segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 113





CXIII

O PASSADO




O
 Conde saiu com a alma magoada daquela casa onde deixava Mercedes para nunca mais a ver, segundo todas as probabilidades. Desde a morte do pequeno Edouard operara-se em Monte Cristo uma grande transformação. Chegado ao alto da sua vingança pela encosta lenta e tortuosa que seguira, vira do outro lado da montanha o abismo da dúvida.
Mas havia mais: a conversa que acabava de ter com Mercedes despertara tantas recordações no seu coração que elas próprias precisavam ser combatidas. Um homem da têmpera do Conde não podia entregar-se durante muito tempo a uma melancolia capaz de alimentar os espíritos vulgares dando-lhes uma originalidade aparente, mas que mata as almas superiores. O Conde disse para consigo que para quase ter chegado a censurar-se era porque algum erro se insinuara nos seus cálculos.
— Analiso mal o passado — disse — Não posso ter-me enganado assim... seria possível que me propusesse atingir um objetivo insensato? Terei seguido caminho errado durante dez anos? Não bastaria uma hora para provar ao arquiteto que a obra em que depositara todas as suas esperanças era uma obra impossível ou pelo menos sacrílega? Não me posso habituar a semelhante idéia; enlouqueceria. O que falta aos meus raciocínios atuais é a apreciação exata do passado, porque revejo o passado da outra extremidade do horizonte. Com efeito, à medida que avançamos o passado esbate-se, tal como a paisagem que atravessamos se esfuma à medida que nos afastamos. Acontece-me o que acontece às pessoas que se ferem em sonhos: vêem e sentem o ferimento, mas não se lembram de o ter recebido... vamos, homem renovado; vamos, rico extravagante; vamos, dorminhoco acordado; vamos, visionário todo-poderoso, vamos, milionário invencível: retoma por instantes a perspectiva funesta da vida miserável e faminta; volta a passar pelos caminhos para onde a fatalidade te empurrou ou a desventura te conduziu e o desespero te recebeu. Demasiados diamantes, ouro e sorte brilham hoje no espelho em que Monte Cristo vê Dantés. Esconde esses diamantes, cobre de lama esse ouro, apaga esse brilho; rico, volta a ser pobre; livre, volta a ser prisioneiro; ressuscitado, volta a ser cadáver.
Enquanto dizia isto a si mesmo, Monte Cristo seguia pela Rua da Caisserie, a mesma pela qual vinte e quatro anos antes fora conduzido por uma guarda silenciosa e noturna. Aquelas casas, de aspecto risonho e animado, estavam naquela noite sombrias, mudas e fechadas.
— Mas são as mesmas — murmurou Monte Cristo — Só que então era de noite e hoje é de dia; é o sol que ilumina tudo isto e torna tudo isto alegre.
Desceu ao cais pela Rua de Saint-Laurent e encaminhou-se para a Consigne, o ponto do porto onde fora embarcado. Um barco de passeio passava com a sua cobertura de lona. Monte Cristo chamou o patrão, que navegou imediatamente para ele, com a pressa que põem nesse exercício os barqueiros que farejam uma boa gorjeta.
O tempo estava magnífico e a viagem foi uma festa. No horizonte o Sol descia, vermelho e chamejante, nas vagas, que se incendiavam à sua aproximação. O mar, liso como um espelho, franzia-se por vezes devido aos saltos dos peixes, que, perseguidos por algum inimigo oculto, saltavam para fora de água a fim de procurarem a salvação em outro elemento. Finalmente, no horizonte viam-se passar, brancas e graciosas como gaivotas de arribação, as barcas de pescadores que se dirigiam para Martigues ou os navios mercantes carregados que seguiam para a Córsega ou para a Espanha.
Apesar daquele lindo céu, daquelas barcas de contornos graciosos e da luz dourada que inundava a paisagem, o Conde, envolto na sua capa, recordava um a um todos os pormenores da terrível viagem aquela luz única e isolada que ardia nos Catalães, a vista do Castelo d’If que lhe revelou para onde o levavam, a luta com os guardas quando quis lançar-se ao mar, o seu desespero quando se sentiu vencido e a sensação fria do cano do carabina encostado à têmpora, como um anel de gelo.
E pouco a pouco, como as nascentes secas no Verão que quando se acastelam as nuvens de Outono se umedecem lentamente e começam a correr gota a gota, o Conde de Monte Cristo sentiu igualmente nascer-lhe no peito o velho fel extravasado que outrora inundara o coração de Edmond Dantés.
A partir daí acabou-se para ele o céu bonito, as barcas graciosas, o sol quente; o céu velou-se de crepes fúnebres e o aparecimento do negro gigante chamado Castelo d’If fê-lo estremecer como se lhe tivesse surgido de súbito o fantasma de um inimigo mortal.
Chegaram.
Instintivamente, o Conde recuou até à extremidade do barco. O patrão teve de lhe dizer com a sua voz mais diferente:
— Chegamos, senhor.
Monte Cristo lembrou-se de que naquele mesmo local, naquele mesmo rochedo, fora violentamente arrastado pelos seus guardas e que o tinham obrigado a subir a rampa picando-lhe os rins com a ponta das baionetas.
O caminho parecera então muito longo a Dantés; Monte Cristo achou-o muito curto. Cada remada fizera brotar, juntamente com a poalha úmida do mar, um milhão de pensamentos e recordações.
Desde a revolução de Julho que não havia prisioneiros no Castelo d’If; apenas um posto destinado a impedir o contrabando se encontrava instalado na casa da guarda. Um porteiro recebia os curiosos à porta para lhes mostrar aquele monumento de terror transformado em monumento de curiosidade.
E, no entanto, embora conhecesse pormenorizadamente o que ia ver, quando entrou debaixo da abóbada, quando desceu a escada negra, quando o conduziram às celas que pedira para ver, uma palidez fria invadiu-lhe a testa, cujo suor gelado lhe refluiu até ao coração.
O Conde perguntou se ainda havia algum antigo carcereiro do tempo da Restauração; todos tinham sido reformados ou se dedicavam a outras profissões. O porteiro que o acompanhava estava ali desde 1830 apenas. Levaram-no a sua própria cela.
Reviu a luz baça filtrar-se através do estreito respiradouro; reviu o lugar onde estava a cama, retirada depois, e atrás da cama, embora tapada, mas ainda visível devido às pedras mais novas, a abertura praticada pelo Abade Faria.
Monte Cristo sentiu as pernas fraquejarem-me; pegou num banco de madeira e sentou-se.
— Contaram-se algumas histórias acerca deste castelo além da relacionada com a prisão de Mirabeau? — perguntou o Conde — Existe alguma tradição relacionada com estas celas lúgubres, onde custa a crer que homens alguma vez tenham encerrado um homem vivo?
— Existe, sim, senhor — respondeu o porteiro — E a respeito desta mesma cela o carcereiro Antoine transmitiu-me uma.
Monte Cristo estremeceu.
O carcereiro Antoine era o seu carcereiro. Quase lhe esquecera o nome e o rosto, mas assim que o seu nome foi pronunciado reviu-o tal qual era, com o rosto rodeada de barba, o seu casaco escuro e o seu molho de chaves, cujo tilintar lhe parecia ainda ouvir.
O Conde virou-se e julgou vê-lo na sombra do corredor, tornada mais densa pelo contraste com a luz do archote que ardia nas mãos do porteiro.
— O senhor quer que a conte? — perguntou o porteiro.
— Pois sim, conte — respondeu Monte Cristo.
E pôs a mão no peito para comprimir as violentas pulsações do coração, assustado por ir ouvir contar a sua própria história.
— Conte — repetiu.
— Esta cela — prosseguiu o porteiro — Era ocupada por um prisioneiro, há muito tempo, um homem perigosíssimo, ao que parece, e tanto mais perigoso quanto lhe não faltava engenho. Nessa altura, havia outro homem no castelo, mas esse não era mau, era um pobre padre louco.
— Ah, sim, louco!... — repetiu Monte Cristo — E qual era a sua loucura?
— Oferecia milhões se lhe restituíssem a liberdade.
Monte Cristo ergueu os olhos ao céu, mas não viu o céu: havia um véu de pedra entre ele e o firmamento. Pensou que houvera um véu não menos espesso entre os olhos daqueles a quem o Abade Faria oferecia tesouros e os tesouros que lhes oferecia.
— Os prisioneiros podiam ver-se? — perguntou Monte Cristo.
— Oh, não, senhor, era expressamente proibido! Mas eles eludiram a proibição abrindo uma galeria que ia de uma cela à outra.
— E qual dos dois abriu a galeria?
— O mais novo, com certeza — respondeu o porteiro — O rapaz era engenhoso e forte, ao passo que o pobre abade era velho e fraco. Além disso, tinha o espírito demasiado vacilante para seguir uma idéia.
— Cegos!... — murmurou Monte Cristo.
— Seja como for — continuou o porteiro — O mais novo abriu a galeria. Com quê? Ninguém sabe. Mas abriu-a, e a prova é que ainda se vêem sinais dela. Repare, não os vê?
E aproximou o archote da parede.
— Sim, realmente... — respondeu o Conde, com a voz embargada pela emoção.
— Daí resultou que os dois prisioneiros comunicaram um com o outro. Quanto tempo durou a comunicação? Ninguém sabe. Ora, um dia o prisioneiro velho adoeceu e morreu. Adivinha o que fez o novo? — perguntou o porteiro, interrompendo-se.
— Diga.
— Apoderou-se do defunto, que deitou na sua própria cama com a cara virada para a parede, voltou à cela vazia, tapou o buraco e meteu-se no saco do morto. Já viu semelhante idéia?
Monte Cristo fechou os olhos e sentiu-se passar de novo por todas as impressões que experimentara quando aquela tela grosseira, ainda impregnada do frio do cadáver, lhe tocara na cara.
O porteiro continuou:
— Veja o senhor qual era o seu plano: julgava que enterravam os mortos no Castelo d’If, e como estava convencido de que não gastavam dinheiro com caixões para os presos, contava levantar a terra com os ombros. Mas infelizmente havia no castelo um costume que prejudicava o seu plano: não enterravam os mortos; limitavam-se a prender-lhes um peso aos pés e a lançá-los ao mar. Foi o que se fez e o nosso homem foi lançado à água do alto da galeria. No dia seguinte encontraram o verdadeiro morto na sua cama e adivinharam tudo, porque os coveiros disseram então o que se não tinham atrevido a dizer até ali, isto é, que no momento em que o corpo fora lançado no vácuo tinham ouvido um grito terrível, abafado imediatamente pela água, na qual desaparecera.
O Conde respirou penosamente.
O suor corria-lhe pela testa e a angústia apertava-lhe o coração.
— Não — murmurou — Não! A dúvida que experimentei era um princípio de esquecimento. Mas aqui o coração sangra de novo e volta a sentir-se faminto de vingança. E o prisioneiro, nunca mais ouviram falar dele? — perguntou.
— Nunca por nunca ser. Compreende, das duas uma: ou caiu de cabeça de cinqüenta pés de altura e morreu imediatamente...
— Disse que lhe tinham prendido um pelouro aos pés; portanto, deve ter caído de pé.
— Ou caiu de pé — prosseguiu o porteiro — E então o peso do pelouro o arrastou-o para o fundo, onde ficou, pobre homem!
— Lamenta-o?
— Claro que sim, embora morresse no seu elemento.
— Que quer dizer?
— Que corria o boato de que o desgraçado fora, no seu tempo, um oficial de marinha preso por bonapartista.
— É verdade — murmurou o Conde para consigo — Deus fê-lo flutuar à superfície das vagas e das paixões, e assim o pobre marinheiro vive na memória de alguns narradores. Conta-se a sua terrível história ao canto da lareira e estremece-se no momento em que ele fende o espaço para mergulhar no mar profundo. Nunca souberam o seu nome? — perguntou o Conde em voz alta.
— Ah sim, claro!... — respondeu o guarda.
— Como?
— Era só conhecido pelo número 34.
— Villefort, Villefort... — murmurou o Conde — O que não terá pensado quando o meu fantasma importunava as tuas insônias...
— O senhor quer continuar a visita? — perguntou o porteiro.
— Sim, sobretudo se me quiser mostrar a cela do pobre abade.
— Ah! A do número 27?
— Sim, a do número 27 — repetiu Monte Cristo.
E pareceu-lhe ouvir ainda a voz do Abade Faria quando lhe perguntara o seu nome e ele lhe gritara o número através da parede.
— Venha.
— Espere, deixe-me dar uma última vista de olhos à cela.
— Calha bem — disse o guia — Porque me esqueci da chave da outra.
— Vá buscá-la.
— Deixo-lhe o archote.
— Não, leve-o.
— Mas fica sem luz...
— Enxergo bem no escuro.
— Olha, é como ele!...
— Ele quem?
— O número 34. Dizem que estava tão habituado às trevas que era capaz de ver um alfinete no canto mais escuro da cela.
— Mas precisou de dez anos para o conseguir — murmurou Monte Cristo.
O guia afastou-se com o archote.
O Conde dissera a verdade: bastaram-lhe apenas uns segundos na escuridão para distinguir tudo como em pleno dia. Então olhou a toda a volta de si e reconheceu realmente a sua cela.
— Sim, aqui está a pedra em que me sentava! E aqui a marca dos meus ombros escavada na muralha! E aqui uns restos do sangue que me correu da testa no dia em que quis partir a cabeça contra a parede! Oh, estes números!... Lembro-me deles... Fi-los num dia em que calculava a idade do meu pai, para saber se o encontraria vivo, e a idade de Mercedes, para saber se a encontraria livre... tive um momento de esperança depois de fazer estes cálculos... não contava com a fome nem com a infidelidade!
E um riso amargo saiu da boca do Conde. Acabava de ver, como num sonho, o pai a ser conduzido à sepultura... e Mercedes dirigindo-se para o altar!
No outro lance da muralha deu com os olhos numa inscrição. Ainda se destacava, a branco, na parede esverdeada:
“Meu Deus, conserva-me a memória!”
Oh, sim, era esta a minha única prece nos últimos tempos! — exclamou — Já não pedia a liberdade pedia a memória, receava enlouquecer e esquecer. Meu Deus conservaste-me a memória e lembrei-me. Obrigado, obrigado, meu Deus!
Neste momento a luz do archote refletiu-se nas paredes; era o guia que descia.
Monte Cristo foi ao seu encontro.
— Siga-me — disse o homem.
E sem necessitar de vir à superfície, fê-lo seguir por um corredor subterrâneo que o conduziu a outra entrada.
Também ali Monte Cristo foi assaltado por um mundo de pensamentos.
A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o meridiano traçado na muralha, com o auxílio do qual o Abade Faria contava as horas; depois os restos da cama em que o pobre prisioneiro morrera. Ao ver isto, em vez das angústias que o Conde experimentara na sua cela, um sentimento suave e terno, um sentimento de reconhecimento, encheu-lhe o coração e duas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.
— Era aqui que estava o abade louco — informou o guia — Era por ali que o rapaz vinha ter com ele — e mostrou a Monte Cristo a entrada da galeria, que daquele lado ficara aberta — Pela cor da pedra — continuou — Um sábio descobriu que devia haver mais ou menos dez anos que os dois prisioneiros comunicavam um com o outro. Pobres homens, muito se devem ter aborrecido durante esses dez anos!
Dantés tirou alguns luíses da algibeira e estendeu a mão para o homem que pela segunda vez o lamentava sem o conhecer. O porteiro aceitou-os, julgando receber algumas moedas de pouco valor, mas à luz do archote verificou que o visitante lhe dera muito dinheiro.
— Senhor — disse-lhe — Deve ter se enganado...
— Como assim?
— Deu-me moedas de ouro.
— Bem sei.
— Sabe?!
— Sim.
— Era sua intenção dar-me este ouro?
— Era.
— E posso guardá-lo com a consciência tranqüila?
— Pode.
O porteiro olhou atônito para Monte Cristo.
— E honestidade — acrescentou o Conde, como Hamlet.
— Senhor — tornou o porteiro, que não ousava acreditar na sua sorte — Senhor, não compreendo a sua generosidade...
— É fácil de compreender, meu amigo — perguntou o Conde — Fui marinheiro e a sua história comoveu-me mais do que qualquer outra.
— Então, senhor — disse o guia — Já que é tão generoso, merece que lhe ofereça qualquer coisa.
— Que tem para me oferecer, meu amigo? Conchas, objetos de palha? Obrigado.
— Não, senhor; não, senhor! Qualquer coisa que se refere à história que lhe contei há pouco.
— Deveras?! — exclamou o Conde, entusiasmado — O quê?
— Ouça, vou contar-lhe o que aconteceu — disse o porteiro — Pensei aqui para comigo: “Encontra-se sempre qualquer coisa numa cela onde um prisioneiro permaneceu quinze anos...” E pus-me a sondar as paredes.
— Ah! — exclamou Monte Cristo lembrando-se do duplo esconderijo do abade — Com efeito.
— À força de procurar — continuou o porteiro — Descobri que a parede soava a oco à cabeceira da cama e na lareira da chaminé.
— Claro, claro — disse Monte Cristo.
— Levantei as pedras e encontrei...
— Uma escada de corda? Ferramentas? — antecipou-se o Conde.
— Como sabe? — perguntou o porteiro, surpreendido.
— Não sei, mas calculo — respondeu o Conde — Habitualmente‚ esse gênero de coisas que se encontra nos esconderijos dos prisioneiros.
— Exato, senhor, uma escada de corda e ferramentas — confirmou o guia.
— E ainda as tem? — perguntou Monte Cristo.
— Não, senhor. Vendi esses objetos, que eram muito curiosos, a visitantes. Mas resta-me outra coisa...
— O quê? — perguntou o Conde com impaciência.
— Resta-me uma espécie de livro escrito em tiras de pano.
— Oh, ainda tem esse livro?! — exclamou Monte Cristo.
— Não sei se é um livro — respondeu o porteiro — Mas ainda o tenho, como lhe disse.
— Vá buscá-lo, meu amigo, vá — pediu o Conde — E se for o que presumo, não se arrependerá...
— Vou num pé e venho noutro, senhor.
E o guia saiu.
Então, Monte Cristo foi ajoelhar-se piedosamente diante dos restos daquela cama de que a morte fizera para ele um altar.
— Oh meu segundo pai — disse — Tu que me deste a liberdade, a ciência e a riqueza; tu que, a exemplo das criaturas de essência superior à nossa, conhecias a ciência do bem e do mal, se no fundo da sepultura resta alguma coisa de nós que estremeça ao ouvir a voz daqueles que ficaram na Terra; se na transfiguração que sofre o cadáver alguma coisa animada paira nos lugares onde muito amamos e sofremos, nobre coração, espírito supremo, alma profunda, por uma palavra, por um sinal, por uma revelação qualquer, conjuro-te, em nome do amor paternal que me concedias e do respeito filial que te dedicava, a tirar-me este resto de dúvida que, a não se transformar em convicção, se transformar em remorso.
O Conde baixou a cabeça e juntou as mãos.
— Veja, senhor! — disse uma voz atrás dele.
Monte Cristo estremeceu e virou-se.
O porteiro estendia-lhe as tiras de pano em que o Abade Faria registrara todos os tesouros da sua ciência. Aquele manuscrito era a grande obra do Abade Faria acerca da realeza na Itália.
O Conde pegou-lhe sofregamente e os seus olhos pousaram em primeiro lugar na epígrafe. Leu: “Arrancará os dentes do dragão e calcarás aos pés os leões, disse o Senhor”.
— Ah, aqui está a resposta! — exclamou — Obrigado, meu pai, obrigado!
Depois disse, tirando da algibeira uma carteirinha que continha dez notas de mil francos cada uma:
— Tome, aceite esta carteira.
— O senhor a está me dando?
— Dou, mas com a condição de só ver o que tem dentro depois de me ir embora.
E apertando ao peito a relíquia que acabava de recuperar e que tinha para ele o valor do mais rico tesouro, saiu do subterrâneo e meteu-se na barca.
— Para Marselha! — ordenou.
E enquanto se afastava, disse com os olhos cravados na sombria prisão:
— Ai daqueles que me mandaram encerrar naquela prisão e daqueles que esqueceram que lá estive encerrado!
Quando voltou a passar diante dos Catalães, o Conde virou-se, envolveu a cabeça na capa e murmurou um nome feminino. A vitória era completa; o Conde vencera duas vezes a dúvida. O nome que pronunciara com uma expressão de ternura que era quase de amor fora o nome de Haydée.
Assim que pôs pé em terra, Monte Cristo dirigiu-se para o cemitério, onde sabia encontrar Morrel. Também ele, dez anos antes, procurara piedosamente uma sepultura naquele cemitério, e procurara-a em vão. Ele, que regressava a França com milhões, não conseguira encontrar a sepultura do pai morto de fome.
Morrel bem mandara lá colocar uma cruz, mas a cruz caíra e o coveiro queimara-a, como fazem todos os coveiros a toda a madeira velha que encontram caída nos cemitérios. O digno negociante fora mais feliz: morto nos braços dos filhos, fora, levado por eles, dormir o sono eterno junto da mulher, que o precedera dois anos na eternidade.
Duas grandes lajes de mármore com os seus nomes encontravam-se colocadas uma ao lado da outra num pequeno recinto fechado por uma balaustrada de ferro e sombreado por quatro ciprestes. Maximilien estava encostado a uma das árvores e olhava sem ver para as duas sepulturas. A sua dor era profunda, quase desvairada.
— Maximilien, não é para aí que deve olhar, é para ali — disse-lhe o Conde, indicando-lhe o céu.
— Os mortos estão em toda a parte — perguntou Morrel — Não foi o que me disse quando me trouxe de Paris?
— Maximilien — disse o Conde — Pediu-me durante a viagem que lhe permitisse ficar uns dias em Marselha. Continua a ser essa a sua vontade?
— Já não tenho vontade, Conde, mas parece-me que esperarei menos penosamente aqui do que em outro lugar.
— Tanto melhor, Maximilien, porque vou deixá-lo, mas levo comigo a sua palavra, não é verdade?
— Oh, a esquecerei, Conde, a esquecerei! — respondeu Morrel.
— Não, não a esquecerá porque acima de tudo é um homem honrado, Morrel; porque jurou e porque vai jurar novamente.
— Conde, tenha compaixão de mim! Sou tão infeliz, Conde!
— Conheci um homem mais infeliz do que o senhor, Morrel.
— Impossível.
— Claro! — exclamou Monte Cristo — É um dos orgulhos da nossa pobre humanidade cada homem julgar-se mais infeliz do que outro infeliz que chora e geme a seu lado.
— Quem pode ser mais infeliz do que o homem que perdeu o único bem que amava e desejava no mundo?
— Ouça, Morrel — disse Monte Cristo — E fixe um instante o espírito no que lhe vou dizer. Conheci um homem que, tal como o senhor, depositara todas as suas esperanças de felicidade numa mulher. Esse homem era novo e tinha um velho pai que amava e uma noiva que adorava. Ia casar com ela quando de súbito um desses caprichos do destino que fariam duvidar da bondade de Deus se Deus se não revelasse mais tarde mostrando que tudo é para ele um meio de conduzir à sua unidade infinita, quando de súbito um capricho do destino lhe roubou a liberdade, a amada e o futuro com que sonhava e que julgava pertencer-lhe, pois, cego como estava, só podia ler no presente, e o lançou no fundo de uma masmorra.
— Pois sim, mas sai-se de uma masmorra ao fim de oito dias, de um mês, de um ano... — observou Morrel.
— Ele ficou lá catorze anos, Morrel — disse o Conde, pousando a mão no ombro do rapaz.
Maximilien estremeceu.
— Catorze anos!... — murmurou.
— Catorze anos — repetiu o Conde — Também ele, durante esses catorze anos, teve muitos momentos de desespero. Também ele, como o senhor, Morrel, julgando-se o mais infeliz dos homens, quis se matar.
— E depois? — perguntou Morrel.
— E depois? No momento supremo Deus se revelou por um meio humano. Porque Deus já não faz milagres. Talvez à primeira vista, os olhos velados de lágrimas precisam de tempo para se abrir por completo, não tenha compreendido a misericórdia infinita do Senhor, mas enfim, encheu-se de paciência e esperou. Um dia saiu miraculosamente da tumba, transfigurado, rico, poderoso, quase um deus. O seu primeiro pensamento foi para o pai, mas o pai morrera!
— A mim também me morreu o meu pai — observou Morrel.
— Sim, mas o seu pai morreu-lhe nos braços, amado, feliz, respeitado, rico, vergado ao peso dos anos, ao passo que o pai dele morrera pobre, desesperado, duvidando de Deus; e quando dez anos depois da sua morte o filho lhe procurou a sepultura, a sua própria sepultura desaparecera e ninguém lhe pôde dizer: “É aqui que repousa no Senhor o coração que tanto te amou”.
— Oh! — exclamou Morrel.
— Ele era portanto mais infeliz filho do que o senhor, Morrel, pois nem sequer sabia onde fora sepultado o pai.
— Mas — disse Morrel — Restava-lhe a mulher que amara, ao menos.
— Engana-se, Morrel. Essa mulher...
— Também morrera? — atalhou Maximilien.
— Pior do que isso: fora infiel, casara com um dos perseguidores do noivo. Bem vê, Morrel, que esse homem era mais infeliz, como apaixonado, do que o senhor...
— E Deus mandou consolação a esse homem? — perguntou Morrel.
— Mandou-lhe pelo menos calma.
— E esse homem ainda poderá ser feliz um dia?
— Tem essa esperança, Maximilien.
O jovem deixou cair a cabeça para o peito.
— Tem a minha promessa — disse, após um instante de silêncio e estendendo a mão a Monte Cristo — Mas lembre-se...
— Em 5 de Outubro, Morrel, espero-o na Ilha de Monte Cristo. Em 4, um iate o esperará no porto de Bástia; um iate chamado Eurus. Apresente-se ao capitão, que o levar junto de mim. Está combinado, não é verdade, Maximilien?
— Está combinado e farei o que está combinado. Mas lembre-se que em 5 de Outubro...
— Criança que ainda não sabe o que é a promessa de um homem... já lhe disse vinte vezes que nesse dia, se quiser morrer, até o ajudarei, Morrel. Adeus.
— Deixa-me?
— Deixo. Tenho que ir a Itália. Deixo-o sozinho, sozinho em luta com a desventura, sozinho com essa águia de asas poderosas que o Senhor envia aos seus eleitos para os transportar a seus pés. A história de Ganimedes não é uma fábula, Maximilien, é uma alegoria.
— Quando parte?
— Imediatamente. O navio a vapor espera-me e daqui a uma hora já estarei longe de si. Acompanha-me até ao porto, Morrel?
— Estou às suas ordens, Conde.
— Abrace-me.
Morrel acompanhou o Conde até ao porto. O fumo já saía como um penacho imenso da chaminé negra que o lançava ao céu. Pouco depois o navio partiu, e uma hora mais tarde, como dissera Monte Cristo, o mesmo penacho de fumo esbranquiçado raiava, quase invisível, o horizonte oriental, escurecido pelas primeiras neblinas da noite.




continua... 






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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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