domingo, 25 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 83



LXXXIII

A MÃO DE DEUS




C
aderousse continuava a gritar em voz lamentosa:
— Sr. Abade, socorro! Socorro!
— Que aconteceu? — perguntou Monte Cristo.

— A mim, socorro! — repeliu Caderousse — Assassinaram-me!
— Estamos aqui! Coragem!
— É o fim. Chegaram demasiado tarde; chegaram para me ver morrer. Que facadas! Quanto sangue!
E desmaiou.
Ali e o amo pegaram o ferido e transportaram-no para um quarto. Aí, Monte Cristo fez sinal a Ali para o despir e examinou os três terrível; ferimentos com que fora atingido.
— Meu Deus — murmurou — Por vezes a Tua vingança faz-se esperar, mas creio que então desce do céu mais completa.
Ali olhou para o amo como se lhe perguntasse o que devia fazer.
— Vai procurar o Sr. Procurador Régio Villefort, que mora no Arrabalde de Saint-Honoré, e traga-o aqui. De passagem, acorda o porteiro e diz-lhe que vá buscar um médico.
Ali obedeceu e deixou o falso abade sozinho com Caderousse, ainda desmaiado. Quando o desgraçado abriu os olhos, o Conde, sentado a poucos passos dele, olhava-o com sombria expressão de piedade e os seus lábios, que se agitavam, pareciam murmurar uma prece.
— Um cirurgião, Sr. Abade, um cirurgião — pediu Caderousse.
— Já foram buscar um — respondeu o abade.
— Sei que é inútil, quanto a salvar-me a vida, mas talvez me possa dar forças e quero ter tempo de fazer uma declaração.
— A respeito de quê?
— Do meu assassino.
— Conhece-o?
— Se o conheço. Sim, conheço-o, é Benedetto.
— O jovem corso?
— Ele mesmo.
— O seu companheiro?
— Sim. Depois de me dar a planta da casa do Conde, esperando sem dúvida que eu o matasse e ele se tornasse assim seu herdeiro, ou que me matasse o Conde e ele se visse assim livre de mim, esperou-me na rua e assassinou-me.
— Ao mesmo tempo que mandei buscar o médico, mandei buscar também o Procurador Régio.
— Chegará demasiado tarde, chegará demasiado tarde — disse Caderousse — Sinto que me estou esvaindo em sangue.
— Espere — pediu Monte Cristo.
Saiu e voltou cinco minutos depois com um frasco. Os olhos do moribundo, assustadores de fixidez, não tinham durante a sua ausência deixado a porta por onde adivinhava instintivamente que lhe viria um socorro.
— Despache-se, Sr. Abade, despache-se! — insistiu — Sinto que vou desmaiar outra vez.
Monte Cristo aproximou-se e deitou nos lábios roxos do ferido três ou quatro gotas do licor que continha o frasco. Caderousse soltou um suspiro.
— Oh, foi a vida que me deu! Mais... mais...
— Duas gotas mais o matariam — respondeu o abade.
— Oh, então que venha alguém a quem possa denunciar o miserável!
— Quer que escreva a sua declaração? A assinaria?
— Sim... sim... — disse Caderousse, cujos olhos brilhavam à idéia daquela vingança póstuma.
Monte Cristo escreveu:


Morro assassinado pelo corso Benedetto, meu companheiro de grilheta em Toulon com o nº. 59.


— Despache-se! Despache-se! — insistiu Caderousse — Desconfio que já não conseguirei assinar.
Monte Cristo apresentou a pena a Caderousse, que, reunindo forças, assinou e voltou a cair na cama, dizendo:
— O senhor contará o resto, Sr. Abade. Dirá que se faz passar por Andréa Cavalcanti, que está hospedado no Hotel dos Príncipes, que... ah, ah, meu Deus, meu Deus! Agora é que morro!
E Caderousse desmaiou pela segunda vez.
O abade fê-lo respirar o conteúdo do frasco; o ferido reabriu os olhos.
— O seu desejo de vingança não o abandonara durante o desmaio.
— Dirá tudo isto, não é verdade, Sr. Abade?
— Sim, tudo isso e muitas outras coisas mais.
— Que dirá?
— Direi que sem dúvida lhe deu a planta desta casa na esperança de que o Conde o matasse. Direi que prevenira o Conde por meio de um bilhete. Direi que o Conde estava ausente, que fui eu que recebi o bilhete e resolvi esperá-lo.
— E ele será guilhotinado, não é verdade? — perguntou Caderousse — Será guilhotinado, promete-me? Morro com essa esperança, isso me ajudará a morrer.
— Direi — continuou o Conde — Que ele chegou atrás de si e que o espreitou durante todo o tempo; que quando o viu sair correu à esquina do muro e escondeu-se.
— Quer dizer que o senhor viu tudo isso?
— Lembre-se das minhas palavras: “Se regressar a sua casa são e salvo, acreditarei que Deus te perdoou e te perdoarei também”.
— E não me avisou?! — gritou Caderousse, tentando levantar-se num cotovelo — Sabia que ia ser morto quando saísse daqui e não me avisou!
— Não, porque na mão de Benedetto via a justiça de Deus e julgaria cometer um sacrilégio opondo-me às intenções da Providência.
— A justiça de Deus! Não me fale disso, Sr. Abade. Se houvesse uma justiça de Deus, sabe melhor do que ninguém que há pessoas que seriam castigadas e não o são.
— Paciência! — disse o abade num tom que fez estremecer o moribundo — Paciência!
Caderousse olhou-o com espanto.
— E depois — prosseguiu o abade — Deus está cheio de misericórdia para todos, e também para ti. É pai antes de ser juiz.
— Ah! O senhor acredita, portanto em Deus? — perguntou Caderousse.
— Se tivesse a desgraça de não ter acreditado nele até agora, acreditaria ao vê-lo — respondeu Monte Cristo.
Caderousse ergueu os punhos crispados ao céu.
— Escute — disse o abade, estendendo a mão por cima do ferido como se quisesse incutir-lhe a fé — Aqui tens o que fez por ti esse Deus que recusa reconhecer no teu último momento: dera-te a saúde, a força, um trabalho garantido, até amigos, a vida, enfim, tal como se deve apresentar ao homem para ser agradável, com a tranqüilidade da consciência e a satisfação dos desejos naturais. Em vez de explorares essas dádivas do Senhor, tão raramente concedidas por Ele na sua plenitude, eis o que fizeste: te entregaste à malandrice, à embriaguez, e na embriaguez atraiçoaste um dos teus melhores amigos.
— Socorro! — gritou Caderousse — Não preciso de um padre, mas sim de um médico. Talvez não esteja ferido de morte, talvez não morra ainda, talvez possam salvar-me!
— Está tão ferido de morte que sem as três gotas de licor que te dei há pouco já teria morrido. Escuta, pois!
— Ah, que estranho padre me saiu, um padre que desespera os moribundos em vez de os confortar!... — murmurou Caderousse.
— Escute — continuou o abade — Quando atraiçoou o teu amigo, Deus começou, não por te ferir, mas sim por te avisar. Caiu na miséria e teve fome; passou a invejar a metade de uma vida que poderia ter passado a adquirir, e já pensava no crime dando a si mesmo a desculpa da necessidade quando Deus fez para ti um milagre, pelas minhas mãos, e te enviou ao seio da tua miséria uma fortuna notável, embora fosse um desgraçado que nunca tivera nada. Mas essa fortuna inesperada, súbita, inaudita, já não te bastou assim que a possuiu; quis duplicá-la. Por que meio? Por meio de um crime. Duplicou e então Deus a tirou e te levou perante a justiça humana.
— Não fui eu que quis matar o judeu, foi Carconte — perguntou Caderousse.
— Foi — respondeu Monte Cristo — Por isso Deus, sempre, não direi justo desta vez, porque a sua justiça teria lhe dado a morte, mas sempre misericordioso, permitiu que os teus juízes fossem tocados pelas tuas palavras e te poupassem a existência.
— Ora, ora! Para me condenarem a trabalhos forçados por toda a vida! Que linda graça!
— Essa graça, miserável, consideraste-a como tal quando a concederam! O teu covarde coração, que tremia diante da morte, saltou de alegria ao anúncio de uma desonra perpétua, pois disse para contigo, como todos os forçados: “Nas galés há uma porta que não existe na sepultura”. E tinha razão, porque a porta das galés abriu-se para ti inesperadamente. Um inglês visita Toulon. Fizera voto de tirar dois homens da infâmia. A sua escolha recai em ti e no teu companheiro. Segunda fortuna desce para ti do céu, recuperas ao mesmo tempo o dinheiro e a tranqüilidade, podes recomeçar a viver a vida de todos os homens, tu que foras condenado a viver a dos forçados. Então, miserável, então te atreves a tentar Deus pela terceira vez. “Não tenho o suficiente”, dizes tu, quando tinhas mais do que alguma vez tiveras, e cometes terceiro crime, sem razão, sem desculpa. Deus cansou-se, Deus te castigou.
Caderousse enfraquecia a olhos vistos.
— Quero beber... tenho sede... ardo! — balbuciou.
Monte Cristo deu-lhe um copo de água.
— Esse celerado do Benedetto — disse Caderousse, restituindo o copo — Escapará, apesar de tudo...
— Ninguém escapará, sou eu que o digo, Caderousse... Benedetto será castigado!
— Então também o senhor será castigado — perguntou Caderousse — Porque não cumpriu o seu dever de padre... devia impedir Benedetto de me matar.
— Eu — disse o Conde com um sorriso que gelou de terror o moribundo — Eu impedir Benedetto de te matar quando acabavas de quebrar a tua navalha contra a cota de malha que me cobria o peito?... Sim, talvez se te tivesse encontrado humilde e arrependido tivesse impedido Benedetto de te matar; mas encontrei-te orgulhoso e sanguinário e deixei cumprir-se a vontade de Deus!
— Não acredito em Deus! — bramiu Caderousse — E tu também não. Tu mentes... mentes!
— Cala-te, se não queres lançar fora do teu corpo as tuas últimas gotas de sangue... — aconselhou o abade — Ah, não acreditas em Deus, mas morres ferido por Deus!... Ah, não acreditas em Deus e, no entanto Deus só pede uma prece, uma palavra, uma lágrima para perdoar!... Deus, que poderia dirigir o punhal do assassino de maneira que expirasse imediatamente... Deus concedeu-te um quarto de hora para te arrependeres... recolhe-te, pois, em ti mesmo, desgraçado, e arrepende-te!
— Não, não me arrependo — teimou Caderousse — Não existe Deus, não existe Providência, só existe o acaso.
— Existe uma Providência e existe um Deus — replicou Monte Cristo — E a prova é que enquanto estás aí deitado, desesperado, renegando Deus, eu estou aqui de pé diante de ti, rico, feliz, são e salvo, de mãos postas diante desse Deus em que tentas não acreditar, mas em que mesmo assim acreditas no fundo do coração.
— Mas então quem é o senhor? — perguntou Caderousse, fixando os seus olhos de moribundo no Conde.
— Olha-me bem — disse Monte Cristo, pegando aproximando-a da cara.
— Bom, é o abade... o Abade Busoni...
Monte Cristo tirou a peruca que o desfigurava e deixou cair os seus belos cabelos negros que emolduravam tão harmoniosamente o seu rosto pálido.
— Oh! — exclamou Caderousse, aterrado — Se não fossem esses cabelos negros, diria que era o inglês, diria que era Lorde Wilmore.
— Não sou nem o Abade Busoni nem Lorde Wilmore — disse Monte Cristo — Olha melhor, olha para mais longe, olha para as tuas primeiras recordações.
Havia nestas palavras do Conde uma vibração magnética, que pela derradeira vez reavivou os sentidos exaustos do miserável.
— Oh, de fato parece-me que já o vi, que o conheci em outros tempos!...
— Sim, Caderousse, sim, viste-me; sim, conheceste—me.
— Mas afinal quem é o senhor? E por quê, se já me vira e conhecera, porque me deixa morrer?
— Porque nada pode te salvar, Caderousse; porque os teus ferimentos são mortais. Se pudesses ser salvo, eu veria nisso a última misericórdia do Senhor e teria mais uma vez, juro-te pela sepultura do meu pai, tentado restituir-te à vida e ao arrependimento.
— Pela sepultura do teu pai!... — exclamou Caderousse, reanimado por uma suprema centelha e soerguendo-se para ver mais de perto o homem que acabava de lhe fazer aquele juramento sagrado para todos os homens — Eh! Quem é você?
O Conde acompanhara até ali os progressos da agonia. Compreendeu que aquele ímpeto de vida era o último. Aproximou-se do moribundo e, envolvendo-o num olhar calmo e triste, disse-lhe ao ouvido.
— Eu sou...
E os seus lábios, apenas entreabertos, deram passagem a um nome pronunciado tão baixo que o próprio Conde parecia recear ouvi-lo. Caderousse, que se erguera nos joelhos, estendeu os braços, fez um esforço para recuar e depois, juntando as mãos e levantando-as num esforço supremo, disse:
— Oh, meu Deus, perdão por Te ter renegado! Existes e és bem o pai dos homens no céu e o seu juiz na Terra. Meu Deus, Senhor, te ignorei durante tanto tempo! Meu Deus, Senhor, perdoa-me! Meu Deus, Senhor, recebe-me!
E Caderousse fechou os olhos e caiu para trás, com um último grito e um último suspiro. O sangue parou imediatamente nos lábios das suas enormes feridas.
Estava morto.
— Um! — disse misteriosamente o Conde, de olhos postos no cadáver já desfigurado por aquela morte horrível.
Dez minutos depois chegaram o médico e o Procurador Régio, trazidos um pelo porteiro e o outro por Ali, e foram recebidos pelo Abade Busoni, que rezava junto do morto.




 continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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