quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 81



LXXXI

O QUARTO DO PADEIRO REFORMADO




N
a noite do mesmo dia em que o Conde de Morcerf saíra de casa de Danglars com uma humilhação e um furor justificados pela frieza do banqueiro, o Sr. Andréa Cavalcanti, com o cabelo frisado e brilhante, o bigode aguçado e as luvas brancas a desenharem-lhe as unhas, entrou quase de pé no seu faeton no pátio do banqueiro da Chaussée-d'Antin.
Ao cabo de dez minutos de conversação na sala, arranjara maneira de conduzir Danglars para o vão de uma janela e aí, depois de um hábil preâmbulo, expusera os tormentos da sua vida desde a partida do seu nobre pai. Desde essa partida encontrara, dizia, na família do banqueiro, onde se tinham dignado recebê-lo como filho, todas as garantias de felicidade que um homem deve sempre procurar antes dos caprichos da paixão e, quanto à própria paixão, tivera a sorte de a encontrar nos belos olhos de Mademoiselle Danglars.
Danglars escutava com a mais profunda atenção. Havia dois ou três dias que esperava aquela declaração, e quando ela por fim chegou, os seus olhos dilataram-se tanto como se tinham empequenecido e nublado ao ouvir Morcerf.
No entanto, não quis aceitar sem mais nem menos a proposta do rapaz sem lhe apresentar algumas observações de consciência.
— Sr. Andréa, não será um pouco novo para pensar em casamento?
— De modo nenhum, senhor — respondeu Cavalcanti — Pelo menos, eu não acho. Na Itália, os grandes senhores casam-se novos, em geral; é um costume lógico. A vida é tão incerta que se deve agarrar a felicidade logo que ela passa ao nosso alcance.
— Agora, senhor — disse Danglars — Admitindo que as suas propostas, que me honram, sejam do agrado da minha mulher e da minha filha, com quem debateríamos os interesses? Parece-me tratar-se de uma negociação importante que só os pais sabem tratar convenientemente a bem da felicidade dos filhos.
— Senhor, o meu pai é um homem ponderado, cheio de bom senso e razão. Previu a circunstância provável de eu experimentar o desejo de me instalar na França e deixou-me, portanto, ao partir, todos os documentos que comprovam a minha identidade e uma carta em que me garante, no caso de eu fazer uma escolha que lhe seja agradável, cento e cinqüenta mil francos de rendimento a partir do dia do meu casamento. Trata-se, tanto quanto suponho, de um quarto dos rendimentos do meu pai.
— Mas eu sempre tive a intenção de dar à minha filha, quando se casasse, quinhentos mil francos — observou Danglars — De resto, é a minha única herdeira.
— Como vê — disse Andréa — Tudo se resolveria da melhor maneira na hipótese de o meu pedido não ser rejeitado pela Sra. Baronesa Danglars e por Mademoiselle Eugénie. Teríamos cento e setenta e cinco mil francos de rendimento. Suponhamos uma coisa: que eu consiga que o Marquês, em vez de me pagar a renda, me desse o capital, não seria fácil, bem sei, mas enfim, é possível. O senhor nos faria tornar produtivos esses dois ou três milhões, e dois ou três milhões numas mãos hábeis podem sempre render dez por cento.
— Nunca dou mais do que quatro, e até do que três e meio — perguntou o banqueiro — Mas ao meu genro daria cinco e dividiríamos os lucros.
— Ótimo, sogro! — exclamou Cavalcanti, deixando-se levar pela sua natureza um tanto vulgar, que de vez em quando, apesar dos seus esforços, fazia estalar o verniz de aristocracia com que procurava cobrir-se.
Mas corrigiu-se imediatamente:
— Oh, perdão, senhor! Como vê, só a esperança já quase me faz perder a cabeça; que seria se fosse a realidade?...
— Mas — observou Danglars, que pela sua parte não notava até que ponto a conversa, de início desinteressada, se tornara rapidamente uma agência de negócios — Há sem dúvida uma parte da sua fortuna que o seu pai não pode lhe recusar?...
— Qual? — perguntou o rapaz.
— A que vem da sua mãe.
— Ah, certamente, a que vem da minha mãe, Leonora Corsinari!
— E a quanto pode ascender essa parte?
— Palavra de honra, senhor — disse Andréa — Garanto-lhe que nunca me detive pensando nisso, mas calculo que a uns dois milhões, pelo menos.
Danglars experimentou a espécie de sufocação jubilosa que sentem ou o avaro que encontra um tesouro perdido ou o homem prestes a afogar-se que depara debaixo dos pés com a terra firme em vez do vácuo que o iria engolir.
— Então, senhor — insistiu Andréa, cumprimentando o banqueiro com terno respeito — Poderei esperar?...
— Sr. Andréa — respondeu Danglars — Espere e creia que se da sua parte nenhum obstáculo detiver o andamento deste negócio, ele está concluído. Mas — perguntou pensativo — Como se explica que o Sr. Conde de Monte Cristo, seu patrono na sociedade parisiense, não tenha vindo consigo fazer-nos esse pedido?
Andréa corou imperceptivelmente.
— Venho de casa do Conde, senhor — respondeu — Trata-se incontestavelmente de um homem encantador, mas de uma originalidade inconcebível. Aprovou com entusiasmo a minha decisão; disse-me até que não acreditava que o meu pai hesitasse um instante em dar-me o capital em vez da renda e prometeu-me a sua influência para me ajudar a obter isso dele; mas declarou-me que pessoalmente nunca tomara nem tomaria a responsabilidade de fazer um pedido de casamento. Mas, devo prestar-lhe essa justiça, dignou-se acrescentar que se alguma vez deplorara essa repugnância, nunca a deplorara tanto como agora, a meu respeito, pois pensava que a união projetada seria feliz e adequada. De resto, embora nada queira fazer oficialmente, disse-me que não terá dúvida em tocar no assunto quando o senhor lhe quiser falar dele.
— Ah, muito bem!
— Agora — disse Andréa, com o seu mais encantador sorriso — Uma vez que já acabei de falar ao sogro, dirijo-me ao banqueiro.
— Que deseja? — perguntou Danglars, também rindo.
— Depois de amanhã tenho a receber no seu banco uns quatro mil francos. Mas o Conde compreendeu que o mês em que vamos entrar talvez me traga um aumento de despesas que a minha pequena mesada de rapaz não suportaria, e por isso aqui tem uma ordem de pagamento de vinte mil francos que ele, não direi me deu, mas sim me ofereceu. Está assinada pelo seu punho, como vê. Aceita-a?
— Traga-me ordens destas no valor de um milhão, que eu aceito-as todas — respondeu Danglars, metendo a ordem de pagamento na algibeira — Diga-me a que horas quer o dinheiro amanhã e o meu pagador passará pela sua casa com um recibo de vinte e quatro mil francos.
— Às dez da manhã, se não se importa. Quanto mais cedo, melhor. Tenciono ir até ao campo, amanhã...
— Seja, às dez horas. Continua no Hotel dos Príncipes?
— Continuo.
No dia seguinte, com uma exatidão que honrava a pontualidade do banqueiro, os vinte e quatro mil francos estavam em poder do rapaz, que saiu efetivamente, deixando duzentos francos para Caderousse.
A saída tinha, da parte de Andréa, como objetivo principal evitar o seu perigoso amigo. Por isso, regressou à noite o mais tarde possível. Mas assim que pôs o pé no pavimento do pátio, encontrou diante de si o porteiro do hotel, que o esperava de boné na mão.
— Excelência, veio o tal homem — informou.
— Qual homem? — perguntou negligentemente Andréa, como se o tivesse esquecido, quando, pelo contrário, se lembrava dele muito bem.
— Aquele a quem Vossa Excelência dá aquela pensãozinha.
— Ah, sim, o antigo criado do meu pai! — disse Andréa — E você deu-lhe os duzentos trancos que lhe deixei para ele.
— Dei, Excelência.
Andréa fazia-se tratar por Excelência.
— Mas — continuou o porteiro — Ele não quis recebê-los.
Andréa empalideceu. Mas como era de noite, ninguém o viu empalidecer.
— Como, não quis recebê-los! — admirou-se, com voz ligeiramente trêmula.
— Não. Queria falar com Vossa Excelência. Respondi-lhe que o senhor tinha saído. Insistiu. Mas por fim pareceu se convencer e deu-me esta carta, que já trazia fechada.
— Vejamos... — murmurou Andréa.
E leu à luz da lanterna do faeton:


Sabe onde moro. Te espero amanhã às nove horas da manhã.


Andréa examinou o lacre para ver se a carta não fora violada e se olhares indiscretos não tinham tomado conhecimento do seu conteúdo. Mas ela estava dobrada de tal forma, com tal abundância de ângulos e losangos, que para a ler seria necessário quebrar o lacre. Ora o lacre estava perfeitamente intacto.
— Muito bem — disse — Pobre homem! É uma excelente criatura.
E deixou o porteiro edificado com estas palavras e sem saber quem mais devia admirar, se o jovem amo ou o velho criado.
— Desatrela depressa e sobe ao meu quarto — ordenou Andréa ao seu groom.
Em dois saltos, o jovem chegou ao quarto e queimou a carta de Caderousse, de que fez desaparecer até as cinzas. Terminava essa operação quando o criado entrou.
— Você é da mesma estatura que eu, Pierre — disse-lhe.
— Tenho essa honra, Excelência — respondeu o criado.
— Deve ter uma libré nova que te trouxeram ontem, não tem?
— Tenho, sim, Excelência.
— Tenho um encontro com uma costureirinha, a quem não quero revelar nem o meu título nem a minha condição. Empreste-me a tua libré e os teus documentos, para que possa, se for necessário, dormir numa estalagem.
Pierre obedeceu. Cinco minutos mais tarde, Andréa, completamente disfarçado, saía do hotel sem ser reconhecido, tomava um cabriolé e fazia-se conduzir à Estalagem do Cavalo Vermelho, em Piepus.
No dia seguinte, saiu da Estalagem do Cavalo Vermelho como saíra do Hotel dos Príncipes, isto é, sem ser notado, desceu o Arrabalde de Santo Antônio, meteu pelo bulevar até à Rua de Ménilmontant, parou à porta da terceira casa à esquerda e, na ausência do porteiro, procurou quem lhe pudesse dar informações.
— Quem procura, meu lindo menino? — perguntou-lhe a vendedora de fruta em frente.
— O Sr. Pailletin, por favor, tiazinha — respondeu Andréa.
— Um padeiro reformado? — perguntou a vendedeira.
— Exatamente.
— No fundo do pátio, à esquerda, no terceiro andar.
Andréa seguiu o caminho indicado, e no terceiro andar encontrou um “pé de coelho”, que agitou com um sentimento de mau humor, de cujo movimento precipitado a campainha se ressentiu. Passado um segundo, o rosto de Caderousse apareceu no ralo praticado na porta.
— Ah, você é pontual! — observou, e correu os ferrolhos.
— Não me chateie! — disse Andréa, entrando.
E atirou adiante de si o barrete da libré, que, falhando a cadeira, caiu no chão e deu a volta ao quarto rolando sobre a sua circunferência.
— Vamos, vamos, não se zangue, pequeno! — aconselhou Caderousse — Repare como pensei em você. Já viu o bom café da manhã que nos espera? Só coisas que você gosta, meu finório!
De fato, Andréa notou no ar um cheiro a cozinha cujos aromas grosseiros não deixavam de possuir certo encanto para o seu estômago faminto: primeiro, a mistura de gordura fresca e alho que marca a cozinha provençal de ordem inferior; depois, um cheiro a peixe gratinado e sobretudo o perfume intenso da noz-moscada e do cravinho. Todos estes cheiros provinham de duas travessas fundas e cobertas, colocadas em cima de dois fornilhos, e de uma caçarola que rechinava no forno de um fogão de ferro fundido.
Na divisão contígua, Andréa viu, além de uma mesa bastante limpa e adornada com dois talheres, duas garrafas de vinho seladas, uma de verde e a outra de amarelo, uma boa quantidade de aguardente numa outra garrafa e uma Macedônia de frutas numa grande folha de couve colocada com arte num prato de faiança.
— Que te parece, pequeno? — perguntou Caderousse — Como isto cheira bem! Mas não admira, como sabes, era um bom cozinheiro... naquele lugar! Lembras-se como lambiam os dedos com os meus cozidos? E você era sempre o primeiro a saborear os meus molhos, e olha que lhe não torcia o nariz!...
E Caderousse pôs-se a descascar um suplemento de cebolas.
— Está bem, está — perguntou Andréa, irritado — Com a breca, se foi para almoçar contigo que me incomodou, que o Diabo te leve!
— Meu filho, enquanto se come se conversa — disse sentenciosamente Caderousse — E depois, grande ingrato, não tem prazer em ver um bocadinho o seu amigo? Pois eu choro de alegria.
Com efeito, Caderousse chorava realmente. Só que seria difícil dizer se era a alegria ou se eram as cebolas que agiam sobre a glândula lacrimal do antigo estalajadeiro da Pont-du-Gard.
— Cale—se, hipócrita. Meu amigo, você?...
— Sim, sou teu amigo, diabos me levem! É uma fraqueza, bem sei, mas é mais forte do que eu... — confessou Caderousse.
— O que não te impede de me ter feito aqui vir para qualquer perfídia...
— Então, então!... — exclamou Caderousse, limpando uma grande faca ao avental — Se não fosse teu amigo, suportaria a vida miserável que me proporciona? Olha bem: veste a libré do teu criado, prova de que tem um criado; pois eu não tenho e sou obrigado a descascar eu próprio os meus legumes. Desdenha a minha cozinha porque janta à mesa redonda do Hotel dos Príncipes ou no Café de Paris. Pois eu também poderia ter um criado; e também poderia ter um tílburi; e jantar onde me apetecesse... e privo-me de tudo isso por quê? Para não prejudicar o meu pequeno Benedetto... vamos, confessa ao menos que poderia, hem?
E um olhar perfeitamente elucidativo de Caderousse concluiu o sentido da frase.
— Bom, admitamos que é meu amigo — concedeu Andréa — Nesse caso, porque exige que venha almoçar contigo?
— Mas para te ver, meu querido!...
— Que adianta me ver, se estabelecemos antecipadamente todas as nossas condições?
— Meu caro amigo, existem porventura testamentos sem codicilos? — observou Caderousse — Mas veio para almoçar, não é verdade? Então sente-se, e comecemos por estas sardinhas e esta manteiga fresca, que coloquei em folhas de videira em tua intenção, minha peste... Ah, sim, examina o meu quarto, as minhas quatro cadeiras de palhinha e as minhas imagens a três francos o quadro!... Demônio, que queria, se isto não é o Hotel dos Príncipes?...
— Pronto, agora está descontente! Já não está feliz, e, no entanto só queria ter o ar de um padeiro reformado...
Caderousse suspirou.
— Então, que tem a me dizer? — perguntou Andréa — Viu o teu sonho realizado.
— Tenho a dizer que é um sonho. Um padeiro reformado, meu pobre Benedetto, é rico, tem rendimentos.
— E você não tem os seus rendimentos?
— Eu?
— Sim, você, uma vez que te dou duzentos francos.
Caderousse encolheu os ombros.
— É humilhante — declarou — Receber assim dinheiro dado contra vontade, dinheiro efêmero, que me pode faltar de um dia para o outro. Bem vê que sou obrigado a fazer economias para o caso de a tua prosperidade não durar... sim, meu amigo, a sorte é inconstante, como dizia o capelão do regimento. Sei perfeitamente que a tua prosperidade é enorme, celerado... vai casar com a filha de Danglars.
— Como? De Danglars?!
—— Sim, de Danglars! Ou devo dizer o Barão Danglars? É como se dissesse o Conde Benedetto... Danglars era um amigo, e se não tivesse tão má memória deveria convidar-me para a boda... atendendo a que foi à minha... Sim, sim, sim, à minha! Nesse tempo não era tão orgulhoso; não passava de um escrituráriozinho em casa desse bom Sr. Morrel. Jantei mais de uma vez com ele e com o Conde de Morcerf... como vê, tenho excelentes conhecimentos e gostaria de os cultivar um bocadinho. Poderíamos reencontrar-nos nos mesmos salões...
— A tua inveja te faz ver arcos-íris, Caderousse.
— Pois sim, Benedetto mio, mas eu sei o que digo. Talvez um dia vista também o meu fato dos Domingos e vá dizer ao porteiro de um desses palácios: “Abra, por favor!”. Entretanto, sentemo-nos e comamos.
Caderousse deu o exemplo e pôs-se a comer com bom apetite e a elogiar todas as iguarias que servia ao seu convidado. Este pareceu tomar o seu partido: abriu habilmente as garrafas e atacou a caldeirada e o bacalhau gratinado com alho e azeite.
— Então, compadre, parece que te reconcilias com o teu antigo chefe de mesa, hem?... — observou Caderousse.
— Palavra que sim — respondeu Andréa, a quem, jovem e vigoroso como era, o apetite levava de momento a palma a qualquer outra coisa.
— E acha isso bom, tratante?
— Tão bom que não compreendo como um homem que cozinha e come tão boas coisas pode estar descontente com a vida.
— É que toda a minha felicidade é estragada por um único pensamento — confessou Caderousse.
— Qual?
— Vivo à custa de um amigo, eu que sempre ganhei honradamente a minha vida.
— Oh, oh, isso não tem importância! — perguntou Andréa.
— O que tenho chega para dois, não se preocupe.
— Não, sinceramente? Talvez não acredite, mas no fim dos meses tenho remorsos.
— Excelente Caderousse!
— A tal ponto que ontem não quis receber os duzentos francos.
— Sim, queria falar comigo. Mas sente mesmo remorsos?
— Autênticos remorsos. E depois tive uma idéia...
Andréa estremeceu. Estremecia sempre que Caderousse tinha idéias.
— É indigno, deve concordar, estar sempre à espera do fim do mês...
— Pois é — admitiu filosoficamente Andréa, decidido a ver até onde queria chegar o companheiro — Mas não passamos todos a vida esperando? Eu, por exemplo, acaso faço outra coisa? E tenho paciência, não é verdade?
— Sim, porque em vez de esperares duzentos miseráveis francos, espera cinco ou seis mil, ou talvez dez, senão mesmo doze mil. Porque você não te confessa. Lá onde sabe, tinha sempre umas reservazinhas, umas economias, que procuravas subtrair ao pobre amigo Caderousse. Felizmente para ele, o amigo Caderousse tinha bom faro...
— Pronto, vai começar a divagar, a falar e tornar a falar sempre do passado! — protestou Andréa — Que adianta repisar essas coisas, não me diga.
— Ah, é que você tem vinte e um anos e pode esquecer o passado! Mas eu tenho cinqüenta e sou obrigado a não esquecê-lo. Mas não interessa, voltemos aos negócios.
— Pois sim.
— Queria dizer que no teu lugar...
— Sim?
— Pediria...
— Pediria o quê?
— Pediria um semestre de adiantamento, a pretexto de me querer tornar elegível e desejar comprar uma quinta. Depois, quando me apanhasse com o meu semestre, punha-me ao fresco.
— Ah, ah! — exclamou Andréa — Não está mal pensado, não, senhor!
— Meu caro amigo, come da minha cozinha e segue os meus conselhos — sentenciou Caderousse — Só terá a ganhar, física e moralmente.
— Mas olhe, porque não segue você mesmo o conselho que dá? — inquiriu Andréa — Porque não pede um semestre adiantado, ou até mesmo um ano, e não te retiras para Bruxelas? Em vez de ter o ar de um padeiro reformado, teria o ar de um falido no exercício das suas funções. Seria um bom golpe.
— Mas como diabo quer você que me retire com mil e duzentos francos?
— Ah, Caderousse, como se tornou exigente! Há dois meses morria de fome...
— Quanto mais se come, mais apetece comer — perguntou Caderousse, mostrando os dentes como um macaco que ri ou como um tigre que brame — Por isso — acrescentou, cortando com esses mesmos dentes, tão brancos e aguçados, apesar da idade, um enorme bocado de pão — Tracei um plano.
Os planos de Caderousse assustavam ainda mais Andréa do que as suas idéias. As idéias não passavam do germe, o plano era a realização.
— Vejamos esse plano. Deve ser bonito! — comentou Andréa.
— Porque não? O plano graças ao qual nos piramos da choça de quem foi? Meu, segundo me consta. E não foi assim tão mau, parece-me, visto estarmos aqui!
— Não digo que não — concordou Andréa — Às vezes tem boas idéias... mas enfim, vejamos o teu plano.
— Pode — prosseguiu Caderousse — Sem desembolsar um soldo, arranjar-me quinze mil francos?... Não, quinze mil francos é pouco: não quero tornar-me um homem honesto por menos de trinta mil francos!
— Não — respondeu secamente Andréa — Não posso.
— Parece-me que não me compreendeste — perguntou fria e calmamente Caderousse — Disse-te sem desembolsar um soldo...
— Com certeza não quer que roube para dar cabo de todo o meu negócio, e do teu com o meu, e voltarmos ambos para a choça?
— Oh, a mim tanto me faz que me apanhem como não! — exclamou Caderousse — Sou um bocado complicado, como sabe, e às vezes sinto a falta dos camaradas. Não sou como você, sem coração, que nunca mais queria tornar a vê-los!
Desta vez, Andréa fez mais do que estremecer, empalideceu.
— Vamos, Caderousse, deixemo-nos de tolices!
— Então, meu querido Benedetto, não se assuste... mas indica-me um meiozinho de ganhar os trinta mil francos sem te meter em nada. Deixe-me atuar, e pronto!
— Está bem, verei... procurarei... — respondeu Andréa.
— Mas entretanto aumentará a minha mesada para quinhentos francos. Estou com a mania de meter uma criada!
— Pois sim, terá os seus quinhentos francos — concordou Andréa — Mas é muito para mim, meu pobre Caderousse. Você abusa...
— Ora, ora! — perguntou Caderousse — Não se esqueça de que mete a mão em cofres sem fundo...
Diria-ia que Andréa esperava que o companheiro proferisse estas palavras, pois nos seus olhos brilhou um rápido clarão, que no entanto se extinguiu imediatamente.
— Isso é verdade — admitiu Andréa — E o meu protetor é excelente para mim.
— Querido protetor! — exclamou Caderousse — Quanto te dá ele por mês?
— Cinco mil francos — respondeu Andréa.
— Tantas de mil quantas me dá de cem — observou Caderousse — Na verdade, não há como ser bastardo para ter sorte. Cinco mil francos por mês... que diabo se pode fazer com isso?
— Meu Deus, gastam-se num instante! Por isso, tal como você, também gostaria muito de ter um capital...
— Um capital sim compreendo. Todas as pessoas gostariam de ter um capital.
— Eu hei de ter um.
— E quem o dará? O teu príncipe?
— Sim, o meu príncipe. Infelizmente, terei de esperar.
— Esperar o quê? — perguntou Caderousse.
— A sua morte.
— A morte do teu príncipe?
— Sim.
— Explique isso.
— Sou contemplado no seu testamento.
— Deveras?
— Palavra de honra!
— Com quanto?
— Com quinhentos mil!
— Só isso? Obrigado, mas é pouco...
— É como te digo.
— Vamos, não é possível!
— Caderousse, você é meu amigo?
— Claro! Para a vida e para a morte.
— Pois bem, vou dizer-te um segredo.
— Diz.
— Mas escuta...
— Oh, com a breca, serei mudo como um túmulo!
— Suspeito...
Andréa calou-se e olhou à sua volta.
— Suspeita... não tenha medo, com mil demônios! Estamos sós.
— Suspeito que encontrei o meu pai.
— O teu verdadeiro pai?
— Sim.
— Não o pai Cavalcanti?
— Não, porque esse foi-se embora; o verdadeiro, como você diz.
— E esse pai é?
— Quem havia de ser, Caderousse? É o Conde de Monte Cristo.
— Ora!
— Sim. Não vê que assim tudo se explica? Não pode me reconhecer publicamente, ao que parece; mas me fez reconhecer pelo Sr. Cavalcanti, a quem deu cinqüenta mil francos.
— Cinqüenta mil francos para ser teu pai?! Eu aceitaria desempenhar esse papel por metade do preço, por vinte mil, por quinze mil! Como não se lembrou de mim, ingrato?
— Como queria que lembrasse se tudo foi feito enquanto estávamos na choça?
— É verdade. E diz que no seu testamento...
— Deixa-me quinhentas mil francos.
— Tem certeza?
— Ele o mostrou. Mas não é tudo.
— Há um codicilo, como eu dizia há bocado!
— Provavelmente.
— E nesse codicilo...
— Reconhece-me.
— Oh, que bom pai, que rico pai, que pai honestíssimo! — exclamou Caderousse, fazendo girar no ar um prato que apanhou com as mãos.
— Vá, diga agora que ainda tenho segredos para ti!
— Não, e a tua confiança honra-te a meus olhos. E o teu príncipe, o teu pai, é rico, riquíssimo, não é?
— Julgo que sim. Nem sabe quanto tem.
— Será possível?
— Ora essa! Então eu não sei que sou recebido em sua casa a toda a hora? Outro dia, um pagador bancário levou-me cinqüenta mil francos numa pasta do tamanho da tua; ontem, foi um banqueiro que lhe levou cem mil francos em ouro...
Caderousse estava atordoado. Parecia-lhe que as palavras do jovem tinham o som do metal e que ouvia rolar cascatas de luíses.
— E você freqüenta essa casa? — perguntou ingenuamente.
— Vou quando quero.
Caderousse ficou pensativo um instante. Era fácil ver que remoia no espírito qualquer pensamento profundo. Depois, de súbito, gritou:
—Como eu gostaria de ver tudo isso! Como tudo isso deve ser belo!
— De fato, é — confirmou Andréa — É magnífico!
— Ele não mora na Avenida Champs-Élysées?
— Número trinta.
— Ah! — exclamou Caderousse — Número trinta?
— Sim, uma bonita casa isolada entre pátio e jardim, você não conhece outra coisa.
— É possível. Mas não é o exterior que me interessa, é o interior. Belos móveis, hem? Que há lá dentro?
— Nunca viu a Tulherias?
— Não.
— Bom, é mais bonito.
— Diga-me uma coisa Andréa, deve ser agradável um tipo baixar-se quando esse excelente Monte Cristo deixa cair a bolsa...
— Oh, meu Deus, não vale a pena esperar que isso aconteça! — perguntou Andréa — O dinheiro abunda naquela casa como a fruta num pomar.
— Devia levar-me lá um dia contigo...
— Acha isso possível? E a que título?
— Tem razão. Mas fez vir a água à boca. É absolutamente necessário que eu veja isso; descobrirei um meio.
— Nada de besteiras, Caderousse!
— Me apresentarei como encerador.
— Há tapetes por todo o lado.
— Que pena! Então, tenho de me contentar com ver isso em imaginação.
— É o melhor, acredite.
— Tente ao menos me descrever a casa.
— Como?
— Nada mais fácil. É grande?
— Nem demasiado grande nem demasiado pequena.
— Mas como está dividida?
— Demônio, precisaria de tinta e papel para fazer uma planta!
— Aqui os tem! — respondeu vivamente Caderousse.
E foi buscar em uma velha mesa uma folha de papel branco, tinta e uma pena.
— Toma, trace-me tudo isso no papel, meu filho — pediu Caderousse.
Andréa pegou na pena sorrindo imperceptivelmente e começou.
— A casa, como já te disse, é entre pátio e jardim. Assim...
E Andréa traçou o jardim, o pátio e a casa.
— Muros altos?
— Não. Oito ou dez pés, no máximo.
— Isso não é prudente — observou Caderousse.
— No pátio, vasos de laranjeiras, relvados e canteiros de flores.
— E armadilhas?
— Não.
— As cavalariças?
— Dos dois lados do portão, aqui onde vê.
E Andréa continuou a traçar a planta.
— Vejamos o térreo — pediu Caderousse.
— No térreo, sala de jantar, duas salas, sala de bilhar, escada no vestíbulo e uma escadinha oculta.
— Janelas?
— Janelas magníficas, tão belas, tão largas que, palavra, creio que um homem da sua estatura passaria por cada vidraça.
— Porque têm escadas, se têm janelas dessas?
— Que quer: o luxo!
— Persianas?
— Sim, têm persianas, mas nunca se servem delas. O Conde de Monte Cristo é um original que gosta de ver o céu mesmo durante a noite!
— E os criados onde dormem?
— Oh, têm a sua residência própria! Imagina um bonito alpendre à direita de quem entra, onde guardam as escadas de mão e outros utensílios. Bom, por cima desse alpendre fica uma série de quartos ocupados pelos criados, com campainhas correspondentes aos seus ocupantes.
— Oh, diabo! Campainhas!
— Que disse?
— Nada. Digo que custa caríssimo colocar campainhas... e para que serve isso, me diga.
— Antes, havia um cão que passava a noite no pátio, agora levaram-no para a casa de Auteuil. Sabe, aquela onde você foi...
— Sei.
— Eu ainda ontem lhe dizia: “É imprudente da sua parte, Sr. Conde, porque quando vai para Auteuil e leva os criados, a casa fica só”. “E depois?”, perguntou-me ele. “E depois, um belo dia roubam-no!”
— Que te respondeu?
— Que me respondeu?
— Sim.
— Respondeu: “E depois, que diferença me faz que me roubem?”
— Andréa, deve ter alguma mesa mecânica.
— Que quer dizer?
— Sim, daquelas que apanham o ladrão numa rede e tocam uma música. Disseram-me que havia coisas dessas na última exposição.
— Ele tem apenas uma mesa de mogno, que tenho visto sempre com chave.
— E não o roubam?
— Não, o pessoal que o serve lhe é totalmente dedicado.
— Nessa mesa deve haver... uma boa quantia!
— Talvez... e impossível saber o que há lá.
— E onde está?
— No primeiro andar.
— Faça-me a planta do primeiro andar, pequeno, como me fez a do térreo?
— É fácil.
E Andréa voltou a pegar a pena.
— No primeiro andar, como vê, há a antecâmara, a sala... à direita da sala a biblioteca e o gabinete de trabalho; à esquerda da sala, um quarto de dormir e outro de vestir. É no quarto de vestir que se encontra a famosa mesa.
— E há alguma janela no quarto de vestir?
— Duas: aqui e aqui.
E Andréa desenhou duas janelas na divisão que, na planta, fazia esquina e figurava como um quadrado mais pequeno pegado ao quadrado grande do quarto de dormir.
Caderousse ficou pensativo.
— Ele vai muitas vezes a Auteuil? — perguntou.
— Duas ou três vezes por semana. Amanhã, por exemplo, deve passar o dia e a noite lá.
— Tem certeza?
— Convidou-me para ir jantar.
— Ainda bem. Isso é que é vida! — exclamou Caderousse — Casa na cidade, casa no campo...
— Quando se é rico...
— E você irá jantar?
— Provavelmente.
— Quando janta, dorme lá?
— Se me apetece... estou em casa do Conde como se estivesse na minha.
Caderousse olhou o rapaz como se quisesse arrancar-lhe a verdade do fundo do coração. Mas Andréa tirou uma charuteira do bolso, escolheu um cubano, acendeu-o tranquilamente e começou a fumar sem afetação.
— Quando quer os quinhentos francos? — perguntou a Caderousse.
— Agora, se os tiver.
Andréa tirou vinte e cinco luíses da algibeira.
— Amarelinhos? — disse Caderousse — Não, obrigado!
— Não gosta deles?
— Pelo contrário, aprecio-os muito; mas não os quero.
— Ganhará o cambio, imbecil: o ouro vale mais cinco soldos.
— Pois sim, mas depois o cambista mandará seguir o amigo Caderousse, lhe deitarão a mão e terá de dizer quem são os rendeiros que lhe pagaram a renda em ouro. Deixemos de tolices, pequeno: quero dinheiro corrente, moedas redondas com a efígie de um monarca qualquer. Todas as pessoas podem ter uma moeda de cinco francos.
— Como deve compreender, não trago comigo quinhentos francos em dinheiro miúdo. Teria de contratar um carregador.
— Está bem, deixa-os no hotel, com o seu porteiro. É um excelente homem. Irei lá buscá-los.
— Hoje?
— Não, amanhã. Hoje não tenho tempo.
— Pois sim, seja. Amanhã, quando partir para Auteuil, os deixarei.
— Posso contar com isso?
— Certamente.
— É que vou já ajustar a minha criada...
— Ajusta-a. Mas ponto final, hem? Não me perseguirá mais?
— Nunca mais.
Caderousse tornara-se tão sombrio que Andréa teve de fingir que não notara essa mudança. Redobrou, portanto de alegria e despreocupação.
— Está muito bem disposto — observou Caderousse — Dir-se-ia que já recebeste a tua herança!
— Ainda não, infelizmente!... Mas no dia em que a receber...
— Que fará?
— Que farei? Me lembrarei dos amigos, só te digo isto...
— Sim, e como tem boa memória, não se esquecerá de ninguém...
— O que você quer? Espero que não me esfole...
— Eu? Que idéia! Eu que, pelo contrário, vou dar ainda um conselho de amigo.
— Qual?
— Que deixe aqui o diamante que traz no dedo.
— Mas então você quer que nos prendam?
— E para nos perder aos dois que faz semelhante burrice?
— Porque diz isso? — perguntou Andréa.
— Como veste uma libré, disfarças-se de criado e conserva no dedo um diamante de quatro a cinco mil francos?!
— Apre, tem olho para avaliações! Porque não te trabalha como leiloeiro?
— Conheço diamantes. Já os tive.
— Aconselho-te a não se gabar disso — recomendou-lhe Andréa, que, sem se zangar, como receava Caderousse, por causa da nova extorsão, lhe entregou complacentemente o anel.
Caderousse examinou-o tão de perto que foi evidente para Andréa que examinava se as arestas do corte estavam bem vivas.
— É um diamante falso — disse Caderousse.
— Que é isso agora? — saltou Andréa — Está brincando?...
— Oh, não se zangue! Podemos verificar...
E Caderousse chegou-se à janela e fez deslizar o diamante na vidraça. Ouviu-se o vidro ranger.
— Confiteor! — declarou, metendo o diamante no dedo mínimo.
— Enganei-me.
— Mas esses gatunos dos joalheiros imitam tão bem as pedras que já ninguém se atreve a roubar nas joalharias, mais um ramo de indústria em crise.
— E agora, acabou-se? Tem mais alguma coisa a me pedir? Quer o meu casaco? Quer o meu barrete? Não se acanhe, aproveita enquanto estou aqui...
— Não quero mais nada. No fundo, você é um bom companheiro. Não te demoro mais e procurarei curar-me da minha ambição.
— Mas toma cautela, não vá, ao vender o diamante, e te acontecerá o que receava que te acontecesse com o ouro.
— Não o venderei, pode ficar descansado.
“Pois não, pelo menos daqui até depois de amanhã”, pensou o rapaz.
— Feliz tratante! — exclamou Caderousse — Vai daqui reencontrar os seus lacaios, os seus cavalos, a sua carruagem e a sua noiva.
— Claro — respondeu Andréa.
— Olha lá, espero que me dê um lindo presente de noivado no dia em que casar com a filha do meu amigo Danglars.
— Já te disse que isso foi uma idéia que se te meteu na cabeça.
— Quanto de dote?
— Mas se te repito...
— Um milhão?
Andréa encolheu os ombros.
— Assentemos num milhão — disse Caderousse — Nunca terá tanto quanto te desejo.
— Obrigado — respondeu o rapaz.
— Oh, é de boa vontade! — acrescentou Caderousse, com o seu riso grosseiro — Espera que eu te acompanho.
— Não vale a pena.
— Claro que vale.
— Por quê?
— Oh, porque a porta tem um segredinho!... Foi uma medida de precaução que achei conveniente tomar. Fechadura Huret & Fichet, revista e corrigida por Gaspard Caderousse. Te farei uma idêntica quando for capitalista.
— Obrigado — repetiu Andréa — Te avisarei com oito dias de antecedência.
Separaram-se.
Caderousse ficou no patamar até ver Andréa não só descer os três andares, mas também atravessar o pátio. Então, voltou a entrar precipitadamente em casa, fechou a porta com cuidado e pôs-se a estudar, como o faria um arquiteto, a planta que Andréa lhe deixara.
— Querido Benedetto! — disse para consigo — Creio que não se importaria nada de herdar mais cedo o seu quinhão e que aquele que antecipasse o dia em que deve receber os seus quinhentos mil francos não seria o seu pior amigo...



continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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