terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 80


LXXX

A ACUSAÇÃO




O
 Sr. de Avrigny não tardou a chamar a si o magistrado, que parecia um segundo cadáver naquele quarto fúnebre.
— Oh, a morte instalou-se em minha casa! — exclamou Villefort.
— Diga antes, o crime — corrigiu o médico.
— Sr. de Avrigny, não posso exprimir-lhe tudo o que se passa em mim neste momento — confessou Villefort — É terror, é dor, é loucura.
— Sim — respondeu o Sr. de Avrigny, com uma calma impressionante — Mas creio ser tempo de agirmos, de opormos um dique a esta torrente de mortalidade. Quanto a mim, sinto-me incapaz de levar mais longe semelhantes segredos, sem esperança de proporcionarem em breve a vingança que a sociedade e as vítimas exigem.
Villefort lançou à sua volta um olhar sombrio.
— Na minha casa! — murmurou — Na minha casa!
— Então, magistrado, seja homem — aconselhou Avrigny — Interprete a lei, honre-se através de uma imolação completa.
— Faz-me estremecer, doutor, uma imolação!
— Foi o que disse.
— Desconfia, portanto de alguém?
— Não desconfio de ninguém. A morte bate à sua porta, entra, sai, não cega, mas sim inteligentemente, vai de quarto em quarto... bom, sigo os seus passos, reconheço a sua passagem, e adoto a sabedoria dos antigos: tateio. Porque a minha amizade pela sua família e o meu respeito pelo senhor são duas vendas aplicadas aos meus olhos. Pois bem...
— Oh, fale, fale, doutor! Terei coragem.
— Pois bem, senhor, tem em sua casa, no seio da sua casa, talvez da sua família, um desses horríveis fenômenos que só se nos deparam uma vez em cada século. Locusta[1] e Agripina, que viveram na mesma época, são uma exceção que prova o furor da Providência em perder o Império Romano, conspurcado por tantos crimes. Brunilde e Fredegonda são os resultados do trabalho penoso de uma civilização na sua gênese, na qual o Homem aprendia a dominar o espírito, ainda que através do enviado das trevas. Bom, todas essas mulheres tinham sido ou eram ainda jovens e belas. Vira-se florir na fronte ou na sua fronte floria ainda essa mesma flor de inocência que se encontra também na fronte da culpada que se encontra nesta casa.

[1] Locusta, uma escrava romana. Foi uma envenenadora de confiança ao serviço de Agripina contra Claudio, e de Nerón contra Britânico. Para saber mais sobre Locusta leia AQUI.

Villefort soltou um grito, juntou as mãos e fitou o médico com ar suplicante.
Mas este prosseguiu sem piedade:
— Procure a quem o crime aproveita, diz um axioma de jurisprudência...
— Doutor! — gritou Villefort — Infelizmente, doutor, quantas vezes a justiça dos homens se não tem enganado com essas palavras funestas! Não sei, mas parece-me que esse crime...
— Ah, confessa, portanto, finalmente, que existe crime?...
— Sim, reconheço. Que quer, não tenho outro remédio... mas deixe-me continuar. Parece-me, repito, que esse crime cai apenas sobre mim e não sobre as vítimas. Suspeito de qualquer calamidade para mim debaixo de todos esses crimes estranhos...
— Oh, o Homem!... — murmurou Avrigny — O mais egoísta de todos os animais, a mais pessoal de todas as criaturas, que julga sempre que a Terra gira, que o Sol brilha e que a morte ceifa apenas para ele, formiga que amaldiçoa Deus do cimo de uma ervinha! E os que perderam a vida, não perderam nada? O Sr. de Saint-Méran, a Sra. de Saint-Méran, o Sr. Noirtier...
— Como, o Sr. Noirtier?
— Sim, sim! Julga porventura que era o pobre criado que se pretendia envenenar? Não, não. Como o polaco de Shakespeare, morreu por outro. Era Noirtier quem devia beber a limonada; foi Noirtier quem a bebeu, segundo a ordem lógica das coisas. O outro só a bebeu por acidente. E embora tenha sido Barrois quem morreu, era Noirtier quem devia morrer.
— Mas então por que motivo não sucumbiu o meu pai?
— Disse uma noite no jardim, depois da morte da Sra. de Saint-Méran: porque o seu corpo está habituado a absorver esse mesmo veneno; porque a dose, insignificante para ele, era mortal para qualquer outro; porque, finalmente, ninguém sabe, nem mesmo o assassino, que há um ano trato com brucina a paralisia do Sr. Noirtier, embora o assassino não ignore, e disso se tenha assegurado por experiência própria, que a brucina é um veneno violento.
— Meu Deus! Meu Deus! — murmurou Villefort, torcendo as mãos.
— Siga os passos do criminoso: mata o Sr. de Saint-Méran.
— Oh, doutor!
— Eu juraria. O que me disseram dos sintomas adapta-se muitíssimo bem ao que vi com os meus olhos.
Villefort deixou de resistir e gemeu.
— Mata o Sr. de Saint-Méran — repetiu o médico — E mata a Sra. de Saint-Méran. Dupla herança a receber.
Villefort limpou o suor que lhe escorria da testa.
— Escute bem.
— Infelizmente, não perco uma palavra do que diz, uma só — balbuciou Villefort.
— O Sr. Noirtier — prosseguiu implacavelmente o Sr. de Avrigny — O Sr. Noirtier testara recentemente contra o senhor, contra a sua família, a favor dos pobres, enfim. O Sr. Noirtier é poupado porque se não espera nada dele. Mas assim que destrói o primeiro testamento, assim que faz o segundo, com medo, sem dúvida, de que faça um terceiro, atacam-no. O testamento é de anteontem, se não me engano. Como vê, não há tempo perdido.
— Misericórdia, Sr. de Avrigny!
— Qual misericórdia, senhor! O médico tem uma missão sagrada na Terra e é para a desempenhar que remonta às origens da vida e desce às trevas misteriosas da morte. Quando se comete um crime e Deus, sem dúvida horrorizado, desvia o olhar do criminoso, é ao médico que compete dizer: ei-lo!
— Piedade para a minha filha, senhor! — murmurou Villefort.
— Como vê, foi o senhor mesmo que a citou; o senhor, seu pai!
— Piedade para Valentine! Escute, é impossível. Preferiria acusar a mim mesmo! Valentine, um coração de diamante, um lírio inocente!
— Deixemos de piedade, Sr. Procurador Régio. O crime é flagrante. Mademoiselle de Villefort acondicionou pessoalmente os medicamentos enviados ao Sr. de Saint-Méran, e o Sr. de Saint-Méran morreu. Mademoiselle de Villefort preparou o suco da Sra. de Saint-Méran , e a Sra. de Saint-Méran morreu. Mademoiselle de Villefort tomou as mãos de Barrois, a quem mandaram fazer um recado, a garrafa de limonada que o velho bebe habitualmente de manhã, e o velho só escapou por milagre. Mademoiselle de Villefort é a culpada! É a envenenadora! Sr. Procurador Régio, denuncio-lhe Mademoiselle de Villefort, cumpra o seu dever!
— Doutor, já não resisto, já não me defendo, acredito-o. Mas, por piedade, poupe-me a vida, a minha honra!
— Sr. de Villefort — perguntou o médico, com crescente energia — Há circunstâncias em que transponho todos os limites da estúpida circunspecção humana. Se a sua filha tivesse cometido apenas um crime e a visse projetar segundo, lhe diria: “Previna-a, castigue-a, que passe o resto da vida em qualquer convento, a chorando e a rezando”. Se tivesse cometido segundo crime, lhe diria: “Tome, Sr. de Villefort, aqui tem um veneno sem antídoto conhecido, rápido como o pensamento, súbito como o relâmpago, mortal como o raio; dê-lhe, encomende-lhe a alma a Deus e salve a sua honra e os seus dias, porque é ao senhor que ela quer mal. E vejo-a aproximar-se da sua cabeceira com os seus sorrisos hipócritas e as suas meigas exortações! Ai de si, Sr. de Villefort, se não se apressar a ferir primeiro!” Seria isto que lhe diria se ela só tivesse matado duas pessoas. Mas ela assistiu a três agonias, contemplou três moribundos, ajoelhou-se junto de três cadáveres. Ao carrasco a envenenadora! Ao carrasco! Fala da sua honra; faça o que lhe digo e esperará a imortalidade!
Villefort caiu de joelhos.
— Ouça — pediu — Não possuo a força que o senhor tem, ou antes, que não teria, se em vez da minha filha Valentine, se tratasse da sua filha Madeleine.
O médico empalideceu.
— Doutor, todo o homem, filho da mulher, nasceu para sofrer e morrer. Doutor, sofrerei e esperarei a morte.
— Acautele-se — disse o Sr. de Avrigny — Ela será lenta essa morte; a verá  aproximar-se, depois de ferir o seu pai, a sua mulher, talvez o seu filho.
Sufocado, Villefort apertou o braço do médico.
— Ouça-me! — gritou — Tenha compaixão de mim, ajude-me!... Não, a minha filha não é culpada... se me levarem perante um tribunal, continuarei a dizer “Não, a minha filha não é culpada... não existe crime em minha casa...” Não quero, ouviu? Não quero que haja crime em minha casa. Porque quando o crime entra em qualquer parte, é como a morte, não entra sozinho. Ouça, que lhe interessa que eu morra assassinado?... É meu amigo? ... É um homem? Tem uma oração?... Não, é um médico! ... Pois bem, digo-lhe que a minha filha não será arrastada por mim para as mãos do carrasco!... Ah, uma idéia que me devora, que me leva, como um insensato, a arranhar o peito com as unhas!... E se estivesse enganado, doutor? Se fosse outra pessoa e não a minha filha? Se um dia eu lhe aparecesse, pálido como um fantasma, e lhe dissesse “Assassino! Mataste a minha filha!...” Olhe, se isso acontecesse, sou cristão, Sr. de Avrigny, mas mesmo assim me mataria.
— Está bem, esperarei — cedeu o médico, após um instante de silêncio.
Villefort olhou-o como se duvidasse ainda das suas palavras.
— Simplesmente — continuou o Sr. de Avrigny em voz lenta e solene — Se alguma pessoa da sua casa adoecer, se o senhor mesmo se sentir mal, não me chame porque não voltarei. Estou disposto a compartilhar consigo esse segredo terrível, mas não quero que a vergonha e o remorso entrem em minha casa, frutifiquem e cresçam na minha consciência, tal como o crime e a infelicidade vão crescer e frutificar na sua casa.
— Me abandona, portanto, doutor?
— Abandono porque não o posso acompanhar mais longe e só me detenho ao pé do cadafalso. Surgirá qualquer outra revelação que porá termo a essa horrível tragédia. Adeus.
— Doutor, suplico-lhe!
— Todos os horrores que conspurcam o meu pensamento tornam-me a sua casa odiosa e fatal. Adeus, senhor.
— Uma palavra, só mais uma palavra, doutor! O senhor retira-se deixando-me todo o horror da situação, horror que aumentou com o que me revelou. Mas que se dirá da morte instantânea, súbita, daquele pobre velho servidor?
— É justo — disse o Sr. de Avrigny — Acompanhe-me.
O médico saiu adiante e o Sr. de Villefort seguiu-o.
Os criados, inquietos, estavam nos corredores e nas escadas por onde devia passar o médico.
— Senhor — disse Avrigny a Villefort, falando em voz alta, de forma que toda a gente o ouvisse — O pobre Barrois há anos que levava urna vida demasiado sedentária. Ele, que tanto gostava de, com o amo, percorrer a cavalo ou de carruagem os quatro cantos da Europa, matou-se naquele serviço monótono à volta de uma cadeira de rodas. O sangue engrossou-lhe. Estava repleto, tinha o pescoço grosso e curto, foi atingido por uma apoplexia fulminante e chamaram-me demasiado tarde. A propósito — acrescentou baixinho — Não se esqueça de deitar a taça de violetas nas cinzas...
E o médico, sem tocar na mão de Villefort e sem voltar atrás um só instante no que dissera, saiu escoltado pelas lágrimas e pelos lamentos de todo o pessoal da casa.
Naquela mesma tarde, todos os criados de Villefort, que se tinham reunido na cozinha e haviam conversado demoradamente entre si, vieram pedir à Sra. de Villefort licença para se irem embora. Nenhuma insistência, nenhuma proposta de aumento de salários conseguiu retê-los. A todas as palavras respondiam: “Queremos ir-nos embora porque a morte está nesta casa”. Partiram, portanto, apesar de todos os pedidos que lhes fizeram, declarando que tinham muita pena de deixar tão bons patrões e, sobretudo Mademoiselle Valentine, tão boa, tão generosa e tão meiga.
Ao ouvir estas palavras, Villefort olhou para Valentine. Ela chorava.
Coisa estranha! Através da emoção que lhe fizeram experimentar aquelas lágrimas, olhou também para a Sra. de Villefort e pareceu-lhe que um sorriso fugaz e sombrio lhe passara pelos lábios delgados, como esses meteoros que vemos deslizar, sinistros, entre duas nuvens, no fundo de um céu tempestuoso.


continua... 




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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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