quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 110



CX

O LIBELO ACUSATÓRIO




O
s juízes sentaram-se no meio do mais profundo silêncio; os jurados ocuparam os seus lugares: o Sr. de Villefort, alvo da atenção, e diremos quase da admiração geral, sentou-se de cabeça coberta na sua poltrona e passeou um olhar tranqüilo à sua volta. Todos olhavam com admiração aquela figura grave e severa, sobre cuja impassibilidade os sofrimentos paternais pareciam não ter qualquer influência, e também observavam com uma espécie de terror aquele homem estranho às emoções da humanidade.
— Guardas, tragam o réu! — ordenou o juiz-presidente.
Após estas palavras, a atenção do público redobrou e todos os olhares se fixaram na porta por onde Benedetto devia entrar. Em breve essa porta se abriu e o réu apareceu.
A impressão que causou foi a mesma em toda a gente e ninguém se enganou com a expressão da sua fisionomia. O seu rosto não apresentava sinais dessa emoção profunda que faz refluir o sangue ao coração, descora a testa e as faces. As suas mãos, graciosamente pousadas, uma em cima do chapéu e a outra na abertura do colete de pique branco, não eram agitadas por nenhuma tremura; os seus olhos estavam calmos e até brilhantes. Assim que entrou na sala, o olhar do rapaz começou a percorrer todas as filas dos juízes e da assistência, e demorou-se mais longamente no presidente e, sobretudo no Procurador Régio.
Ao pé de Andréa sentou-se o seu advogado, advogado oficioso porque Andréa não quisera ocupar-se de tais pormenores, aos quais parecera não ligar nenhuma importância, um homem novo, de cabelo louro-deslavado e cara avermelhada por uma emoção cem vezes mais notória do que a do réu.
O presidente pediu a leitura do libelo acusatório, redigido, como sabemos, pela pena tão hábil como implacável de Villefort. Durante a leitura, que foi longa e que para qualquer outro seria acabrunhante, a atenção pública não cessou de incidir sobre Andréa, que lhe suportou o peso com a grandeza de alma de um espartano.
Talvez Villefort nunca tivesse sido tão conciso nem tão eloqüente. O crime era apresentado sob as cores mais vivas; os antecedentes do réu, a sua transfiguração, a filiação dos seus atos desde uma idade bastante tenra, eram deduzidos com o talento que a prática da vida e o conhecimento do coração humano podiam fornecer a um espírito tão elevado como o do Procurador Régio.
Só com aquele preâmbulo, Benedetto estava para sempre perdido no conceito da opinião pública, que esperava vê-lo punido mais materialmente pela Lei.
Andréa não prestou a mais pequena atenção às acusações que sucessivamente se erguiam e desabavam sobre ele. O Sr. de Villefort, que o observava com freqüência e que sem dúvida continuava nele os estudos psicológicos que tantas vezes tivera ensejo de fazer nos acusados, o Sr. de Villefort não conseguiu uma só vez obrigá-lo a baixar os olhos, fosse qual fosse a fixidez e a profundidade do seu olhar.
Por fim a leitura terminou.
— Levante-se o réu! Como se chama? — perguntou o presidente.
Andréa levantou-se.
— Perdoe-me, Sr. Presidente — disse numa voz cujo timbre vibrava perfeitamente puro — Mas vejo que vai adotar uma ordem de perguntas em que o não posso seguir. Pretendo justificar mais tarde ser uma exceção aos réus vulgares. Peço-lhe, portanto se digne permitir-me responder seguindo uma ordem diferente ou não responderei a nenhuma pergunta.
O presidente, surpreendido, olhou para os jurados, que olharam para o Procurador Régio. Uma grande surpresa manifestou-se em toda a assembléia, mas Andréa não pareceu nada impressionado com isso.
— A sua idade? — continuou o presidente — Responde a esta pergunta?
— A essa pergunta, como às outras, responderei, Sr. Presidente, mas na sua vez.
— A sua idade? — repetiu o magistrado.
— Tenho vinte e um anos, ou antes os terei apenas daqui a uns dias, pois nasci na noite de 27 para 28 de Setembro de 1817.
O Sr. de Villefort, que estava tomando um apontamento, levantou a cabeça ao ouvir esta data.
— Onde nasceu? — continuou o presidente.
— Em Auteuil, perto de Paris — respondeu Benedetto.
O Sr. de Villefort levantou segunda vez a cabeça, olhou para Benedetto como se olhasse para a cabeça de Medusa e empalideceu.
Quanto a Benedetto, passou graciosamente pelos lábios a ponta bordada de um lenço de cambraia fina.
— A sua profissão? — perguntou o presidente.
— Primeiro fui falsário — respondeu Andréa com a maior tranqüilidade do mundo — Em seguida fui ladrão e muito recentemente tornei-me assassino.
Um murmúrio, ou antes, uma tempestade de indignação e surpresa ergueu-se em todos os pontos da sala. Os próprios juízes se entreolharam estupefatos e os jurados manifestaram a maior repugnância por aquele cinismo, tão pouco esperado num homem elegante.
O Sr. de Villefort pôs a mão na testa que de pálida se tornara vermelha e fervilhante. De súbito levantou-se e olhou à sua volta como um homem alucinado. Faltava-lhe o ar.
— Procura alguma coisa, Sr. Procurador Régio? — perguntou Benedetto com o seu mais obsequioso sorriso.
O Sr. de Villefort não respondeu e recompôs-se, ou antes voltou a deixar-se cair na sua poltrona.
— Será agora que estará disposto a dizer o seu nome? — perguntou o presidente ao réu — A afetação brutal com que enumerou os seus vários crimes, que qualificou de confissão, e a espécie de ponto de honra que lhe atribui, coisa por que, em nome da moral e do respeito devido à humanidade, o tribunal o deve repreender severamente, são talvez o motivo que o levaram a não dizer imediatamente o seu nome; quis salientar esse nome com os títulos que o precedem.
— É incrível, Sr. Presidente — perguntou Benedetto, no tom de vez mais gracioso e com as maneiras mais delicadas — Como leu no fundo do meu pensamento. Foi, com efeito com esse fim que lhe pedi que invertesse a ordem das perguntas.
O espanto atingira o cúmulo, já não havia nas palavras do réu nem bravata, nem cinismo. Impressionado, o auditório pressentia qualquer raio fulminante no fundo daquela nuvem sombria.
— Pois bem, o seu nome? — perguntou o presidente.
— Não posso lhe dizer o meu nome porque não sei; mas sei o do meu pai e esse posso dizer-lhe.
Um deslumbramento doloroso cegou Villefort; viram-se cair das faces gotas de suor ácidas e rápidas em cima dos papéis que revolvia com mão convulsa e desorientada.
— Diga então o nome do seu pai — prosseguiu o presidente.
Nem uma aragem. Nem um sopro, perturbavam o silêncio da imensa assembléia.
Todos esperavam.
— O meu pai é o Procurador Régio — respondeu tranquilamente Andréa.
— Procurador Régio?! — exclamou com estupefação o presidente, sem notar a transformação que se operava no rosto de Villefort — Procurador Régio?!
— Sim, e uma vez que deseja saber o seu nome, vou dizer-lhe: chama-se Villefort!
A explosão tão longamente contida pelo respeito que em audiência se dispensa à justiça brotou como um trovão do fundo de todos os peitos; o próprio tribunal não pensou em reprimir aquele movimento da multidão. As interjeições e as injúrias dirigidas a Benedetto, que permanecia impassível, os gestos enérgicos, a agitação dos guardas e o riso escarninho da parte lodosa que em todas as assembléias sobe à superfície nos momentos de perturbação e escândalo, tudo isso durou cinco minutos antes que os magistrados e os oficiais de diligências conseguissem restabelecer o silêncio.
No meio de todo aquele barulho ouvia-se a voz do presidente, que gritava:
— O réu zomba da justiça e ousa dar aos seus concidadãos o espetáculo de uma corrupção que, numa época que, no entanto não deixa nada a desejar a tal respeito, ainda não teve igual!
Dez pessoas afadigavam-se junto do Sr. Procurador Régio, semi-esmagado na sua poltrona, e enchiam-no de palavras de conforto e encorajamento e de protestos de zelo e simpatia. A calma restabelecera-se na sala, excetuando num ponto onde um grupo bastante numeroso se agitava e cochichava.
Dizia-se que uma mulher acabava de desmaiar; tinham-na feito respirar sais e voltara a si. Durante o tumulto, Andréa virara-se sorridente para o público. Por fim, colocara uma das mãos na balaustrada de carvalho do seu lugar, numa atitude deveras graciosa, e dissera:
— Meus senhores, Deus não permitiria que me atrevesse a insultar o tribunal e a armar na presença do respeitável público um escândalo inútil. Perguntaram-me que idade tinha e eu o disse; perguntaram-me onde nasci e eu respondi; perguntaram-me o meu nome e eu não posso dizê-lo, porque os meus pais abandonaram-me. Mas posso, sem dizer o meu nome, porque o não sei, dizer o do meu pai. Ora, repito, o meu pai é o Sr. de Villefort e estou pronto a prová-lo.
Havia no tom do jovem uma certeza, uma convicção, uma energia, que reduziram o tumulto ao silêncio. Os olhares dirigiram-se por um momento para o Procurador Régio, que conservava no seu lugar a imobilidade de um homem que o raio acabasse de transformar em cadáver.
— Meus senhores — continuou Andréa, impondo silêncio com o gesto e com a voz — Devo-lhes a prova e a explicação das minhas palavras.
— Mas — gritou o presidente, irritado — O réu declarou na instrução chamar-se Benedetto, disse ser órfão e deu a Córsega como sua pátria!
— Disse na instrução o que me conveio dizer na instrução, pois não queria que diminuíssem ou impedissem, o que não deixaria de acontecer, a repercussão solene que pretendia dar às minhas palavras. Agora repito-lhes que nasci em Auteuil na noite de 27 para 28 de Setembro de 1817 e que sou filho do Sr. Procurador Régio Villefort. Querem pormenores? Vou dar-lhes. Nasci no primeiro andar da casa número 28 da Rua da Fontaine, num quarto forrado de damasco vermelho. O meu pai tomou-me nos braços dizendo à minha mãe que eu estava morto, enrolou-me numa toalha marcada com um H e um N e levou-me para o jardim, onde me enterrou vivo.
Um arrepio percorreu todos os presentes quando viram que a segurança do réu crescia para do pânico do Sr. de Villefort.
— Mas como sabe o réu todos esses pormenores? — perguntou o presidente.
— Vou dizer-lhe, Sr. Presidente. No jardim onde o meu pai acabava de me enterrar introduzira-se naquela mesma noite um homem que o odiava mortalmente e que o perseguia havia muito tempo para se vingar nele à maneira corsa. O homem estava escondido num maciço, viu o meu pai enterrar qualquer coisa e apunhalou-o no meio dessa operação. Depois, julgando que o que fora enterrado fosse algum tesouro, abriu a cova e encontrou-me ainda vivo. Esse homem levou-me pro Albergue das Crianças Abandonadas, onde me inscreveram sob o número 57. Três meses depois a irmã do meu salvador veio de Rogliano a Paris procurar-me, reclamou-me como seu filho e levou-me. Aqui está como, apesar de nascido em Auteuil, fui criado na Córsega.
Houve um instante de silêncio, mas de um silêncio tão profundo que, sem a ansiedade que pareciam respirar mil peitos, se julgaria a sala vazia.
— Continue — disse a voz do presidente.
— Claro — prosseguiu Benedetto — Que poderia ter sido feliz em casa dessa boa gente, que me adorava. Mas a minha natural perversidade levou a melhor sobre todas as virtudes que a minha mãe adotiva tentou incutir-me. Cresci no mal e cheguei ao crime. Por fim, num dia em que amaldiçoava Deus por me ter feito tão mau e ter-me dado destino tão horrível, o meu pai adotivo disse-me: “Não blasfeme, desgraçado, pois Deus deu-te a vida sem cólera! O crime vem do teu pai e não de ti; do teu pai que te votou ao Inferno, se morresse, e à miséria, se um milagre te restituísse à vida!” Desde então deixei de blasfemar contra Deus a amaldiçoei o meu pai. Por isso proferi aqui as palavras que me censurou, Sr. Presidente; por isso causei o escândalo que ainda faz tremer esta assembléia. Se se trata de mais um crime, punam-me por ele; mas se estão convencidos, se consegui convencê-los de que desde o dia do meu nascimento o meu destino era fatal, doloroso, amargo, lamentável, se compadeçam de mim!
— Mas a sua mãe? — perguntou o presidente.
— A minha mãe julgava-me morto; a minha mãe não é de modo algum culpada. Não procurei saber o nome da minha mãe; não a conheço.
Neste momento soou um grito agudo, que terminou num soluço, no meio do grupo que rodeava, como já dissemos, uma mulher. Essa mulher teve um violento ataque de nervos e foi levada do pretório. Enquanto a levavam, o véu espesso que lhe cobria o rosto afastou-se e reconheceu-se a Sra. Danglars.
Apesar do acabrunhamento, dos seus sentidos embotados e do zumbido que lhe vibrava aos ouvidos; apesar da espécie de loucura que lhe perturbava o cérebro, Villefort reconheceu-a e levantou-se.
— As provas! As provas! — exigiu o presidente — Lembre-se o réu de que essa teia de horrores precisa de ser comprovada por provas esmagadoras.
— As provas? — perguntou Benedetto, rindo — Quer provas?...
— Quero.
— Então olhe pro Sr. de Villefort e depois diga-me se ainda quer que lhe dê provas.
Todos se voltaram para o Procurador Régio, que, sob o peso de mil olhares cravados em si, avançou para o recinto do tribunal, cambaleante, com o cabelo em desordem e o rosto congestionado devido à pressão das unhas. A assistência em peso soltou um longo murmúrio de espanto.
— Pedem-me provas, meu pai — disse Benedetto — Quer que as dê?
— Não, não — balbuciou o Sr. de Villefort em voz estrangulada — Não, é inútil.
— Como, inútil?! — exclamou o presidente — Que quer dizer?
— Quero dizer — disse o Procurador Régio — Que me debato em vão sob a pressão mortal que me esmaga, senhores; estou, reconheço-o, na mão do Deus vingador. Nada de provas; não são necessárias. Tudo o que este rapaz acaba de dizer, é verdade!
Um silêncio sombrio e pesado como o que precede as catástrofes da natureza envolveu no seu manto de chumbo todos os presentes, cujos cabelos se lhes punham em pé na cabeça.
— O quê, Sr. de Villefort — gritou o presidente — Não estará a ser vítima de uma alucinação?! Tem certeza de que se encontra na plenitude das suas faculdades? Concebe-se que uma acusação tão estranha, tão imprevista, tão terrível, lhe tenha perturbado o espírito... vamos, domine-se!
O Procurador Régio abanou a cabeça. Os seus dentes entrechocavam-se com violência, como os de um homem devorado pela febre, e, no entanto estava de uma palidez mortal.
— Estou no gozo de todas as minhas faculdades, senhor — respondeu — Só o corpo sofre, o que se compreende. Reconheço-me culpado de tudo o que este rapaz acaba de dizer contra mim e coloco-me desde já ao dispor, em minha casa, do Sr. Procurador Régio meu sucessor.
E depois de pronunciar estas palavras em voz surda e quase abafada, o Sr. de Villefort dirigiu-se vacilante para a porta, que o oficial de diligência de serviço lhe abriu num gesto maquinal.
Toda a assistência ficou muda e consternada com revelação e a confissão que davam um desenlace tão terrível às várias peripécias que havia quinze dias agitavam a alta sociedade parisiense.
— Que me venham dizer agora que o drama não existe na vida real! — exclamou Beauchamp.
— Palavra de honra que preferiria acabar como o Sr. de Morcerf — disse Château-Renaud — Um tiro de pistola parece uma ninharia comparado com semelhante catástrofe.
— Mas mata — observou Beauchamp.
— E eu que me passou pela cabeça casar com a filha! — declarou Debray — Fez muito bem em morrer, meu Deus. Pobre criança!
— A audiência está levantada, meus senhores — disse o presidente — E o julgamento adiado para a próxima sessão. O processo deve ser instruído de novo e confiado a outro magistrado.
Quanto a Andréa, sempre muito tranqüilo e ainda mais interessante, saiu da sala escoltado pelos guardas, que involuntariamente o tratavam com deferência.
— Então, que me diz a isto, meu bom homem? — perguntou Debray ao policial, metendo-lhe um luís na mão.
— Deve haver circunstâncias atenuantes — respondeu o guarda.





continua...






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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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