quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 86



LXXXVI

O JULGAMENTO




A
s oito horas da manhã, Albert caiu como um raio em casa de Beauchamp. Como o criado de quarto estava avisado, introduziu Morcerf no quarto do amo, que acabava de se meter no banho.
— Então? — perguntou-lhe Albert.
— Então, meu pobre amigo, esperava-o — respondeu Beauchamp.
— Pois aqui me tem não lhe direi, Beauchamp, que o considero tão leal e correto que nem me passa pela cabeça que tenha falado do caso a quem quer que seja. Não, meu amigo. Aliás, a mensagem que me mandou é para mim uma garantia da sua amizade. Assim, não percamos tempo com preâmbulos: tem alguma idéia de onde vem o golpe?
— Lhe direi em duas palavras daqui a pouco.
— Está bem, mas primeiro, meu amigo, quero que me conte com todos os pormenores a história dessa abominável traição.
E Beauchamp contou ao jovem, esmagado de vergonha e dor, os fatos que vamos repetir em toda a sua simplicidade.
Na manhã da antevéspera, outro jornal que não o Impartial publicara o artigo que já conhecemos, e o que dava ainda mais gravidade ao caso era o fato de se tratar de um jornal bem conhecido por pertencer ao Governo. Beauchamp estava almoçando quando a notícia lhe saltara aos olhos. Mandara buscar imediatamente um cabriolé e, sem acabar de comer, correra ao jornal. Embora professasse idéias políticas completamente opostas às do diretor do jornal acusador, Beauchamp, como acontece algumas vezes e diremos até que com freqüência, era seu amigo íntimo.
Quando chegou, o diretor lia o seu próprio jornal e parecia encantado com um artigo acerca do açúcar de beterraba, que provavelmente era da sua lavra.
— Ainda bem que tem aí o seu jornal, meu caro! — exclamou, Beauchamp mal entrou — Assim não tenho necessidade de lhe dizer o que me traz por aqui.
— Você será por acaso partidário da cana-de-açúcar? — perguntou o diretor do jornal ministerial.
— Não — respondeu Beauchamp — Sou até absolutamente estranho ao assunto. Venho por outra coisa.
— Qual?
— O artigo acerca do Morcerf.
— Deveras? É curioso!...
— Tão curioso que me parece que se arrisca a um processo por difamação de resultado muito duvidoso.
— De modo nenhum. Recebemos com a notícia uma série de provas e estamos perfeitamente convencidos de que o Sr. de Morcerf ficará quietinho. Aliás, é um serviço que se presto ao país denunciar os miseráveis indignos das honras que lhes concederam.
Beauchamp ficou interdito.
— Mas quem os informou tão bem? — perguntou — Porque o meu jornal, que levantou a lebre, viu-se obrigado a abster-se por falta de provas, e no entanto temos mais interesse do que vocês em denunciar o Sr. de Morcerf, que é Par de França, enquanto nós estamos na oposição.
— Oh, meu Deus, é muito simples! Não corremos atrás do escândalo; ele é que veio ao nosso encontro. Ontem chegou-nos um homem de Janina, trazendo consigo o formidável processo e, como hesitamos em nos lançar no caminho da acusação, anunciou-nos que, se recusássemos, o artigo seria publicado em outro jornal. Você sabe, Beauchamp, o que é uma notícia importante; não quisemos perder essa. Agora os dados estão jogados; o caso é terrível e repercutirá até aos confins da Europa.
Beauchamp compreendeu que a única coisa a fazer era se dar por vencido e saiu precipitadamente para enviar um mensageiro a Morcerf.
Mas o que não pudera mandar dizer a Albert, pois o que vamos contar aconteceu depois da partida do seu mensageiro, fora que no mesmo dia se manifestara grande agitação na Câmara dos Pares, agitação que se apoderara por completo dos grupos, habitualmente tão calmos, da alta assembléia. Todos tinham chegado quase antes da hora e falavam do sinistro acontecimento que iria ocupar a atenção pública e fixá-la num dos membros mais conhecidos da ilustre corporação.
Lia-se em voz baixa o artigo e trocavam-se comentários e recordações, que precisavam ainda mais os fatos. O Conde de Morcerf não era estimado pelos seus colegas. Como todos os arrivistas, vira-se obrigado, para se manter na sua posição, a observar um excesso de altivez. Os grandes aristocratas riam-se dele; os talentos da república, as glórias puras, desprezavam-no instintivamente. O Conde encontrava-se na situação desagradável de bode expiatório. Uma vez designado pelo dedo do Senhor para o sacrifício, todos se preparavam para lhe cair em cima.
O único que não sabia de nada era o Conde de Morcerf. Não recebia o jornal onde vinha a notícia difamatória e passara a manhã a escrever cartas e a experimentar um cavalo. Chegou, portanto à hora habitual, de cabeça erguida, olhar altivo e atitude insolente, desceu da carruagem, percorreu os corredores e entrou na sala sem notar as hesitações dos contínuos e os meios cumprimentos dos colegas.
Quando Morcerf entrou, a sessão estava já aberta havia mais de meia-hora.
Embora o Conde, ignorando, como dissemos, tudo o que se passara, em nada tivesse modificado o seu ar e a sua atitude, tanto um como a outra pareceram a todos mais orgulhosos do que de costume, e a sua presença naquela ocasião de tal modo agressiva à assembléia, coisa da sua honra, que lodos viram nisso uma inconveniência, vários uma bravata e alguns um insulto.
Era evidente que toda a Câmara ansiava por iniciar os debates. Via-se o jornal acusador nas mãos de todos; mas como sempre, todos hesitavam em chamar a si a responsabilidade do ataque. Por fim, um dos respeitáveis pares, inimigo declarado do Conde de Morcerf, subiu à tribuna com uma solenidade anunciadora de que o momento esperado chegara.
Fez-se um silêncio espantoso.
Só Morcerf ignorava a causa da profunda atenção que se prestava daquela vez a um orador que ninguém costumava escutar tão complacentemente.
O Conde deixou passar tranquilamente o preâmbulo pelo qual o orador declarava ir falar de uma coisa de tal modo grave, de tal modo sagrada e de tal modo vital para a Câmara, que reclamava toda a atenção dos seus colegas.
Às primeiras citações de Janina e do Coronel Fernand, o Conde de Morcerf empalideceu tão horrivelmente que um único frêmito percorreu a assembléia, da qual todos os olhares convergiam para o Conde. As feridas morais têm isso de especial: ocultam-se, mas não fecham. Sempre dolorosas, sempre prontas a sangrar quando lhes tocam, permanecem vivas e abertas no coração.
Terminada a leitura do artigo no meio do mesmo silêncio, perturbado então por um frêmito, que cessou imediatamente quando o orador pareceu disposto a tomar de novo a palavra, o acusador expôs os seus escrúpulos e procurou demonstrar quanto a sua tarefa era difícil. Tratava-se da honra do Sr. de Morcerf, era a honra de toda a Câmara que pretendia defender provocando um debate que teria de se ocupar de questões pessoais, sempre tão melindrosas. Finalmente, concluiu pedindo que fosse ordenado um inquérito bastante rápido para confundir, antes que tivesse tempo de crescer, a calúnia e para recolocar o Sr. de Morcerf, vingando-o, na posição que a opinião pública lhe concedera havia muito tempo.
Morcerf estava acabrunhado. Tão acabrunhado, tão trêmulo perante aquela enorme e inesperada calamidade, que mal pôde balbuciar algumas palavras, e fitava os colegas com os olhos esbugalhados. Aquela timidez, que, aliás tanto se podia dever à surpresa do inocente como à vergonha do culpado valeu-lhe algumas simpatias.
Os homens verdadeiramente generosos estão sempre prontos a ser compassivos quando a infelicidade do inimigo excede os limites do seu ódio.
O presidente pôs o inquérito em votação. Votou-se por sentados e levantados e decidiu-se levar o inquérito diante. Perguntaram ao Conde quanto tempo precisava para preparar a sua defesa. A coragem voltara a Morcerf desde que se sentira ainda vivo depois daquele horrível golpe.
— Srs. Pares — respondeu — Não é com o tempo que se repele um ataque como o que dirigem neste momento contra mim inimigos desconhecidos e que permanecem na sombra da sua obscuridade, sem dúvida; é imediatamente, é por meio de um contra-ataque súbito que devo responder ao relâmpago que por instantes me cegou, já que me não é dado, em vez de semelhante justificação, derramar o meu sangue para provar aos meus colegas que sou digno de me sentar a seu lado!
Estas palavras causaram uma impressão favorável ao acusado.
— Peço portanto que o inquérito se efetue o mais depressa possível, e fornecerei à Câmara todas as provas necessárias à eficácia dessa diligência.
— Que dia fixa? — perguntou o presidente.
— Coloco-me a partir de hoje à disposição da Câmara — respondeu o Conde.
O presidente agitou a campainha.
— A Câmara concorda que o inquérito se realize hoje mesmo? — perguntou.
— Sim! — foi a resposta unânime da assembléia.
Nomeou-se uma comissão de doze membros para examinar as provas fornecidas por Morcerf. A primeira sessão da comissão foi marcada para as oito da noite no edifício da Câmara. Se fossem necessárias diversas sessões, se realizariam à mesma hora e no mesmo local.
Tomada esta decisão, Morcerf pediu licença para se retirar. Tinha de reunir as provas acumuladas havia muito tempo para enfrentar aquela tempestade, prevista pelo seu cauteloso e indomável caráter.
Beauchamp contou ao jovem tudo o que acabamos de dizer pela nossa parte. O seu relato apenas teve sobre o nosso a vantagem da animação das coisas vivas sobre a frieza das coisas mortas. Albert escutou-o, tremendo, ora de esperança, ora de cólera, e por vezes de vergonha.
Porque, pela confidência de Beauchamp, sabia que o pai era culpado e perguntava a si próprio como, uma vez que era culpado, conseguiria provar a sua inocência. Chegado a este ponto, Beauchamp calou-se.
— E depois? — perguntou Albert.
— E depois? — repetiu Beauchamp.
— Sim.
— Meu amigo, essa palavra coloca-me perante um horrível dilema. Quer, de fato, saber o que se passou depois?
— É absolutamente necessário que o saiba, meu amigo, e prefiro sabê-lo pela sua boca do que pela de qualquer outro.
— Nesse caso — declarou Beauchamp — Apele para a sua coragem, Albert; nunca terá tanta necessidade dela.
Albert passou a mão pela testa para se assegurar da sua própria energia, como um homem que, preparando-se para defender a vida, experimenta a couraça e verga a lâmina da espada. Sentiu-se forte, porque tomava a febre por energia.
— Continue! — pediu.
— Chegou a noite — prosseguiu Beauchamp — Todos em Paris estava na expectativa do acontecimento. Muitos pretendiam que o seu pai não teria mais do que aparecer para deitar por terra a acusação; muitos também diziam que o Conde não se apresentaria, e havia quem afirmasse tê-lo visto partir para Bruxelas, alguns foram mesmo à Polícia perguntar se era verdade, como se dizia, que o Conde pedira o seu passaporte. Confesso-lhe que fiz quanto pude — continuou Beauchamp — Para conseguir que um dos membros da comissão, um jovem par meu amigo, me introduzisse numa espécie de tribuna. Veio buscar-me às sete horas e, antes da chegada de quem quer que fosse, recomendou-me a um contínuo que me fechou numa espécie de camarote. Estava oculto por uma coluna e mergulhado na escuridão mais completa, mas esperançado em ver e ouvir de ponta a ponta a terrível cena que se ia desenrolar. Às oito horas precisas não faltava ninguém. O Sr. de Morcerf entrou ao soar a última badalada das oito. Trazia na mão alguns papéis e parecia calmo. Contrariamente ao seu hábito, a sua atitude era simples e o seu traje esmerado e severo. E, conforme o hábito dos antigos militares, trazia a sobrecasaca abotoada de alto a baixo. A sua presença produziu o melhor efeito. A comissão estava longe de ser malevolente e muitos dos seus membros vieram ao encontro do Conde e estenderam-lhe a mão.
Albert sentiu que o coração se partia ao ouvir todos estes pormenores, e, no entanto no meio da sua dor insinuava-se um sentimento de reconhecimento. Desejaria poder abraçar os homens que tinham dado ao pai aquela prova de estima num momento tão difícil para a sua honra.
— Nessa altura entrou um contínuo, que entregou uma carta ao presidente.
“— Tem a palavra, Sr. de Morcerf — disse o presidente, ao mesmo tempo que abria a carta.
— O Conde começou a sua apologia, e afirmo-lhe, Albert — continuou Beauchamp — Que foi de uma eloqüência e de uma habilidade extraordinárias. Apresentou documentos que provavam que o vizir de Janina o honrara até à sua última hora com toda a sua confiança, pois encarregara-o de uma negociação de vida ou de morte com o próprio imperador. Mostrou o anel, símbolo de comando, com que Ali-Paxá lacrava habitualmente as suas cartas e que ele lhe dera para que pudesse, no seu regresso, a qualquer hora do dia ou da noite, ainda que o vizir se encontrasse no seu harém, chegar até junto dele. Infelizmente, disse, a sua negociação malograra-se, e quando regressara para defender o seu benfeitor este já estava morto. Mas, disse o conde, ao morrer, Ali-Paxá, tão grande era a sua confiança nele, confiara-lhe a sua concubina favorita e a sua filha.
Albert estremeceu ao ouvir estas palavras, porque à medida que Beauchamp falava, toda a narrativa de Haydée acudia ao espírito do jovem, e recordava-se do que a bela grega dissera acerca daquela mensagem e daquele anel e da forma como fora vendida e submetida à escravatura.
— E qual foi o efeito do discurso do conde? — perguntou Albert com ansiedade.
— Confesso que me comoveu e que, ao mesmo tempo que a mim, comoveu toda a comissão — respondeu Beauchamp — Entretanto, o presidente deitou negligentemente os olhos à carta que lhe tinham entregado. Mas às primeiras linhas a sua atenção despertou. Leu-a, releu-a e, cravando os olhos no Sr. de Morcerf, perguntou:
“— Sr. Conde, acaba de nos dizer que o vizir de Janina lhe confiara a mulher e a filha, não é verdade?
“— É, sim, senhor — respondeu Morcerf — Mas nisso como em tudo o mais, a pouca sorte perseguia-me. No meu regresso, Vasiliki e sua filha Haydée tinham desaparecido.
“— As conhecia-a!”
“— A minha intimidade com o paxá e a suprema confiança que ele depositava na minha fidelidade tinham-me permitido vê-las mais de vinte vezes.
“— Tem alguma idéia do que lhes aconteceu?
“— Tenho, senhor. Ouvi dizer que tinham sucumbido ao seu desgosto e talvez à sua miséria. Eu não era rico, a minha vida corria grandes perigos e não pude procurá-las, com grande pesar meu.
“O presidente franziu imperceptivelmente o sobrolho.
“— Senhores — disse — Ouviram e acompanharam o Sr. Conde de Morcerf e as suas explicações. Sr. Conde, pode fornecer-nos algum testemunho em apoio do que acaba de nos relatar?
“— Infelizmente, não, senhor — respondeu o conde — Todos os que rodeavam o vizir e que me conheceram na sua corte morreram ou desapareceram. Apenas, pelo menos segundo creio, apenas compatriotas meus sobreviveram àquela horrível guerra. Só tenho cartas de Ali-Tebelin, e essas já as exibi aqui. Quanto ao anel, penhor da sua vontade, ei-lo. Finalmente, tenho a prova mais convincente que posso fornecer, isto é, depois de um ataque anônimo, a ausência de qualquer testemunha contra a minha palavra de homem honesto e a pureza de toda a minha vida militar.
“Um murmúrio de aprovação percorreu a assembléia. Naquele momento, Albert, se não tivesse acontecido nenhum incidente, a causa do seu pai estaria ganha.
“Faltava apenas a votação quando o presidente tomou a palavra.
“— Senhores — disse — E o senhor, Conde de Morcerf, presumo que não se importarão de ouvir uma testemunha importantíssima, ao que ela afirma, e que acaba de se apresentar espontaneamente. Essa testemunha, não duvidamos disso depois de tudo o que nos disse o conde, provará a perfeita inocência do nosso colega. Eis a carta que acabo de receber a tal respeito. Desejam que lhes seja lida ou decidem prosseguir sem que nos detenhamos neste incidente?
“O Sr. de Morcerf empalideceu e crispou as mãos nos papéis que segurava e que lhe rangeram nos dedos. A resposta da comissão foi pela leitura. Quanto ao conde, estava pensativo e não tinha qualquer opinião a emitir. O presidente leu portanto a seguinte carta:

Sr. Presidente,

Posso fornecer à comissão de inquérito encarregada de examinar a conduta no Epiro e na Macedônia do Sr. Tenente-General Conde de Morcerf as informações mais positivas.

“O presidente fez uma curta pausa. O Conde de Morcerf empalideceu. O presidente interrogou os ouvintes com a vista.
“— Continue! — gritaram de todos os lados.
“O presidente prosseguiu:

Encontrava-me presente quando ocorreu a morte de Ali-Paxá, assisti aos seus últimos momentos; sei o que foi feito de Vasiliki e Haydée; estou ao dispor da comissão e reclamo mesmo a honra de me fazer ouvir. Encontro-me no vestíbulo da Câmara no momento em que lhe envio esta carta.

“— E quem é essa testemunha, ou antes, esse inimigo? — perguntou o conde numa voz em que era fácil notar profunda alteração.
“— Vamos sabê-lo, senhor — respondeu o presidente — A comissão concorda em ouvir a testemunha?”
“— Sim, sim! — responderam ao mesmo tempo todas as vozes.
“Chamou-se um contínuo.
“— Contínuo — perguntou o presidente — Está alguém à espera no vestíbulo?
“— Está, sim, Sr. Presidente.
“— Quem?
“— Uma mulher acompanhada de um criado.
“Todos se entreolharam.
“— Mande entrar essa mulher — ordenou o presidente.
— Passados cinco minutos, o contínuo reapareceu. Todos os olhos estavam fixos na porta, e eu próprio — disse Beauchamp — Compartilhava a expectativa e a ansiedade gerais. Atrás do contínuo vinha uma mulher envolta num grande véu, que a cobria por completo. No entanto, adivinhava-se, pelas formas que o véu deixava transparecer e pelo perfume que ela exalava, a presença de uma mulher nova e elegante, mas mais nada. O presidente pediu à desconhecida que tirasse o véu e então todos viram que a mulher estava vestida à grega. Além disso, era de extraordinária beleza.
— Ah, era ela! — exclamou Morcerf.
— Ela, quem?
— Sim, Haydée.
— Quem lhe disse?
— Adivinho-o. Mas continue, Beauchamp, peço-lhe. Como vê, estou calmo e forte. E, no entanto devemos estar a aproximar-nos do fim.
— O Sr. de Morcerf — continuou Beauchamp — Olhava a mulher com uma surpresa laivada de terror. Para ele, era a vida ou a morte que ia sair daquela boca encantadora; para todos os outros, era uma aventura tão estranha e cheia de curiosidade que a salvação ou a perda do Sr. de Morcerf só entrava no acontecimento como elemento secundário.
“O presidente ofereceu com um gesto de mão uma cadeira à jovem, mas ela fez sinal com a cabeça que ficaria de pé. Quanto ao conde, deixara-se cair na sua poltrona e era evidente que as pernas se recusavam a sustentá-lo.
“— Minha senhora — disse o presidente — Escreveu à comissão para lhe dar informações acerca do caso de Janina, e adiantou que fora testemunha ocular dos acontecimentos.
“— Fui, com efeito — respondeu a desconhecida numa voz cheia de encantadora tristeza e dessa sonoridade característica das vozes orientais.
“— No entanto — prosseguiu o presidente — Permita-me que lhe diga que devia ser muito nova então.
“— Tinha quatro anos. Mas como os acontecimentos se revestiam para mim de suprema importância, nem um pormenor saiu do meu espírito, nem uma particularidade escapou da minha memória.
“— Mas que importância tinham para si esses acontecimentos e quem é a senhora, para que essa grande catástrofe lhe tenha causado tão profunda impressão?
“— Tratava-se da vida ou da morte do meu pai — respondeu a jovem — E chamo-me Haydée, filha de Ali-Tebelin, Paxá de Janina e de Vasiliki; sua esposa bem-amada.
“O rubor, ao mesmo tempo modesto e orgulhoso, que cobriu as faces da jovem, o fogo do seu olhar e a majestade da sua revelação produziram na assembléia um efeito inexprimível. Quanto ao conde, não ficaria mais aniquilado se um raio lhe tivesse aberto um abismo aos pés.
“— Minha senhora — prosseguiu o presidente, depois de se inclinar com respeito — Permita-me uma simples pergunta, que não é uma dúvida, e que será a última: pode confirmar a autenticidade do que disse?
“— Posso, senhor — respondeu Haydée, tirando debaixo do véu uma bolsinha de cetim perfumado — Aqui está a minha certidão de nascimento, redigida por meu pai e assinada pelos seus principais oficiais, bem como a minha certidão de batismo, pois meu pai consentiu que fosse educada na religião da minha mãe, certidão que o grande primaz da Macedônia e do Epiro autenticou com o seu selo, e finalmente, e isto é o mais importante, sem dúvida, o registro da venda da minha pessoa e da pessoa da minha mãe ao negociante armênio El-Kobbir pelo oficial francês que, no seu infame negócio com a Porta, reservara para si, como parte na pilhagem, a filha e a mulher do seu benfeitor, que vendeu por mil bolsas, isto é, por cerca de quatrocentos mil francos.
“Uma palidez esverdeada invadiu as faces do Conde de Morcerf e os seus olhos injetaram-se de sangue ao ouvir aquelas acusações terríveis, que a assembléia acolheu com lúgubre silêncio. Haydée, sempre calma, mas muito mais ameaçadora na sua calma do que outra o seria na sua cólera, estendeu ao presidente o registro da venda, redigido em língua árabe. Como, se pensara que algumas das provas produzidas fossem redigidas em árabe, romaico ou turco, o intérprete da Câmara fora convocado. Chamaram-no. Um dos nobres pares a quem a língua árabe, que aprendera durante a sublime campanha do Egito, era familiar seguiu no velino a leitura que o tradutor fez em voz alta:

“Eu, El-Kobbir, negociante de escravos e fornecedor do harém, de Sua Majestade, reconheço ter recebido para remetê-la ao Sublime Imperador, do senhor francês Conde de Monte Cristo, uma esmeralda avaliada em duas mil bolsas, para pagamento de uma jovem escrava cristã de onze anos de idade, chamada Haydée e filha reconhecida do defunto Sr. Ali-Tebelin, Paxá de Janina, e de Vasiliki, sua favorita; a qual me fora vendida há sete anos, com sua mãe, que morreu ao chegar a Constantinopla, por um coronel francês ao serviço do vizir Ali-Tebelin, chamado Fernand Mondego.
A supracitada venda fora-me feita por conta de Sua Majestade de quem tinha mandato, mediante a quantia de mil bolsas. Feito em Constantinopla, com autorização de Sua Majestade, no ano de 1247 da hégira.
Assinado, EL-KOBBIR.
Para lhe dar toda a fé, todo o crédito e toda a autenticidade, o presente documento será autenticado com o selo imperial, que o vendedor se obriga a que lhe seja aposto.

Depois da assinatura do negociante, via-se efetivamente o selo do sublime imperador.
Seguiu-se a tudo isto um silêncio terrível. O conde só tinha olhos, e esses olhos, presos, mal-grado seu, a Haydée, pareciam de lume e de sangue.
“— Minha senhora, poderemos interrogar o Conde de Monte Cristo, que se encontra em Paris consigo, segundo creio? — perguntou o presidente.
“— Senhor — respondeu Haydée — O Conde de Monte Cristo, meu outro pai, está na Normandia há três dias.
“— Mas então, minha senhora, quem lhe aconselhou esta diligência, que a comissão lhe agradece e que, aliás, é perfeitamente natural em face do seu nascimento e dos seus infortúnios? — perguntou o presidente.
“— Senhor — respondeu Haydée — Esta diligência foi-me aconselhada pelo meu respeito e pela minha dor. Apesar de cristã, sempre pensei, Deus me perdoe!, vingar o meu ilustre pai. Ora, quando pus os pés na França, quando soube que o traidor morava em Paris, os meus olhos e os meus ouvidos ficaram constantemente abertos. Vivo retirada na casa do meu nobre protetor, mas vivo assim porque gosto da sombra e do silêncio, que me permitem entregar-me aos meus pensamentos e ao meu recolhimento. Mas o Sr. Conde de Monte Cristo rodeia-me de cuidados paternais e nada do que constitui a vida social me é estranho; apenas lhe aceito o ruído distante. Assim, leio todos os jornais, tal como me enviam todos os álbuns e recebo todas as melodias. E foi acompanhando, sem nela interferir, a vida dos outros, que soube o que se passou esta manhã na Câmara dos Pares e o que se deveria passar esta tarde... então, escrevi.
“— Portanto — perguntou o presidente — O Sr. Conde de Monte Cristo não tem nada a ver com a sua diligência?
“— Ignora-a completamente, senhor, e o meu único receio é que a desaprove quando o souber. No entanto, este foi um belo dia para mim — continuou a jovem, erguendo ao céu um olhar ardente como uma chama — Por ser aquele em que tive finalmente ensejo de vingar o meu pai.
“Durante todo este tempo o conde não pronunciara uma só palavra. Os seus colegas olhavam-no e sem dúvida lamentavam aquele êxito destruído pelo sopro perfumado de uma mulher. A sua desventura inscrevia-se pouco a pouco em caracteres sinistros no rosto.
“— Sr. de Morcerf — perguntou o presidente — Reconhece esta senhora como filha de Ali-Tebelin, Paxá de Janina?”
“— Não — respondeu Morcerf, fazendo um esforço para se levantar — Trata-se de uma trama urdida pelos meus inimigos.
“Haydée, que tinha os olhos fixos na porta, como se esperasse alguém, virou-se bruscamente e, encontrando o conde de pé, soltou um grito terrível.
“— Não me reconhece — disse — Pois eu te reconheço, felizmente! É Fernand Mondego, o oficial francês que entregou as tropas do meu nobre pai. Foi o senhor que entregou os castelos de Janina! Foi o senhor que, enviado por ele a Constantinopla para negociar diretamente com o imperador a vida ou a morte do seu benfeitor, trouxe um falso acordo que lhe concedia perdão completo! Foi o senhor que, com esse acordo, obteve o anel do paxá que lhe devia proporcionar a obediência de Selim, o guarda do fogo! Foi o senhor que apunhalou Selim! Foi o senhor que nos vendeu, a minha mãe e a mim, ao negociante El-Kobbir! Assassino! Assassino! Assassino! Ainda tem na testa o sangue do teu senhor! Vejam todos!
“Estas palavras foram proferidas com tal acento de verdade que todos os olhos se viraram para a testa do conde, e ele próprio levou lá a mão, como se sentisse, ainda tépido, o sangue de Ali.
“— Reconhece, portanto concretamente o Sr. de Morcerf como sendo o próprio oficial Fernand Mondego?
“— Se reconheço! — gritou Haydée — Ó minha mãe, você me disse: ‘Eras livre, tinhas um pai que amavas, estavas destinada a ser quase uma rainha! Olha bem aquele homem, foi ele que te fez escrava, foi ele que levou na ponta de um pique a cabeça do teu pai, foi ele que nos vendeu, foi ele que nos entregou. Se esqueceres o seu rosto, reconhecê-lo-ás por aquela mão, na qual caíram uma a uma as moedas de ouro do negociante El-Kobbir!’ Sim, reconheço-o! Ele próprio que diga agora se me não reconhece.
“Cada palavra caía como um cutelo sobre Morcerf e cortava uma parcela da sua energia. Quando ouviu as últimas, escondeu vivamente no peito, mal-grado seu, a mão mutilada por um ferimento e voltou a cair na sua poltrona, mergulhado num sombrio desespero. Esta cena fizera turbilhonar os espíritos da assembléia, tal como vemos correr as folhas soltas do tronco das árvores arrastadas pelo vento poderoso do norte.
“— Sr. Conde de Morcerf — disse o presidente — Não se deixe abater, responda. A justiça do tribunal é suprema e igual para todos, como a de Deus. Ela não o deixará esmagar pelos seus inimigos sem lhe dar os meios de os combater. Quer que se proceda a novos inquéritos? Quer que mande dois membros da Câmara a Janina? Fale!
“Morcerf não respondeu. Então, todos os membros da comissão se entreolharam com uma espécie de terror. Conheciam o temperamento enérgico e violento do Conde; só uma terrível prostração poderia anular a defesa daquele homem; enfim, era mister pensar que àquele silêncio, que se assemelhava ao sono, sucederia um despertar que se assemelharia ao raio.
“— Então, que decide? — insistiu o presidente.
“— Nada! — respondeu o conde em voz abafada, levantando-se.
“— Portanto, o que a filha de Ali-Tebelin declarou é realmente a verdade? Ela é realmente a testemunha terrível a quem, como sempre acontece, o culpado não ousa responder? O senhor praticou realmente todos os atos de que o acusam? — perguntou o presidente.
“O Conde lançou à sua volta um olhar cuja expressão desesperada comoveria tigres, mas que não podia desarmar juízes. Depois, levantou os olhos para a abóbada e desviou-os imediatamente, como se receasse que ela se abrisse e fizesse resplandecer esse segundo tribunal chamado Céu, esse outro juiz chamado Deus. Então, num movimento brusco, arrancou os botões da sobrecasaca fechada que o sufocava e saiu da sala como um pobre louco. Por instantes os seus passos ecoaram lugubremente debaixo da abóbada sonora e pouco depois o rodar da carruagem que o transportava a galope fez estremecer o pórtico do edifício florentino.
“— Senhores — perguntou o presidente quando o silêncio se restabeleceu — O Sr. Conde de Morcerf é reconhecido culpado de felonia traição e indignidade?”
“— É! — responderam em uníssono os membros da comissão de inquérito.
“Haydée assistiu até ao fim à sessão e ouviu pronunciar a sentença do conde sem que um só músculo do seu rosto exprimisse alegria ou compaixão. Então, puxou o véu para o rosto, cumprimentou majestosamente os conselheiros e saiu com o passo com que Virgílio via caminhar as deusas.

  

continua...




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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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