domingo, 23 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 107




CVII

O COVIL DOS LEÕES

  



U
ma das seções da Force, aquela que encerra os presos mais comprometidos e perigosos, chama-se o Pátio de São Bernardo. Na sua linguagem pitoresca, os presos deram-lhe o nome de Covil dos Leões, provavelmente porque os reclusos têm dentes que mordem muitas vezes as grades e não raro os guardas. É uma prisão dentro da prisão; as paredes têm o dobro da espessura das outras. Todos os dias um carcereiro verifica cuidadosamente as grades maciças, e reconhece-se pela estatura hercúlea e pelo olhar frio e penetrante dos guardas que foram escolhidos para reinar sobre o seu povo pelo terror e pela rapidez dos reflexos.
O pátio da seção está rodeado de muros altíssimos sobre os quais desliza obliquamente o sol quando se decide a penetrar naquele abismo de fealdades morais e físicas. E ali, no pavimento empedrado, que desde a alvorada vagueiam, pensativos, assustados, pálidos, como sombras, os homens que a justiça mantém curvados sob o cutelo que afia. Vêem-nos encostar-se e agachar-se ao longo do muro que absorve e retém mais calor, e ficarem para ali, conversando dois a dois, ou, na maioria dos casos, isolados, com o olhar constantemente atraído para a porta, que se abre a fim de chamarem algum dos habitantes do lúgubre recinto ou lançarem no abismo mais escória expelida pelo cadinho da sociedade.
O Pátio de São Bernardo tem o seu parlatório particular. Trata-se de um quadrilátero grande, dividido em duas partes por outros tantos gradeamentos colocados paralelamente a três pés um do outro, de forma que o viajante não possa apertar a mão ao preso ou passar-lhe qualquer coisa. O parlatório é sombrio, úmido e sob todos os aspectos, horrível, sobretudo se pensarmos nas espantosas confidências que têm passado por aquelas grades e enferrujado o ferro dos varões.
Mesmo assim, por mais horrível que seja, o local é o paraíso onde vêm retemperar-se numa companhia desejada, apreciada, os homens que têm os dias contados. E tão raro sair-se do Covil dos Leões para qualquer outro lado que não seja a Barreira de Saint-Jacques, as galés ou a prisão celular!
No pátio que acabamos de descrever, e onde imperava uma umidade fria, passeava de mãos nas algibeiras um rapaz observado com muita curiosidade pelos habitantes do Covil. Passaria por um homem elegante, graças ao corte da sua indumentária, se essa indumentária não estivesse em farrapos, embora tal estado se não devesse ao uso. Na verdade, o tecido, fino e sedoso nos lugares intactos, recuperava facilmente o lustro debaixo da mão acariciadora do preso, que procurava transformá-lo num traje novo. Aplicava o mesmo cuidado a fechar uma camisa de cambraia que mudara consideravelmente de cor desde a sua entrada na prisão, e passava pelas botas de verniz a ponta de um lenço com iniciais bordadas e encimadas por uma coroa heráldica.
Certos hóspedes do Covil dos Leões observavam com notório interesse os requintes de toilette do preso.
— Olha, lá está o príncipe a pôr-se bonito — comentou um dos ladrões.
— Já é muito bonito naturalmente — disse outro — E se tivesse só que fosse um pente e brilhantina eclipsaria todos os cavalheiros de luvas brancas.
— A casaca devia ser novinha em folha e as botas ainda reluzem lindamente. Para nós é lisonjeiro ter camaradas tão tirados das canelas. Os bandidos dos guardas são bem reles... invejosos! Rasgarem uma roupa daquelas!
— Parece que é um dos águias — disse outro — Já fez de tudo, e em grande... apesar de tão novo, até já esteve nas galés! Que tipo!
E o alvo desta admiração horrível parecia saborear os elogios, ou o murmúrio dos elogios, pois não ouvia as palavras. Terminada a toilette, aproximou-se do guiche da cantina, ao qual se encontrava encostado um guarda, a quem disse:
— Por favor, senhor, empreste-me vinte francos. Os pagarei em breve. Comigo ninguém corre riscos... lembre-se de que tenho parentes que possuem mais milhões do que o senhor soldos... então, vinte francos, por favor. Para alugar um quarto particular e comprar um roupão. Custa-me horrivelmente andar sempre de casaca e botas. E que casaca, senhor, para um príncipe Cavalcanti!...
O guarda virou-lhe as costas e encolheu os ombros. Nem sequer riu do palavreado, que teria desenrugado todas as testas; porque já ouvira muitos outros, ou antes, sempre ouvira a mesma coisa.
— Está bem, o senhor é um homem sem entranhas e lhe farei perder o seu lugar — ameaçou Andréa.
Esta saída fez virar o guarda, que desta vez soltou uma ruidosa gargalhada. Então os outros presos aproximaram-se e formaram círculo.
— Garanto-lhe — continuou Andréa — Que com essa miserável importância poderei comprar uma casaca e alugar um quarto, a fim de receber decentemente a visita ilustre que espero, mais dia, menos dia.
— Tem razão! Tem razão! — gritaram os presos — Demônio, vê-se bem que é um homem de classe.
— Então emprestem-lhe os vinte francos — perguntou o guarda. Apoiando-se no seu outro ombro colossal — Não acham que devem isso a um camarada?
— Eu não sou camarada desta gente — replicou orgulhosamente o jovem — Não me insulte, não tem esse direito.
Os ladrões entreolharam-se no meio de murmúrios abafados, e uma tempestade, levantada pela provocação do guarda, mais ainda do que pelas palavras de Andréa, começou a bramir sobre o preso aristocrata.
O guarda, certo de fazer o quos ego quando as vagas se tornassem demasiado alterosas, deixou-as crescer pouco a pouco para dar uma lição ao importuno solicitador e divertir-se um bocado durante o longo dia de guarda. Os ladrões começaram a aproximar-se de Andréa; uns gritavam:
— O chinelo! O chinelo!
Cruel operação que consiste em moer de pancada, não com um chinelo, mas sim com um sapato ferrado, um companheiro caído em desgraça. Outros propunham a “enguia”, gênero de divertimento que consiste em encher de areia, seixos ou soldos, quando os há, um lenço torcido, que os carrascos descarregam como um chicote nas costas e na cabeça do paciente.
— Chicoteemos o lindo cavalheiro! — gritaram alguns — O senhor honesto!...
Mas Andréa virou-se para eles, piscou o olho, inflou a face com a língua e fez ouvir esse estalido de lábios que equivale a mil sinais de inteligência entre os bandidos impedidos de falar.
Era um sinal maçônico que lhe ensinara Caderousse. Os outros reconheceram um dos seus. Os lenços desceram imediatamente; o sapato ferrado regressou ao pé do principal carrasco. Ouviram-se algumas vozes proclamar que aquele senhor tinha razão, que aquele senhor podia ser honesto à sua maneira, e que os presos queriam dar o exemplo da liberdade de consciência.
O temporal amainou.
O guarda ficou de tal modo estupefato que agarrou imediatamente Andréa pelas mãos e pôs-se a revistá-lo, atribuindo a alguma manifestação mais significativa do que a fascinação a mudança súbita dos habitantes do Covil dos Leões.
Andréa deixou-se revistar, embora protestando.
De súbito, soou uma voz ao guichê.
— Benedetto! — gritou um inspetor.
O guarda largou a presa.
— Quem me chama? — perguntou Andréa.
— Ao parlatório! — respondeu a voz.
— Vê como vêm visitar-me? Ah, meu caro senhor, vai ver se se pode tratar um Cavalcanti como um homem vulgar!
E Andréa, deslizando pelo pátio como uma sombra negra, correu para a porta do guichê, que se encontrava entreaberta, deixando embasbacados os companheiros e o próprio guarda.
Chamavam-no efetivamente ao parlatório, o que não deveria causar menos admiração do que ao próprio Andréa; porque o astucioso rapaz, desde a sua entrada na Force, em vez de utilizar, como a maioria dos companheiros, a faculdade de escrever para pedir auxílio, guardara o mais estóico silêncio.
— Sou — dizia ele — Evidentemente protegido por alguém poderoso; tudo me prova. Aquela fortuna súbita, a facilidade com que aplanei todos os obstáculos, uma família improvisada, um nome ilustre tornado meu, o ouro chovendo sobre mim, as alianças mais magníficas prometidas à minha ambição... um infeliz esquecimento da minha sorte, uma ausência do meu protetor perdeu-me, sim, mas não por completo nem para sempre! A mão retirou-se por um momento, mas deve estender-se para mim e agarrar-me de novo quando me julgar prestes a cair no abismo. Porque arriscaria um passo imprudente? Talvez me alienasse o protetor! Tem duas maneiras de me tirar de apuros: a evasão misteriosa, paga a peso de ouro, e forçar a mão aos juízes para obter uma absolvição. Esperemos para falar, para agir, que me seja provado que me abandonaram por completo, e então...
Andréa traçara um plano que se podia considerar hábil; o miserável era intrépido no ataque e duro na defesa. Suportara a miséria, da prisão comum, as privações de todo o gênero, no entanto, pouco a pouco, o natural, ou antes, o hábito, voltara à superfície. Andréa sofria por andar nu, sujo e faminto, a espera prolongava-se. Foi nesse momento de desânimo que a voz do inspetor o chamou ao parlatório.
Andréa sentiu o coração pular-lhe de alegria. Era demasiado cedo para se tratar da visita do juiz de instrução e demasiado tarde para ser uma chamada do diretor da prisão ou do médico. Era, portanto a visita esperada.
Através do gradeamento do parlatório, onde foi introduzido, viu, com os olhos dilatados por uma curiosidade vida, o rosto sombrio e inteligente do Sr. Bertuccio, que olhava também, mas com uma espécie de surpresa dolorosa, as grades, as portas aferrolhadas e a sombra que se agitava atrás dos varões entrecruzados.
— Ah! — exclamou Andréa, impressionado.
— Bom dia, Benedetto — disse Bertuccio na sua voz cava e sonora.
— O senhor! O senhor! — exclamou o rapaz, olhando com terror à sua volta.
— Não me reconhece, pobre criança? — perguntou Bertuccio.
— Silêncio! Mas silêncio mesmo! — ordenou Andréa, que conhecia a finura de ouvido das paredes — Meu Deus, meu Deus, não fale tão alto!
— Gostaria de conversar comigo a sós, não é verdade?  — perguntou Bertuccio.
— Oh, sim! — respondeu Andréa.
— Está bem.
E Bertuccio procurou qualquer coisa na algibeira e fez sinal a um guarda que se encontrava atrás do vidro do guichê.
— Leia — disse.
— Que é isso? — perguntou Andréa.
— Ordem para te conduzirem a um quarto, te instalarem e deixarem-me comunicar contigo.
— Oh! — exclamou Andréa, pulando de alegria.
E, concentrando-se imediatamente em si mesmo, disse para consigo: “Novamente o protetor desconhecido! Não me esqueceram! Procuram o segredo, uma vez que querem conversar comigo num quarto isolado. Tenho-os na mão... Bertuccio foi enviado pelo protetor”.
O guarda conferenciou um momento com um superior, depois abriu as duas portas gradeadas e conduziu Andréa a um quarto do primeiro andar, com vista para o pátio. O rapaz não cabia em si de contente.
Tratava-se de um quarto caiado, como é habitual nas prisões. Tinha um ar alegre, que pareceu radioso ao preso: um fogão de aquecimento, uma cama, uma cadeira e uma mesa constituíam o mobiliário suntuoso.
Bertuccio sentou-se na cadeira.
Andréa atirou-se para cima da cama.
O guarda retirou-se.
— Vejamos, que tem para me dizer? — perguntou o intendente.
— E o senhor? — perguntou por seu turno Andréa.
— Fale primeiro...
— Oh, não! O senhor é que deve ter muito para me dizer, uma vez que veio me procurar.
— Está bem, seja! Continuou a carreira dos seus crimes: roubou, assassinou...
— Bom, se foi para me dizer isso que me fez passar para um quarto particular, não era necessário se incomodar. Sei tudo isso. Mas há outras coisas que não sei. Falemos dessas, se não se importa. Quem o mandou aqui?
— Oh, oh, vai muito depressa, Sr. Benedetto!...
— E ao fim, não é verdade? Sobretudo, poupemos as palavras inúteis. Quem o mandou aqui?
— Ninguém.
— Como soube que estava preso?
— Há muito tempo que te reconheci no elegante insolente que freqüentava tão graciosamente a cavalo a Champs-Élysées.
— A Champs-Élysées!... Ah, ah, começamos a pôr os trunfos na mesa, como se diz ao jogo!... A Champs-Élysées... muito bem, falemos um pouco do meu pai, quer?
— E que sou eu?
— O senhor, meu caro, é o meu pai adotivo... mas calculo que não foi o senhor que dispôs a meu favor de uma centena de milhar de francos que devorei em quatro ou cinco meses; nem o senhor que me arranjou um pai italiano e fidalgo; nem o senhor que me fez entrar na sociedade e me convidou para certo jantar, que julgo saborear ainda, em Auteuil, com a melhor companhia de Paris e certo Procurador Régio de que fiz muito mal não cultivar a amizade, que me seria agora tão útil neste momento; nem o senhor, enfim, quem me caucionou por um ou dois milhões quando me aconteceu o acidente fatal que levou à descoberta da marosca... vamos, fale, respeitável corso, fale...
— Que quer que te diga?
— Eu o ajudo. Há pouco referiu-se a Champs-Élysées, meu digno pai adotivo.
— E depois?
— E depois... na Champs-Élysées reside um cavalheiro muito, muito rico...
— Em casa de quem roubou e assassinou, não é verdade?
— Creio que sim.
— O Sr. Conde de Monte Cristo?
— Foi o senhor que lhe citou o nome, como diz o Sr. Racine... bom, devo lançar-me nos seus braços, apertá-lo muito ao peito e gritar: “Meu pai! Meu pai!”, como diz o Sr. Pixerecourt?
— Deixemos de gracejos — replicou gravemente Bertuccio — E que semelhante nome não seja pronunciado aqui como te atreveste a pronunciá-lo.
— Ora, ora! — exclamou Andréa, um pouco aturdido com a solenidade de Bertuccio — Por que não?
— Porque a pessoa que usa esse nome está demasiado nas boas graças do céu para ser o pai de um miserável como você.
— Oh, lá vêm as grandes palavras!...
— E de grandes efeitos, se não se acautelar!
— Ameaças!... Não as temo. Direi...
— Julga que está lidando com pigmeus da tua espécie? — perguntou Bertuccio num tom tão calmo e com um olhar tão firme que Andréa ficou perturbado até ao fundo das entranhas — Julga que está lidando com os teus habituais companheiros das galés ou com os papalvos da sociedade?... Benedetto, está em poder de uma mão terrível, mão que quer se abrir em seu proveito; aproveita a oportunidade. Não brinque com o raio que ela largou por um instante, mas em que pode voltar a pegar se tentar prejudicar-lhe a liberdade de movimentos.
— O meu pai... quero saber quem é o meu pai? — insistiu o teimoso — Morrerei por isso, se for preciso, mas o saberei. Que me interessa a mim o escândalo, o bem... a reputação... a fama... como diz Beauchamp, o jornalista? Mas vocês, gente da alta, têm sempre alguma coisa a perder com o escândalo, apesar dos seus milhões e dos seus títulos nobiliárquicos... portanto, quem é o meu pai?
— Vim aqui para lhe dizer.
— Sim?! — exclamou Benedetto com os olhos cintilantes de alegria.
Neste momento a porta abriu-se e o carcereiro dirigiu-se a Bertuccio:
— Perdão, senhor, mas o juiz de instrução espera o preso.
— É o encerramento do meu interrogatório — disse Andréa ao digno intendente — Ao diabo o importuno!
— Voltarei amanhã — disse Bertuccio.
— Pois sim — respondeu Andréa — Senhor guarda, estou à sua disposição... ah, querido senhor, deixe uma dezena de escudos na mesa para que me forneçam aqui o que precisar!
— Assim farei — respondeu Bertuccio.
Andréa estendeu-lhe a mão. Bertuccio conservou a sua na algibeira e limitou-se a fazer soar algumas moedas de prata.
— Era o que queria dizer — declarou Andréa, esboçando um sorriso, que mais parecia uma careta, mas completamente subjugado pela estranha tranqüilidade de Bertuccio.
Ter-me-ei enganado?”, pensou ao subir para a carruagem oblonga e gradeada a que os presos chamavam a Ramona. “Veremos...”
— Então, até amanhã! — gritou, virando-se para Bertuccio.
— Até amanhã! — respondeu o intendente.




  continua...





________________________________________________________
Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.