domingo, 30 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 112




CXII

A PARTIDA




O
s acontecimentos que acabavam de se verificar preocupavam todas as pessoas em Paris. Emmanuel e a mulher contavam-nos, com uma surpresa muito natural, na sua salinha da Rua Meslay, e relacionavam umas com as outras as três catástrofes, tão súbitas como inesperadas, de Morcerf, Danglars e Villefort.
Maximilien, que os viera visitar, escutava-os, ou antes assistia à conversa mergulhado na sua insensibilidade habitual.
— Na verdade — dizia Julie — Não parece, Emmanuel, que todos esses ricaços, ontem tão felizes, esqueceram, no cálculo em que basearam a sua fortuna, a sua felicidade e a sua consideração, a parte do gênio mau, e que este, como as fadas más dos contos de Perrault [1], que se esqueceram de convidar para um casamento ou um batismo, apareceu de repente para se vingar desse fatal esquecimento?

[1] Charles Perrault foi o primeiro a dar acabamento literário aos contos de fadas. Esse feito lhe conferiu o título de “Pai da Literatura Infantil”.

— Que desastres! — dizia Emmanuel, pensando em Morcerf e Danglars.
— Que sofrimentos! — dizia Julie, recordando-se de Valentine, que, no seu instinto feminino, não queria citar diante do irmão.
— Se foi Deus quem os feriu — acrescentava Emmanuel — Foi porque Deus, que é a suprema bondade, não encontrou nada no passado dessa gente que merecesse atenuação da pena. Foi porque essa gente era maldita.
— Não estará sendo muito temerário no teu julgamento, Emmanuel? — perguntou Julie — Quando o meu pai, de pistola em punho, estava prestes a estourar os miolos, se alguém tivesse dito como você dize agora: “Este homem mereceu a sua pena”, esse alguém não estaria enganado?
— Sem dúvida, mas Deus não permitiu que o nosso pai sucumbisse, tal como não permitiu que Abraão sacrificasse o filho. Ao patriarca, como a nós, enviou um anjo que cortou a meio do caminho as asas da morte.
Ainda mal acabara de pronunciar estas palavras tocou a sineta. Era o sinal dado pelo porteiro para anunciar a chegada de uma visita. Quase no mesmo instante a porta da sala abriu-se e o Conde de Monte Cristo apareceu no limiar. Os dois jovens soltaram um grito de alegria.
Maximilien levantou a cabeça e voltou a baixá-la.
— Maximilien — disse o Conde, sem parecer notar as diferentes impressões que a sua presença produzia — Venho buscá-lo.
— Buscar-me? — repetiu Morrel, como se saísse de um sonho.
— Sim — respondeu Monte Cristo — Não estava combinado que o levaria comigo e não o preveni que estivesse pronto?
— Pois aqui estou — respondeu Maximilien — Vim apenas despedir-me.
— E aonde vai, Sr. Conde? — perguntou Julie.
— Primeiro, a Marselha, minha senhora.
— A Marselha? — repetiram em coro os dois jovens.
— Sim, e levo o seu irmão.
— Veja se o restitui curado, Sr. Conde... — pediu Julie.
Morrel virou-se para ocultar o seu rubor.
— Notou então que ele não estava bem? — inquiriu o Conde.
— Notei — respondeu a jovem senhora — E receio que ele se aborreça conosco.
— Eu o distrairei — prometeu o Conde.
— Estou pronto, senhor — disse Maximilien — Adeus, meus bons amigos! Adeus Emmanuel! Adeus, Julie!
— Como adeus?! — exclamou Julie — Parte assim de repente, sem ter nada preparado, sem passaporte?
— Os adiamentos duplicam o desgosto das separações — observou Monte Cristo — E Maximilien, estou certo disso, deve ter tomado todas as providências como lhe recomendei.
— Tenho o meu passaporte e as minhas malas estão feitas — informou Morrel com a mesma tranqüilidade alheada.
— Ótimo! — exclamou Monte Cristo, sorrindo — Nem outra coisa era de esperar de um bom soldado.
— E o senhor deixa-nos assim, de um momento para o outro? — perguntou Julie — Não nos concede um dia, nem uma hora?
— A minha carruagem está à porta, minha senhora. Preciso estar em Roma dentro de cinco dias.
— Mas Maximilien não vai a Roma? — perguntou Emmanuel.
— Vou aonde o Conde quiser me levar — respondeu Morrel, com um sorriso triste — Pertenço-lhe ainda por um mês.
— Oh, meu Deus, como ele diz aquilo, Sr. Conde!
— Maximilien acompanha-me; portanto, esteja tranqüila a respeito do seu irmão — respondeu o Conde com a sua persuasiva afabilidade.
— Adeus, minha irmã! — repetiu Morrel — Adeus, Emmanuel!
— Aflige-me o seu alheamento — confessou Julie — Oh, Maximilien, Maximilien, esconde-nos qualquer coisa!
— Então, então!... — interveio Monte Cristo — Prometo-lhes que o verão regressar alegre, risonho e feliz.
Maximilien deitou a Monte Cristo um olhar quase desdenhoso, quase irritado.
— Partamos! — disse o Conde.
— Antes de partir, Sr. Conde — atalhou Julie — Permita-me que lhe diga tudo o que no outro dia...
— Minha senhora — interrompeu-a o Conde, pegando-lhe nas mãos — Tudo o que me dissesse nunca valeria o que leio nos seus olhos, nem o que o seu coração sente, nem o que o meu experimenta. Como os benfeitores de romance, devia ter partido sem a tornar a ver; mas tal virtude era superior às minhas forças, pois sou um homem fraco e vaidoso e o olhar úmido, feliz e terno dos meus semelhantes me faz bem. Agora parto e levo o egoísmo ao ponto de lhes dizer: não me esqueçam, meus amigos, porque provavelmente não tornarão a me ver.
— Não o tornaremos a ver?! — exclamou Emmanuel, enquanto duas grossas lágrimas rolavam pelas faces de Julie — Não o tornaremos a ver! Mas nesse caso não é um homem, é um deus que nos deixa, e esse deus vai subir ao céu depois de aparecer na Terra para nela praticar o bem!
— Não diga isso — pediu vivamente Monte Cristo — Nunca digam isso, meus amigos. Os deuses nunca fazem mal, os deuses param onde querem parar. O acaso não é mais forte do que eles, são eles que, pelo contrário, governam o acaso. Não, eu sou um homem, Emmanuel, e a sua admiração é tão injusta quanto as suas palavras são sacrílegas.
E beijando a mão de Julie, que se lhe precipitou nos braços, estendeu a outra mão a Emmanuel. Depois, arrancando-se daquela casa, doce ninho que albergava a felicidade, fez sinal a Maximilien para o seguir; um Maximilien passivo, insensível e consternado, como ficara depois da morte de Valentine.
— Restitua a alegria ao meu irmão! — disse Julie ao ouvido de Monte Cristo.
Monte Cristo apertou-lhe a mão como a apertara onze anos antes na escada que conduzia ao gabinete de Morrel.
— Continua a confiar em Simbad, o Marinheiro? — perguntou-lhe sorrindo.
— Oh, sim!
— Então durma na paz e na confiança do Senhor.
Como dissemos, a sege de posta esperava-os. Quatro cavalos vigorosos agitavam as crinas e batiam na calçada com impaciência. Ali esperava ao fundo da escadaria, com o rosto brilhante de suor. Parecia chegar de uma longa corrida.
— Então, foi a casa do velho? — perguntou-lhe o Conde em árabe.
Ali fez sinal que sim.
— E desdobrou a carta diante dos olhos, como te ordenei?
— Sim — respondeu também, respeitosamente, o escravo.
— E que disse ele, ou antes: que fez?
Ali colocou-se debaixo da luz, de forma que o amo o pudesse ver, e, imitando com a sua inteligência tão dedicada a fisionomia do velho, fechou os olhos como fazia Noirtier quando queria dizer “sim”.
— Bem, aceita — disse Monte Cristo — Partamos!
Ainda mal proferira esta palavra e já a carruagem rodava e os cavalos arrancavam da calçada uma chuva de fagulhas. Maximilien acomodou-se no seu canto sem dizer palavra. Passou meia-hora. O coche deteve-se de súbito; o Conde acabava de puxar o cordão de seda que correspondia ao dedo de Ali. O núbio desceu e abriu a portinhola.
A noite cintilava de estrelas. Estavam no cimo da encosta de Villejuif, no planalto donde se vê Paris, como um mar sombrio, agitar os seus milhões de luzes, que parecem ondas fosforescentes. Ondas, efetivamente, ondas mais ruidosas, mais apaixonadas, mais volúveis, mais furiosas e mais vidas do que as do oceano irritado; ondas que não conhecem a calma, como as do vasto mar, ondas que se entrechocam constantemente, sempre espumando, sempre engolindo!...
O Conde ficou só, e a um sinal de mão seu a carruagem avançou um pouco.
Então observou durante muito tempo, com os braços cruzados, aquele cadinho onde se fundiam, torciam e modelavam todas as idéias que brotam do abismo fervilhante para irem agitar o mundo. Depois de observar bem com o seu olhar poderoso aquela Babilônia que tanto fazia sonhar os poetas religiosos como os sarcásticos materialistas, murmurou, inclinando a cabeça e juntando as mãos, como se fosse rezar:
— Grande cidade! Há menos de seis meses que transpus as suas portas. Creio que foi o espírito de Deus que me trouxe até aqui e que me permite retirar triunfante. Confiei a esse Deus, o único capaz de ler no meu coração, o segredo da minha presença dentro das tuas muralhas; só ele sabe que me retiro sem ódio e sem orgulho, mas não sem pesar; só ele sabe que não utilizei em meu proveito nem em benefício de causas vãs o poder que me confiou. Ó grande cidade, foi no teu seio palpitante que encontrei o que procurava! Mineiro paciente, revolvi-te as entranhas para fazer sair o mal. Agora, a minha obra está concluída e a minha missão terminada; agora já me não pode oferecer nem alegrias nem dores. Adeus, Paris! Adeus!
O seu olhar passeou ainda sobre a vasta planície, como o de um gênio noturno. Em seguida passou a mão pela testa, voltou a subir para a carruagem, que se fechou atrás dele e desapareceu em breve do outro lado da encosta num turbilhão de pó e ruído. Percorreram duas léguas sem pronunciar uma só palavra.
Morrel sonhava, Monte Cristo via-o sonhar.
— Morrel, está arrependido de ter me seguido?
— Não, Sr. Conde. Mas deixar Paris...
— Se soubesse que a felicidade o esperava em Paris, Morrel, o teria deixado lá.
— É em Paris que Valentine repousa, e deixar Paris é perdê-la segunda vez.
— Maximilien — disse o Conde — Os amigos que perdemos não repousam na Terra, estão sepultados no nosso coração, e foi Deus que assim o quis para que estivéssemos sempre acompanhados. Eu tenho dois amigos que me acompanham sempre assim um é aquele que me deu a vida, o outro o que me deu a inteligência. O espírito de ambos vive em mim. Consulto-os quando tenho dúvidas, e se tenho feito algum bem é aos seus conselhos que o devo. Consulte a voz do seu coração, Morrel, e pergunte-lhe se deve continuar a mostrar-me tão má cara.
— Meu amigo — respondeu Maximilien — A voz do meu coração é muito triste e só me promete desventuras.
— É próprio dos espíritos enfraquecidos verem todas as coisas através de um crepe. É a alma que abre a si própria os seus horizontes; como a sua alma está sombria, é ela que lhe mostra um céu tempestuoso.
— É provável que isso seja verdade — admitiu Maximilien.
E voltou a cair no seu devaneio.
A viagem decorreu com a maravilhosa rapidez que era um dos poderes do Conde. As cidades passavam como sombras ao longo da estrada; as árvores, sacudidas pelos primeiros ventos do Outono, pareciam vir ao encontro deles como gigantes desgrenhados, e desapareciam rapidamente assim que as alcançavam. No dia seguinte de manhã chegaram a Chalon, onde os esperava o barco a vapor do Conde. Sem perda de um instante, a carruagem foi transportada para bordo; os dois viajantes já tinham embarcado.
O barco, talhado para corrida, dir-se-ia uma piroga índia. As suas duas rodas pareciam duas asas com as quais rasava a água como uma ave de arribação. O próprio Morrel experimentava essa espécie de embriaguez da velocidade, e às vezes o vento que lhe agitava os cabelos parecia prestes a afastar por um momento as nuvens que lhe cobriam a testa. Quanto ao Conde, à medida que se afastava de Paris parecia envolvê-lo como que uma auréola uma serenidade quase sobre-humana. Dir-se-ia um exilado que regressasse à pátria.
Em breve Marselha, branca, tépida, viva; Marselha, a irmã mais nova de Tiro e Cartago, às quais sucedeu no domínio do Mediterrâneo, Marselha, sempre mais nova à medida que envelhece, em breve lhes surgiu diante dos olhos. Não faltavam para ambos aspectos férteis em recordações, como a Torre Redonda, o Forte de São Nicolau, a Câmara Municipal de Puget e o porto de cais de tijolo onde um e outro tinham brincado na infância.
Por isso, de comum acordo, detiveram-se na Cannebiére.
Partia um navio para Argel. Os tardos e os passageiros empilhados na coberta, a chusma dos parentes e dos amigos que se despediam, gritavam e choravam, espetáculo sempre comovente mesmo para aqueles que assistem todos os dias a esse espetáculo, todo aquele movimento não conseguiu distrair Maximilien de uma idéia que o assaltara no momento em que pusera pé nas grandes lajes do cais.
— Veja — disse, pegando no braço de Monte Cristo — Foi aqui que meu pai parou quando o Pharaon entrou no porto; foi aqui que o excelente homem que o senhor salvara da morte e da desonra se lançou nos meus braços. Sinto ainda a impressão das suas lágrimas no meu rosto, e ele não chorava sozinho, muita gente também chorava ao ver-nos.
Monte Cristo sorriu.
— Eu estava ali — disse, mostrando a Morrel a esquina de uma rua.
Quando dizia isto, ouviu-se na direção indicada pelo Conde um gemido doloroso e viu-se uma mulher fazer sinal a um passageiro do navio prestes a partir. A mulher estava velada. Monte Cristo seguiu-a com a vista com uma emoção que Morrel teria facilmente notado se, ao contrário do Conde, não tivesse os olhos fixos no navio.
— Oh, meu Deus, não estou enganado! — exclamou Morrel — Aquele rapaz que acena com o chapéu... aquele rapaz fardado é Albert de Morcerf!
— Pois é — respondeu Monte Cristo — Já o tinha reconhecido.
— Como assim? O senhor estava olhando para o lado oposto!
O Conde sorriu como fazia quando não queria responder. E os seus olhos voltaram à mulher velada, que desapareceu à esquina da rua.
Só então ele se virou e disse a Maximilien:
— Meu caro amigo, não tem nada que fazer nesta terra?
— Tenho de ir chorar sobre a sepultura do meu pai — respondeu surdamente Morrel.
— Então vá e espere-me no cemitério. Irei lá ter consigo.
— Deixa-me?
— Deixo... também tenho uma piedosa visita a fazer.
Morrel deixou cair a mão na que lhe estendia o Conde; depois, com um aceno de cabeça cuja melancolia seria impossível exprimir, deixou o Conde e dirigiu-se para o leste da cidade.
Monte Cristo deixou Maximilien afastar-se e permaneceu no mesmo lugar até ele desaparecer. Depois dirigiu-se para as Alamedas de Meilhan, em busca da casa que nos começos desta história se tornou familiar aos nossos leitores.
A casa erguia-se ainda à sombra da grande alameda de tílias que servia de passeio aos malsemeses ociosos, coberta de grandes maciços de vinha que cruzavam sobre a pedra amarelecida pelo sol ardente do Meio-Dia os seus ramos enegrecidos e retalhados pela idade. Dois degraus de pedra, gastos pelos pés, conduziam à porta de entrada, porta feita de três pranchas que nunca, apesar das suas reparações anuais, tinham conhecido o betume e a pintura e esperavam que a umidade voltasse para as unir.
Aquela casa, encantadora a despeito da sua vetustez, e alegre a despeito da sua aparente miséria, era a mesma em que habitara outrora o pai de Dantés. Simplesmente, o velho habitava a mansarda e o Conde pusera toda a casa à disposição de Mercedes.
Foi lá que entrou a mulher do longo véu que Monte Cristo vira afastar-se do navio que ia partir. A mulher fechava a porta no preciso momento em que ele aparecia à esquina de uma rua, de forma que o Conde a viu desaparecer quase no mesmo instante em que a avistou.
Para ele, os degraus gastos eram velhos conhecidos; sabia melhor do que ninguém abrir a velha porta, de que um prego de cabeça larga levantava o loquete interior. Por isso entrou sem bater nem prevenir, como um amigo, como um hóspede.
Ao fundo de um carreiro pavimentado a tijolo abria-se, rico de calor, de sol e de luz, um jardinzinho, o mesmo onde no sítio indicado, Mercedes encontrara a importância cujo depósito a delicadeza do Conde conservara durante vinte e quatro anos. Do limiar da porta da rua viam-se as primeiras árvores do jardim.
Chegado à entrada, Monte Cristo ouviu um suspiro que parecia um soluço. Esse suspiro guiou-lhe o olhar e permitiu-lhe descobrir Mercedes, sentada, inclinada e chorando, debaixo de um caramanchão de jasmim-da-virgínia, de folhagem espessa e grandes flores cor de púrpura.
Levantara o véu e, sozinha perante o céu, com o rosto oculto nas mãos, dava livre curso aos suspiros e aos soluços tanto tempo reprimidos pela presença do filho.
Monte Cristo deu alguns passos em frente; a areia rangeu-lhe debaixo dos pés. Mercedes levantou a cabeça e soltou um grito de terror ao ver um homem diante de si.
— Minha senhora — disse o Conde — Já não está na minha mão dar-lhe a felicidade, mas ofereço-lhe a consolação. Quer dignar-se aceitá-la como vinda de um amigo?
— Sou, de fato, muito infeliz — respondeu Mercedes — Estou sozinha no mundo... só tinha o meu filho e ele deixou-me.
— E fez bem, minha senhora — replicou o Conde — É um nobre coração. Compreendeu que todo o homem deve um tributo à pátria: uns os seus talentos, outros a sua indústria, estes as suas vigílias, aqueles o seu sangue. Se ficasse com a senhora, desperdiçaria a seu lado uma existência inútil e se habituaria a vê-la sofrer. Se tornaria rancoroso na sua impotência. Assim, se tornará grande e forte lutando contra a sua adversidade, que transformará em fortuna. Deixe-o reconstruir o futuro de ambos, minha senhora. Ouso garantir-lhe que está em mãos seguras.
— Oh — disse a pobre mulher, abanando tristemente a cabeça — A fortuna a que se refere, e que do fundo da minha alma peço a Deus que lhe conceda, não a gozarei! Quebraram-se tantas coisas em mim e à minha volta que me sinto perto da sepultura. Fez bem, Sr. Conde, em aproximar-me do lugar onde fui tão feliz: é onde fomos felizes que devemos morrer.
— Infelizmente, todas as suas palavras, minha senhora, caem amargas e escaldantes no meu coração, tanto mais amargas e escaldantes quanto é certo ter motivos para me odiar. Fui eu que causei todas as suas desventuras. Porque me lamenta em vez de me acusar? Me tornaria muito mais infeliz...
— Odiá-lo, acusá-lo, a você, Edmond?... Odiar, acusar o homem que salvou a vida do meu filho, porque era sua intenção fatal e cruel, não é verdade, matar ao Sr. de Morcerf o filho de que tanto se orgulhava? Oh, olhe para mim e veja se existe em mim a sombra de uma censura!
O Conde levantou os olhos e pousou-os em Mercedes, que, semi-levantada, estendia as mãos para ele.
— Sim, olhe para mim — continuou ela com profunda melancolia — Hoje pode suportar o brilho dos meus olhos; já lá vai o tempo em que vinha sorrir a Edmond Dantés, que me esperava lá em cima, à janela da mansarda que habitava com o seu velho pai... desde então, muitos dias dolorosos passaram que cavaram como que um abismo entre mim e esse tempo. Acusá-lo, Edmond; odiá-lo, meu amigo! Não, é a mim que acuso e odeio! Oh, como fui miserável! — exclamou, juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu — Fui punida... possuía a religião, a inocência e o amor, essas três felicidades que fazem os anjos, e, miserável como sou, duvidei de Deus!
Monte Cristo deu um passo para ela e estendeu-lhe silenciosamente a mão.
— Não — disse ela, retirando suavemente a sua — Não, meu amigo, não me toque. Poupou-me, e, no entanto, de todos aqueles que o feriram, eu era a mais culpada. Todos os outros agiram por ódio, por cupidez, por egoísmo; eu agi por covardia. Eles desejavam, eu tive medo. Não, não me aperte a mão. Edmond, pense em qualquer palavra afetuosa, adivinho-o; não a diga... guarde-a para outra, pois já não sou digna de a ouvir. Veja... — disse, descobrindo por completo o rosto — Veja, a desgraça encheu-me de cabelos grisalhos, os meus olhos verteram tantas lágrimas que estão cercados de veias roxas, e a testa cobriu-se de rugas. O senhor, pelo contrário, Edmond, continua jovem, sempre belo, sempre orgulhoso. Porque teve fé, porque teve coragem, porque confiou em Deus e Deus amparou-o. Eu fui covarde, reneguei, Deus abandonou-me e veja o...
Mercedes desatou a chorar; o coração da mulher não resistia ao choque das recordações.
Monte Cristo pegou-lhe na mão e beijou-a respeitosamente; mas ela própria sentiu que aquele beijo carecia de ardor, era como o que o Conde depositaria na mão de mármore da estátua de uma santa.
— Existem vidas predestinadas cuja primeira falta destrói todo o futuro — continuou ela — Julgava-o morto e por isso eu devia ter morrido. Porque, que adiantou ter trazido eternamente o seu luto no coração? Apenas transformar uma mulher de trinta e nove anos numa mulher de cinqüenta, mais nada. Que adiantou que, tendo sido a única pessoa a reconhecê-lo, me tenha limitado a salvar o meu filho? Não deveria salvar também o homem, por mais culpado que fosse, que aceitara como marido? No entanto, deixei-o morrer. Que digo, meu Deus? Contribui para a sua morte com a minha covarde insensibilidade, com o meu desprezo, não me lembrando, não querendo lembrar-me, de que fora por mim que se tomara perjuro e traidor! Que adiantou, finalmente, que tivesse acompanhado o meu filho até aqui, se aqui o abandonei, se aqui o deixei partir sozinho, se aqui o entreguei à terra devoradora da África? Oh, tenho sido covarde, garanto-lhe! Reneguei o meu amor e, como os renegados, trago a desgraça a tudo o que me rodeia!
— Não, Mercedes — disse Monte Cristo — Não. Não persista nessa má opinião de si mesma. Não, a senhora é uma nobre e santa mulher, que me desarmara com a sua dor. Mas atrás de mim, invisível, desconhecido, irritado, havia Deus, do qual eu era apenas o mandatário, e que não quis deter o raio que eu lançara. Oh, esse Deus aos pés do qual me prosterno todos os dias há dez anos sabe que lhe sacrificaria a vida, Mercedes, e com a vida os projetos que lhe estavam relacionados. Mas, digo-o com orgulho, Mercedes, Deus necessitava de mim e eu vivi. Examine o passado, examine o presente, procure adivinhar o futuro, e veja se não sou um instrumento do Senhor. A primeira parte da minha vida foi constituída pelas mais horríveis desventuras, pelos mais cruéis sofrimentos, pelo abandono de todos aqueles que me amavam, pela perseguição daqueles que me não conheciam. Depois, de repente, após o cativeiro, o isolamento e a miséria, o ar, a liberdade e uma fortuna tão deslumbrante, tão prodigiosa, tão desmedida que, a menos que fosse cego, teria de admitir que Deus ma enviava com grandes desígnios. Desde então, essa fortuna pareceu-me ser um sacerdócio; desde então, nem mais um pensamento dedicado a essa vida de que a senhora, pobre mulher, saboreou algumas vezes a doçura; nem uma hora de calma, nem uma. Senti-me impelido como a nuvem de fogo que passa no céu para ir queimar as cidades malditas. Como esses capitães aventureiros que embarcam para uma viagem perigosa, que planejam uma expedição arriscada, preparei os víveres, carreguei as armas, amontoei os meios de ataque e defesa habituando o meu corpo aos exercícios mais violentos, a minha alma aos choques mais rudes, e ensinando o meu braço a matar, os meus olhos a ver sofrer e a minha boca a sorrir aos aspectos mais terríveis. De bom, de confiante, de generoso que era, tornei-me vingativo, dissimulado, mau; ou antes, impassível como a surda e cega fatalidade. Então, lancei-me no caminho que abrira, transpus o espaço, consegui os meus fins. Ai daqueles que cruzassem no meu caminho!
— Basta! — exclamou Mercedes — Basta, Edmond! Acredite, aquela que foi a única capaz de o reconhecer foi também a única capaz de o compreender. Ora, Edmond, aquela que soube reconhecê-lo, aquela que foi capaz de o compreender, se a tivesse encontrado no seu caminho e a tivesse quebrado como vidro, nem por isso deixaria de o admirar, Edmond! Assim como existe um abismo entre mim e o passado, também existe um abismo entre o senhor e os outros homens, e a minha mais dolorosa tortura, confesso-lhe, é estabelecer comparações. Porque não há nada no mundo que se lhe compare, nada que se pareça consigo. E agora, Edmond, diga-me adeus e separemo-nos.
— Antes de deixá-la, que deseja, Mercedes? — perguntou Monte Cristo.
— Só desejo uma coisa, Edmond: que o meu filho seja feliz.
— Suplique-o ao Senhor, o único que tem a vida dos homens na mão, que afaste a morte dele. Do resto eu me encarrego.
— Obrigada, Edmond.
— Mas a senhora, Mercedes?
— Eu não preciso de nada, vivo entre duas sepulturas: uma a de Edmond Dantés, que morreu há muito tempo; amava-o! Esta palavra já não assoma aos meus lábios murchos, mas o meu coração ainda se recorda dela e por nada deste mundo desejaria perder essa lembrança do coração. A outra é a de um homem que Edmond Dantés matou; aprovo a morte, mas devo rezar pelo morto.
— O seu filho será feliz, minha senhora — repetiu o Conde.
— Então, serei também feliz quanto o possa ser.
— Mas... enfim... que fará?
Mercedes sorriu tristemente.
— Se lhe dissesse que viveria nesta terra como a Mercedes de outrora, isto é, trabalhando, o senhor não acreditaria. Já só sei rezar, mas não tenho necessidade de trabalhar; o pequeno tesouro que o senhor enterrou encontrava-se no lugar indicado. As pessoas quererão saber quem sou, perguntarão o que faço, ignorarão como vivo. Que importa! Trata-se de assunto entre Deus, o senhor e eu.
— Mercedes — disse o Conde — Não a censuro, mas exagerou o sacrifício renunciando a toda a fortuna acumulada pelo Sr. de Morcerf e metade da qual pertencia por direito à sua economia e à sua orientação.
— Adivinho o que me vai propor, mas não posso aceitar. Edmond, o meu filho me proibiria.
— Sendo assim, tomarei o cuidado de nada fazer pela senhora que não tenha a aprovação do Sr. Albert de Morcerf. Averiguarei as suas intenções e me submeterei a elas. Mas se aceitar o que pretendo fazer, o imitárá sem repugnância?
— Bem sabe, Edmond, que já não sou uma criatura pensante; de determinação só tenho a de nunca mais cair em outra. Deus sacudiu-me de tal modo nas suas tempestades que perdi a vontade disso. Estou nas suas mãos como um pardal nas garras da águia. Ele não quer que morra, uma vez que vivo. Se me enviar ajuda, será de sua vontade e a aceitarei.
— Cautela, senhora, não é assim que se adora Deus! — observou Monte Cristo — Deus quer que compreendamos e discutamos o seu poder: foi para isso que nos deu o livre arbítrio.
— Não me diga isso, desgraçado! — exclamou Mercedes — Se acreditasse que Deus me dera o livre arbítrio, que me restaria para me salvar do desespero?
Monte Cristo empalideceu ligeiramente e baixou a cabeça, esmagado pela veemência daquela dor.
— Não quer dizer-me até à vista? — perguntou, estendendo-lhe a mão.
— Quero — respondeu Mercedes, mas apontando para o céu solenemente — Como vê, ainda tenho esperança...
E depois de tocar na mão do Conde com mão trêmula, Mercedes correu para a escada e desapareceu.
Monte Cristo saiu então lentamente da casa e tomou o caminho do porto.
Mas Mercedes não o viu afastar-se, embora estivesse à janela do quartinho do pai de Dantés. Os seus olhos procuravam ao longe o navio que levava o filho para o mar alto. Verdade seja, a que a sua voz, como que a seu pesar, murmurava baixinho:
— Edmond, Edmond, Edmond!




continua... 








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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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