quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 100



C

A APARIÇÃO




C
omo dissera o Procurador Régio à Sra. Danglars, Valentine ainda não estava restabelecida. Quebrada pela fadiga, conservava-se de cama e foi no seu quarto e da boca da Sra. de Villefort que tomou conhecimento dos acontecimentos que acabamos de contar, isto é, da fuga de Eugénie e da prisão de Andréa Cavalcanti, ou antes, de Benedetto, assim como da acusação de assassínio formulada contra ele.
Mas Valentine estava tão fraca que tais acontecimentos não produziram nela o efeito que talvez tivessem produzido se se encontrasse no seu estado de saúde habitual.
Efetivamente, tudo se resumiu a algumas idéias vagas, a algumas formas imprecisas, ainda por cima misturadas com idéias estranhas e fantasmas fugazes que se lhe formavam no cérebro doente ou lhe passavam diante dos olhos, e em breve até tudo isso se desvaneceu para só lhe deixar dedicar todas as suas energias às sensações pessoais.
Durante o dia, Valentine mantinha ainda consciência da realidade graças à presença de Noirtier, que se fazia conduzir aos aposentos da neta e lá permanecia, vigiando Valentine com o seu olhar paternal. Depois, quando regressava do palácio da Justiça, era Villefort quem, por sua vez, passava uma hora ou duas com o pai e a filha.
Às seis horas, Villefort retirava-se para o seu gabinete, às oito chegava o Sr. de Avrigny, que trazia pessoalmente a poção noturna preparada para a jovem; depois, levavam Noirtier.
Uma enfermeira escolhida pelo médico substituía todas as pessoas e só se retirava quando, por volta das dez ou onze horas, Valentine adormecia.
Quando descia, entregava pessoalmente as chaves do quarto de Valentine ao Sr. de Villefort, de forma que dali em diante só se podia entrar no quarto da doente atravessando os aposentos da Sra. de Villefort e o quarto do pequeno Edouard.
Morrel vinha todas as manhãs aos aposentos de Noirtier saber notícias de Valentine. Mas, coisa extraordinária, parecia de dia para dia menos inquieto.
Em primeiro lugar, apesar de dominada por uma violenta exaltação nervosa, Valentine estava cada vez melhor, depois, não lhe dissera Monte Cristo, quando correra de cabeça perdida para casa do Conde, que se Valentine não morresse dentro de duas horas, estaria salva?
Ora, Valentine ainda estava viva e já se tinham passado quatro dias.
A exaltação nervosa a que nos referimos perseguia Valentine até no sono ou, antes, no estado de sonolência que se sucedia à vigília. Era então que, no silêncio da noite e na semi-obscuridade que deixava reinar a lamparina pousada na chaminé, via passar as sombras que povoam o quarto dos doentes é que estimulam a febre com as suas asas frementes.
Então parecia-lhe ver aparecer ora a madrasta que a ameaçava, ora Morrel que lhe estendia os braços, ora seres quase estranhos à sua vida habitual, como o Conde de Monte Cristo. Nesses momentos de delírio até os móveis lhe pareciam mover-se. E isso prolongava-se assim até às duas ou três horas da manhã, momento em que um sono de chumbo se apoderava da jovem e a conduzia até ao dia.
Na noite que se seguiu à manhã em que Valentine soube da fuga de Eugénie e da prisão de Benedetto, e em que, depois de se terem confundido um instante com as sensações da sua própria existência, esses acontecimentos lhe começavam a sair pouco a pouco da idéia; depois da sucessiva retirada de Villefort, de Avrigny e de Noirtier; quando soavam onze horas em Saint-Philippe du Roule e a enfermeira, após colocar ao alcance da mão da doente a beberagem preparada pelo médico e fechar a porta do quarto, escutava palpitante, na copa para onde se dirigira, os comentários dos criados, e guardava na memória as histórias lúgubres que havia três meses alimentavam os serões da criadagem do Procurador Régio: verificou-se uma cena inesperada naquele quarto tão cuidadosamente fechado.
Havia já cerca de dez minutos que a enfermeira se retirara.
Valentine, presa havia uma hora da febre que a assaltava todas as noites. Deixava a cabeça, insubmissa à sua vontade, continuar o trabalho ativo, monótono e implacável do cérebro, que se esgota a reproduzir incessantemente os mesmos pensamentos ou a conceber as mesmas imagens.
Da mecha da lamparina partiam milhares e milhares de irradiações, todas impregnadas de significados estranhos, quando de súbito, à sua chama trêmula, Valentine julgou ver a sua estante, colocada ao lado da chaminé, numa cavidade da parede, abrir-se lentamente sem que os gonzos em que parecia girar produzissem o mais pequeno ruído.
Em outro momento, Valentine teria pegado na campainha e puxado o cordão de seda a pedir socorro; mas já nada a surpreendia, na situação em que se encontrava. Tinha consciência de que todas as visões que a rodeavam eram fruto do seu delírio e esta convicção arraigara-se depois de verificar que, de manhã, nunca restava qualquer vestígio dos fantasmas da noite, que desapareciam ao amanhecer.
Atrás da porta apareceu uma figura humana.
Devido à febre, Valentine estava demasiado familiarizada com semelhantes aparições para se assustar; arregalou apenas os olhos, esperando reconhecer Morrel. A figura continuou a aproximar-se da cama e depois parou e pareceu escutar com profunda atenção.
Nesse momento, um reflexo da lamparina iluminou o rosto do visitante noturno.
— Não é ele!... — murmurou a jovem.
E esperou, convencida de que sonhava, que aquele homem, como acontece nos sonhos, desaparecesse ou se transformasse em qualquer outra pessoa.
Entretanto, apalpou o pulso e, sentindo-o bater violentamente, lembrou-se de que o melhor meio de fazer desaparecer aquelas visões importunas era beber: a frescura da bebida, preparada de resto para acalmar as agitações de que Valentine se queixara ao médico, contribuía, fazendo baixar a febre, para renovar as sensações do cérebro. Depois de beber, sofria menos durante algum tempo.
Valentine estende, pois a mão, a fim de pegar no copo do pires de cristal onde se encontrava. Mas no momento em que estendia fora da cama o braço trêmulo, a aparição deu novamente, com mais rapidez do que nunca, dois passos para a cama e chegou tão perto da jovem que esta ouviu-lhe a respiração e julgou sentir-lhe a pressão da mão.
Desta vez a ilusão, ou antes, a realidade, ultrapassava tudo o que Valentine experimentara até ali; começou a considerar-se bem acordada e viva; teve consciência de se encontrar de posse de toda a sua razão e estremeceu. A pressão que Valentine sentira destinava-se a deter-lhe o braço. Valentine retirou-o lentamente para si.
Então a figura, da qual não conseguia despregar os olhos, e que, de resto, parecia mais protetora do que ameaçadora, essa figura pegou no copo, aproximou-se da lamparina e observou a beberagem, como se quisesse apreciar-lhe a transparência e a limpidez.
Mas esta primeira prova não bastou.
O homem, ou antes o fantasma — Porque andava tão suavemente que o tapete abafava o ruído dos seus passos — Tirou do copo uma colher da beberagem e engoliu-a.
Valentine observava o que se passava diante dos seus olhos com profundo espanto. Estava convencidíssima de que tudo aquilo não tardaria a desaparecer para dar lugar a outro quadro; mas o homem, em vez de se sumir como uma sombra, voltou a aproximar-se, estendeu o copo a Valentine e disse-lhe numa voz cheia de emoção:
— Agora, beba!...
Valentine estremeceu.
Era a primeira vez que uma das suas visões lhe falava naquele timbre vibrante.
Abriu a boca para gritar.
O homem pôs-lhe um dedo no lábios.
— O Sr. Conde de Monte Cristo!... — murmurou ela.
Pelo terror que transpareceu dos olhos da jovem, pela tremura das suas mãos e pelo gesto rápido que esboçou para se esconder debaixo dos lençóis, podia-se reconhecer a última luta da dúvida contra a convicção, de fato, a presença de Monte Cristo no seu quarto a semelhante hora e a sua entrada misteriosa, fantástica, inexplicável, por uma parede, pareciam coisas impossíveis à razão abalada de Valentine.
— Não chame, não se assuste — disse o Conde — Nem tenha sequer no fundo do coração a réstia de uma desconfiança ou a sombra de uma inquietação. O homem que vê diante de si, porque desta vez tem razão, Valentine, e não se trata de uma ilusão, o homem que vê diante de si é o mais terno pai e o mais respeitoso amigo que possa imaginar.
Valentine não soube que responder. Tinha tanto medo daquela voz que lhe revelava a presença real daquele que falava que temia associar-lhe a sua. Mas o seu olhar aterrado queria dizer:
“Se as suas intenções são puras, porque está aqui?”
Com a sua maravilhosa sagacidade, o Conde compreendeu tudo o que se passava no coração da jovem.
— Ouça-me — disse — Ou antes, olhe-me: vê os meus olhos avermelhados e a meu rosto ainda mais pálido do que de costume? É porque há quatro noites que não durmo um só instante; há quatro noites que velo por si, a protejo, a conservo ao nosso amigo Maximilien.
Uma onda de sangue subiu rapidamente às faces da doente; porque o nome que o Conde acabava de pronunciar punha termo ao resto de desconfiança que ele lhe inspirara.
— Maximilien!... — repetiu Valentine, de tal forma lhe era agradável pronunciar esse nome — Maximilien!... quer dizer que ele lhe contou tudo?
— Tudo! Disse-me que a sua vida era a dele e prometi-lhe que Valentine viveria.
— O senhor prometeu-lhe que eu viveria?
— Prometi.
— De fato, senhor, acaba de falar de vigilância e proteção. Isso quer dizer que é médico?
— Quer, e o melhor que o Céu lhe poderia enviar neste momento, acredite.
— Diz que tem velado por mim? — perguntou Valentine, inquieta — Onde? Nunca o vi...
O Conde estendeu a mão na direção da estante.
— Tenho estado escondido atrás daquela porta — respondeu — Porta que dá para a casa contígua, que aluguei.
Num assomo de orgulho pudico, Valentine desviou os olhos e disse com soberano desprezo:
— O que fez, senhor, é de uma demência sem exemplo e essa proteção que me concedeu assemelha-se muito a um insulto.
— Valentine, durante a minha longa vigília apenas vi as pessoas que a visitavam, os alimentos que lhe preparavam, as bebidas que lhe serviam. Depois, quando essas bebidas me pareciam perigosas, entrava como entrei agora, despejava-lhe o copo e substituía o veneno por uma beberagem benéfica que, em vez da morte que lhe preparavam, fazia circular a vida nas suas veias.
— O veneno! A morte! — exclamou Valentine, julgando-se de novo sob o império de alguma febril alucinação — Que quer dizer com isso, senhor?
— Cale-se, minha filha! — recomendou Monte Cristo, levando o dedo aos lábios — Disse o veneno; sim, disse a morte, e repito, a morte. Mas beba primeiro isto — e o Conde tirou da algibeira um frasco que continha um licor vermelho de que deitou algumas gotas no copo — Depois de beber, não tome mais nada esta noite.
Valentine estendeu a mão; mas assim que tocou no copo, retirou-a com terror.
Monte Cristo pegou no copo, bebeu metade do líquido e apresentou-o a Valentine, que bebeu, sorrindo, o resto do licor que continha.
— Sim, reconheço o gosto das minhas beberagens noturnas, da água que restitua um pouco de frescura ao meu peito e um pouco de calma ao meu cérebro. Obrigada, senhor, obrigada.
— Aqui tem como viveu quatro noites, Valentine — disse o Conde — Mas eu, como vivi? Oh, que horas cruéis me fez passar! Oh, que horríveis torturas me infligiu quando via deitar-lhe no copo o veneno mortal, quando temia que tivesse tempo de bebê-lo antes de eu ter tempo de despejá-lo na chaminé!
— Diz — prosseguiu Valentine no cúmulo do terror — Que sofreu mil torturas ao ver deitar no meu copo o veneno mortal? Mas se viu deitarem-me o veneno no copo, também viu a pessoa que o deitava?
— Também.
Valentine sentou-se na cama e, aconchegando ao peito, mais pálida do que a neve, a cambraia bordada, ainda úmida do suor frio do delírio, ao qual começava a juntar-se o suor ainda mais gelado do terror, repetiu.
— Viu-a?
— Vi — respondeu pela segunda vez o Conde.
— O que me diz é horrível, senhor! O que pretende me fazer crer é algo infernal! O quê, na casa do meu pai, no meu quarto, no meu leito de dor continuam a assassinar-me?! Oh, retire-se, senhor! Isso é tentar a minha consciência, blasfemar da bondade divina, é impossível, não pode ser!
— É porventura a primeira pessoa que essa mão fere, Valentine? Não viu cair à sua volta o Sr. de Saint-Méran, a Sra. de Saint-Méran, e Barrois? Não teria visto cair o Sr. Noirtier, se o tratamento que segue há cerca de três anos o não protegesse, combatendo o veneno através da habituação ao veneno?
— Oh, meu Deus, será por isso que há perto de um mês o avozinho exige que compartilhe todas as suas bebidas?! — exclamou Valentine.
— E essas bebidas têm um gosto amargo como o da casca de laranja meio seca, não é verdade? — perguntou Monte Cristo.
— Têm, sim, meu Deus, têm!
— Isso explica-me tudo — declarou Monte Cristo — Ele também sabe que se envenena aqui e talvez saiba quem envenena. Assim, preservou a neta bem amada contra a substância mortal, e a substância mortal perdeu grande parte de sua eficácia devido a esse princípio de habituação! Aí está porque se encontra ainda viva, o que eu não compreendia, depois de ser envenenada há quatro dias com um veneno que habitualmente não perdoa.
— Mas quem é o assassino?
— Uma pergunta: nunca viu entrar ninguém, de noite, no seu quarto?
— Vi. Muitas vezes julguei ver passar como que umas sombras... essas sombras aproximarem-se, afastarem-se e desapareceram; mas tomava-as por visões da minha febre e ainda há pouco, quando o senhor mesmo entrou... bom, julguei durante muito tempo que delirava ou sonhava.
— Portanto, não conhece a pessoa que lhe quer tirar a vida?
— Não — respondeu Valentine — Porque havia alguém de me desejar a morte?
— Vai conhecê-la, então — respondeu Monte Cristo, apurando o ouvido.
— Como assim? — perguntou Valentine, olhando com terror à sua volta.
— Porque esta noite a Valentine já não tem febre nem delira; porque esta noite está bem acordada, porque acaba de dar meia-noite, a hora dos assassinos.
— Meu Deus, meu Deus!... — murmurou Valentine, enxugando com a mão o suor que lhe perlava a testa.
Com efeito, soava lenta e tristemente a meia-noite e diria que cada pancada do martelo de bronze batia no coração da jovem.
— Valentine — continuou o Conde — Chame todas as suas forças em seu socorro, comprima o coração no peito, contenha a voz na garganta, finja dormir... e verá, verá!
Valentine pegou na mão do Conde.
— Parece-me ouvir um ruído — disse — Retire-se!
— Adeus, ou antes, até breve — respondeu o Conde.
Depois, com um sorriso tão triste e tão paternal que o coração da jovem se sentiu cheio de reconhecimento, alcançou em pontas de pés a porta da estante. Mas, virando-se antes de a fechar atrás de si, recomendou:
— Nem um gesto, nem uma palavra. É necessário que a julguem dormindo, pois de contrário talvez a matassem antes de eu ter tempo de acorrer.
E depois desta pavorosa recomendação, o Conde desapareceu atrás da porta, que se fechou silenciosamente.




continua...




________________________________________________________
Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.