quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulos 65



LXV

CENA CONJUGAL




O
s três rapazes separaram-se na Praça de Luís XV, isto é, Morrel seguiu pelos bulevares, Château-Renaud meteu pela Ponte da Revolução e Debray pelo cais. Segundo todas as probabilidades, Morrel e Château-Renaud alcançaram os seus lares domésticos, como se diz agora na tribuna da Câmara, nos discursos bem escritos, e no teatro da Rua de Richelieu, nas peças igualmente bem escritas.
Mas o mesmo não aconteceu com Debray. Chegado à passagem do Louvre, virou à esquerda, atravessou o Carrossel a galope, meteu pela Rua de Saint-Roch, desembocou pela Rua da Michodiêre e chegou à porta do Sr. Danglars no momento em que o landô do Sr. de Villefort, depois de o deixar a ele e à mulher no Arrabalde de Saint-Honoré, parava para a baronesa se apear em sua casa.
Debray, como homem familiar da casa, entrou à frente no pátio, atirou as rédeas para as mãos de um lacaio e dirigiu-se para a portinhola da carruagem a fim de receber a Sra. Danglars, à qual ofereceu o braço para a acompanhar aos seus aposentos. Uma vez a porta fechada e a baronesa e Debray no pátio, o rapaz perguntou:
— Que tem, Hermine? Por que motivo se sentiu mal ao ouvir aquela história, ou antes, a fábula que o Conde contou?
— Porque estava horrivelmente deprimida esta noite, meu amigo — respondeu a baronesa.
— Não, Hermine — prosseguiu Debray — Não posso acreditar nisso. Pelo contrário, estava com excelente disposição quando chegou a casa do Conde. O Sr. Danglars é que estava um pouco aborrecido, isso é verdade, mas bem sei o pouco caso que a senhora faz do seu mau humor. Alguém lhe fez qualquer coisa. Conte-me o que foi. Bem sabe que nunca toleraria uma impertinência para consigo.
— Engana-se, Lucien, garanto-lhe — disse a Sra. Danglars — As coisas são como lhe disse, mais o mau humor em que reparou e de que julgava não valer a pena falar-lhe.
Era evidente que a Sra. Danglars se encontrava sob a influência de uma dessas crises nervosas de que muitas vezes as próprias mulheres se não dão conta, ou que, como adivinhara Debray, experimentara qualquer comoção oculta que não queria confessar a ninguém. Como homem habituado a reconhecer os fatos como um dos elementos da vida feminina, não insistiu mais e resolveu esperar o momento oportuno, quer para nova interrogação, quer para uma confissão de motu proprio.
À porta do seu quarto a baronesa encontrou Mademoiselle Cornélie. Mademoiselle Connélie era a criada de quarto de confiança da baronesa.
— Que faz a minha filha? — perguntou a Sra. Danglars.
— Estudou toda a noite e em seguida foi-se deitar — respondeu Mademoiselle Cornélie.
— No entanto, parece-me que ouço o seu piano...
— É Mademoiselle Louise D’Armilly que toca enquanto a menina está deitada.
— Bem, venha despir-me — ordenou a Sra. Danglars.
Entraram no quarto. Debray estendeu-se num grande canapé e a Sra. Danglars dirigiu-se para o seu quarto de vestir com Mademoiselle Cornélie.
— Meu caro Sr. Lucien — disse a Sra. Danglars através da porta do quarto de vestir — Porque está sempre a queixar-se de que Eugênia não lhe dá a honra de lhe dirigir a palavra?
— Minha senhora — respondeu Lucien, brincando com o cãozinho da baronesa, o qual, reconhecendo a sua qualidade de amigo da casa, tinha o hábito de lhe fazer mil carícias — Não sou o único que lhe faço semelhantes recriminações. Creio ter ouvido um dia destes Morcerf queixar-se a si mesma de que não conseguia arrancar uma única palavra à noiva.
— É verdade — reconheceu a Sra. Danglars — Mas creio que uma destas manhãs tudo isso mudará e verá entrar Eugênia no seu gabinete.
— No meu gabinete?
— Quero dizer, no do ministério.
— E por quê?
— Para lhe pedir um contrato para a Ópera! Na verdade, nunca vi tal entusiasmo pela música. Chega a ser ridículo numa pessoa da sociedade.
Debray sorriu.
— Bom, desde que apareça com o seu consentimento e do barão, lhe arranjaremos esse contrato e procuraremos que esteja de acordo com o seu mérito, embora sejamos muito pobres para pagar tão grande talento como o dela.
— Pode ir, Cornélie, já não preciso de si — disse a Sra. Danglars.
Cornélie saiu e pouco depois a Sra. Danglars saiu também do quarto de vestir num elegante néglige e foi sentar-se ao pé de Lucien. Depois, pensativa, pôs-se a afagar o petit-pagneul.
Lucien olhou-a um instante em silêncio.
— Vejamos, Hermine, responda francamente: que é que a preocupa? — perguntou por fim.
— Nada — respondeu a baronesa.
E, no entanto, como sufocasse, levantou-se, tentou respirar e foi ver-se ao espelho.
— Estou medonha, esta noite — declarou.
Debray ia a levantar-se, sorrindo, para ir tranqüilizar a baronesa a tal respeito, quando a porta se abriu de súbito.
O Sr. Danglars entrou. Debray voltou a sentar-se.
Ao ouvir o barulho da porta, a Sra. Danglars virou-se e olhou o marido com um espanto que nem sequer se incomodou a dissimular.
— Boa noite, minha senhora. Boa noite, Sr. Debray.
A baronesa julgou, sem dúvida, que aquela visita inesperada significava qualquer coisa como o desejo de reparar as palavras amargas que tinham escapado ao barão durante o dia. Assumiu por isso um ar digno e, virando-se para Lucien, sem responder ao marido, disse-lhe:
— Leia-me qualquer coisa, Sr. Debray.
Debray, a quem a visita começava por inquietar ligeiramente, tranqüilizou-se ao ver a calma da baronesa e estendeu a mão para um livro marcado ao meio por uma faca de lâmina de madrepérola incrustada de ouro.
— Perdão — disse o banqueiro — Mas se cansaria demasiado ficando acordada até tão tarde. São onze horas e o Sr. Debray mora muito longe.
Debray ficou tolhido de surpresa, não porque o tom de Danglars não fosse perfeitamente calmo e delicado, mas, enfim, através daquela calma e daquela delicadeza transparecia certa veleidade pouco habitual de contrariar a vontade da mulher naquela noite.
A baronesa também ficou admirada e manifestou a sua surpresa com um olhar que sem dúvida daria que pensar ao marido se este não tivesse os olhos fixos num jornal onde procurava o fecho da Bolsa. Devido a isso, esse olhar tão ferino foi lançado em pura perda e falhou completamente o seu efeito.
— Sr. Lucien — disse a baronesa — Declaro-lhe que não tenho a mais pequena vontade de dormir, que tenho inúmeras coisas para lhe contar esta noite e que o senhor vai passar a noite a ouvir-me, nem que tenha de dormir de pé.
— Às suas ordens, minha senhora — respondeu fleumaticamente Lucien.
— Meu caro Sr. Debray — disse por sua vez o banqueiro — Não perca tempo, peço-lhe, a escutar esta noite as loucuras da Sra. Danglars, pois as escutará facilmente amanhã. Mas esta noite é minha, reservo-a, e a dedicarei, se se dignar permitir-me, a conversar de graves interesses com a minha mulher.
Desta vez o golpe era de tal forma direto e firme que deixou Lucien e a baronesa desorientados. Ambos se interrogaram com a vista, como se procurassem um no outro socorro contra aquela agressão. Mas o poder irresistível do dono da casa triunfou e deu força ao marido.
— Que nem sequer lhe passe pela cabeça que o ponho na rua, meu caro Debray — continuou Danglars — Não, por nada deste mundo. Apenas uma circunstância imprevista me obriga a desejar ter esta mesma noite uma conversa com a baronesa. Isto acontece-me muito raramente e portanto espero que me não guardem rancor.
Debray balbuciou algumas palavras, cumprimentou e saiu, chocando com as esquinas, como Natália.
— É incrível — disse quando a porta se fechou atrás de si — Como estes maridos que achamos tão ridículos adquirem facilmente vantagem sobre nós!
Depois de Lucien sair, Danglars instalou-se no seu lugar no canapé, fechou o livro que ficara aberto e, tomando uma atitude horrivelmente pretensiosa, continuou a brincar com o cão. Mas como o cão, que não tinha por ele a mesma simpatia que por Debray, o quisesse morder, agarrou-o pelo cachaço e atirou-o para cima de outro canapé colocado do lado oposto do quarto. O animal ganiu ao atravessar o espaço; mas chegado ao seu destino aninhou-se atrás de uma almofada e, estupefato com semelhante tratamento a que não estava habituado, ficou mudo e quieto.
— Sabe, senhor — disse a baronesa sem pestanejar — Que está fazendo progressos? Habitualmente é apenas grosseiro; esta noite é brutal.
— É que estou esta noite de mais mau humor do que habitualmente — respondeu Danglars.
Hermine olhou o banqueiro com supremo desdém. Regra geral, tais olhares exasperavam o orgulho de Danglars; mas naquela noite pareceu quase não reparar neles.
— E que me interessa a mim o seu mau humor? — replicou a baronesa, irritada com a impassibilidade do marido — Porventura essas coisas dizem-me respeito? Guarde os seus maus humores para si ou descarregue-os nos seus escritórios. Uma vez que tem empregados a quem paga, eles que lhe aturem os maus humores!
— De modo nenhum — respondeu Danglars — Os seus conselhos são insensatos, minha senhora, e por isso não os seguirei. Os meus escritórios são o meu Patolo, como diz, se me não engano, o Sr. Desmoustiers, e não desejo mudar-lhe o curso nem perturbar-lhe a calma. Os meus empregados são pessoas honestas, que ganham a minha fortuna e a quem pago uma taxa infinitamente inferior à que merecem, se os avaliar de acordo com o que me rendem. Portanto, não descarregarei a minha cólera sobre eles; e a descarregarei sobre aqueles que papam os meus jantares, rebentam os meus cavalos e esvaziam o meu cofre.
— E quem são essas pessoas que esvaziam o seu cofre? Explique-se mais claramente, senhor, peço-lhe.
— Oh, esteja tranqüila! Embora fale por enigmas, estou certo de que não precisará de muito tempo para os decifrar — perguntou Danglars — As pessoas que esvaziam o meu cofre são aquelas que numa hora tiram dele a bagatela de quinhentos mil francos.
— Não o compreendo, senhor — disse a baronesa, procurando dissimular simultaneamente a emoção da voz e o rubor do rosto.
— Pelo contrário, compreende muito bem — contrapôs Danglars — Mas se a sua má vontade continuar, lhe direi que acabo de perder setecentos mil francos do empréstimo espanhol.
— Essa agora! — exclamou a baronesa, troçando — E é a mim que torna responsável por essa perda?
— Porque não?
— Tenho por acaso a culpa se o senhor perdeu setecentos mil francos?
— Seja como for, eu é que a não tenho.
— De uma vez para sempre, senhor — perguntou azedamente a baronesa — Repito-lhe: nunca me fale em dinheiro! É uma linguagem que não aprendi nem em casa de meus pais nem em casa do meu primeiro marido.
— Acredito, meu Deus! — volveu-lhe Danglars — Pois se nem um nem outro tinham um centavo!
— Mais uma razão para que não tenha aprendido em sua casa o calão bancário com que me matam aqui o bichinho do ouvido de manhã à noite. Esse barulho de moedas que contam e recontam me é odioso, e só o som da sua voz me é ainda mais desagradável.
— Na verdade, como tudo isto é estranho! — comentou Danglars — E eu que julgava que a senhora dedicava o mais vivo interesse às minhas operações!
— Eu? Quem lhe meteu na cabeça semelhante tolice?
— A senhora mesma.
— Ora essa!
— Sem dúvida.
— Gostaria muito que me dissesse quando isso aconteceu.
— Nada mais fácil, meu Deus! Em Fevereiro último, a senhora foi a primeira pessoa a falar-me dos fundos de Haiti. Sonhara que um navio entrava no porto do Havre e que esse navio trazia a notícia de que se ia efetuar um pagamento que se julgava relegado para as lendas gregas. Conheço a lucidez do seu sono, por isso, mandei comprar à socapa todos os títulos que consegui encontrar da dívida do Haiti e ganhei quatrocentos mil francos, cem mil dos quais lhe foram religiosamente entregues. A senhora fez o que quis desse dinheiro e eu nunca lhe pedi contas dele.
“Em Março, tratava-se de uma concessão de trilho de ferro. Concorriam três empresas que davam iguais garantias. A senhora disse-me que o seu instinto... Aqui entre nós, embora a senhora se pretenda alheia às especulações, creio, pelo contrário, que possui um instinto desenvolvidíssimo a respeito de certas matérias... pois nesse caso disse-me que o seu instinto lhe segredava que a concessão seria dada à empresa chamada do Meio-Dia. Inscrevi-me imediatamente para subscrever dois terços das ações dessa sociedade. A concessão foi-lhe efetivamente dada, como a senhora previra; as ações triplicaram de valor e eu embolsei um milhão, do qual lhe entreguei duzentos e cinqüenta mil francos para os seus alfinetes. Como empregou esses duzentos e cinqüenta mil francos?
— Mas onde quer o senhor chegar? — gritou-lhe a baronesa, trêmula de despeito e impaciência.
— Calma, minha senhora. Lá iremos...
— Assim espero!
— Em Abril, jantou em casa do ministro. Falou-se da Espanha e a senhora ouviu uma conversa secreta. Tratava-se da expulsão de D. Carlos. Comprei fundos espanhóis. A expulsão realizou-se e eu ganhei seiscentos mil francos no dia em que Carlos V transpôs o Bidassoa. Desses seiscentos mil francos a senhora recebeu cinqüenta mil francos. Eram seus, dispôs deles como muito bem entendeu e não lhe peço contas. Mas nem por isso é menos verdade que recebeu este ano quinhentas mil francos.
— E depois, senhor?
— Ah, sim, e depois! Aí é que precisamente o gato vai aos fios.
— Tem cada maneira de se exprimir... na verdade...
— Dizem o que quero dizer e isso é tudo o que pretendo. Depois, há três dias... há três dias a senhora falou de política com o Sr. Debray e julgou adivinhar nas suas palavras que D. Carlos regressara a Espanha. Então vendi os meus títulos, a notícia espalhou-se, houve pânico e em vez de vender acabei por dar. No dia seguinte descobre-se que a notícia era falsa e devido a essa falsa notícia perdi setecentos mil francos!
— E depois?
— E depois?... se lhe dou um quarto quando ganho, a senhora deve-me um quarto quando perco. Ora, um quarto de setecentos mil francos são cento e setenta e cinco mil francos.
— Tudo o que tem estado para aí a dizer é extravagante e não vejo por que motivo mistura o nome do Sr. Debray em toda essa história.
— Porque se por acaso não tem os cento e setenta e cinco mil francos que reclamo, terá de pedi-los emprestados aos seus amigos e o Sr. Debray é um dos seus amigos.
— Era o que faltava! — gritou a baronesa.
— Oh, deixe-se de gestos, de gritos, de drama moderno, minha senhora! Do contrário, me obrigará a dizer-lhe que estou vendo o Sr. Debray rindo junto das quinhentas mil francos que a senhora lhe deu este ano e dizendo para consigo que descobriu finalmente o que nem os mais hábeis jogadores nunca descobriram, ou seja, uma roleta onde se ganha sem entrar no jogo e onde não se perde quando se perde.
A baronesa explodiu.
— Miserável! Atreve-se a dizer-me que não sabia o que hoje ousa censurar-me?
— Não lhe digo que sabia nem lhe digo que não sabia; digo-lhe: observe o meu comportamento desde que há quatro anos não é minha mulher e que não sou seu marido e verá se não tem sido sempre conseqüente consigo mesmo. Algum tempo antes do nosso rompimento, a senhora desejou estudar música com aquele famoso barítono que se estreou com tanto êxito no Teatro Italiano e eu quis estudar dança com aquela bailarina que adquirira tão grande fama em Londres. Isso custou-me, tanto pela sua parte como pela minha, perto de cem mil francos. Não disse nada, porque deve haver harmonia no lar. Cem mil francos para que o homem e a mulher saibam bem a fundo dança e música não é muito caro. Mas a senhora não tardou a aborrecer-se do canto e a vir-lhe à idéia de estudar diplomacia com um secretário de um ministro. Deixei-a estudar... compreende: que me importava a mim, se a senhora pagava as lições da sua bolsa? Mas hoje verifico que o dinheiro sai da minha e que a sua aprendizagem me pode custar setecentos mil francos por mês... alto aí, minha senhora, porque as coisas não podem continuar assim! Ou o diplomata passa a dar as lições... de graça, e o tolerarei, ou não põe mais os pés nesta casa. Compreendeu, minha senhora?
— Oh, é demais, senhor! — gritou Hermine, sufocada — O senhor ultrapassa os limites do ignóbil!
— Mas — continuou Danglars — Verifico com prazer que a senhora não me fica atrás e que obedece voluntariamente àquela disposição do código que diz: “A mulher deve seguir o marido”.
— Insultos!
— Tem razão! Fiquemos pelos fatos e raciocinemos friamente. Nunca me meti para você a não ser para seu bem. Faça o mesmo. O meu cofre não lhe diz respeito, não é o que a senhora afirma? Seja. Cuide do seu, mas não encha nem despeje o meu. Aliás, quem sabe se tudo isso não passa de uma pulhice política? Se o ministro, furioso por me ver na oposição e invejoso das simpatias populares que suscito, não está feito com o Sr. Debray para me arruinar?
— Acha isso possível?
— Mas sem dúvida! Só quem nunca viu isso... uma falsa notícia telegráfica, isto é, o impossível ou quase... sinais absolutamente diferentes transmitidos pelos dois últimos telégrafos!... Para mim, é esta a realidade.
— Senhor — disse mais humildemente a baronesa — Não ignora, parece-me, que esse funcionário foi expulso, que se falou até de lhe levantar um processo, que se deu ordem para o prender e que essa ordem teria sido cumprida se ele se não tivesse subtraído às primeiras buscas por meio de uma fuga que prova a sua loucura ou a sua culpabilidade... foi um erro.
— Sim, que fez rir os tolos, passar uma má noite ao ministro, escrevinhar os Srs. Secretários de Estado, mas que me custou a mim setecentos mil francos.
— Mas, senhor — disse de súbito Hermine — Se tudo isso, em seu entender, é culpa do Sr. Debray, por que motivo, em vez de dizer todas essas coisas diretamente ao Sr. Debray, as diz a mim? Porque acusa o homem e censura a mulher?
— Conheço porventura o Sr. Debray? — perguntou Danglars — Interessa-me porventura conhecê-lo? Quero porventura saber se ele dá conselhos? Estou porventura disposto a segui-los? Jogo, porventura? Não, é a senhora que faz tudo isto e não eu!
— Mas parece-me, uma vez que o senhor tira proveito disso...
Danglars encolheu os ombros.
— Loucas criaturas, na verdade, estas mulheres que se julgam gênios só porque levaram a bom termo uma ou duas intrigas sem serem apontadas a dedo por toda Paris! Mas fique ciente que mesmo que tivesse conseguido ocultar os seus desregramentos ao seu marido, o que seria o abc da arte, porque a maior parte do tempo os maridos não querem ver, a senhora não passaria de uma pálida cópia do que faz metade das suas amigas da alta-roda. Mas comigo as coisas não se passam assim. Tenho visto e sempre vi. Há dezesseis anos, mais ou menos, talvez me tivesse ocultado um pensamento, mas não um procedimento, uma ação, uma falta. Enquanto pelo seu lado se felicitava pela sua astúcia e julgava firmemente enganar-me, que acontecia? Graças à minha pretensa ignorância, desde o Sr. de Villefort até ao Sr. Debray, não há um dos seus amigos que não tenha tremido diante de mim. Não há um que não me tenha tratado como dono da casa, a minha única pretensão junto de si. Não há um, enfim, que se tenha atrevido a dizer-lhe de mim o que eu próprio lhe digo agora. Permito-lhe que me torne odioso, mas a impedirei de me tornar ridículo, e, sobretudo proíbo-a concretamente e acima de tudo de me arruinar.
Até ao momento em que o nome de Villefort fora pronunciado, a baronesa conservara-se aparentemente calma. Mas ao ouvir aquele nome, empalidecera e, erguendo-se como se fosse impelida por uma mola, estendera os braços como que para conjurar uma aparição e deu três passos na direção do marido, como se quisesse arrancar-lhe o fim do segredo que ele não conhecia ou que talvez, por meio de qualquer cálculo odioso como eram quase sempre todos os cálculos de Danglars, ele não queria revelar inteiramente.
— O Sr. de Villefort? Que significa... que quer dizer?
— Quer dizer, minha senhora, que o Sr. de Nargonne, seu primeiro marido, não sendo filósofo nem banqueiro, ou talvez sendo um e outro, e vendo que não tinha nenhum partido a tirar de um procurador régio, morreu de desgosto ou de raiva por a encontrar grávida de seis meses, depois de uma ausência de nove. Sou brutal, e não só o sei como ainda me gabo disso. É um dos meus meios de êxito nas minhas operações comerciais. Por que motivo, em vez de matar se matou a si mesmo? Porque não tinha de salvar o seu dinheirinho. Mas eu devo-me ao meu dinheiro. O Sr. Debray, meu sócio, fez-me perder setecentos mil francos; pois que suporte a sua parte do prejuízo e continuaremos a negociar. De contrário, que declare falência perante mim por essas cento e setenta e cinco mil libras e faça o que fazem os falidos, desapareça. Meu Deus, é um rapaz encantador, bem sei, quando as suas notícias são exatas; mas quando o não são, há cinqüenta no mundo que valem mais do que ele.
A Sra. Danglars estava aterrada. No entanto, fez um derradeiro esforço para responder ao último ataque. Mas caiu numa poltrona a pensar em Villefort, na cena do jantar e na estranha série de contrariedades que havia alguns dias se abatiam uma a uma sobre a sua casa e transformavam em debates escandalosos a calma forçada do seu lar.
Danglars nem sequer a olhou, embora ela fizesse todo o possível para desmaiar. Bateu com a porta do quarto sem acrescentar uma única palavra e regressou ao seu.
Assim, quando voltou a si do seu meio desmaio, a Sra. Danglars pode acreditar que tivera um mau sonho.



  
 continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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