sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 87




LXXXVII

A PROVOCAÇÃO




— Então — continuou Beauchamp — Aproveitei o silêncio e a obscuridade da sala para sair sem ser visto. O contínuo que me introduzira esperava-me à porta. Conduziu-me através dos corredores até uma portinha que dava para a Rua de Vaugirard e saí com a ahlia simultaneamente amargurada e deslumbrada perdoe-me a expressão, Albert. Amargurada por sua causa, meu amigo, deslumbrada pela nobreza daquela moça, que colocara acima de tudo a vingança paterna. Sim, juro-lhe, Albert, seja qual for a origem daquela revelação, estou convencido de que, embora possa ser obra de um inimigo, esse inimigo foi apenas um agente da Providência.
Albert segurava a cabeça entre as mãos. Levantou o rosto rubro de vergonha e banhado em lágrimas, agarrou num braço de Beauchamp e disse-lhe:
— Amigo, a minha vida terminou. Resta-me, não dizer como você, que a Providência me vibrou o golpe, mas sim descobrir qual o homem que me persegue com a sua inimizade. Depois, quando o encontrar, matarei esse homem, ou esse homem me matará. Conto com a sua amizade para me ajudar. Beauchamp, se o desprezo ainda a não matou no seu coração.
— O desprezo, meu amigo? Porque havia de ser atingido por essa infelicidade? Não! Graças a Deus já não estamos no tempo em que um preconceito injusto tornava os filhos responsáveis pelos atos dos pais. Reveja toda a sua vida, Albert; data de ontem, é certo, mas alguma vez a aurora de um belo dia foi mais pura do que o seu oriente. Não, Albert, acredite. Você é jovem, é rico, deixe a França. Tudo se esquece depressa nesta grande Babilônia, na existência agitada e nos gostos inconstantes. Voltará dentro de três ou quatro anos, depois de casar com alguma princesa russa, e ninguém já se lembrará do que se passou ontem, e com mais forte razão do que se passou há dezesseis anos.
— Obrigado, meu caro Beauchamp, obrigado pela excelente intenção que lhe dita essas palavras, mas não pode ser assim. Disse-lhe qual era o meu desejo, e agora, se for preciso, trocarei a palavra desejo pela palavra vontade. Como deve compreender, interessado como sou no caso, não posso ver as coisas do mesmo modo que você. O que a si parece provir de uma fonte celeste, parece-me a mim brotar de uma fonte menos pura. A Providência parece-me, confesso-lhe, muito estranha a tudo isto, e ainda bem, porque assim, em vez do invisível e do impalpável mensageiro das recompensas e dos castigos celestes, encontrarei um ser palpável e visível no qual me vingarei. Oh, sim, juro-lho, por tudo o que sofro há um mês! Agora repito-lhe, Beauchamp, tenho de reentrar na vida humana e material, e se é ainda meu amigo como diz, ajude-me a encontrar a mão que desferiu o golpe.
— Seja! — respondeu Beauchamp — Se quer absolutamente que desça à terra, descerei; se quer ir em busca de um inimigo, irei consigo. E o encontrarei, porque a minha honra tem quase tanto interesse como a sua em que o encontremos.
— Nesse caso, Beauchamp, comecemos agora mesmo, sem demora, as nossas investigações. Cada minuto de espera é uma eternidade para mim. O denunciante ainda não foi punido e pode, portanto esperar não o ser. Mas, pela minha honra, se o espera, engana-se!
— Escute o que vou lhe dizer, Morcerf.
— Ah, Beauchamp, vejo que sabe alguma coisa!... Isso é o mesmo que restituir-me a vida.
— Não garanto que seja verdade, Albert, mas é pelo menos uma luz na noite. Seguindo essa luz, talvez ela nos conduza ao objetivo.
— Diga! Bem vê que ardo de impaciência.
— Pois bem, vou-lhe contar o que lhe não quis dizer no regresso de Janina.
— Fale.
— Eis o que se passou, Albert: muito naturalmente, procurei o primeiro banqueiro da cidade para obter informações. Mal me referi ao caso, ainda antes do nome do seu pai ser pronunciado, disse-me ele:
“— Ah, muito bem, adivinho o que o traz aqui!...
“— Como assim? Porquê?
“— Porque apenas há quinze dias fui interrogado sobre o mesmo assunto.
“— Por quem?
“— Por um banqueiro de Paris, meu correspondente.
“— Chamado?”
“— Sr. Danglars.
— Ele! — exclamou Albert — Com efeito, é ele que há muito tempo persegue o meu pobre pai com o seu ódio invejoso; ele, o homem pretensamente popular, que não pode perdoar ao Conde de Morcerf ser Par de França. E veja, aquele rompimento de casamento sem motivo declarado... sim, é isso!
— Informe-se, Albert, mas não perca a cabeça antecipadamente. Informe-se, repito-lhe, e se for verdade...
— Oh, sim, se for verdade... me pagará tudo o que tenho sofrido! — exclamou o jovem.
— Cautela, Morcerf, lembre-se de que é um homem velho.
— Olharei à sua idade tanto como ele olhou à honra da minha família. Se queria mal ao meu pai, porque não o atacou cara a cara? Oh, não, ele tem medo de se encontrar diante de um homem!
— Albert, não o condeno, estou apenas a aconselhá-lo: ande com prudência.
— Oh, não tenha medo! De resto, me acompanhará, Beauchamp. As coisas solenes devem ser tratadas diante de testemunhas. Antes do fim deste dia, se o Sr. Danglars for culpado, o Sr. Danglars deixará de viver ou eu estarei morto. Por Deus, Beauchamp, quero fazer um lindo funeral à minha honra!
— Sendo assim, quando se tomam semelhantes resoluções, Albert, é necessário pô-las imediatamente em prática. Quer ir a casa do Sr. Danglars?
— A caminho!
Mandaram chamar um cabriole de praça. Quando entraram no palácio do banqueiro, viram o faeton e o criado do Sr. Andréa Cavalcanti à porta.
— Calha bem — declarou Albert com voz sombria — Se o Sr. Danglars não quiser se bater comigo, matarei o genro. Decerto um Cavalcanti não recusará bater-se...
Anunciaram o jovem ao banqueiro, o qual, ao ouvir o nome de Albert e sabendo o que se passara na véspera, recusou recebê-lo. Mas era demasiado tarde, pois o jovem seguira o lacaio e, ao ouvir a ordem dada, forçou a entrada, seguido de Beauchamp, até ao gabinete do banqueiro.
— Que é isto?! — protestou este — Já não sou senhor de receber em minha casa quem quero e de não receber quem não quero? Parece-me que o esquece, estranhamente...
— Não, senhor — redargüiu Albert com frieza — Mas há circunstâncias, e o senhor encontra-se numa delas, em que devemos, a não ser que sejamos covardes, e não tenho dúvida em oferecer-lhe esse refúgio, estar em casa pelo menos para certas pessoas.
— Mas que me quer o senhor?
— Quero — respondeu Morcerf, aproximando-se sem parecer reparar em Cavalcanti, que estava encostado à chaminé — Quero propor-lhe um encontro num canto discreto, onde ninguém nos incomodará durante dez minutos... não lhe peço mais. Onde, enfim, depois do encontro, desses dois homens um deles ficar caído no chão...
Danglars empalideceu e Cavalcanti fez um movimento. Então, Albert virou-se para o rapaz e disse:
— Oh, meu Deus, também pode ir, se quiser, Sr. Conde! Tem o direito de estar lá, visto ser quase da família, e eu concedo encontros destes a tantas pessoas quantas os quiserem aceitar.
Cavalcanti olhou com ar estupefato para Danglars, o qual, fazendo um esforço, se levantou e foi colocar entre os dois jovens. O ataque de Albert a Andréa acabava de o colocar em outro terreno e por isso esperava que a visita de Albert tivesse causa diferente da que supusera de início.
— Então, senhor — disse a Albert — Se vem aqui provocar este senhor porque o preferi a si, previno-o de que apresentarei queixa ao procurador régio.
— Engana-se, senhor — perguntou Morcerf com um sorriso sombrio — Não me refiro de modo nenhum a esse casamento e só me dirijo ao Sr. Cavalcanti porque me pareceu que teve por momentos a intenção de intervir na nossa discussão. Mas no fundo, o senhor tem razão: de fato, hoje procuro questionar todas as pessoas. Esteja, porém tranqüilo, Sr. Danglars, porque a prioridade lhe pertence.
— Senhor — respondeu Danglars, pálido de cólera e medo — Previno-o de que quando tenho a pouca sorte de encontrar no meu caminho um cão raivoso, mato-o, e de que, longe de me considerar culpado, penso ter prestado um serviço à sociedade. Ora, se o senhor está raivoso e disposto a morder-me, previno-o de que o matarei sem piedade. Irra, tenho porventura culpa de o seu pai estar desonrado?!
— Tem, miserável! — gritou Morcerf — A culpa é sua!
Danglars deu um passo atrás.
— A culpa é minha?... — murmurou — O senhor esta louco! Que sei eu dessa história grega? Alguma vez viajei por esses países? Fui eu que aconselhei o seu pai a vender os castelos de Janina, a trair...
— Silêncio! — disse Albert em voz abalada — Não, não foi o senhor quem diretamente promoveu o escândalo e ocasionou a desgraça, mas foi o senhor quem hipocritamente o provocou.
— Eu?!
— Sim, o senhor! De onde veio a revelação?
— Parece-me que o jornal já o disse: de Janina, com a breca!
— E quem escreveu para Janina?
— Para Janina?...
— Sim. Quem escreveu pedindo informações acerca do meu pai?
— Parece-me que qualquer pessoa pode escrever para Janina...
— Mas só uma escreveu.
— Só uma?
— Sim! E essa pessoa foi o senhor.
— Escrevi, de fato. Parece-me que quando casamos uma filha com um rapaz temos o direito de nos informar acerca da família desse rapaz. É não só um direito, mas também um dever.
— O senhor escreveu sabendo perfeitamente a resposta que receberia — replicou Albert.
— Eu? Juro-lhe — protestou Danglars, com uma convicção e uma segurança que provinham talvez menos do seu medo do que do interesse que no fundo sentia pelo pobre rapaz — Juro-lhe que nunca me teria passado pela cabeça escrever para Janina. Porventura conhecia a catástrofe de Ali-Paxá?
— Então alguém o incitou a escrever?
— Claro.
— Incitaram-no?
— Sim.
— Quem?... Acabe... diga...
— Meu Deus, nada mais simples! Falava do passado do seu pai e dizia que a origem da sua fortuna sempre fora obscura. Perguntaram-me então onde enriquecera o seu pai. Respondi: “Na Grécia”. Então o meu interlocutor disse-me “Pois bem, escreva para Janina”.
— E quem lhe deu esse conselho?
— Ora, ora, o Conde de Monte Cristo, seu amigo!
— O Conde de Monte Cristo disse-lhe que escrevesse para Janina?
— Disse e eu escrevi. Quer ver a minha correspondência? Posso mostrar-lhe.
Albert e Beauchamp entreolharam-se.
— Senhor — disse então Beauchamp, que até ali estivera calado — Parece-me que acusa o Conde, que está ausente de Paris e que se não pode justificar neste momento...
— Eu não acuso ninguém, senhor — perguntou Danglars — Conto como as coisas se passaram e repetirei diante do Sr. Conde de Monte Cristo o que acabo de dizer diante dos senhores.
— E o Conde sabe que resposta recebeu?
— Mostrei-lhe.
— Sabia que o nome de batismo do meu pai era Fernand e que o seu nome de família era Mondego?
— Sabia, eu tinha lhe dito havia muito tempo. Quanto ao mais, não fiz nesse caso senão o que qualquer outro faria, e até talvez muito menos. Quando, no dia seguinte ao receber a resposta, impelido pelo Sr. Conde de Monte Cristo, o seu pai veio pedir a minha filha oficialmente, recusei, como se faz quando se quer acabar com as coisas de vez, recusei redondamente, é verdade, mas sem explicações, sem escândalo. Com efeito, para que faria eu um escândalo? Em que medida a honra ou a desonra do Sr. de Morcerf me interessava? Não seria por isso que a taxa de juro subiria ou desceria...
Albert sentiu o rubor subir-lhe à testa. Não havia dúvida: Danglars defendia-se com baixeza, mas também com a segurança de um homem que diz, se não toda a verdade, pelo menos parte da verdade, não por consciência, é certo, mas sim por terror. Aliás, que procurava Morcerf? Não era a mais ou menos culpabilidade de Danglars ou de Monte Cristo, era um homem que respondesse por uma ofensa ligeira ou grave, era um homem que se batesse, e era evidente que Danglars não se bateria.
E depois, todas as coisas esquecidas ou despercebidas se tornavam agora visíveis a seus olhos ou presentes na sua memória.
Monte Cristo sabia tudo, pois fora ele que comprara a filha de Ali-Paxá. Ora, sabendo tudo, aconselhara Danglars a escrever para Janina. Conhecida a resposta, acedera ao desejo manifestado por Albert para ser apresentado a Haydée. Uma vez diante dela, deixara a conversa derivar para a morte de Ali, sem se opor à narrativa de Haydée, mas tendo sem dúvida dado à jovem, em algumas palavras romaicas que pronunciara, instruções que não tinham permitido a Morcerf reconhecer o pai. De resto, não pedira ele a Morcerf que não proferisse o nome do pai diante de Haydée? Por fim, levara Albert para a Normandia no momento em que sabia que o grande escândalo ia rebentar. Não havia dúvida a tal respeito: tudo aquilo fora calculado e sem dúvida nenhuma Monte Cristo era conivente dos inimigos do Conde de Morcerf.
Albert levou Beauchamp para um canto e comunicou-lhe todas estas deduções.
— Tem razão — concordou o jornalista — O Sr. Danglars só tem a ver com o sucedido no tocante à parte brutal e material; é a Monte Cristo que deve pedir uma explicação.
Albert virou-se.
— Senhor — disse a Danglars — Espero que compreenda por que motivo me não despeço definitivamente; resta-me saber se as suas acusações são justas coisa de que vou me assegurar sem demora junto do Sr. Conde de Monte Cristo.
E, depois de cumprimentar o banqueiro, saiu com Beauchamp, sem parecer dar pela presença de Cavalcanti. Danglars acompanhou-os à porta e aí renovou a Albert a afirmação de que nenhum motivo de ódio pessoal o animava contra o Sr. Conde de Morcerf.




continua... 






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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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