos meandros de um corredor escuro que levava a uma portinha que dava para o jardim.
Chegado aí, Morrel alcançou o portão através da alameda de bordos e chegou num instante ao alto do muro. Depois, pela escada, apenas num segundo, alcançou o campo de luzerna onde o cabriolé o esperava.
Subiu para a carruagem e, cansado de tantas emoções, mas com o coração mais liberto, chegou por volta da meia-noite à Rua Meslay, atirou-se para cima da cama e dormiu como se estivesse mergulhado em profunda embriaguez.




 continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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