sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 106



CVI

A PARTILHA




N
o prédio da Rua Saint-Germain-des-Prés que Albert de Morcerf escolhera para a mãe e para si, o primeiro andar, constituído por um apartamentozinho completo, estava alugado a uma personagem muito misteriosa. Essa personagem era um homem a quem nem mesmo o porteiro jamais vira o rosto, quer quando entrava, quer quando saía. Porque no Inverno metia o queixo numa dessas gravatas encarnadas como as dos cocheiros das casas ricas que esperam os patrões à saída dos espetáculos e no Verão assoava-se sempre precisamente no momento em que poderia ser visto ao passar diante do cubículo.
Desnecessário dizer que, contrariamente a todos os usos e costumes, esse habitante do prédio não era espiado por ninguém e que o boato que corria de que o seu incógnito ocultava um indivíduo muito altamente colocado e de braço comprido bastava para que respeitassem as suas misteriosas aparições.
As suas visitas eram habitualmente fixas, embora por vezes fossem antecipadas ou adiadas; mas quase sempre, de Inverno ou de Verão, era por volta das quatro horas que tomava posse do seu apartamento, no qual nunca passava a noite.
Às três e meia, no Inverno, o fogo era aceso pela criada discreta que cuidava do apartamentozinho; às três e meia, no Verão, as janelas eram abertas pela mesma criada. Às quatro horas, como dissemos, chegava a misteriosa personagem.
Vinte minutos depois dele, parava uma carruagem diante do prédio; uma mulher vestida de preto ou de azul-escuro, mas sempre envolta num grande v, apeava-se, passava como uma sombra diante do cubículo e subia a escada sem que se ouvisse estalar um só degrau debaixo dos seus pés ligeiros. Nunca acontecera perguntarem-lhe aonde ia.
A seu rosto, tal como a do desconhecido, era, portanto absolutamente estranha aos dois guardas da porta, porteiros modelo, talvez os únicos, na imensa confraria dos porteiros da capital, capazes de semelhante discrição. A mulher não ia além do primeiro andar. Aí, arranhava numa porta de forma especial, a porta abria-se, voltava a fechar-se hermeticamente e pronto. Para saírem do prédio, a mesma manobra que para entrarem.
A desconhecida saía primeiro, sempre velada, e metia-se na sua carruagem, que ora desaparecia por uma extremidade da rua, ora por outra. Depois, passados vinte minutos, saía por sua vez o desconhecido, enterrado na sua gravata ou oculto pelo seu lenço, e desaparecia igualmente.
No dia seguinte àquele em que o Conde de Monte Cristo visitara Danglars, dia do funeral de Valentine, o locatário misterioso entrou por volta das dez horas da manhã, em vez de entrar, como de costume, cerca das quatro horas da tarde. Quase imediatamente, e sem guardar o intervalo habitual, chegou uma carruagem de praça e a dama velada subiu rapidamente a escada.
A porta abriu-se e fechou-se. Mas ainda antes de a porta se fechar, a dama exclamou:
— Lucien, meu amigo!...
De modo que o porteiro, que ouviu sem querer tal exclamação, soube então pela primeira vez que o seu locatário se chamava Lucien. Mas como era um porteiro modelo, prometeu a si mesmo nada dizer nem sequer à mulher.
— Afinal, que aconteceu, querida amiga? — perguntou aquele de quem, na sua perturbação ou precipitação, a dama velada revelara o nome — Vamos, diga!
— Meu amigo, posso contar consigo?
— Certamente, sabe-o muito bem. Mas que aconteceu? O seu bilhete desta manhã deixou-me numa perplexidade terrível. Nunca vi tanta precipitação e desordem nos seus escritos. Vamos, tranqüilize-me ou assuste-me por completo!
— Lucien, uma grande novidade! — disse a dama, pousando em Lucien um olhar interrogador — O Sr. Danglars partiu esta noite.
— Partiu?... O Sr. Danglars partiu? Para onde?
— Ignoro.
— Ignora? ... Quer dizer que partiu para não mais voltar?
— Sem dúvida! Às dez horas da noite os seus cavalos conduziram-no à Barreira de Charenton. Aí, encontrou uma berlinda de posta completamente atrelada, meteu-se nela com o seu criado de quarto e disse ao seu cocheiro que ia a Fontainebleau.
— E a senhora, que diz a isso?
— Espere, meu amigo. Ele deixou-me uma carta...
— Uma carta?...
— Sim. Leia.
E a baronesa tirou da bolsa uma carta aberta, que apresentou a Debray. Antes de a ler, Debray hesitou um instante, como se procurasse adivinhar o que ela continha, ou antes como, fosse o que fosse que ela contivesse, estivesse decidido a tomar antecipadamente um partido. Passados alguns segundos, decerto já com as suas idéias bem definidas, leu.
Eis o que continha a carta que lançara tão grande perturbação no espírito da Sra. Danglars:
— “Minha senhora e fidelíssima esposa...”
Sem querer, Debray deteve-se e olhou a baronesa, que corou quase até à raiz dos cabelos.
— Leia — insistiu ela.
Debray continuou:

Quando receber esta carta já não terá marido! Oh, não perca a cabeça!... Já não terá marido, como já não terá filha, isto é, estarei numa das trinta ou quarenta estradas que levam para fora da França. Devo-lhe explicações, e como a senhora é mulher para as compreender perfeitamente, as darei.
Escute, pois:
Esta manhã tive de fazer um pagamento de cinco milhões; o fiz. Seguiu-se quase imediatamente outro da mesma importância; adiei-o para amanhã. Hoje parto para evitar esse amanhã, que me seria muito desagradável suportar. Compreende o que quero dizer, não é verdade, minha senhora e preciosíssima, esposa?
Repito: compreende, porque conhece tão bem como eu os meus negócios; conhece-os até melhor do que eu, atendendo a que se fosse preciso dizer o que foi feito de uma metade da minha fortuna, ainda há pouco bastante considerável, eu seria incapaz disso minha senhora, pelo contrário, estou certo de que o diria perfeitamente.
Porque as mulheres possuem instintos de uma certeza infalível e são capazes de explicar por meio de uma álgebra que inventaram o próprio maravilhoso. Eu, que só conhecia as minhas contas, fiquei sem saber nada no dia que as minhas contas me enganaram.
Alguma vez estranhou a rapidez da minha queda, minha senhora? Ficou um pouco encandeada com a incandescente fusão dos meus lingotes?
Eu, confesso-o, só vi fogo; esperemos que a senhora tenha encontrado um pouco de ouro nas cinzas.
É com esta consoladora esperança que me afasto, minha senhora e prudentíssima esposa, sem que a minha consciência me censure nem um bocadinho por a abandonar. Restam-lhe amigos, as cinzas a que me referi e, para cúmulo da felicidade, a liberdade que me apresso a conceder-lhe.
No entanto, minha senhora, é o momento de colocar nesta carta uma palavra de explicação íntima.
Enquanto tive a esperança de que a senhora trabalhasse para o bem-estar da nossa casa, para a fortuna da nossa filha, fechei filosoficamente os olhos; mas como a senhora transformou a casa numa vasta ruína, não quero servir de alicerce à fortuna de outrem.
Recebi-a rica, mas pouco honrada.
Desculpe-me falar-lhe com esta franqueza, mas como provavelmente só para nós dois, não vejo por que motivo disfarçaria as minhas palavras.
Aumentei a nossa fortuna, que durante mais de quinze anos foi crescente, até ao momento em que catástrofes desconhecidas e ainda incompreensíveis para mim a atacaram e derrubaram sem que, posso dizê-lo, a culpa fosse de algum modo minha. Pela minha parte a senhora trabalhou para aumentar a sua, o que conseguiu, estou moralmente convencido disso. Deixo-a, portanto como a recebi: rica, mas pouco honrada.
Adeus.
Também eu vou a partir de hoje trabalhar por minha conta. Creia em todo o meu reconhecimento pelo exemplo que me deu e que vou seguir.
Seu marido muito dedicado.

Barão Danglars.

A baronesa não tirara os olhos de Debray durante esta longa e penosa leitura. E, apesar do domínio bem conhecido que ele possuía sobre si mesmo, viu o rapaz mudar de cor uma ou duas vezes. Quando acabou, Debray dobrou lentamente o papel e recaiu na sua atitude pensativa.
— Então? — perguntou a Sra. Danglars, com uma ansiedade fácil de compreender.
— Então o quê, minha senhora? — perguntou maquinalmente Debray.
— Que idéia lhe inspira essa carta?
— Uma muito simples, minha senhora: inspira-me a idéia de que o Sr. Danglars partiu com suspeitas.
— Sem dúvida. Mas é tudo o que tem para me dizer?
— Não compreendo — disse Debray, com uma frieza glacial.
— Partiu! Partiu definitivamente! Partiu para não mais voltar!
— Não acredite nisso, baronesa — perguntou Debray.
— Não, digo-lhe eu, não voltará. Conheço-o, é um homem inquebrantável em todas as resoluções que são de seu interesse. Se me julgasse útil para alguma coisa, teria me levado. Se me deixa em Paris é porque a nossa separação pode ser útil aos seus projetos. É, portanto irrevogável e estou livre para sempre — acrescentou a Sra. Danglars com a mesma expressão de súplica.
Mas Debray, em vez de responder, deixou-a na ansiosa interrogação do olhar e do pensamento.
— Então o senhor não me responde? — perguntou ela por fim.
— Só tenho uma pergunta a fazer-lhe: quais são os seus planos?
— Ia perguntar-lhe o mesmo — respondeu a baronesa, com o coração palpitante — Que devo fazer?
— Ah!... — exclamou Debray — É, portanto um conselho que me pede?
— Sim, é um conselho que lhe peço — respondeu a baronesa, com o coração apertado.
— Então se é um conselho que me pede — respondeu friamente o rapaz — Aconselho-a a ir viajar.
— Viajar!... — murmurou a Sra. Danglars.
— Certamente. Como disse o Sr. Danglars, é rica e absolutamente livre. Uma ausência de Paris será indispensável, pelo menos segundo creio, depois do duplo escândalo da anulação do casamento de Mademoiselle Eugénie e do desaparecimento do Sr. Danglars. A única coisa que interessa agora é que todas as pessoas a saiba abandonada e a julguem pobre; porque ninguém perdoaria à mulher do falido a sua opulência e o estado da sua casa. Para o primeiro caso, basta que fique apenas quinze dias em Paris e que repita a todas as pessoas que foi abandonada. Diga-o às suas melhores amigas, que elas se encarregarão de espalhar na sociedade como tal abandono se deu. Depois, deixará o seu palácio, e nele as suas jóias, renunciará a qualquer indenização, e todos elogiarão o seu desinteresse e lhe cantarão louvores. Então, a considerarão pobre, porque só eu conheço a sua situação financeira e estou pronto a prestar-lhe contas como leal associado.
A baronesa empalideceu, aterrada, à medida que escutava este discurso com tanto, mais espanto e desespero quanto maior era a calma e a indiferença com que Debray o pronunciava.
— Abandonada! — repetiu ela — Oh, e bem abandonada!... Sim, tem razão, senhor, e ninguém duvidará do meu abandono.
Foram estas as únicas palavras que aquela mulher, tão orgulhosa e violentamente apaixonada, conseguiu responder a Debray.
— Mas rica, muito rica mesmo — prosseguiu Debray, tirando da carteira e espalhando-os em cima da mesa alguns papéis que continha.
A Sra. Danglars esperou que ele acabasse, muito ocupada a conter as pulsações do coração e a reter as lágrimas que sentia perlarem-lhe as extremidades das pálpebras. Mas por fim o sentimento da dignidade levou a melhor na baronesa, e se não conseguiu conter o coração, conseguiu pelo menos não chorar.
— Minha senhora — disse Debray — Há cerca de seis meses que nos associamos. A senhora entrou com uma quota de cem mil francos. A nossa sociedade foi constituída em Abril deste ano. Em Maio iniciamos as nossas operações. E ainda em Maio ganhamos quatrocentos e cinqüenta mil francos. Em Junho, o lucro ascendeu a novecentos mil. Em Julho, adicionamos-lhe um milhão e setecentos mil francos; foi, como sabe, o mês dos títulos da Espanha. Em Agosto, perdemos no começo do mês trezentos mil francos; mas em 15 desse mesmo mês tínhamos recuperado e no fim do mês tínhamos desforrado, pois as nossas contas, apuradas desde o dia da nossa associação até ontem, em que as fechei, nos dão um ativo de dois milhões e quatrocentos mil francos, isto é, um milhão e duzentos mil francos para cada um. Agora — continuou Debray, compulsando a sua agenda com o método e a tranqüilidade de um cambista — Temos oitenta mil francos de juros compostos daquela importância que se encontra em meu poder...
— Mas — interrompeu-o a baronesa — Que significam esses juros, se o senhor nunca aplicou esse dinheiro?
— Peço-lhe perdão, minha senhora — respondeu friamente Debray — Nas tinha procuração sua para o aplicar e utilizei a sua procuração. Tem, portanto a haver quarenta mil francos de juros, mais os cem mil francos da quota inicial, isto é, um milhão trezentos e quarenta mil francos à sua parte. Ora, minha senhora — continuou Debray — Tomei a precaução de mobilizar anteontem o seu dinheiro; não há muito tempo, como vê, e dir-se-ia que já esperava ser chamado urgentemente a prestar-lhe contas. O dinheiro está aqui, metade em notas e metade em títulos ao portador. Digo aqui e é verdade, porque como não considerava a minha casa suficientemente segura, não achava os tabeliães bastante discretos e as propriedades falam ainda mais alto do que os tabeliães, e como, finalmente, a senhora não tem o direito de comprar nada nem de possuir seja o que for fora da comunhão de bens conjugal, guardei todo esse dinheiro, hoje a sua única fortuna, num cofre cravado no fundo deste armário, em que, para maior segurança, me encarreguei pessoalmente do trabalho de pedreiro. Agora — continuou Debray, abrindo primeiro o armário e depois o cofre — Agora, minha senhora, aqui tem oitocentas notas de mil francos cada uma, que como vê, parecem um grosso álbum encadernado em ferro... juntei-lhes um cupão de juro de vinte e cinco mil francos e para saldo de contas, que, segundo creio, ascende a qualquer coisa como cento e dez mil francos, aqui tem uma ordem de pagamento à vista sobre o meu banqueiro, e como o meu banqueiro não é o Sr. Danglars, pode estar tranqüila que a ordem será paga.
A Sra. Danglars pegou maquinalmente na ordem à vista, no cupom e nas notas. Aquela enorme fortuna parecia muito insignificante espalhada ali em cima de uma mesa.
Com os olhos secos, mas o peito cheio de soluços, a Sra. Danglars reuniu-a, guardou o estojo de aço na bolsa, meteu o cupom e a ordem de pagamento à vista na carteira, e de pé, pálida e muda, esperou uma palavra meiga que a consolasse de ser tão rica.
Mas esperou em vão.
— Agora, minha senhora — disse Debray — Tem uma existência magnífica, qualquer coisa como sessenta mil francos de rendimento, o que é enorme para uma mulher que não poderá ter casa senão daqui a um ano, pelo menos. É um privilégio para todos os caprichos que lhe passarem pela cabeça, sem contar que se achar a sua parte insuficiente, em atenção ao passado que lhe escapa poderá recorrer à minha. Estou disposto a oferecer-lhe, a título de empréstimo, bem entendido, tudo o que possuo, isto é, um milhão e sessenta mil francos.
— Obrigada, senhor, obrigada — respondeu a baronesa — Como sabe, acaba de me entregar muito mais do que precisa uma pobre mulher que não conta, senão daqui a muito tempo, pelo menos, reaparecer na sociedade.
Debray mostrou-se momentaneamente surpreendido, mas recompôs-se e fez um gesto que se poderia traduzir como a forma mais delicada de exprimir esta idéia: “Como queira!”
Até ali, a Sra. Danglars talvez esperasse ainda alguma coisa; mas quando viu o gesto indiferente que acabava de escapar a Debray e o olhar oblíquo com que esse gesto fora acompanhado, assim como a reverência profunda e o silêncio significativo que se seguiram, ergueu a cabeça, abriu a porta e, sem cólera, sem nervosismo, mas também sem hesitação, dirigiu-se para a escada, desdenhando até honrar com um derradeiro cumprimento àquele que a deixava partir daquele modo.
— Ora, ora! — exclamou Debray depois dela sair — Apesar de poder fazer belos projetos, ficará no seu palácio, lerá romances e jogará o seu lansquen, visto não poder jogar na bolsa.
Em seguida pegou na agenda e riscou cuidadosamente as importâncias que acabava de pagar.
— Resta-me um milhão e sessenta mil francos... que pouca sorte Mademoiselle de Villefort ter morrido! Era a mulher que me convinha sob todos os aspectos para casar com ela.
E, fleumaticamente, conforme era seu hábito, esperou que a Sra. Danglars tivesse saído há vinte minutos para se decidir a sair por sua vez.
Durante esses vinte minutos, Debray fez contas, com o relógio pousado a seu lado.
Essa personagem diabólica que qualquer imaginação aventurosa criaria com mais ou menos felicidade se Le Sage lhe não tivesse adquirido a prioridade na sua obra-prima; esse Asmodeu que levantava os telhados das casas para vê-las por dentro, teria gozado um singular espetáculo se erguesse, no momento em que Debray fazia as suas contas, o telhado do prédio da Rua Saint-Germain-des-Prés.
Por cima do quarto em que Debray acabava de dividir com a Sra. Danglars dois milhões e meio, ficava outro também habitado por pessoas nossas conhecidas, as quais desempenharam papel muito importante nos acontecimentos que contamos até aqui e que por isso reencontramos com algum interesse.
Nesse quarto residiam Mercedes e Albert.
Mercedes mudara muito havia alguns dias.
Não porque, mesmo no tempo da sua maior riqueza, alguma vez tivesse exibido o fausto orgulhoso que corta visivelmente com todas as condições e faz com que se deixe de reconhecer imediatamente a mulher quando nos surge mais simplesmente vestida; nem porque tivesse caído nesse estado de depressão em que somos obrigados a envergar a libré da miséria. Não, Mercedes estava mudada porque os seus olhos já não brilhavam, porque a sua boca já não sorria, porque finalmente um perpétuo enleio lhe detinha nos lábios a palavra pronta que denotava outrora um espírito sempre atento.
Não fora a pobreza que secara o espírito de Mercedes, nem era a falta de coragem que lhe tornava pesada a pobreza.
Mercedes, apeada do ambiente em que vivia, isolada na nova esfera que escolhera, como essas pessoas que saem de uma sala esplendidamente iluminada para entrarem de súbito nas trevas; Mercedes parecia uma rainha que passara do seu palácio para uma cabana e que, reduzida ao estritamente indispensável, não se reconhecia nem na louça de barro que era obrigada a pôr pessoalmente na mesa, nem no catre por que trocara o seu leito.
Efetivamente, a bela catalã, como a nobre condessa, já não tinha nem o seu olhar orgulhoso, nem o seu sorriso encantador, porque quando pousava os olhos no que a rodeava só via objetos pobres.
Era um quarto forrado com um desses papeis em que predominam os tons cinzentos, que os senhorios econômicos escolhem de preferência por serem os que menos se sujam; não havia tapetes no chão e os móveis davam nas vistas e forçavam os olhos a deterem-se na pobreza de um falso luxo. Enfim, tudo coisas que quebravam com os seus tons garridos a harmonia tão necessária a olhos habituados a um conjunto elegante.
A Sra. de Morcerf vivia ali desde que deixara o seu palácio. A cabeça andava-lhe à roda perante aquele silêncio eterno, como anda à roda ao viajante chegado à beira de um abismo.
Notando que Albert a observava constantemente às escondidas, para descobrir o seu estado de espírito, obrigara-se a um monótono sorriso nos lábios, que, na ausência desse fogo tão suave do sorriso dos olhos, produz o efeito de uma simples reverberação de luz, isto é, de uma claridade sem calor.
Pela sua parte, Albert andava preocupado e sentia-se pouco à vontade, constrangido, com um resto de luxo que o impedia de assumir a sua condição atual. Queria sair sem luvas e achava as mãos demasiado brancas, queria percorrer a cidade a pé e achava as botas demasiado brilhantes. No entanto, estas duas criaturas tão nobres e inteligentes, ligadas indissoluvelmente pelos laços do amor maternal e filial, tinham conseguido compreender-se sem falar de nada e economizar todos os rodeios usados entre amigos para estabelecer a verdade material de que depende a vida.
Albert pudera finalmente dizer à mãe sem a fazer empalidecer:
— Minha mãe, já não temos dinheiro.
Mercedes nunca conhecera verdadeiramente a miséria; muitas vezes, na sua juventude, ela própria falara de pobreza, mas isso não era a mesma coisa: pobreza e necessidade são sinônimos entre os quais há um mundo de intervalo.
Entre os Catalães, Mercedes tinha necessidade de muitas coisas, mas nunca lhe faltavam outras. Enquanto as redes estavam boas, pescava-se o peixe; vendido o peixe, tinha-se fio para consertar as redes.
E depois, privada de afetos, tendo apenas um amor que em nada interferia nos pormenores materiais da situação, cada um pensava em si, só em si e em mais ninguém. Do pouco que tinha, Mercedes fazia o seu quinhão tão generosamente quanto possível; agora, tinha de fazer dois quinhões... a partir do nada.
O Inverno aproximava-se.
Naquele quarto nu e frio, Mercedes não tinha aquecimento, ela a quem outrora um calorífero com inúmeras ramificações aquecia a casa desde as antecâmaras até ao boudoir. Não tinha nem uma pobre florinha, ela cujos aposentos eram uma estufa quente mantida a peso de ouro!
Mas tinha o seu filho...
A exaltação de um dever talvez exagerado sustentara-os até ali nas esferas superiores. A exaltação é quase entusiasmo, e o entusiasmo torna as pessoas insensíveis às coisas terrenas.
Mas o entusiasmo esfriara e fora necessário descer pouco a pouco do país dos sonhos ao mundo das realidades. Era necessário falar do positivo, depois de ter esgotado todo o ideal.
— Minha mãe — dizia Albert, no preciso momento em que a Sra. Danglars descia a escada — Deitemos contas a todas as nossas riquezas, por favor. Preciso de um total para traçar os meus planos.
— Total, nada — respondeu Mercedes com um sorriso doloroso.
— Na realidade, minha mãe, total, três mil francos, à primeira vista, e tenho a pretensão de, com esses três mil francos, proporcionar a ambos uma rica vida.
— Criança! — suspirou Mercedes.
— Por Deus, minha pobre mãe, infelizmente gastei-lhe dinheiro suficiente para lhe conhecer o valor! É enorme, acredite. Três mil francos... com esta importância conseguirei um futuro miraculoso de eterna segurança.
— Fala assim, meu amigo — continuou a pobre mãe — Mas primeiro é preciso saber se aceitamos esses três mil francos.
— Parece-me que isso está assente — perguntou Albert em tom firme — Aceitaremos, tanto mais que não os temos, pois estão, como sabe, enterrados no jardim dessa casa das Alamedas de Meilhan, em Marselha. Com duzentos francos, iremos ambos a Marselha.
— Com duzentos francos! — exclamou Mercedes — E onde estão eles, Albert?
— Oh, quanto a isso não se preocupe! Informei-me nas diligencias e nos vapores e fiz os meus cálculos. Reservamos lugar para Chalon na diligência; como vê, minha mãe, trato-a como um a rainha... são trinta e cinco francos.
Albert pegou numa pena e escreveu:

Diligência                                                      35 francos
De Chalon a Lion, de vapor                           6 francos
De Lion a Avinhão, também de vapor             16 francos
De Avinhon a Marselha                                  7 francos
Despesas de viagem                                       50 francos
Total                                                               114 francos

— Ponhamos cento e vinte — acrescentou Albert, sorrindo — Como vê, sou generoso, não é verdade, minha mãe?
— Mas e você, meu pobre filho?
— Eu? Não viu que me reservo oitenta francos? Um rapaz, minha mãe, não necessita de muitas comodidades. De resto, sei o que é viajar.
— Com a tua sege de posta e o teu criado de quarto.
— De todas as maneiras, minha mãe.
— Pois bem, seja — concordou Mercedes — Mas onde estão esses duzentos francos?
— Esses duzentos francos estão aqui, e ainda mais duzentos... olhe vendi o meu relógio por cem francos e os berloques por trezentos. Que sorte! Berloques que valiam três vezes o relógio. Sempre a eterna história do supérfluo! Estamos, portanto ricos, pois em vez de cento e catorze francos para a sua viagem terá duzentos e cinqüenta.
— Mas não devemos qualquer coisa aqui?
— Trinta francos, mas pago-os dos meus cento e cinqüenta francos. Isso está resolvido. Aliás, bem vistas as coisas, não preciso de mais do que oitenta francos para a viagem. Como vê, estou nadando em dinheiro. Mas isto não é tudo. Que me diz a isto, minha mãe?
E Albert tirou de uma agendazinha de fecho de ouro, resto das suas antigas fantasias ou talvez mesmo terna recordação de alguma das mulheres misteriosas e veladas que batiam à portinha, uma nota de mil francos.
— Que é isso? — perguntou Mercedes.
— Mil francos, minha mãe. Oh, esteja descansada que são perfeitamente honestos!
— Mas onde os arranjou?
— Escute, mãe, e não se impressione demasiado.
E Albert levantou-se, beijou a mãe em ambas as faces e ficou parado a olhá-la.
— Não imagina, mãe, como a acho bonita! — declarou o rapaz com profundo sentimento de amor filial — Na verdade, é não só a mais bonita, mas também a mais nobre mulher que jamais vi!
— Querido filho — murmurou Mercedes, procurando em vão reter uma lágrima que lhe brilhava ao canto da pálpebra.
— Realmente, só lhe faltava ser infeliz para transformar o meu amor em adoração.
— Não serei infeliz enquanto tiver o meu filho — declarou Mercedes.
— Muito bem! — disse Albert — Mas aí é que começa a questão. Sabe o que está combinado?
— Combinamos alguma coisa? — perguntou Mercedes.
— Combinamos. Combinamos que a senhora ficaria morando em Marselha e que eu partiria para a África, onde, em vez do nome a que renunciei, honraria o nome que adotei.
Mercedes suspirou.
— Pois bem, minha mãe: desde ontem que estou alistado nos sipaios — acrescentou o rapaz, baixando os olhos com certa vergonha, pois nem ele próprio sabia tudo o que o seu rebaixamento tinha de sublime — Ou antes, julguei que o meu corpo me pertencia inteiramente e que o podia vender. Desde ontem que substituo alguém. Vendi-me, como dizem, e — acrescentou tentando sorrir — Mais caro do que estava convencido que valia, ou seja por dois mil francos.
— Portanto, estes mil francos?... — disse, tremendo, Mercedes.
— São metade da importância, minha mãe. A outra virá daqui a um ano.
Mercedes ergueu os olhos ao céu com uma expressão que ninguém saberia exprimir e as duas lágrimas que lhe brilhavam ao canto dos olhos transbordaram sob a sua emoção íntima e correram-lhe silenciosamente ao longo das faces.
— O preço do teu sangue! — murmurou.
— Sim, se for morto — disse, rindo, Albert — Mas garanto-lhe, boa mãe, que, pelo contrário, tenho a intenção de defender ferozmente a pele. Nunca senti tanta vontade de viver como agora.
— Meu Deus! Meu Deus! — exclamou Mercedes.
— Aliás, por que motivo havia de ser morto, minha mãe? Porventura Lamoriciére, esse outro Ney do Meio-Dia, foi morto? E Changarnier, foi morto? E Bedeau, foi morto? E Morrel, que nós conhecemos, foi morto? Pense, pois na sua alegria, minha mãe, quando me vir regressar com o meu uniforme bordado! Declaro-lhe que nesse aspecto conto ser imponente e que escolhi aquele regimento por vaidade.
Mercedes suspirou e tentou sorrir. Aquela santa mãe compreendia que não lhe ficava bem deixar que o filho suportasse todo o peso do sacrifício.
— Portanto — prosseguiu Albert — A senhora já tem mais de quatro mil francos garantidos. Ora, com quatro mil francos viverá bem dois anos...
— Acha? — disse Mercedes.
Estas palavras escaparam à Condessa, e com uma dor tão verdadeira que o seu autêntico sentido não passou despercebido a Albert. Este sentiu o coração confranger-se e disse, pegando na mão da mãe, que apertou ternamente nas suas:
— Sim, viverá!
— Viverei! — exclamou Mercedes — Mas você não partirá, não é verdade, meu filho?
— Minha mãe, partirei — respondeu Albert em voz calma e firme — Ama-me demasiado para me querer junto de si ocioso e inútil. De resto, já assinei.
— Procederá como for da tua vontade; eu procederei conforme for da vontade de Deus.
— Não de acordo com a minha vontade, minha mãe, mas sim de acordo com a razão e a necessidade. Somos duas pessoas desesperadas, não é verdade? Que é a vida para si, hoje? Nada. Que é a vida para mim? Oh, muito pouco sem a senhora, minha mãe, acredite! Porque sem a senhora juro-lhe que esta vida teria cessado no dia em que duvidei do meu pai e reneguei o seu nome! Enfim, viverei se me prometer ter ainda esperança; se me deixar o cuidado da sua felicidade futura, duplicará a minha energia. Procurarei o governador da Argélia, que é um coração leal e, sobretudo essencialmente soldado, e lhe contarei a minha lúgubre história. Lhe pedirei que olhe de vez em quando para mim, e se me der a sua palavra de que o fará e apreciar o meu comportamento, dentro de seis meses serei oficial ou estarei morto. Se for oficial, o meu futuro estará assegurado, minha mãe, porque terei dinheiro para si e para mim, e, além disso um novo nome de que ambos nos orgulharemos, pois esse será o seu verdadeiro nome. Se morrer... bom, se morrer, então, minha mãe, morra também, se quiser, e as nossas desventuras acabarão devido ao seu próprio excesso.
— Está bem — respondeu Mercedes, fitando-o com o seu nobre e eloqüente olhar — Tem razão, meu filho: provemos a certas pessoas que nos observam e esperam os nossos atos para nos julgar, provemo-lhes que somos pelo menos dignos de lástima.
— Mas nada de idéias fúnebres, querida mãe! — exclamou o jovem — Juro-lhe que somos, ou pelo menos que podemos ser felizes. A senhora é ao mesmo tempo uma mulher cheia de inteligência e resignação; eu adquiri gostos simples e modestos, creio. Uma vez ao serviço, estarei rico; uma vez na casa do Sr. Dantés, a senhora estará tranqüila. Tentemos! Peço-lhe, minha mãe, tentemos.
— Pois sim, tentemos meu filho, porque você deve viver, porque deve ser feliz — respondeu Mercedes.
— Nesse caso, minha mãe, uma vez que as nossas divisões estão feitas, podemos partir hoje mesmo — acrescentou o rapaz, simulando uma grande descontração — Vamos, como já lhe disse, marquei-lhe lugar.
— E o teu, meu filho?
— Eu devo ficar ainda dois ou três dias, minha mãe. É um princípio de separação e temos de nos ir habituando a isso... preciso de algumas recomendações, de algumas informações acerca da África, e irei ter consigo a Marselha.
— Pois sim, partamos! — exclamou Mercedes, envolvendo-se no único xale que trouxera e que por acaso era de caxemira preta de alto preço — Partamos!
Albert guardou à pressa os seus papéis, tocou para pagar os trinta francos que devia, ofereceu o braço à mãe e desceram a escada. Alguém descia adiante deles; esse alguém, ao ouvir o ruge-ruge de um vestido de seda virou-se.
— Debray! — murmurou Albert.
— Morcerf! — exclamou o secretário do ministro, parando no degrau em que se encontrava.
A curiosidade levou a melhor em Debray sobre o seu desejo de se conservar o incógnito. De resto, já fora reconhecido. Além disso, tinha a sua piada encontrar naquele prédio ignorado o rapaz cuja triste aventura acabava de causar tão grande escândalo em Paris.
— Morcerf? — repetiu Debray.
Depois, notando na semi-obscuridade o aspecto ainda jovem e o véu negro da Sra. de Morcerf, acrescentou com um sorriso:
— Oh, perdão! Deixo-o, Albert...
Albert compreendeu o pensamento de Debray.
— Minha mãe — disse, virando-se para Mercedes — É o Sr. Debray, secretário do ministro do Interior, um antigo amigo meu.
— Como antigo?... — balbuciou Debray — Que quer dizer?
— Digo isto, Sr. Debray — respondeu Albert — Porque hoje já não tenho amigos nem devo voltar a tê-los. Agradeço-lhe muito ter-se dignado reconhecer-me, senhor.
Debray subiu dois degraus e veio dar um enérgico aperto de mão ao seu interlocutor.
— Creia, meu caro Albert — disse com a emoção de que era susceptível — Creia que senti profundamente a desventura que o atingiu e que estou ao seu dispor para tudo.
— Obrigado, senhor — respondeu Albert, sorrindo — Mas, apesar da nossa desventura, ficamos suficientemente ricos para não necessitarmos de recorrer a ninguém. Deixamos Paris e, depois de paga a nossa viagem, restam-nos cinco mil francos.
O rubor subiu à testa de Debray, que tinha um milhão na carteira; e por pouco poético que fosse o seu espírito exato, não pôde deixar de refletir que no mesmo prédio tinham estado pouco antes duas mulheres, das quais uma, justamente desonrada, se considerava pobre com um milhão e quinhentos mil francos debaixo das pregas da sua capa, e outra, injustamente atingida, mas sublime na sua desgraça, se considerava rica com alguns francos.
Este paralelo deitou por terra os seus propósitos de cortesia; a filosofia do exemplo esmagou-o. Balbuciou algumas palavras de mera delicadeza e desceu rapidamente. Naquele dia, os amanuenses do ministério seus subordinados tiveram de lhe aturar resignadamente o mau humor. Mas à tardinha tornava-se comprador de um belíssimo prédio situado no Bulevar da Madalena, que rendia cinqüenta mil francos.
No dia seguinte, à hora em que Debray assinava a escritura, ou seja, por volta das cinco da tarde, a Sra. de Morcerf, depois de beijar ternamente o filho e de ser ternamente beijada por ele, subia para a diligência, cuja porta se fechava atrás de si.
No pátio da empresa de transportes Laffitte encontrava-se um homem escondido atrás de uma das janelas arqueadas das sobrelojas. Esse homem viu Mercedes subir para a carruagem; viu partir a diligência; viu Albert afastar-se. Então passou a mão pela testa, cheio de dúvidas, e murmurou:
— Ai de mim, como hei de restituir àqueles dois inocentes a felicidade que lhes roubei? Deus me ajudará.




continua...
  





________________________________________________________
Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.