segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 67



LXVII

NO GABINETE DO PROCURADOR RÉGIO




D
eixemos o banqueiro retirar-se a todo o galope dos seus cavalos e sigamos a Sra. Danglars na sua excursão matinal. Dissemos que ao meio-dia e meia hora a Sra. Danglars pedira os seus cavalos e saíra de carruagem. Dirigiu-se para os lados do Arrabalde de Saint-Germain, meteu pela Rua Mazarino e mandou parar na passagem da Ponte Nova.
Apeou-se e atravessou a passagem. Estava vestida com muita simplicidade, como convém a uma mulher de bom gosto que sai de manhã. Na Rua de Guénegaud meteu-se num fiacre e mandou seguir para a Rua do Harlay.
Assim que se instalou na viatura, tirou da bolsa um véu preto muito espesso, que prendeu ao chapéu de palha. Depois, voltou a pôr o chapéu na cabeça e viu com prazer, olhando-se num espelhinho de algibeira, que só se podia ver de si a pele branca e as pupilas cintilantes dos seus olhos.
O fiacre atravessou a Ponte Nova e entrou pela Praça Dauphine no pátio do Harlay. A Sra. Danglars pagou a corrida quando o cocheiro lhe abriu a portinhola, e correu para a escada, que subiu ligeiramente, e não tardou a chegar à Sala dos Passos Perdidos. De manhã há muitos julgamentos e ainda mais pessoas afadigadas no palácio da Justiça, e as pessoas atarefadas não olham muito para as mulheres.
A Sra. Danglars atravessou, pois a Sala dos Passos Perdidos sem ser mais notada do que as outras dez mulheres que esperavam os seus advogados.
Havia muita gente na antecâmara do Sr. de Villefort, mas a Sra. Danglars nem sequer necessitou de pronunciar o seu nome. Assim que apareceu, um continuo levantou-se, foi ao seu encontro, perguntou-lhe se era a pessoa a quem o Sr. Procurador Régio concedera audiência e, perante a sua resposta afirmativa, conduziu-a por um corredor reservado ao gabinete do Sr. de Villefort.
O magistrado escrevia, sentado na sua plataforma, de costas para a porta. Ouviu esta abrir-se, o continuo dizer “Entre, minha senhora!” e a porta voltara a fechar-se, sem fazer um único gesto; mas logo que ouviu diminuir o ruído dos passos do continuo, que se afastava, virou-se vivamente, foi correr os ferrolhos e os reposteiros e examinar lodos os cantos do gabinete. Depois, quando adquiriu a certeza de que não podia ser visto nem ouvido e, por conseqüência, ficou tranqüilo, disse:
— Obrigado, minha senhora; obrigado pela sua pontualidade.
E ofereceu-lhe uma cadeira, que a Sra. Danglars aceitou, porque o coração pulsava-lhe tão fortemente que ela se sentia prestes a sufocar.
— Há quanto tempo — começou o Procurador Régio, sentando-se por sua vez e fazendo a poltrona descrever um semicírculo a fim de ficar defronte da Sra. Danglars — Há quanto tempo, minha senhora, não tinha a felicidade de conversar a sós consigo. E com meu grande pesar, reencontramo-nos para ter uma conversa deveras penosa.
— No entanto, senhor, bem vê que acorri ao seu primeiro chamado, embora certamente esta conversa seja ainda mais penosa para mim do que para si.
Villefort sorriu amargamente.
— É então verdade — prosseguiu, respondendo muito mais ao seu próprio pensamento do que às palavras da Sra. Danglars — É então verdade que todos os nossos atos deixam vestígios, uns sombrios, outros luminosos, no nosso passado! É então verdade que todos os nossos passos nesta vida se assemelham ao passo do réptil na areia e deixam rasto! Infelizmente, para muitos esse rasto, esse sulco, é o das suas lágrimas!
— Senhor, compreende a minha emoção, não é verdade? — perguntou a Sra. Danglars — Poupe-me, portanto, suplico-lhe. Este gabinete, por onde tantos culpados têm passado trêmulos e envergonhados; esta cadeira, onde me sento por minha vez também envergonhada e trêmula... oh, acredite que necessito de toda a minha razão para não ver em mim uma mulher culpada e em si um juiz ameaçador.
Villefort abanou a cabeça e suspirou.
— E eu — perguntou — E eu não digo para comigo que o meu lugar não é na poltrona do juiz, mas sim no banco do réu?
— O senhor? — disse a Sra. Danglars, surpreendida.
— Sim, eu.
— Creio que da sua parte, senhor, o seu puritanismo exagera a situação — contrapôs a Sra. Danglars, cujos olhos, tão belos, brilharam fugazmente — Os sulcos de que acaba de falar foram traçados por todas as juventudes ardentes. No fundo das paixões, para lá do prazer, há sempre um pouco de remorso. É por isso que o Evangelho, esse recurso eterno dos infelizes, nos deu como amparo, a nós, pobres mulheres, a admirável parábola da jovem pecadora e da mulher adúltera. Por isso, confesso-lhe, quando me recordo desses delírios da minha juventude, penso às vezes que Deus nos perdoará, porque se não a desculpa, pelo menos a compensação encontra-se nos meus sofrimentos. Mas o senhor, que tem a temer de tudo isso, se aos homens todos desculpam e o escândalo os nobilita?
— Minha senhora — replicou Villefort — Não me conhece. Não sou um hipócrita ou pelo menos não armo em hipócrita sem motivo. Se a minha fronte é severa, isso deve-se às desgraças que a têm assombrado; se o meu coração se petrificou, foi para poder suportar os choques que tem recebido. Não era assim na minha juventude, não era assim na noite de noivado em que estávamos todos sentados à roda de uma mesa na Rua do Cours, em Marselha. Mas depois tudo mudou em mim e à minha volta; a minha vida gastou-se a perseguir coisas difíceis e a quebrar, nas dificuldades, aqueles que voluntária ou involuntariamente, por sua livre vontade ou por acaso, se encontraram colocados no meu caminho para me suscitar essas coisas. É raro que o que desejamos ardentemente não seja defendido com afinco por aqueles de quem o pretendemos obter ou aos quais tentamos arrancá-lo. Assim, a maioria das más ações dos homens vieram ao encontro deles mascaradas especiosamente de necessidade. Depois da má ação cometida num momento de exaltação, de medo e de delírio, chegamos à conclusão de que poderíamos ter passado por ela e evitado-a. Então, o meio que teria sido conveniente empregar, mas que, cegos como estávamos, não vimos surge-nos diante dos olhos fácil e simples, e dizemos para conosco: “Porque não fiz isto em vez de fazer aquilo?”. As senhoras, pelo contrário, muito raramente são atormentadas por remorsos, porque também muito raramente a decisão é sua. As suas desgraças são-lhes quase sempre impostas, as suas faltas são quase sempre o crime dos outros.
— Em todo o caso — respondeu a Sra. Danglars — Admita que, se cometi uma falta, essa falta foi pessoal e por ela fui severamente castigada a noite passada.
— Pobre mulher! — murmurou Villefort, apertando-lhe a mão.
— Demasiado severamente para a sua energia, pois por duas vezes esteve quase a sucumbir, e. no entanto...
— O quê?
— Bom, devo dizer-lhe... apele para toda a sua coragem, minha senhora, porque ainda não chegou ao fim.
— Meu Deus! — exclamou a Sra. Danglars, aterrada — Que mais há ainda?
— A senhora só vê o passado, e claro que ele é sombrio. Pois imagine um futuro ainda mais sombrio, um futuro... horrível, certamente... e talvez sangrento!
A baronesa conhecia a calma de Villefort. Por isso, ficou tão apavorada com a sua exaltação que abriu a boca para gritar, mas o grito morreu-lhe na garganta.
— Como ressuscitou esse passado terrível? — disse Villefort — Como saiu como um fantasma do fundo da sepultura e do fundo dos nossos corações, onde dormia, para nos fazer empalidecer as faces e corar a fronte?
— Infelizmente, sem dúvida, por acaso — declarou Hermine.
— Por acaso! — repetiu Villefort — Não, não, minha senhora, não se trata de obra do acaso!
— Claro que trata. Não foi o acaso, fatal é certo, mas de qualquer maneira o acaso, que originou tudo aquilo? Não foi por acaso que o Conde de Monte Cristo comprou aquela casa. Não foi por acaso que mandou cavar a terra? Finalmente não foi por acaso que a infeliz criança foi enterrada debaixo das árvores? Pobre criatura saída de mim, à qual nunca pude dar um beijo, mas a quem tenho dado muitas lágrimas. Ah, todo o meu coração voou ao encontro do Conde quando ele falou do querido despojo debaixo das flores!
— Não, minha senhora, e é isso que tenho de terrível para lhe dizer — disse Villefort com a voz estrangulada — Não, não houve despojo encontrado debaixo das flores; não, não houve criança desenterrada; não, é inútil chorar; não, é inútil gemer, não, o que devemos é tremer!
— Que quer dizer, senhor? — perguntou a Sra. Danglars, muito agitada.
— Quero dizer que o Sr. de Monte Cristo não pôde encontrar, ao cavar ao pé das arvores, nem esqueleto de criança, nem ferragem de cofre, porque debaixo das árvores não havia nem um nem outra.
— Não havia nem um nem outra?! — repetiu a Sra. Danglars, cravando no Procurador Régio uns olhos cujas pupilas, horrivelmente dilatadas, indicavam terror — Não havia nem um nem outra! — repetiu mais uma vez, como uma pessoa que procura fixar pelo som das palavras e pelo ruído da voz as idéias prestes a fugir-lhe.
— Não! — insistiu Villefort, deixando cair a fronte nas mãos — Não, cem vezes não!...
— Mas não foi ali que sepultou a pobre criança, senhor? Porque me enganou? Com que fim, diga-me!
— Tem razão. Mas ouça-me, minha senhora, ouça-me, e verá que me lamenta, a mim que trouxe durante vinte anos às costas, sem nunca lhe pedir que carregasse com a mais pequena parte, o fardo de dores de que lhe vou falar.
— Meu Deus, o senhor assusta-me! Mas não imporia; fale, escuto-o.
— Sabe o que se passou naquela noite dolorosa em que a senhora expirava no seu leito, naquele quarto de damasco vermelho, enquanto eu, quase tão arquejante como a senhora, esperava que desse à luz. A criança nasceu, foi-me entregue sem movimentos, sem respiração e sem voz, e julgamo-la morta.
A Sra. Danglars fez um gesto rápido, como se quisesse saltar da cadeira. Mas Villefort deteve-a juntando as mãos, como que para lhe implorar atenção.
— Julgamo-la morta — repetiu — Meti-a num cofre, que deveria substituir o caixão, desci ao jardim, abri uma cova e enterrei-a precipitadamente. Mal acabara de cobrir a sepultura de terra quando o braço do corso se estendeu para mim. Vi como que uma sombra erguer-se, como que reluzir um relâmpago. Senti uma dor, quis gritar, um arrepio gelado percorreu-me todo o corpo e apertou-me a garganta... caí moribundo e julguei-me assassinado. Nunca esquecerei a sua coragem sublime quando ao voltar a mim me arrastei, expirando, até ao fundo da escada, onde, expirando também, a senhora veio ao meu encontro. Era necessário ocultar a terrível catástrofe. A senhora teve a coragem de voltar para casa amparada pela sua ama; um duelo foi o pretexto do meu ferimento. Contra toda a expectativa, ninguém revelou o nosso segredo. Transportaram-me para Versalhes; durante três meses estive às portas da morte.
“Por fim, como parecesse agarrar-me à vida, recomendaram-me o sol e os ares do Meio-Dia. Quatro homens transportaram-me de Paris a Chalon, percorrendo seis léguas por dia. A Sra. de Villefort acompanhava a maca na sua carruagem. Em Chalon puseram-me no Sena, depois passei para o Rôdano e, levado apenas pela velocidade da corrente, desci até  Arles. Em Arles retomei a maca e continuei o meu caminho para Marselha. A minha convalescença durou seis meses. Nunca mais ouvira falar da senhora e não me atrevia a perguntar o que lhe acontecera. Quando regressei a Paris, soube que, viúva do Sr. Nargonne, casara com o Sr. Danglars. Em que pensei depois de recuperar os sentidos? Pensava sempre na mesma coisa, sempre naquele cadáver de criança, que todas as noites, nos meus sonhos, saía do seio da terra e pairava por cima da cova, ameaçando-me com a vista e com o gesto. Por isso, assim que regressei a Paris informei-me.
“A casa não voltara a ser habitada desde que a deixamos, mas acabava de ser alugada por nove anos. Procurei o locatário, fingi ter um grande desejo de não ver passar a mãos estranhas aquela casa que pertencia ao pai e à mãe da minha mulher e ofereci uma indenização pela renúncia ao arrendamento. Pediram-me seis mil francos, mas eu daria dez mil, daria vinte mil. Como trazia o dinheiro comigo, fiz o inquilino assinar imediatamente a rescisão. Depois, logo que me encontrei de posse desse documento tão desejado, parti a galope para Auteuil. Ninguém, desde que eu de lá saíra, entrara naquela casa. Eram cinco horas da tarde. Subi ao quarto vermelho e esperei pela noite. Ali, tudo o que dizia a mim próprio havia um ano, na minha agonia contínua, me veio à idéia de forma muito mais ameaçadora do que nunca. Aquele corso que me declarara a vendetta e me seguira de Nímes a Paris; aquele corso, que se encontrava escondido no jardim e me ferira, vira-me abrir a cova, vira-me enterrar a criança e poderia acabar por descobrir quem era a senhora. Talvez até já a conhecesse... não a faria pagar um dia o segredo do terrível acontecimento?... Não seria isso para ele uma agradável vingança, quando soubesse que eu não morrera da sua punhalada? Era portanto urgente que antes de mais nada, e acontecesse o que acontecesse, fizesse desaparecer os vestígios do passado, destruísse todo e qualquer rastro material, embora na minha memória a realidade permanecesse sempre demasiado viva.
“Fora para isso que rescindira o arrendamento, fora para isso que viera, era para isso que esperava. Anoiteceu, mas esperei até que a noite ficasse bem escura. Não tinha luz no quarto, onde as rajadas de vento faziam tremer os reposteiros atrás dos quais julgava sempre ver algum espião emboscado. De vez enquanto estremecia e parecia-me ouvir atrás de mim, na cama, os seus gemidos, minha senhora, mas não ousava voltar-me. O meu coração pulsava no meio do silêncio e sentia-o bater tão violentamente que cheguei a pensar que o meu ferimento se reabrisse. Por fim, ouvi extinguirem-se um após outro todos os diversos ruídos do campo. Compreendi que já não tinha nada a temer, que não poderia ser visto nem ouvido, e decidi-me a descer. Ouça, Hermine, considero-me tão corajoso como qualquer outro homem, mas quando retirei do peito a chavinha da escada, aquela chavinha a que os dois tanto queríamos e que a senhora mandara prender a uma argola de ouro; quando abri a porta e vi através das janelas uma lua pálida lançar sobre os degraus em espiral uma comprida faixa de luz branca semelhante a um fantasma, agarrei-me à parede e estive prestes a gritar. Tinha a sensação de enlouquecer.
“Por fim consegui dominar-me e desci a escada degrau a degrau. A única coisa que não conseguira vencer era uma estranha tremura nos joelhos. Agarrei-me ao corrimão; se o largasse, por um instante que fosse, me precipitaria por ali abaixo. Cheguei à porta do jardim. Da parte de fora, encostada à parede, estava uma enxada. Munira-me de uma lanterna de furta-fogo. No meio do relvado parei para a acender e depois continuei o meu caminho. Novembro estava prestes a terminar, toda a verdura do jardim desaparecera, as árvores não eram mais do que esqueletos de compridos braços descarnados e as tolhas mortas rangiam com o saibro debaixo dos meus pés. O terror apertava-me tão fortemente o coração que ao aproximar-se do maciço tirei uma pistola da algibeira e destravei-a. Julgava sempre ver aparecer através dos ramos a cara do corso. Iluminei o maciço com a minha lanterna de furta-fogo; estava vazio. Olhei em redor de mim e verifiquei que me encontrava sozinho. Nenhum ruído perturbava o silêncio da noite, exceto o canto de uma coruja, que emitia o seu pio agudo e lúgubre como um chamamento aos fantasmas da noite. Pendurei a lanterna num ramo em forma de forquilha, em que já reparara um ano antes, no próprio local onde me detivera para abrir a cova. Durante o Verão, a erva crescera ali bem espessa, e chegado o Outono ninguém houvera na casa para a apanhar. No entanto, um lugar menos guarnecido chamou-me a atenção. Era evidente que fora ali que eu revolvera a terra. Deitei mãos à obra. Chegara, portanto o momento por que esperara mais de um ano! Como confiava, como trabalhava, como sondava cada tufo de relva, julgando sentir resistência na ponta da enxada! Mas nada. E, contudo abri um buraco duas vezes maior do que o primeiro. Julguei ter-me enganado no lugar. Orientei-me, observei as árvores, procurei reconhecer os pormenores que me tinham impressionado. Soprava uma brisa fria e cortante através dos ramos nus e no entanto o suor escorria-me da testa. Lembrei-me de que recebera a punhalada no momento em que calcava a terra para tapar a cova; para isso, apoiava-me numa giesteira. Atrás de mim havia um rochedo artificial destinado a servir de banco aos passeantes. Ao cair, depois de largar a giesteira, a minha mão sentira a frescura da pedra. À minha direita encontrava-se a giesteira e atrás de mim o rochedo. Deixei-me cair do mesmo modo, levantei-me e pus-me a aprofundar e alargar a cova. Nada! Sempre nada! O cofre não estava ali.
— O cofre não estava ali? — murmurou a Sra. Danglars, sufocada de pavor.
— Não julgue que me limitei àquela tentativa — continuou Villefort — Não. Revistei todo o maciço. Pensei que o assassino tivesse desenterrado o cofre julgando tratar-se de um tesouro, e que, resolvido a apoderar-se dele, o tivesse levado. Depois, descobrindo o seu erro, abrira por sua vez uma cova, onde o depositara. Nada! Em seguida assaltou-me a idéia de que não tomara tantas precauções e o atirara pura e simplesmente para um canto. Nesta última hipótese, tinha de esperar que amanhecesse para proceder às minhas buscas. Subi ao quarto e esperei.
— Oh, meu Deus!
— Quando amanheceu, desci de novo. A minha primeira visita foi ao maciço; esperava encontrar nele vestígios que me tivessem escapado na escuridão. Revolvera a terra numa superfície de mais de vinte pés quadrados e numa profundidade de mais de dois pés. Um dia de trabalho mal chegaria a um assalariado para fazer o que eu fizera numa hora. Nada, não vi absolutamente nada. Então, pus-me a procurar o cofre, partindo da suposição de ter sido atirado para qualquer canto. Sendo assim, devia estar no caminho que levava à portinha de saída. Mas a nova investigação foi tão inútil como a primeira e, de coração opresso, voltei ao maciço, que por si próprio já me não alimentava qualquer esperança.
— Oh, era caso para enlouquecer! — exclamou a Sra. Danglars.
— Por um instante pensei que isso me acontecesse, mas não tive essa sorte. Entretanto, apelando para a minha energia e por conseqüência para as minhas idéias, perguntei a mim mesmo: “Porque teria o homem levado o cadáver?”
— O senhor já o disse: para ter uma prova — lembrou a Sra. Danglars.
— Não, não, minha senhora, já não podia ser isso. Ninguém guarda um cadáver durante um ano; mostra-o a um magistrado e faz o seu depoimento. Ora nada semelhante acontecera.
— Bom, e então?... — perguntou Hermine toda palpitante.
— Então, tratava-se de qualquer coisa mais terrível, mais fatal, mais assustadora para nós: a criança estava talvez viva e o assassino salvara-a.
A Sra. Danglars soltou um grito terrível e agarrou as mãos de Villefort.
— O meu filho estava vivo! O senhor enterrou o meu filho vivo! Garantira-me que o meu filho estava morto e enterrou-o... Oh!
A Sra. Danglars levantara-se e mantinha-se de pé e quase ameaçadora diante do Procurador Régio, cujos pulsos apertava com as mãos delicadas.
— Que queria que lhe dissesse? Disse-lhe isso como lhe poderia dizer outra coisa — perguntou Villefort com uma fixidez de olhar indicadora de que aquele homem tão poderoso estava prestes a atingir os limites do desespero e da loucura.
— Ah, meu filho, meu pobre filho! — gritou a baronesa, caindo de novo na cadeira e abafando os soluços com o lenço.
Villefort caiu em si e compreendeu que para desviar a tempestade materna que se acumulava sobre a sua cabeça era necessário que a Sra. Danglars se recompusesse do terror que ele próprio experimentava.
— Como deve compreender, se o caso é assim, estamos perdidos — disse, levantando-se por seu turno e aproximando-se da baronesa para lhe falar em voz mais baixa — Essa criança vive, alguém sabe que vive, alguém possui o nosso segredo. E uma vez que Monte Cristo fala diante de nós de uma criança desenterrada de um local onde essa criança já não existia, quem está de posse do segredo é ele.
— Deus, Deus justo, Deus vingador! — murmurou a Sra. Danglars.
Em resposta, Villefort limitou-se a soltar uma espécie de rugido.
— Mas e essa criança, essa criança, senhor? — insistiu a mãe, obstinada.
— Oh, o que a procurei! — respondeu Villefort, torcendo os braços — Quantas vezes a chamei nas minhas longas noites sem sono! Quantas vezes desejei possuir uma riqueza real para comprar um milhão de segredos a um milhão de homens e encontrar o meu segredo entre os deles! Enfim, um dia em que pela centésima vez pegava na enxada, perguntei a mim mesmo também pela centésima vez que teria o corso feito da criança. Uma criança estorva um fugitivo... talvez notasse que ainda estava viva e a tivesse atirado ao rio.
— Oh, impossível! — exclamou a Sra. Danglars — Assassina-se um homem por vingança, mas não se afoga a sangue-frio uma criança!
— Talvez a tivesse entregado às Crianças Expostas... — acrescentou Villefort.
— Oh, sim, sim! — exclamou a baronesa — O meu filho está aí, senhor!
— Corri ao hospício e soube que naquela mesma noite de 20 de Setembro fora depositada uma criança na roda. Tal criança estava envolta em metade de uma toalha de pano fino, intencionalmente rasgada. Essa metade da toalha tinha metade de uma coroa de barão e a letra H.
— É isso, é isso! — gritou a Sra. Danglars — Toda a minha roupa está marcada assim! O Sr. de Nargonne era barão e eu chamo-me Hermine. Obrigada, meu Deus! O meu filho não estava morto!
— Não, não estava morto!
— E o senhor diz-me isso... diz-me isso sem receio de me fazer morrer de alegria! Onde está ele? Onde está o meu filho?
Villefort encolheu os ombros.
— Como quer que saiba? E julga que se o soubesse a faria passar por todas estas gradações, como o faria um dramaturgo ou um romancista? Não, infelizmente não sei. Quando contava cerca de seis meses, uma mulher foi reclamar a criança com a outra metade da toalha. Essa mulher deu todas as garantias que a lei exigia e por isso a entregaram.
— Mas devia ter-se informado acerca dessa mulher, devia tê-la procurado...
— E que julga que fiz, minha senhora? Simulei uma instrução criminal e mandei procurá-la pelos mais finos agentes secretos e pelos mais hábeis detetives da Polícia. Encontraram-lhe a pista até Chalon; ai perderam-na.
— Perderam-na?...
— Sim, perderam-na; perderam-na para sempre.
A Sra. Danglars escutara o relato soltando de vez em quando um suspiro, deixando correr uma lágrima ou emitindo um grito, conforme as circunstâncias.
— É tudo? — perguntou — O senhor limitou-se a isso?
— Oh, não! — protestou Villefort — Nunca deixei de procurar, de investigar, de me informar. No entanto, há dois ou três anos descansei um pouco. Mas agora vou recomeçar com mais perseverança e encarniçamento do que nunca. E vencerei, pode ter a certeza; porque já não é a consciência que me impele, é o medo.
— Mas o Conde de Monte Cristo não sabe de nada — declarou a Sra. Danglars — De contrário, parece-me que não nos procuraria como nos procurou.
— Oh, a maldade dos homens é muito grande! — sentenciou Villefort — Muito maior do que a bondade de Deus. Reparou nos olhos desse homem enquanto nos falava?
— Não.
— Mas observou-o atentamente algumas vezes?
— Sem dúvida. É estranho, mas mais nada. Houve só uma coisa que me impressionou: de toda a requintada refeição que nos serviu não tocou em nada, não se serviu de nenhum prato.
— Tem razão, tem razão! — disse Villefort — Também notei isso. Se soubesse o que sei agora, teria feito o mesmo, não tocaria em nada. Julgaria que nos queria envenenar.
— E teria enganado, bem vê.
— Sim, sem dúvida. Mas acredite no que lhe digo: esse homem tem outros projetos. Por isso quis vê-la, por isso desejei falar consigo, por isso quis precavê-la contra todos e, sobretudo contra ele. Diga-me — continuou Villefort, cravando ainda mais profundamente do que até ali os olhos na baronesa — Não falou da nossa ligação a ninguém?
— Nunca, a ninguém.
— Compreende o que quero dizer — prosseguiu afetuosamente Villefort — Quando digo a ninguém, perdoe-me a insistência, retiro-me a ninguém no mundo, percebe?
— Oh, sim, sim, compreendo perfeitamente! — respondeu a baronesa, corando — Nunca! Juro-lhe.
— Já não tem o hábito de escrever à noite o que se passou durante o dia? Não tem diário?
— Não. Infelizmente, a minha vida passa levada pela frivolidade. Eu própria a esqueço.
— Não sonha em voz alta, que saiba?
— Durmo como uma criança. Não se lembra?...
A púrpura subiu ao rosto da baronesa e o medo invadiu o de Villefort.
— É verdade — disse ele, tão baixo que mal se ouviu.
— E agora? — perguntou a baronesa.
— Agora? Já sei o que devo fazer — declarou Villefort — Dentro de oito dias, saberei quem é o Sr. de Monte Cristo, de onde vem, para onde vai e por que motivo fala diante de nós de crianças desenterradas no seu jardim.
Villefort proferiu estas palavras num tom que faria tremer o Conde se as pudesse ouvir. Depois apertou a mão que a baronesa hesitava em estender-lhe e acompanhou-a respeitosamente à porta.
A Sra. Danglars tomou outro fiacre, que a levou à passagem, do outro lado da qual encontrou a sua carruagem e o seu cocheiro, que, enquanto esperava, dormia calmamente no seu lugar.




 continua...







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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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