— Capítulo V —
A Cavalgada Dos Rohirrim
Estava escuro e Merry, deitado no chão e enrolado num cobertor, não enxergava nada. Apesar disso, embora a noite estivesse sufocada e sem vento, por toda a sua volta árvores ocultas suspiravam suavemente. Levantou a cabeça.
Então ouviu outra vez: um som semelhante a tambores fracos nas colinas cobertas por florestas e nos patamares das montanhas. De repente o rufar cessava e depois começava outra vez em algum outro ponto, ora mais próximo, ora mais distante. Merry perguntava-se se os vigias também teriam ouvido. Não se podiam vê-las, mas ele sabia que por toda a volta estavam as companhias dos rohirrim. Sentia no escuro o cheiro dos cavalos, e os ouvia mudar de posição pateando de leve o chão coberto de agulhas de pinheiro. O exército estava acampado em meio aos bosques de pinheiros que se aglomeravam em torno do Farol Eilenach, uma colina alta que se destacava das longas cordilheiras da Floresta Drúadan, ao lado da grande estrada em Anórien Oriental.
Apesar de cansado, Merry não conseguia dormir. Já havia cavalgado quatro dias seguidos, e a escuridão que se adensava ia lentamente pesando cada vez mais em seu coração. Começou a se perguntar por que insistira tanto em vir, quando lhe foram dados todos os motivos, até mesmo a ordem de seu senhor, para ficar para trás. Pensava também se o rei sabia que sua ordem fora desobedecida e estava zangado. Talvez não. Parecia haver algum entendimento entre Dernhelm e Elfhelm, o Marechal que comandava o éored no qual estavam. Ele e todos os seus homens ignoravam Merry e fingiam não ouvir se ele falasse. Era como se o hobbit fosse apenas um outro saco que Dernhelm estava carregando. Dernhelm não era consolo: nunca falava com ninguém. Merry se sentia pequeno, inconveniente, e solitário.
O momento agora era de ansiedade, e o exército corria perigo. Estavam a menos de um dia de cavalgada das muralhas externas de Minas Tirith, que circundavam os povoados. Batedores haviam sido enviados à frente. Alguns não tinham retornado. Outros, voltando às pressas, contaram que a estrada fora tomada por exércitos inimigos. Nela acampava uma tropa inimiga, três milhas a Oeste do Mon Din, e alguns homens avançavam pela estrada, não estando a mais de três léguas de distância. Orcs perambulavam nas colinas e florestas ao longo da estrada. O rei e Éomer discutiam seus planos durante as vigias noturnas.
Merry queria conversar com alguém e pensava em Pippin. Mas isso só aumentava sua ansiedade. Pobre Pippin, enclausurado na grande cidade de pedra, sozinho e com medo. Merry desejou ser um Cavaleiro alto como Éomer, e poder tocar uma corneta ou alguma outra coisa, para ir a galope resgatar o amigo. Sentou-se, escutando, escutando os tambores que batiam de novo, agora bem próximos. De repente ouviu vozes falando baixo, e viu lamparinas fracas, semiveladas, passando através das árvores.
Perto dele homens começaram a se mover no escuro em várias direções. Um vulto alto assomou e tropeçou nele, amaldiçoando as raízes das árvores. Merry reconheceu a voz de Ellhelm, o Marechal.
— Não sou uma raiz de árvore, Senhor — disse ele — Nem um saco de bagagem, mas um hobbit escoriado. O mínimo que pode fazer para consertar a situação é me explicar o que está acontecendo.
— Qualquer coisa que consiga acontecer nessa escuridão dos demônios — respondeu Elfhelm — Mas meu senhor enviou mensagens para que nos preparássemos. Podemos receber ordens para partir a qualquer momento.
— Então o inimigo está vindo? — perguntou Merry ansioso — Aqueles são os tambores deles? Comecei a pensar que fosse a minha imaginação, pois ninguém mais parecia tomar conhecimento deles.
— Não, não — disse Elfhelm — O inimigo está na estrada, não nas colinas. Você está ouvindo os woses, os homens selvagens da Floresta: essa é a sua maneira de conversarem a distância. Eles ainda habitam a Floresta Drúadan, pelo que se comenta. São remanescentes de um tempo mais antigo, vivendo escondidos e em pequeno número, selvagens e cautelosos como os animais. Eles não vão para a guerra com Gondor e a Terra dos Cavaleiros, mas agora estão preocupados com a escuridão e a chegada dos orcs: receiam que os Anos Escuros estejam retornando, o que parece suficientemente provável. Fiquemos agradecidos por não estarem nos caçando: pois eles usam flechas envenenadas, pelo que se diz, e têm habilidades incomparáveis nas florestas. Mas ofereceram seus serviços a Théoden. Neste momento um de seus líderes está sendo levado à presença do rei. Lá vão as luzes. Ouvi dizer isso e mais nada. E agora preciso me ocupar das ordens de meu senhor. Aprume-se, Mestre Saco!
Elfhelm desapareceu nas sombras.
Merry não gostara nada daquela conversa de homens selvagens e flechas envenenadas, mas, além disso um grande peso o acabrunhava. Era insuportável esperar. Desejava saber o que aconteceria. Levantou-se e logo estava andando com cuidado atrás da última lamparina, antes que ela desaparecesse em meio ás árvores.
De repente atingiu um espaço aberto, onde uma pequena barraca fora armada para o rei, sob uma árvore frondosa. Uma lamparina grande, coberta na parte superior, estava pendurada num galho e projetava no chão um pálido circulo de luz. Sentados ali estavam Théoden e Éomer e diante deles, no chão, uma figura estranha de homem, atarracado, nodoso feito uma rocha velha, e os fios de sua barba rala se espalhavam no queixo encaroçado como musgo seco. Tinha as pernas curtas, os braços gordos, era troncudo e roliço, vestido apenas com palha ao redor da cintura. Merry teve a impressão de tê-lo visto em algum outro lugar antes, e de repente se lembrou dos Homens-Púkel do Templo da Colina. Ali estava uma daquelas imagens antigas revivida, ou talvez um descendente em linha direta, através de anos incontáveis, dos modelos usados pelos artesãos esquecidos de antigamente.
Estavam em silêncio quando Merry se aproximou, e então o homem selvagem começou a falar, aparentemente respondendo a alguma pergunta. Sua voz era grave e gutural; apesar disso, para a surpresa de Merry, ele falava a Língua Geral, mas de uma maneira pausada, e palavras rudes se misturavam com ela.
— Não, pai dos Cavaleiros — disse ele — Nós não lutar. Só caçar. Mata gorgún na floresta, odeia os orcs. Vocês também odeia gorgún. Nós ajudar como pode. Homens selvagens ter olhos compridos e orelhas compridas, conhecer todas as trilhas. Homens selvagens viver aqui antes das Casas de Pedra, antes dos homens altos vir da Água.
— Mas precisamos de ajuda na batalha — disse Éomer — Como você e seu povo podem nos ajudar?
— Trazer notícias — disse o homem selvagem — Nós olhar das colinas. Subir montanha grande e olhar para baixo. Cidade de Pedra está fechada. Fora dela queima fogo, agora também dentro. Vocês quer ir para lá? Então precisa ser rápido. Mas gorgún e homens de longe — disse ele acenando um braço curto e nodoso em direção ao Leste — Está tudo sentado na estrada de cavalo. Muitos, muitos mais que os Cavaleiros.
— Como você pode saber disso? — perguntou Éomer.
O rosto achatado do velho e seus olhos escuros não demonstraram nada, mas sua voz ficou perturbada, contrariada.
— Homens selvagens ser selvagens, livres, mas não ser crianças — respondeu ele — Sou um grande líder, Ghân Buri-Ghân. Sei contar muitas coisas: estrelas no céu, folhas em árvores e homens no escuro. Você tem uma vintena de vintenas contando dez vezes e mais cinco. Eles ter mais. Grande luta, e quem vai ganhar? E muitos outros estar em volta das muralhas das Casas de Pedra.
— Ai de nós! Ele fala com grande perspicácia — disse Théoden — E nossos batedores dizem que o inimigo fez trincheiras e fogueiras na estrada. Não podemos dispersá-los num ataque repentino.
[FIG. 08] THÉODEN FALA COM GHÂN BURI-GHÂN, DOS DRÚEDAIN
— E apesar disso precisamos de grande velocidade – disse Éomer — Mundburg está em chamas!
— Deixe Ghân Buri-Ghân terminar! — disse o homem selvagem — Ele conhecer mais de uma estrada. Vai levar vocês pela estrada que não tem poço nem gorgún, só homens selvagens e bichos. Muitas trilhas feitas quando o povo das Casas de Pedra era mais forte. Cortaram colinas como os caçadores cortam carne de bicho. Homens selvagens acha que eles come pedra. Eles ir para Rinimon, passando por Drúadan com grandes carroças. Agora ninguém passar mais ali. Estrada esquecida, mas não por homens selvagens. Sobre colina e atrás de colina ela fica ainda debaixo de capim e árvore, lá atrás de Rimmon e descendo para o Din, e no fim volta para a estrada dos Cavaleiros. Homens selvagens mostrar para vocês a estrada. Então vocês matar gorgún, e expulsar a escuridão má com ferro brilhante, e homens selvagens poder voltar para dormir na floresta selvagem.
Éomer e o rei conversaram em sua própria língua. Finalmente Théoden dirigiu-se ao homem selvagem.
— Aceitamos a sua oferta — disse ele — Pois, embora deixemos uma tropa de inimigos para trás, o que importa isso? Se a Cidade de Pedra cair, então não haverá como retornarmos. Se ela for salva, então o próprio exército orc ficará isolado. Se você for fiel, Ghân Buri-Ghân, vamos lhe oferecer uma grande recompensa, e você terá para sempre a amizade da Terra dos Cavaleiros.
— Homens mortos não ser amigos dos homens vivos, e não dar presentes para eles — disse o homem selvagem — Mas, se Cavaleiros viver depois da Escuridão, então Cavaleiros deixar homens selvagens em paz na floresta e nunca mais caçar eles como bichos. Ghân Buri-Ghân não levar vocês para armadilha. Ele mesmo vai junto com o pai dos Cavaleiros, e, se levar vocês para o lugar errado, vocês mata ele.
— Que assim seja! — disse Théoden.
— Quanto tempo vai levar para passarmos pelo inimigo e voltarmos para a estrada? — perguntou Éomer — Precisamos ir em ritmo de caminhada, se você nos guiar, e não duvido que a trilha seja estreita.
— Homens selvagens andar rápido a pé — disse Ghân — A trilha é larga para quatro cavalos no Vale das Carroças de Pedra — apontou para o Sul — Mas é estreita no começo e no fim. Homem selvagem andar daqui até o Din entre o nascer do sol e o meio-dia.
— Então devemos contar pelo menos sete horas para os batedores — disse Éomer — Mas é preferível calcularmos umas dez horas para o resto da tropa. Imprevistos podem nos atrasar, e, se nosso exército se espalhar, vai demorar muito até que consiga se colocar em ordem quando sairmos das colinas. Que horas são agora?
— Quem pode saber? — disse Théoden — É tudo noite agora.
— Está tudo escuro, mas não é tudo noite — disse Ghân — Quando o sol aparece homens selvagens sentir, mesmo quando está escondido. Ele já está subindo sobre as montanhas do Leste. O dia começar nos campos do céu.
— Então devemos partir o mais cedo possível — disse Éomer — Mesmo assim não podemos ter esperanças de chegar em auxílio de Gondor ainda hoje.
Merry não esperou para ouvir mais nada. Correu e foi se preparar para a convocação da marcha. Essa era a última etapa antes da batalha. Não lhe parecia provável que muitos sobrevivessem a ela. Mas pensou em Pippin e nas chamas de Minas Tirith e sufocou o próprio medo.
Tudo correu bem naquele dia, e eles não viram ou ouviram qualquer sinal do inimigo, esperando-os com uma emboscada. Os Homens Selvagens tinham preparado uma proteção de caçadores cuidadosos, de modo que nenhum orc ou espião pudesse saber do movimento nas colinas. A noite estava mais escura que nunca, à medida que eles se aproximaram da cidade sitiada, e os Cavaleiros passaram em longas filas como sombras escuras de homens e cavalos. Cada companhia vinha liderada por um homem da floresta: mas o velho Ghân caminhava ao lado do rei. A partida fora mais demorada que o esperado, pois levou muito tempo para que os Cavaleiros, andando e puxando os cavalos, encontrassem trilhas nas cordilheiras cobertas por matas espessas atrás do acampamento e na descida para o oculto Vale das Carroças de Pedra. Já era fim de tarde quando os que iam à frente atingiram as amplas matas cinzentas estendendo-se além da encosta Leste do Amon Din, e mascarando um grande desfiladeiro no conjunto de colinas que, do Nardol até o Diu, corria de Leste a Oeste.
Pelo desfiladeiro, a esquecida estrada de carroças antigamente descera, voltando para o caminho principal que vinha da Cidade através de Anórien, mas agora por muitas vidas de homem as árvores tinham dominado a região, e a trilha desaparecera, interrompida e encoberta sob as folhas dos anos incontáveis. Mas os maciços de árvores ofereciam aos Cavaleiros sua última esperança de proteção, antes que partissem para a batalha aberta, pois além dos maciços ficavam a estrada e as planícies do Anduin, enquanto ao Leste e ao Sul as encostas tornavam-se nuas e pedregosas, à medida que as colinas retorcidas se juntavam e subiam, baluarte após baluarte, formando a grande massa do Mindolluin com as suas saliências.
A companhia que liderava parou, e, à medida que aqueles que a seguiam se enfileiravam e saiam através da fenda do Vale das Carroças de Pedra, eles se espalharam procurando locais de acampamento sob as árvores cinzentas. O rei convocou os capitães para um conselho. Éomer enviou batedores para espionar a estrada, mas o velho Ghân balançou a cabeça.
— Não adianta mandar Cavaleiros — disse ele — Homens selvagens já viu tudo o que pode se ver no ar ruim. Logo chegam aqui para conversar comigo.
Os capitães vieram e então, saindo das árvores, outras figuras púkel se aproximaram, tão semelhantes ao velho Ghân que Merry mal conseguia distingui-los. Falaram com Ghân numa estranha língua gutural.
De repente, Ghân voltou-se para o rei.
— Homens selvagens dizer muita coisa — disse ele — Primeiro precisar cuidado e ainda muitos homens acampados além do Din, uma hora de caminhada daqui — disse ele acenando o braço na direção do farol negro — Mas ninguém entre este lugar e as novas muralhas do Povo das Pedras. Muitos trabalhando ali. Muralhas no chão: gorgún derruba elas com o trovão da terra e com bastões de ferro preto. Não tomam cuidado e não olham em volta. Achar que os amigos deles vigia todas as estradas!
Dizendo aquilo, o velho Ghân emitiu um curioso ruído gorgolejante, dando a impressão de estar rindo.
— Boas notícias! — exclamou Éomer — Mesmo nesta escuridão, a esperança reluz outra vez. As estratégias de nosso Inimigo frequentemente se revertem a nosso favor. A própria escuridão amaldiçoada nos tem sido uma proteção. E, agora que Ele está ávido por destruir Gondor sem deixar pedra sobre pedra, seus orcs afastaram meu maior temor. A muralha externa poderia ter sido ocupada por muito tempo, e usada contra nós. Agora podemos passar por ela, se conseguirmos chegar até lá.
— Mais uma vez lhe agradeço, Ghân Buri-Ghân da floresta — disse Théoden — Que a boa sorte o acompanhe, pelas boas noticias e por sua orientação!
— Matar gorgún! Matar os orcs! Nenhuma outra palavra agrada aos homens selvagens — respondeu Ghân — Expulsar ar ruim e escuridão com ferro brilhante!
— Para fazer essas coisas é que cavalgamos até aqui — disse o rei — E vamos tentá-las. Mas o que conseguiremos só o amanhã mostrará.
Ghân Buri-Ghân se agachou no chão e tocou a terra com a testa ossuda em sinal de despedida. Então levantou-se, como se fosse partir.
Mas de repente parou, olhando para cima como um animal assustado da floresta que fareja algo diferente no ar. Seus olhos se iluminaram.
— Vento está mudando! — exclamou ele, e com isso, como num piscar de olhos, ele e seus companheiros desapareceram dentro da escuridão, e nunca mais foram vistos por nenhum Cavaleiro de Rohan.
Não muito tempo depois, na distância ao Leste, os tambores vibraram outra vez. Mas nenhum coração em todo o exército foi tomado por qualquer tipo de receio de que os homens selvagens não fossem fiéis, embora pudessem parecer estranhos e rudes.
— Não precisamos mais de orientação — disse Elfhelm — Pois há cavaleiros no exército que já desceram até Mundburg em tempos de paz. Eu sou um deles. Quando atingirmos a estrada, ela desviará para o Sul, e restarão ainda sete léguas à frente antes de chegarmos à muralha dos povoados. Ao longo da maior parte daquele caminho há mato dos dois lados da estrada. Naquele trecho, os mensageiros de Gondor calculavam atingir sua maior velocidade. Podemos cavalgar por ali com rapidez e sem muito barulho.
— Então, uma vez que precisamos contar com atos cruéis e temos necessidade de todo o nosso vigor — disse Éomer — Sugiro que descansemos agora, e partamos de noite, planejando nossa marcha de tal forma que possamos avançar sobre os campos quando o dia estiver no seu ponto mais claro, ou quando nosso rei der o sinal.
O rei concordou com isso, e os capitães se retiraram. Mas logo Elfhelm voltou.
— Os batedores não encontraram nada para reportar além da floresta cinzenta, senhor — disse ele — Exceto dois homens apenas: dois homens mortos e dois cavalos mortos.
— Bem — disse Éomer — E então?
— O seguinte, senhor: esses homens eram mensageiros de Gondor, provavelmente Hirgon era um deles. Pelo menos sua mão ainda segurava a Flecha Vermelha, mas sua cabeça fora decepada. E também isto: pelos vestígios parece que estavam fugindo em direção ao Oeste quando caíram. Pelo que presumo, encontraram o inimigo já sobre a muralha externa, ou atacando-a, quando retornaram, e isso teria sido duas noites atrás, se usaram cavalos descansados de seus postos, como é o costume deles. Não conseguiram chegar à Cidade e retornaram.
— Lamentável! — disse Théoden — Então Denethor não recebeu noticias de nossa marcha, e vai perder a esperança de que possamos chegar em seu auxilio.
— A necessidade não aceita a demora, mas antes tarde do que nunca — disse Éomer — E é possível que desta vez o velho ditado seja mais verdadeiro que em qualquer outra ocasião anterior, desde que foi pela primeira vez pronunciado.
Era noite.
Dos dois lados da estrada o exército de Rohan avançava em silêncio. Agora o caminho, passando pelas bordas do Mindolluin, desviava para o Sul. Ao longe, quase em linha reta, havia um clarão vermelho sob o céu negro, e as encostas da grande montanha assomavam escuras contra ele. Estavam se aproximando da Rammas do Pelennor, mas o dia ainda não chegara.
O rei cavalgava no meio da companhia da frente, acompanhado pelos homens de sua casa. O éored de Elfhelm vinha em seguida, e agora Merry percebia que Dernhelm deixara sua posição e, no escuro, avançava firme para a frente, até que por fim estava cavalgando logo atrás da guarda do rei. Houve uma parada. Merry ouviu vozes na vanguarda falando baixo. Os cavaleiros que se tinham aventurado quase até a muralha retornaram. Vieram ter com o rei.
— Há um grande incêndio, senhor — disse um deles — A cidade está envolta em chamas e o campo está cheio de inimigos. Mas parece que todos se retiraram para o assalto. Pelo que podemos supor, restam poucos na muralha externa, e estão desatentos, preocupados em destruir.
— Lembra-se das palavras do homem selvagem, senhor? — disse um outro — Eu vivo no Descampado em tempos de paz, Widfara é meu nome, e a mim também o ar traz notícias. O vento já está virando. Há uma brisa vinda do Sul, há nela um cheiro de mar, embora possa ser muito fraco. A manhã trará novidades. Sobre a fumaça surgirá a aurora quando o senhor passar pela muralha.
— Se o que fala é verdade, Widfara, então que você viva a partir deste dia muitos anos de felicidade — disse Théoden.
Virou-se para os homens de sua casa que estavam próximos, e falou agora numa voz clara de forma que também vários dos cavaleiros do primeiro éored puderam ouvi-lo:
— É chegada a hora, Cavaleiros de Rohan, filhos de Eorl! O inimigo e o fogo estão diante de vocês, e suas casas ficaram para trás. Apesar disso, embora vocês lutem num campo estrangeiro, para sempre terão direito à glória que colherem lá. Fizeram juramentos: agora devem cumpri-los todos, ao senhor, à terra e á aliança de amizade.
Os homens bateram as lanças contra os escudos.
— Éomer, meu filho! Você deve liderar o primeiro éored — disse Théoden — Que deverá ir atrás da bandeira do rei, ao centro. Elfhelm, conduza sua companhia para a direita quando passarmos pela muralha. E Grimbold deverá conduzir a sua para a esquerda. Que as outras companhias que virão atrás sigam essas três, como puderem. Ataquem onde quer que haja uma concentração inimiga. Não podemos fazer outros planos, pois ainda não sabemos como estão as coisas no campo. Avante agora, e não temam escuridão alguma!
A companhia da frente avançou na velocidade possível, pois ainda estava muito escuro, a despeito de qualquer mudança que Widfara pudesse ter previsto. Merry vinha montado atrás de Dernhelm, segurando-se com a mão esquerda, enquanto tentava com a outra soltar a espada de sua bainha. Agora sentia de forma amarga a verdade das palavras do rei: numa batalha dessas, o que você poderia fazer Meriadoc?
“Apenas isso”, pensou ele, “Estorvar um cavaleiro e esperar na melhor das hipóteses manter-me na sela e não ser pisoteado até a morte por cascos galopantes!”
Era menos de uma légua até o ponto onde outrora as muralhas externas se erguiam. Logo as atingiram, cedo demais para Merry. Irromperam gritos selvagens, e houve algum choque de armas, que no entanto foi breve. Os orcs ocupados nas muralhas eram poucos, e ficaram assustados, foram rapidamente mortos ou expulsos. Diante da ruína do portão Norte da Rammas, o rei parou outra vez. O primeiro éored se aproximou e ficou atrás dele, e dos dois lados.
Dernhelm se mantinha próximo ao rei, embora a companhia de Elfhelm estivesse distante e à direita. Os homens de Grimbold desviaram e passaram contornando a muralha até chegar a uma grande fenda mais para o Leste.
Merry espiou por trás das costas de Dernhelm. Distante, talvez há dez milhas ou mais, havia um grande incêndio, mas entre ele e os Cavaleiros linhas de fogo fulguravam num crescendo constante, a mais próxima estando a menos de uma légua. O hobbit conseguia distinguir pouca coisa mais na planície escura, e até agora não via qualquer esperança de aurora, nem sentia qualquer vento, alterado ou não.
Agora o exército de Rohan avançava em silêncio, entrando no campo de Gondor, inundando-o lentamente mas sem parar, como a maré que sobe e penetra as brechas de um dique que os homens consideravam impermeável. Mas a mente e a vontade do Capitão Negro estavam inteiramente voltadas para a cidade que ruía, e até o momento não lhe chegara qualquer mensagem advertindo-o de que seus planos poderiam apresentar alguma falha.
Depois de um tempo, o rei conduziu seus homens um pouco para o Leste, até chegar a um local que ficava entre o fogo do cerco e os campos externos. Ainda não haviam sido desafiados, e ainda Théoden não dera nenhum sinal. Por fim ele parou mais uma vez.
A Cidade agora estava mais próxima. Havia no ar um cheiro de fogo e uma sombra da própria morte. Os cavalos sentiam-se inquietos. O rei estava montado em Snawmana, imóvel, assistindo à agonia de Minas Tirith, como se tomado por uma angústia repentina, ou pelo terror. Parecia encolher-se sob o peso da idade. O próprio Merry se sentia como se um grande fardo de terror e dúvida houvesse caído sobre ele. Seu coração batia devagar. O tempo parecia se librar na incerteza.
Haviam chegado tarde demais! Tarde demais era pior que nunca!
Talvez Théoden vacilasse, talvez curvasse a cabeça e se virasse, indo embora furtivamente para se esconder nas colinas.
Então, de súbito, Merry finalmente a sentiu, sem sombra de dúvida: uma mudança. Sentia o vento no rosto! Surgia uma luz fraca. Distantes, muito além e ao Sul, era possível divisar nuvens como formas cinzentas e remotas, subindo, flutuando: a aurora estava atrás delas. Mas naquele mesmo momento houve um clarão, como se um relâmpago tivesse saltado da terra sob a Cidade. Por um cáustico momento permaneceu feito luz deslumbrante em negro e branco, com sua extremidade superior como uma agulha em faíscas, e depois, quando a escuridão se fechou mais uma vez, veio retumbando pelas colinas um grande estrondo.
Àquele som, a figura curvada do rei de repente se aprumou. Agora ele parecia alto e orgulhoso novamente, e levantando-se nos estribos gritou numa voz poderosa, mais cristalina do que qualquer um já ouvira um homem mortal produzir antes:
Acordem, acordem,
Cavaleiros de Théoden!
Duros feitos despertam,
jugo e massacre.
Quebrada será a lança,
trincado será o escudo,
em dia de espada,
vermelho, antes de o sol raiar!
Avante agora, avante!
Avante para Gondor!
E com isso tomou uma grande corneta da mão de Guthláf, seu porta bandeira, e produziu um clangor tão forte que a corneta se partiu em dois pedaços. E imediatamente todas as cornetas do exército se ergueram em música, e o toque das cornetas de Rohan naquela hora era como tempestade sobre a planície, e como um trovão nas montanhas.
Avante agora, avante! Avante para Gondor!
De repente o rei gritou para Snawmana, e o cavalo disparou. Atrás dele sua bandeira tremulava ao vento, corcel branco sobre um campo verde, mas o rei era mais veloz. Depois vieram numa carreira desabalada os cavaleiros de sua casa, mas o rei sempre se mantinha à frente. Éomer cavalgava ali, o rabo-de-cavalo branco de seu elmo solto ao vento, e a vanguarda do primeiro éored rugia como uma onda enorme que se arrebenta em espuma na praia, mas não se podia alcançar Théoden. Parecia um condenado à morte, ou então a fúria da batalha de seus antepassados corria como um fogo novo em suas veias, e ele ia montado em Snawmana como um deus antigo, talvez mesmo como Oromê, o Grande, na batalha dos Valar, quando o mundo era jovem. Seu escudo dourado estava descoberto e era surpreendente ver seu brilho como uma imagem do Sol, e a relva se incendiava verde ao redor dos pés de seu corcel.
Pois a manhã chegara, a manhã e um vento do mar, a escuridão fora removida, e os exércitos de Mordor gemeram, tomados de terror, fugiram e morreram, pisoteados pelos cascos da ira. E então todo o exército de Rohan irrompeu numa canção, e cantando enquanto matavam, pois a alegria da batalha estava neles, e o som de sua música, que era belo e terrível, chegava até a Cidade.
continua...
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Lei de Murphy: O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.
Muito interessante essa chegada a Gondor ... *_*
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