segunda-feira, 31 de outubro de 2011

T. World informa...



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Logo terminarão ambos os livros que estou postando online, e venho por meio deste post pedir a opinião de vocês: Vocês querem mais livros online? E se "SIM", quais seriam interessantes aqui no T.World? No caso de "NÃO", vocês preferem então filmes ou séries? Estas perguntas são para que eu possa me preparar para o final das postagens dos livros: faltam 11 capítulos para "O Conde de Monte Cristo", e 15 capítulos para "O Retorno do Rei". Qualquer livro que quiserem sugerir para estar aqui no T.World, podem fazê-lo através de Comentários e E-mails, comentários podem ser deixados neste mesmo post e os e-mails para este endereço
oinquisidor.world@gmail.com.

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Votação
FINALIZADA.
Obrigado a todos que votaram e participaram!
O resultado da votação eu darei no Fim de semana.

Uma boa noite!




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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei - Capítulo 12




— Capítulo II —
A Terra Da Sombra




Restou a Sam juízo suficiente para enfiar o frasco de volta no peito.
— Corra, Sr. Frodo! — gritou ele — Não, por ai não! Há um abismo do outro lado da parede. Siga-me!
Fugiram descendo a estrada que saía do portão. Em cinquenta passos, fazendo uma curva fechada ao redor de uma saliência pontuda do penhasco, o caminho os levou para fora do campo de visão da Torre. Por enquanto, tinham escapado. Agachando-se contra a rocha, tomaram fôlego, pondo a mão no peito. Empoleirado na muralha ao lado do portão em ruínas, o Nazgûl emitia seus gritos mortais, que ecoavam em todos os penhascos.
Aterrorizados, os dois avançaram aos tropeços. Logo a estrada fez uma curva fechada para o Leste outra vez, e os expôs, durante um momento aterrorizante, á visão da Torre. Ao atravessarem correndo, deram uma olhada para trás e viram o grande vulto negro sobre a ameia, depois mergulharam entre duas altas muralhas de pedra, num corte que descia vertiginosamente para encontrar a estrada de Morgul. Chegaram à confluência dos caminhos. Ainda não havia sinal dos orcs, nem de uma resposta ao grito do Nazgûl, mas eles sabiam que o silêncio não duraria muito. A qualquer momento, começaria a caçada.
— Isso não vai dar certo, Sam — disse Frodo — Se fôssemos orcs de verdade, deveríamos estar correndo para a Torre, e não fugindo dela. O primeiro inimigo que encontrarmos nos reconhecerá. Precisamos sair desta estrada de algum jeito.
— Mas não podemos — disse Sam — Não sem asas.
As encostas orientais dos Ephel Dúath eram mais íngremes, caindo em penhascos e precipícios para o fosso negro que se abria entre eles e a cadeia interna.
Um pouco além da confluência de caminhos, depois de outra subida íngreme, havia uma ponte suspensa de pedra que saltava sobre o abismo e unia a estrada com o outro lado, penetrando as encostas irregulares e os vales do Morgai.
Num esforço desesperado, Frodo e Sam correram pela ponte, mas mal tinham atingido o lado oposto quando ouviram a gritaria começar. Atrás deles, agora bem lá em cima sobre a encosta da montanha, assomava a Torre de Cirith Ungol, com suas pedras de brilho baço. De repente seu sino rouco tocou outra vez, e então irrompeu num ribombar estilhaçante.
Cornetas soaram. E agora do fim da ponte chegavam gritos em resposta. Enfiados no abismo escuro, isolados do brilho decrescente do Orodruin, Frodo e Sam não conseguiam enxergar adiante, mas já ouviam o pisar de pés de pés calçados com sola de ferro, e na estrada já soavam rápidas batidas de cascos.
— Rápido, Sam! Vamos pular! — gritou Frodo.
Os dois treparam no parapeito baixo da ponte. Felizmente não houve mais nenhuma queda horrenda para dentro do abismo, pois as encostas do Morgai já tinham se elevado quase até o nível da estrada, mas estava escuro demais para que eles pudessem adivinhar a altura da queda.
— Bem, lá vou eu, Sr. Frodo — disse Sam — Adeus!
Saltou. Frodo pulou atrás. No momento da queda, ouviram o tropel dos cavaleiros velozes atravessando a ponte, e a batida dos pés dos orcs vindo logo atrás.
Mas, se ousasse tanto, Sam teria dado uma risada. Meio receosos de estarem mergulhando em rochas que não conseguiam ver, os hobbits, depois de uma queda de menos de quatro metros, aterrissaram com um baque e um rangido sobre a última coisa que esperariam: um emaranhado de arbustos espinhosos. Ali Sam ficou deitado e quieto, chupando em silêncio o sangue da mão arranhada.
Quando o som de cascos e passos tinha cessado, aventurou-se a sussurrar algo.
— Que o senhor me perdoe, Sr. Frodo, mas não sabia que alguma coisa podia crescer em Mordor! Mas, se soubesse, era exatamente isso que teria procurado. Esses espinhos devem ter uns trinta centímetros de comprimento, a julgar pelas espetadas, perfuraram tudo o que estou vestindo. Gostaria de poder ter vestido aquela camisa de malha metálica!
— As malhas dos orcs não protegem contra esses espinhos — disse Frodo — Nem mesmo um gibão de couro faria qualquer efeito.
Foi difícil saírem da moita. Os espinheiros eram duros como ferro, e prendiam como garras. As capas já estavam rasgadas e estraçalhadas antes de conseguirem finalmente se libertar.
— Agora, para baixo, Sam — sussurrou Frodo — Vamos descer depressa para o vale, e depois virar para o Norte, o mais depressa possível.
O dia chegava mais uma vez no mundo lá fora, e bem distante da escuridão de Mordor o sol escalava a borda Leste da Terra-Média, mas ali onde estavam tudo ainda era escuro feito noite. A Montanha se apagou e suas chamas se extinguiram. O clarão desapareceu dos penhascos. O vento Leste que estivera soprando desde que os dois hobbits partiram de Ithilien agora parecia morto. Com lentidão e sofrimento, foram descendo, tateando, tropeçando, cambaleando em meio a pedras, espinheiros e madeiras mortas nas sombras cegas, cada vez mais para baixo, até que não conseguiram mais avançar. Por fim pararam, sentando-se lado a lado, recostados num bloco de pedra. Ambos estavam suando.
— Se Shagrat em pessoa me oferecesse um copo de água, eu aceitaria apertar-lhe a mão — disse Sam.
— Não mencione tais coisas! — disse Frodo — Isso só piora tudo.
Depois espreguiçou-se, atordoado e exausto, e ficou sem dizer nada por um tempo. Finalmente, com um esforço, levantou-se de novo. Para seu espanto, viu que Sam adormecera.
— Acorde, Sam! — disse ele — Vamos, já é hora de fazermos um outro esforço.
Sam levantou-se com dificuldade.
— Nunca me aconteceu isso! — disse ele — Devo ter caído no sono. Faz muito tempo, Sr. Frodo, que não durmo de forma adequada, e meus olhos simplesmente se fecharam sozinhos.
Agora Frodo ia na frente, tentando da melhor maneira possível adivinhar o caminho para o Norte, em meio a rochas e blocos de pedra que se amontoavam no fundo do precipício. Mas de repente parou de novo.
— Não adianta, Sam — disse ele — Não consigo. Esta camisa de malha, quero dizer. Não no meu estado atual. Até mesmo meu casaco de mithril parecia pesar quando eu estava cansado. Isto aqui é muito mais pesado. E para que serve? Não vamos conseguir abrir caminho lutando.
— Mas pode ser que precisemos lutar um pouco — disse Sam — E há facas e flechas perdidas. Aquele Gollum não está morto, para começo de conversa. Não gosto de pensar no senhor sem mais nada além de um pedaço de couro entre o corpo e uma punhalada no escuro.
— Olhe aqui, Sam, meu rapaz — disse Frodo — Estou cansado, exausto e não me resta nenhuma esperança. Mas preciso continuar tentando chegar à Montanha, enquanto puder me mover. Mas não ache que sou mal-agradecido. Odeio pensar no serviço sujo que você deve ter tido em meio aos corpos para achar esta malha de orc para mim.
— Não fale nisso, Sr. Frodo. Por favor! Eu o carregaria nas costas, se pudesse. Tire então a malha.
Frodo colocou de lado a capa e tirou a malha de orc, jogando-a longe. Tremeu um pouco.
— O que preciso na verdade é de alguma coisa quente — disse ele — Ficou frio, ou então peguei um resfriado.
— Pode usar minha capa, Sr. Frodo — disse Sam. Tirou das costas a mochila e puxou dela a capa élfica — Que tal, Sr. Frodo? — disse ele — O senhor se embrulha com o farrapo de orc e o prende com o cinto. Depois pode vestir a capa em cima de tudo. Não se parece muito com roupa de orc, mas vai mantê-lo mais aquecido, e arrisco ainda dizer que vai protegê-lo bem mais que qualquer outra coisa. Foi feito pela Senhora.
Frodo pegou a capa e fixou o broche.
— Assim está melhor! — disse ele — Sinto-me muito mais leve. Agora posso continuar. Mas esta escuridão cega parece estar penetrando em meu coração. Enquanto estava deitado na prisão, Sam, eu tentava me lembrar do Brandevin, e de Ponta do Bosque, e do Água passando pelo moinho na Vila dos Hobbits. Mas agora não consigo visualizá-los.
— Olhe lá, Sr. Frodo, desta vez é o senhor quem está falando em água! — disse Sam — Se pelo menos a Senhora pudesse nos ver ou nos ouvir, eu diria a ela: “Minha Senhora, tudo o que queremos é luz e água: apenas água limpa e a luz de um dia claro, coisas melhores que qualquer jóia, com as devidas desculpas”. Mas estamos muito longe de Lórien.
Sam suspirou e acenou a mão na direção das alturas dos Ephel Dúath, que agora só se podiam adivinhar como um negrume mais profundo contra o céu negro.
Partiram de novo. Não tinham ido muito longe quando Frodo parou.
— Há um Cavaleiro Negro acima de nós — disse ele — Posso sentir. É melhor ficarmos parados por um tempo.
Escondendo-se sob um grande bloco de pedra, os dois se sentaram virados para o Oeste, e ficaram sem falar por algum tempo. Depois Frodo deu um suspiro de alivio.
— Passou — disse ele.
Levantaram-se e então ambos olharam assombrados. Mais ao longe, à esquerda, ao Sul, contra um céu que ia se acinzentando, os picos e as altas cadeias da grande cordilheira começavam a surgir escuros e negros em formas definidas. A luz estava crescendo atrás deles. Devagar avançava na direção do Norte. Uma batalha estava acontecendo lá em cima, nos altos espaços do ar. As nuvens pesadas de Mordor estavam sendo varridas para trás, suas bordas se rasgando á medida que um vento que chegava do mundo vivo ia afastando a fumaça e o vapor na direção da terra escura de onde tinham surgido. Sob as orlas daquele dossel melancólico que se erguia, uma luz fraca se infiltrava para dentro de Mordor como uma manhã pálida através da janela encardida de uma prisão.
— Olhe, Sr. Frodo! — disse Sam — Olhe lá! O vento mudou. Alguma coisa está acontecendo. Nem tudo está acontecendo exatamente como Ele quer. Sua escuridão está se rompendo no mundo lá fora. Gostaria de ver o que está se passando!
Era a manhã do décimo quinto dia de Março, e sobre o Vale do Anduin o sol subia acima da sombra do Leste, e o vento sudoeste soprava. Théoden jazia agonizante nos Campos do Pelennor.
Naquele momento em que Sam e Frodo pararam para observar, a faixa de luz se espalhou ao longo de toda a cadeia dos Ephel Dúath, e então os dois viram uma sombra, movendo-se a uma grande velocidade e vindo do Oeste, a princípio apenas um ponto negro contra a tira reluzente acima dos topos das montanhas, mas crescendo sempre, até mergulhar como um raio dentro do dossel negro e passar muito acima deles.
Quando avançou, emitiu um longo grito agudo, a voz de um Nazgûl: mas aquele grito não teve mais qualquer efeito de terror sobre eles: era um grito de aflição e assombro, más noticias para a Torre Escura.
O Senhor dos Espectros do Anel encontrara seu fim.
— Que foi que eu disse? Alguma coisa está acontecendo! — exclamou Sam — Shagrat disse: “A guerra está indo bem”, mas Gorbag não estava tão certo. E nesse ponto ele também tinha razão. As coisas estão melhorando, Sr, Frodo. Agora o senhor não tem alguma esperança?
— Bem, não muita, Sam — suspirou Frodo — Aquilo está acontecendo lá longe, além das montanhas. Estamos indo para o Leste, não para o Oeste. E estou tão cansado! E o Anel pesa tanto, Sam. E começo a vê-lo em minha mente todo o tempo, como uma grande roda de fogo.
O entusiasmo de Sam voltou a arrefecer imediatamente. Olhou para seu mestre cheio de ansiedade, e tomou-lhe a mão.
— Vamos, Sr. Frodo — disse ele — Consegui uma coisa que desejava: um pouco de luz. O suficiente para nos ajudar, mas suponho que também seja perigosa. Tente avançar um pouco mais, e então vamos deitar perto um do outro e descansar um pouco. Mas coma alguma coisa agora, um pouco da comida dos elfos, pode trazer-lhe mais coragem.
Dividindo um bolo de lembas, e mastigando-o da melhor maneira possível com suas bocas ressecadas, Frodo e Sam continuaram aos tropeços. A luz, embora fosse fraca como a de um crepúsculo cinzento, era agora suficiente para permitir que os dois vissem que estavam afundados no vale entre as montanhas. A encosta subia suavemente rumo ao Norte, e no fundo passava o leito de um riacho, que agora estava seco e morto. Além de seu curso pedregoso eles viram um caminho batido que corria sinuoso sob os pés dos penhascos a Oeste. Se soubessem, poderiam ter chegado até ali mais rápido, pois tratava-se de uma trilha que abandonava a estrada principal de Morgul na extremidade ocidental da ponte e ia descendo através de uma longa escada cortada na pedra até o fundo do vale. Era usada por patrulhas ou por mensageiros que precisavam chegar rápido a postos e fortalezas secundários que ficavam mais ao Norte, entre Cirith Ungol e os estreitos da Boca Ferrada, as mandíbulas de ferro de Carach Angren.
Usar tal trilha era perigoso para os hobbits, mas eles precisavam de rapidez, e Frodo sentia que não conseguiria enfrentar o esforço de descer por entre os blocos de pedra ou pelos vales sem trilhas do Morgai. E ele achava que o caminho do Norte era, talvez, o que os perseguidores julgariam menos provável para eles dois. O inimigo vasculharia com todo o cuidado a estrada ao Leste para a planície, ou a passagem que voltava para o Oeste. Só quando estivesse bem ao Norte da Torre é que ele pretendia mudar de rumo e procurar algum caminho que os levasse para o Leste, na última e mais desesperada etapa de sua jornada. Por isso, eles agora atravessaram o leito pedregoso e tomaram a trilha dos orcs, e por algum tempo avançaram ao longo dela.
Os penhascos à esquerda projetavam-se para a frente, e os dois hobbits não podiam ser vistos de cima, mas a trilha fazia muitas curvas, e a cada curva eles levavam a mão até o punho de suas espadas e avançavam com toda a cautela.
A luz não ficou mais forte, pois o Orodruin ainda expelia uma grande quantidade de vapor que, chocando-se lá no alto com os ares em sentido contrário, subia cada vez mais, até atingir uma região acima do vento onde se espalhava num teto incomensurável, cujo pilar central subia das sombras além do limite da visão. Já tinham se arrastado por mais de uma hora quando ouviram um som que os fez parar.
Inacreditável, mas inconfundível.
Água correndo.
Por uma fenda do lado esquerdo, tão profunda e estreita que parecia que o penhasco negro tinha sido partido por um enorme machado, a água pingava: as últimas sobras, talvez, de alguma chuva suave recolhida de mares ensolarados, mas que tivera o mau destino de cair finalmente sobre as muralhas da Terra Negra e de escorrer infrutífera para desaparecer em meio á poeira. Naquele ponto ela saía da rocha num pequeno filete, que depois de um salto atravessava a trilha, e virando-se para o Sul fugia veloz para se perder em meio ás pedras mortas.
Sam saltou na direção da água.
— Se algum dia eu encontrar a Senhora de novo, direi a ela! — gritou ele — Luz, e agora água!
Então parou.
— Deixe-me beber primeiro, Sr. Frodo — disse ele.
— Está certo, mas há espaço suficiente para os dois.
— Não quis dizer isso — disse Sam — Quero dizer: se for venenosa, ou alguma coisa que logo mostrará seu efeito maligno, bem, antes eu que o senhor, mestre, se o senhor me entende.
— Entendo. Mas acho que vamos confiar em nossa sorte juntos, Sam, ou em nossa bênção. Mesmo assim, tenha cuidado agora, talvez esteja gelada demais!
A água estava fresca, mas não fria como gelo, e tinha um gosto desagradável, ao mesmo tempo amargo e oleoso, ou pelo menos era isso que os dois teriam dito lá em casa. Aqui a água parecia estar acima de qualquer elogio, e além do medo ou da prudência. Beberam á vontade, e Sam reabasteceu a garrafa.
Depois disso Frodo se sentiu melhor, e eles continuaram por várias milhas, até que o alargamento da estrada e a presença de uma parede áspera ao longo da borda os advertiram de que estavam chegando perto de alguma outra fortaleza orc.
— É aqui que mudamos de rumo, Sam — disse Frodo — E devemos virar para o Leste — suspirou ao olhar para as cordilheiras lúgubres do outro lado do vale — Só me restam forças suficientes para procurar algum buraco lá em cima. Depois preciso descansar um pouco.
Agora o leito do rio estava um pouco abaixo da trilha. Desceram até ele, e começaram a atravessar. Para a surpresa dos dois, depararam com poças escuras, alimentadas por fios de água que vinham descendo de alguma fonte nas encostas do vale.
Nas bordas externas, sob as montanhas a Oeste, Mordor era uma terra agonizante, mas que ainda não morrera. E ali as coisas ainda cresciam, ásperas, retorcidas, amargas, lutando pela vida. Nas fendas do Morgai, do outro lado, árvores baixas e raquíticas se penduravam à espreita, touceiras de capim grosso e cinzento lutavam com as pedras que eram cobertas de musgos esbranquiçados, por todo lado espalhavam-se grandes emaranhados de sarças retorcidas. Algumas tinham espinhos longos e cortantes, outras exibiam farpas em forma de gancho que rasgavam como facas. As folhas sombrias e murchas de um ano anterior pendiam delas, rangendo e rilhando nos ares tristes, mas seus rebentos habitados por vermes estavam apenas se abrindo. Moscas, pardas, cinzentas ou negras, marcadas como os orcs com uma mancha no formato de um olho vermelho, zumbiam e picavam, sobre os maciços de urzais, nuvens de mosquitos famintos rodopiavam e dançavam.
— Roupa de orc não adianta — disse Sam, abanando os braços — Gostaria de ter couro de orc.
Por fim Frodo não conseguia avançar mais. Os dois tinham escalado uma garganta estreita e inclinada, mas ainda havia um longo caminho para percorrer antes mesmo que pudessem avistar a última cordilheira escarpada.
— Preciso descansar agora, Sam, e dormir, se puder — disse Frodo.
Olhou ao redor, mas naquela terra desolada parecia não haver lugar algum onde mesmo um animal pudesse se aconchegar. Finalmente, exaustos, os dois se esconderam sob uma cortina de sarças que pendiam como um tapete por sobre uma encosta rochosa baixa. Ali se sentaram e fizeram a refeição que lhes foi possível.
Reservando o precioso lembas para os dias penosos à frente, comeram metade da provisão de Faramir que restara na mochila de Sam: um pouco de fruta seca, e uma fatia fina de carne defumada, beberam também uns goles de água. Tinham bebido outra vez a água nas poças do vale, mas estavam muito sedentos de novo. Havia um resquício amargo no ar de Mordor que ressecava a boca. Quando Sam pensava em água, até mesmo seu espírito cheio de esperança fraquejava. Além do Morgai deveriam atravessar a aterrorizante planície de Gorgoroth.
— Agora o senhor dorme primeiro, Sr. Frodo — disse ele — Está ficando escuro de novo. Calculo que este dia esteja quase terminado.
Frodo suspirou e adormeceu quase antes de Sam terminar suas palavras. Sam lutava contra o próprio cansaço, e segurou a mão de Frodo, e assim, sentado, até que a noite profunda caiu. Então, por fim, para manter se acordado, saiu do esconderijo e ficou observando.
A região parecia cheia de estalos, rangidos e ruídos dissimulados, mas não havia som de vozes ou passos. Bem acima dos Ephel Dúath, no Oeste, o céu noturno estava pálido e baço. Lá, espiando por entre os restos de nuvens sobre uma rocha pontiaguda nas montanhas, Sam viu uma estrela branca reluzir por uns momentos. Sua beleza arrebatou-lhe o coração, quando desviou os olhos da terra desolada, e ele sentiu a esperança retornar. Pois como um raio, cristalino e frio, invadiu-o o pensamento de que afinal de contas a Sombra era apenas uma coisa pequena e passageira: havia luz e uma beleza nobre que eram eternas e estavam além do alcance dela. A canção que cantara na torre fora mais um desafio que uma esperança, pois naquela hora pensara em si mesmo. Agora, por um momento, sua própria sorte, e até a de seu mestre, deixaram de preocupá-lo. Sam voltou às sarças e se deitou ao lado de Frodo, e, deixando de lado todo o medo, mergulhou num sono profundo e despreocupado.
Acordaram juntos, de mãos dadas. Sam estava quase refeito, pronto para um outro dia, mas Frodo suspirava. Dormira um sono inquieto, cheio de sonhos com fogo, e acordar não lhe trouxe consolo algum. Mesmo assim, seu sono não deixara de ter um poder restaurador: sentia-se mais forte, mais apto a suportar seu fardo na próxima etapa. Os dois não sabiam que horas eram, nem por quanto tempo tinham dormido, mas, depois de um bocado de comida e um gole de água, continuaram subindo a garganta, até que ela terminou numa ladeira íngreme cheia de entulho e pedras escorregadias. Nesse ponto os últimos seres vivos desistiram de sua luta, os topos do Morgai eram desprovidos de vegetação, pontiagudos, nus como uma lousa.
Depois de muito vagar e procurar, encontraram um caminho pelo qual poderiam subir, e com mais uns trinta metros de escalada usando mãos e pés estavam lá em cima. Atingiram uma fenda entre dois rochedos escuros, e passando no meio viram-se exatamente na borda da última divisa de Mordor. Abaixo, no fundo de um precipício de cerca de quatrocentos e cinquenta metros, jazia a planície interna, espalhando-se numa escuridão disforme que sumia de vista. O vento do mundo soprava agora do Oeste, e as grandes nuvens subiam alto, flutuando para o Leste, mas mesmo assim apenas uma luz cinzenta chegava aos campos desolados de Gorgoroth. Ali a fumaça subia do chão e espreitava nas concavidades, vapores escapavam das fissuras da terra.
Ainda distante, pelo menos a quarenta milhas, os dois viram a Montanha da Perdição, com seus pés ancorados em ruínas de cinza, seu enorme cone subindo a uma altura impressionante, onde sua cabeça estava envolta em densas nuvens. Suas chamas estavam agora enfraquecidas, e a Montanha parecia dormir num sono sem fogo, ameaçadora e perigosa como uma fera adormecida. Atrás dela pairava uma sombra vasta, ominosa como um céu de trovoada, eram os véus de Barad-dûr que agora surgia na distância, sobre um longo espinhaço das Montanhas Cinzentas que se projetava do Norte.
O poder Escuro estava afundado em pensamentos, e o Olho se voltava para dentro, ponderando acontecimentos que traziam dúvida e medo: uma espada brilhante, um rosto severo de rei, eram o que ele via, e por um tempo deu pouca atenção às outras coisas, e toda a sua grande fortaleza, portão sobre portão, e torre sobre torre, estava envolta numa escuridão crescente.
Frodo e Sam observaram toda aquela terra odiosa num misto de repugnância e espanto. Entre eles e a montanha fumegante, e ao redor dela ao Norte e ao Sul, tudo parecia arruinado e morto, um deserto queimado e sufocado. Ficaram imaginando como o Senhor daquele reino conseguia manter e alimentar seus escravos e exércitos.
Pois ele tinha exércitos. Até onde a vista alcançava, ao longo das bordas do Morgai e mais além, ao Sul, havia acampamentos, alguns feitos de tendas, e outros organizados como pequenas cidades. Uma das maiores estava bem abaixo deles. A menos de uma milha de distância na planície, ela se amontoava como um enorme ninho de insetos, com ruas retas e áridas cheias de barracos e longos prédios baixos e sem cor. Pela cidade o chão estava apinhado de gente indo de um lado para o outro, uma estrada larga saía do povoado em direção ao sudeste para encontrar o caminho de Morgul, e ao longo dela corriam muitas fileiras de pequenas figuras negras.
— Não gosto nem um pouco da aparência das coisas — disse Sam — Bastante desesperadoras, eu diria a não ser pelo fato de que um bando de gente assim deve ter poços ou água, para não falar em comida. E estes são homens, não orcs, ou meus olhos estão completamente enganados.
Nem ele nem Frodo sabiam coisa alguma sobre os grandes campos de trabalho escravo mais ao Sul daquele vasto reino, além da fumaça da Montanha, próximos às águas escuras e tristes do Lago Núrnen, nem das grandes estradas que corriam para o Leste e para o Sul, levando a terras que pagavam tributo a Mordor, das quais os soldados da Torre traziam longos comboios de carroças com mercadorias, produtos de saques e novos escravos.
Ali, nas regiões do Norte, havia minas e forjas, e a concentração de tropas para uma guerra longamente planejada, ali o Poder Escuro, movendo seus exércitos como peças num tabuleiro, os estava reunindo. Seus primeiros movimentos, seus primeiros testes de força, haviam sido feitos sobre a linha ocidental, ao Norte e ao Sul. Agora os retirara, trazendo novas forças, preparando ao redor de Cirith Gorgor um golpe vingador.
E, se também fosse o seu propósito defender a Montanha contra qualquer aproximação, dificilmente poderia ter feito trabalho melhor.
— Bem — continuou Sam — O que quer que eles tenham para comer e beber, não podemos consegui-lo. Pelo que posso ver, não há caminho para descermos. E nós não poderíamos atravessar toda aquela terra aberta infestada de inimigos, ainda que conseguíssemos descer.
— Mesmo assim precisamos tentar — disse Frodo — Não é pior do que eu esperava. Nunca tive esperanças de atravessar. E não consigo ver qualquer esperança agora. Mas ainda preciso fazer o melhor que puder. No momento isso significa evitar ser capturado enquanto for possível. Então acho que ainda precisamos rumar para o Norte, e ver como é ali, onde a planície aberta é mais estreita.
— Acho que sei como vai ser — disse Sam — Onde é mais estreita os orcs e homens estarão mais amontoados. O senhor vai ver, Sr. Frodo.
— Arrisco dizer que vou, se conseguirmos ir tão longe — disse Frodo, virando-se.
Logo viram que era impossível avançar por sobre a crista do Morgai, ou em qualquer ponto ao longo dos níveis mais altos, que eram sem trilhas e cheios de fissuras profundas. No fim foram forçados a descer de volta para o precipício que tinham escalado e a procurar um caminho ao longo do vale. Foi uma caminhada árdua, pois eles não se arriscaram a atravessar até a trilha na encosta Oeste. Depois de uma milha ou mais os dois viram, abrigada numa concavidade ao pé do penhasco, a fortaleza orc que já adivinhavam estar bem próxima: uma muralha e um aglomerado de casebres de pedra, espalhados ao redor da boca escura de uma caverna. Não se via movimento algum, mas os hobbits passaram por ela com toda a cautela, mantendo-se o mais perto possível dos arbustos espinhosos que cresciam densos nesse ponto, ao longo dos dois lados do velho curso de água.
Avançaram mais duas ou três milhas, e a fortaleza orc se escondeu atrás deles, mas mal tinham recomeçado a respirar com mais liberdade quando ouviram vozes de orcs, altas e rudes. Rapidamente se esgueiraram para um esconderijo atrás de um arbusto escuro e atrofiado. As vozes se aproximaram. De repente dois orcs surgiram. Um estava vestido em farrapos castanhos e armado com um arco de chifre: era de uma raça pequena, tinha a pele negra e vinha farejando com as largas narinas, evidentemente algum tipo de batedor. O outro era um grande orc lutador, parecido com os da companhia de Shagrat, ostentando o símbolo do Olho. Também trazia um arco nas costas e carregava uma lança curta de cabeça larga. Como de costume, estavam discutindo, e, sendo de raças diferentes, usavam a Língua Geral à sua maneira. A menos de vinte passos de onde os hobbits estavam á espreita o orc pequeno estacou.
— Agora! — rosnou ele — Vou para casa — apontou através do vale para a fortaleza orc — Não adianta mais ficar gastando meu nariz em pedras. Não resta nenhum vestígio, estou dizendo. Perdi o rastro seguindo o que você falou. O rastro subiu pelas colinas, não foi ao longo do vale, estou dizendo.
— Vocês, farejadorezinhos, não servem para muita coisa — disse o orc grande — Acho que olhos são melhores que seu nariz ranhento.
— Então o que você viu com eles? — rosnou o outro — Besteira! Você nem sabe o que está procurando.

[FIG. 13] UM SOLDADO-ORC E UM BATEDOR-ORC


— E de quem é a culpa? — disse o soldado — Minha é que não. Isso vem Lá de Cima. Primeiro dizem que é um grande elfo vestido com armadura brilhante, depois é um tipo pequeno de homem-anão, depois deve ser um bando de uruk-hai rebelde, ou ainda pode ser tudo isso junto.
— Ah! — disse o batedor — Eles perderam a cabeça, isso é que é. E alguns dos chefes vão perder a pele também, eu acho, se o que ouvi for verdade: Torre atacada e tudo mais, e centenas de seus rapazes assassinados, e prisioneiro que fugiu. Se é assim que vocês fazem, não me admira que haja más notícias sobre as batalhas.
— Quem disse que há más notícias? — gritou o soldado.
— E quem disse que não?
— Isso é conversa dos malditos rebeldes, e vou perfurá-lo, se não calar a boca, está entendendo?
— Está certo! Está certo! — disse o batedor — Não vou dizer mais nada e vou continuar pensando. Mas o que o ladrão preto tem a ver com tudo isso? Aquele comilão das mãos chatas?
— Não sei. Nada, talvez. Mas ele não está metido em coisa boa, xeretando por aí, eu aposto. Maldito! Foi só ele ter escapado de nós e fugido e chegaram ordens dizendo que o querem vivo, e depressa.
— Bem, espero que o encontrem vivo, e o façam passar um mau pedaço — rosnou o batedor — Ele confundiu o rastro lá atrás, pegando aquele casaco de malha que achou jogado no chão, e chapinhando por todo o lugar antes que eu chegasse lá.
— Isso lhe salvou a vida, de qualquer forma — disse o soldado — Veja bem, antes de saber que o queriam eu atirei nele, um golpe certeiro, a cinquenta passos, bem no meio das costas, e ele continuou correndo.
— Bobagem! Você errou a pontaria — disse o batedor — Primeiro você golpeia ao léu, depois corre muito devagar, e só depois manda chamar os pobres batedores. Estou cheio de você.
Ao dizer isso, disparou a correr.
— Volte aqui — gritou o soldado— Ou vou denunciar você!
— Para quem? Não para o seu precioso Shagrat. Ele não vai mais ser capitão.
— Vou dar seu nome e número para os Nazgûl — disse o soldado, abaixando a voz num chiado — Um deles é o encarregado da Torre agora.
O outro parou, e sua voz se encheu de medo e ódio.
— Seu maldito espião, delator, ladrão! — gritou ele — Não consegue fazer o seu serviço, e nem ser leal ao seu próprio povo. Vá para os seus Guinchadores sujos, e que eles arranquem sua pele! Se o inimigo não o pegar primeiro. Ouvi dizer que assassinaram o Número Um, e espero que seja verdade!
O orc grande, de lança na mão, correu atrás dele. Mas o batedor, saltando de trás de uma pedra, enterrou uma flecha no olho do soldado que vinha correndo, e que a seguir caiu com um baque. O outro fugiu através do vale e desapareceu.
Por um tempo os hobbits continuaram em silêncio. Por fim Sam se manifestou.
— Bem, isso é o que eu chamo de golpe certeiro — disse ele — Se esse espírito de amizade se espalhasse em Mordor, metade de nossos problemas estariam terminados.
— Quieto, Sam — sussurrou Frodo — Pode haver outros por aí. É evidente que escapamos por pouco, e a caçada estava mais perto de nosso rastro do que imaginávamos. Mas este é o espírito de Mordor, Sam, está espalhado em todos os seus cantos. Os orcs sempre se comportam assim quando estão sozinhos, pelo menos é o que contam as histórias. Mas você não pode alimentar muita esperança a partir desse fato. Eles nos odeiam muito mais, todos eles e o tempo todo. Se aqueles dois nos tivessem visto, teriam suspendido a discussão até estarmos mortos.
Fez-se outro longo silêncio. Sam o interrompeu de novo, desta vez com um sussurro.
— O senhor ouviu o que eles falaram sobre aquele comilão, Sr. Frodo? Eu lhe disse que Gollum ainda não estava morto, não disse?
— Sim, eu me lembro. E fiquei me perguntando como você sabia — disse Frodo — Bem, vamos lá! Acho que é melhor não sairmos daqui enquanto não estiver bem escuro. Então você pode me contar como é que sabe, e tudo o que aconteceu. Isso se não fizer muito barulho.
— Vou tentar — disse Sam — Mas, quando penso naquele Fedegoso, fico com tanta raiva que poderia gritar.
Lá ficaram os hobbits sentados sob a proteção do arbusto espinhoso, enquanto a luz desolada de Mordor desaparecia devagar dentro de uma noite profunda e sem estrelas. Sam contou aos ouvidos de Frodo, com as melhores palavras que pôde encontrar, tudo sobre o ataque traiçoeiro de Gollum, sobre o horror de Laracna, e suas próprias aventuras com os orcs. Quando terminou, Frodo não disse nada, mas tomou-lhe a mão e a apertou. Finalmente se moveu.
— Bem, suponho que precisamos continuar outra vez — disse ele — Fico pensando quanto tempo levará até que realmente sejamos capturados e termine todo o esforço e a necessidade de nos escondermos, em vão.
Levantou-se.
— Está escuro, e não podemos usar o cristal da Senhora. Guarde-o em segurança para mim, Sam. Não tenho onde guardá-lo agora, a não ser em minha mão, e vou precisar das duas mãos nesta noite cega. Quanto a Ferroada, ela é sua. Tenho uma espada de orc, mas não acho que será meu papel desferir qualquer golpe outra vez.
Foi difícil e perigoso para os dois avançar durante a noite naquela terra sem trilhas, mas lentamente e á custa de muitos tropeços eles conseguiram prosseguir com esforço para o Norte, hora após hora, ao longo da borda Leste do vale pedregoso.
Quando surgiu uma luz cinzenta sobre as montanhas ocidentais, muito depois de o dia se abrir nas terras distantes, esconderam-se de novo e dormiram um pouco, revezando-se. Nas horas de vigília Sam se ocupava pensando em comida. Por fim, quando Frodo despertou e falou em comer e se preparar para mais um esforço, ele fez a pergunta que mais preocupava sua mente.
— Com as minhas desculpas, Sr. Frodo — disse ele — Mas o senhor tem alguma noção de quanto ainda teremos de caminhar?
— Não, não tenho nenhuma noção clara, Sam — respondeu Frodo — Em Valfenda, antes de partirmos, mostraram-me um mapa de Mordor que foi feito antes de o Inimigo retornar para cá, mas só me lembro dele vagamente. O que recordo com mais clareza é que havia um lugar no Norte onde a cordilheira ocidental e a do Norte projetavam contrafortes que quase se encontravam. Isso deve ficar no mínimo a vinte léguas da ponte lá atrás, perto da Torre. Pode ser um bom ponto para atravessarmos. Mas, é claro, se chegarmos lá, estaremos mais longe da Montanha do que estávamos, a umas sessenta milhas dela, eu acho. Suponho que já nos afastamos doze léguas da ponte, rumando para o Norte. Mesmo que tudo corra bem, eu não conseguiria chegar á montanha em menos de uma semana. Temo, Sam, que o fardo fique muito pesado, e que eu avance cada vez mais devagar à medida que formos nos aproximando.
Sam suspirou.
— Era exatamente isso que eu temia — disse ele — Para não falar em água, temos de comer menos, Sr. Frodo, ou então avançar um pouco mais rápido, pelo menos enquanto ainda estivermos aqui neste vale. Mais um bocado e a comida estará terminada, tirando o pão de viagem dos elfos.
— Vou tentar ser um pouco mais rápido, Sam — disse Frodo, respirando fundo — Vamos, então! Vamos começar uma outra marcha.
Ainda não estava bem escuro. Avançaram com dificuldade noite adentro. As horas se passaram numa marcha cansativa e penosa, com algumas poucas paradas. Aos primeiros sinais de luz cinzenta sob as bordas do dossel de sombra, eles se esconderam outra vez numa concavidade escura, abaixo de uma saliência rochosa.
Lentamente a luz aumentou, até ficar mais clara do que nunca. Um vento forte soprava do Oeste e varria dos ares mais altos a fumaça de Mordor. Não demorou muito para que os hobbits conseguissem visualizar o formato da terra no raio de algumas milhas. O fosso entre as montanhas e o Morgai diminuíra cada vez mais durante a subida, e a borda interna agora não passava de um patamar nas encostas íngremes dos Ephel Dúath, mas a Leste a queda para o Gorgoroth era abrupta como sempre. À frente o curso de água terminava em degraus quebrados de pedra, da cordilheira principal lançava-se um contraforte alto e nu, que avançava para o Leste como uma muralha.
Para encontrá-lo ali, vindo da enevoada cordilheira Norte de Ered Lirhui, um longo braço pontudo se estendia; entre as extremidades havia um desfiladeiro estreito: Carach Angren, a Boca Ferrada, além da qual ficava o profundo vale de Udún. Naquele vale atrás do Morannon estavam os túneis e os depósitos de armas que os servidores de Mordor haviam feito para a defesa do Portão Negro, e ali agora o seu Senhor estava reunindo às pressas grandes forças para enfrentar o ataque dos Capitães do Oeste. Sobre os contrafortes salientes, fortes e torres haviam sido construídos, e ali queimavam fogueiras de acampamento, através de todo o desfiladeiro fora erguida uma muralha de terra, e fora escavada uma trincheira funda que só podia ser atravessada por uma única ponte.
Algumas milhas ao Norte, lá em cima, no ângulo onde o contraforte ocidental se destacava da cordilheira principal, ficava o velho castelo de Durthang, agora transformado numa das muitas fortalezas orcs que se aglomeravam ao redor do vale de Udún. Uma estrada, já visível na luz crescente, vinha descendo dele numa trilha sinuosa, até que, a apenas uma ou duas milhas de onde os hobbits estavam, ela se virava para o Leste e corria ao longo de um patamar cortado na encosta do contraforte, e assim descia até a planície, para prosseguir até a Boca Ferrada.
Olhando aquilo, os hobbits tiveram a impressão de que toda a viagem para o Norte fora inútil. A planície à direita era escura e esfumaçada, e ali não conseguiram ver nem acampamentos nem tropas em movimento, mas toda aquela região estava sob a vigilância dos fortes de Carach Angren.
— Chegamos a um beco sem saída, Sam — disse Frodo — Se avançarmos, só chegaremos àquela torre orc, mas a única estrada que podemos tomar é a que desce dela, a não ser que voltemos. Não podemos escalar para o Oeste, nem descer para o Leste.
— Então vamos tomar a estrada, Sr. Frodo — disse Sam — Devemos tomá-la e testar nossa sorte, se é que existe alguma sorte em Mordor. Ficar vagando ou tentar voltar seria o mesmo que nos entregarmos. Nossa comida não vai durar muito. Temos de ir até lá, e rápido!
— Certo, Sam — disse Frodo — Conduza-me! Enquanto lhe restar alguma esperança. A minha não existe mais. Mas não posso ir rápido, Sam. Só vou segui-lo a passadas lentas.
— Antes que comece qualquer passada lenta, o senhor precisa dormir e comer, Sr. Frodo. Venha e faça essas duas coisas como puder!
Deu água a Frodo, e mais um naco do pão-de-viagem, e fez um travesseiro com sua capa para deitar a cabeça do mestre. Frodo estava cansado demais para discutir a questão, e Sam não lhe disse que ele bebera a última gota da água, e comera a parte da comida que cabia a Sam, além da sua própria parte. Quando Frodo adormeceu, Sam se debruçou sobre ele, para escutar sua respiração e examinar-lhe o rosto. Estava fino e marcado, mas enquanto dormia parecia alegre e sem temores.
— Bem, lá vou eu, Mestre! — Sam murmurou consigo mesmo — Preciso abandoná-lo por um tempo e confiar na sorte. Precisamos de água, ou não conseguiremos ir mais longe.
Sam se arrastou para fora do esconderijo e, avançando de pedra em pedra com um cuidado que era exagerado até para um hobbit, desceu até o curso de água, chegando aos degraus de pedra onde havia muito tempo, sem dúvida, sua fonte viera jorrando numa pequena cachoeira. Tudo agora parecia seco e quieto, mas, combatendo o desespero, Sam se agachou à escuta, e para seu deleite captou o som de água correndo. Descendo alguns degraus encontrou um riacho pequeno de água escura que saía da encosta da colina, e enchia uma pequena poça exposta, da qual se derramava de novo, para desaparecer sobre as pedras nuas. Sam experimentou a água, que lhe pareceu suficientemente boa. Então bebeu bastante, reabasteceu a garrafa e virou-se para voltar.
Nesse momento viu de relance uma forma negra ou uma sombra correndo por entre as pedras próximas ao esconderijo de Frodo. Contendo um grito, saltou da fonte e correu, pulando de pedra em pedra. Era uma criatura cautelosa, difícil de enxergar, mas Sam tinha poucas dúvidas a respeito dela: desejava colocar-lhe as mãos no pescoço. Mas a criatura o ouviu chegando e fugiu depressa. Sam teve a impressão de vê-la uma última vez, espiando por sobre a borda do precipício oriental, antes de se abaixar e desaparecer.
— Bem, a sorte não me abandonou — murmurou Sam — Mas foi por pouco. Já não basta termos orcs aos milhares sem aquele vilão malcheiroso xeretando por aqui? Gostaria que tivessem atirado nele!
Sentou-se ao lado de Frodo e não o acordou, mas não ousou dormir. Por fim, quando já sentia seus olhos se fechando e percebeu que sua luta para se manter acordado não poderia prosseguir por muito tempo, acordou Frodo com delicadeza.
— Aquele Gollum está rondando de novo, receio eu, Sr. Frodo — disse ele — Na melhor das hipóteses, se não era ele, então existem dois idênticos. Saí um pouco para procurar água e o vi farejando por aí bem na hora em que estava voltando. Acho que não é seguro nós dois dormirmos ao mesmo tempo, e, com as suas desculpas, não consigo mais manter meus olhos abertos.
— Bendito Sam! — disse Frodo — Deite-se e aproveite bem a sua vez! Mas eu prefiro Gollum aos orcs. De qualquer jeito, ele não nos entregará a eles, a não ser que ele mesmo seja capturado.
— Mas ele pode praticar um bocado de roubos e assassinatos por conta própria — resmungou Sam — Mantenha os olhos abertos, Sr. Frodo. Há uma garrafa cheia de água. Beba. Podemos enchê-la de novo quando partirmos.
Dizendo isso, Sam mergulhou no sono.
A luz estava sumindo quando ele acordou. Frodo estava sentado, apoiando as costas na pedra, mas adormecera. A garrafa de água estava vazia. Não havia sinal de Gollum.
A escuridão de Mordor retornara, e as fogueiras de acampamento nas montanhas queimavam fortes de novo, quando os hobbits partiram na etapa mais perigosa de sua viagem.
Primeiro foram até o pequeno riacho, e depois, subindo com cautela, chegaram à estrada no ponto onde ela se virava para o Leste na direção da Boca Ferrada, que ficava a vinte milhas dali. Não era uma estrada larga, não tinha parede ou parapeito nas margens, e á medida que avançava a queda íngreme de sua borda aumentava mais e mais. Os hobbits não ouviam qualquer movimento, e, depois de ficarem escutando por um tempo, partiram rumo ao Leste num passo continuo.
Depois de percorrerem cerca de doze milhas, pararam. Um pouco atrás, a estrada virara em direção ao Norte, e o trecho que haviam percorrido estava agora escondido.
O resultado disso foi desastroso.
Descansaram por alguns minutos e então avançaram. Mas não tinham dado muitos passos quando, de repente, na quietude da noite, ouviram o som que o tempo todo haviam temido em segredo: o ruído de pés marchando. Ainda estavam a alguma distância atrás deles, mas, virando-se, os dois puderam ver o piscar de tochas fazendo a curva a cerca de uma milha de distância, e estavam se aproximando depressa: depressa demais para que Frodo pudesse escapar correndo ao longo da estrada.
— Era isso o que eu temia, Sam — disse Frodo — Confiamos na sorte, e ela nos abandonou. Estamos encurralados.
Olhou alucinado para a parede enrugada, onde os antigos construtores da estrada haviam cortado a rocha num ângulo reto por muitos metros acima de suas cabeças. Correu para o outro lado e olhou por sobre a borda num poço de escuridão.
— Finalmente estamos encurralados! — disse ele.
Foi se abaixando até o chão ao pé da muralha de pedra e curvou a cabeça.
— Parece que sim — disse Sam — Bem, não há nada a fazer, exceto esperar para ver.
E com isso sentou-se ao lado de Frodo sob a sombra do penhasco.
Não tiveram de esperar muito. Os orcs vinham num passo rápido. Os que estavam nas primeiras colunas traziam tochas. Vinham avançando chamas rubras no escuro, crescendo rapidamente. Agora Sam também curvara a cabeça, na esperança de esconder o rosto quando as tochas os alcançassem, colocou os escudos diante dos joelhos para esconder seus pés.
“Se pelo menos estiverem com pressa e deixarem em paz um par de soldados cansados, avançando em sua marcha!”, pensou ele.
E assim pareceu que fariam.
Os orcs que vinham à frente avançavam num trote, ofegantes, com as cabeças baixas. Era um bando das raças menores, sendo levados contra a vontade para as guerras do Senhor do Escuro, só se preocupavam em terminar a marcha e escapar do chicote. Ao lado, subindo e descendo a fila, iam dois da raça cruel e grande dos uruks, estalando açoites e gritando. Coluna após coluna passou, e a luz denunciadora das tochas já estava um pouco à frente.
Sam segurou a respiração. Agora mais da metade da fila já tinha passado. Então, de repente, um dos condutores de escravos enxergou as duas figuras à margem da estrada. Aplicou-lhes uma chicotada e gritou:
— Ei, vocês! Levantem-se!
Eles não responderam, e com um grito ele deteve toda a companhia.
— Vamos, suas lesmas! — gritou ele — Não é hora de vagabundear.
Deu um passo na direção deles, e mesmo no escuro reconheceu os símbolos de seus escudos.
— Desertando, hein? — rosnou ele — Ou pensando no assunto? Todo o seu povo deveria estar dentro de Udún antes da noite de ontem. Vocês sabem disso. De pé e atrás de mim, ou vou pegar seus números e denunciá-los.
Com um esforço os dois hobbits ficaram de pé, e mantendo-se curvados, mancando como se fossem soldados de pés feridos, arrastaram-se até o fim da fila.
— Não, não lá atrás — gritou o condutor de escravos — Três colunas á frente. E fiquem lá, ou vão se ver comigo, quando eu chegar ao fim da fila!
Lançou o longo açoite estalando sobre suas cabeças, e então com um outro estalo e um grito ordenou que a companhia continuasse marchando num trote forçado.
Foi difícil para o pobre Sam, cansado como estava, mas para Frodo foi um tormento, que logo se transformou num pesadelo. Travou os dentes e tentou deixar de pensar, esforçando-se para avançar. O fedor dos orcs suados ao seu redor era sufocante, e ele começou a ofegar de sede. Foram avançando sempre, e ele colocava toda a sua determinação em respirar e manter os pés em movimento, sem ousar pensar para que final maligno se dirigia, suportando tudo aquilo. Não havia esperança de escapar sem ser visto. De vez em quando o condutor recuava e zombava deles.
— Olhem lá! — dizia ele rindo, ameaçando chicotear-lhes as pernas — Onde há um açoite há um aceite, suas lesmas. Aguentem firmes! Eu daria um refresco para vocês agora, mas vocês vão levar tantas chicotadas quantas suas peles puderem suportar quando chegarem atrasados ao acampamento. Vai fazer bem. Não sabem que estamos em guerra?
Tinham avançado algumas milhas, e a estrada finalmente descia uma longa ladeira para entrar na planície. Quando a força de Frodo começou a desaparecer e sua vontade vacilou. Ele se arrastava e tropeçava. Desesperado, Sam tentava ajudá-lo e mantê-lo de pé, embora sentisse que ele próprio mal conseguiria aguentar aquele passo por muito mais tempo: seu mestre cairia ou desmaiaria, e tudo seria descoberto, e seus duros esforços teriam sido em vão.
“Pelo menos vou pegar aquele condutor grande”, pensou ele.
Então, no momento em que estava levando a mão ao punho da espada, chegou um alivio inesperado. Estavam agora na planície, chegando perto da entrada de Udún.
Um pouco à frente, antes do portão na extremidade da ponte, a estrada do Oeste convergia com outras que vinham do Sul e de Barad-dûr. Ao longo de todas as estradas tropas se moviam, pois os Capitães do Oeste estavam avançando e o Senhor do Escuro apressava suas forças na direção do Norte. Foi assim que várias companhias se encontraram na encruzilhada, na escuridão além da luz das fogueiras de acampamento sobre as muralhas. Imediatamente houve um grande tropel e xingamentos, pois cada tropa queria chegar primeiro ao portão e terminar a marcha.
Embora os condutores gritassem e aplicassem os chicotes, irromperam brigas e espadas foram sacadas. Uma tropa de uruks bem armados de Barad-dûr atacou uma fileira de Durthang, criando confusão.
Como estava de dor e cansaço, Sam despertou, agarrou depressa a sua chance, e jogou-se no chão, arrastando Frodo consigo. Orcs caíram sobre os dois, rosnando e xingando, até que finalmente, sem serem notados, os dois pularam por sobre a borda oposta da estrada. Ali havia um meio-fio alto pelo qual os condutores de tropas podiam se guiar na noite escura ou no nevoeiro, e que subia um pouco acima do nível da região aberta. Ficaram quietos por um tempo. Estava escuro demais para procurar um esconderijo, se é que havia algum por ali. Mas Sam sentiu que precisavam no mínimo se distanciar um pouco mais das estradas e ficar fora do alcance da luz das tochas.
— Venha, Sr. Frodo! — sussurrou ele — Rasteje mais um pouco, e depois o senhor pode descansar em paz.
Num último esforço desesperado, Frodo se levantou usando as mãos e lutou por talvez mais uns vinte metros. Então mergulhou num poço raso que se abriu inesperadamente diante deles, e lá ficou deitado feito morto.




 continua...





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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 113





CXIII

O PASSADO




O
 Conde saiu com a alma magoada daquela casa onde deixava Mercedes para nunca mais a ver, segundo todas as probabilidades. Desde a morte do pequeno Edouard operara-se em Monte Cristo uma grande transformação. Chegado ao alto da sua vingança pela encosta lenta e tortuosa que seguira, vira do outro lado da montanha o abismo da dúvida.
Mas havia mais: a conversa que acabava de ter com Mercedes despertara tantas recordações no seu coração que elas próprias precisavam ser combatidas. Um homem da têmpera do Conde não podia entregar-se durante muito tempo a uma melancolia capaz de alimentar os espíritos vulgares dando-lhes uma originalidade aparente, mas que mata as almas superiores. O Conde disse para consigo que para quase ter chegado a censurar-se era porque algum erro se insinuara nos seus cálculos.
— Analiso mal o passado — disse — Não posso ter-me enganado assim... seria possível que me propusesse atingir um objetivo insensato? Terei seguido caminho errado durante dez anos? Não bastaria uma hora para provar ao arquiteto que a obra em que depositara todas as suas esperanças era uma obra impossível ou pelo menos sacrílega? Não me posso habituar a semelhante idéia; enlouqueceria. O que falta aos meus raciocínios atuais é a apreciação exata do passado, porque revejo o passado da outra extremidade do horizonte. Com efeito, à medida que avançamos o passado esbate-se, tal como a paisagem que atravessamos se esfuma à medida que nos afastamos. Acontece-me o que acontece às pessoas que se ferem em sonhos: vêem e sentem o ferimento, mas não se lembram de o ter recebido... vamos, homem renovado; vamos, rico extravagante; vamos, dorminhoco acordado; vamos, visionário todo-poderoso, vamos, milionário invencível: retoma por instantes a perspectiva funesta da vida miserável e faminta; volta a passar pelos caminhos para onde a fatalidade te empurrou ou a desventura te conduziu e o desespero te recebeu. Demasiados diamantes, ouro e sorte brilham hoje no espelho em que Monte Cristo vê Dantés. Esconde esses diamantes, cobre de lama esse ouro, apaga esse brilho; rico, volta a ser pobre; livre, volta a ser prisioneiro; ressuscitado, volta a ser cadáver.
Enquanto dizia isto a si mesmo, Monte Cristo seguia pela Rua da Caisserie, a mesma pela qual vinte e quatro anos antes fora conduzido por uma guarda silenciosa e noturna. Aquelas casas, de aspecto risonho e animado, estavam naquela noite sombrias, mudas e fechadas.
— Mas são as mesmas — murmurou Monte Cristo — Só que então era de noite e hoje é de dia; é o sol que ilumina tudo isto e torna tudo isto alegre.
Desceu ao cais pela Rua de Saint-Laurent e encaminhou-se para a Consigne, o ponto do porto onde fora embarcado. Um barco de passeio passava com a sua cobertura de lona. Monte Cristo chamou o patrão, que navegou imediatamente para ele, com a pressa que põem nesse exercício os barqueiros que farejam uma boa gorjeta.
O tempo estava magnífico e a viagem foi uma festa. No horizonte o Sol descia, vermelho e chamejante, nas vagas, que se incendiavam à sua aproximação. O mar, liso como um espelho, franzia-se por vezes devido aos saltos dos peixes, que, perseguidos por algum inimigo oculto, saltavam para fora de água a fim de procurarem a salvação em outro elemento. Finalmente, no horizonte viam-se passar, brancas e graciosas como gaivotas de arribação, as barcas de pescadores que se dirigiam para Martigues ou os navios mercantes carregados que seguiam para a Córsega ou para a Espanha.
Apesar daquele lindo céu, daquelas barcas de contornos graciosos e da luz dourada que inundava a paisagem, o Conde, envolto na sua capa, recordava um a um todos os pormenores da terrível viagem aquela luz única e isolada que ardia nos Catalães, a vista do Castelo d’If que lhe revelou para onde o levavam, a luta com os guardas quando quis lançar-se ao mar, o seu desespero quando se sentiu vencido e a sensação fria do cano do carabina encostado à têmpora, como um anel de gelo.
E pouco a pouco, como as nascentes secas no Verão que quando se acastelam as nuvens de Outono se umedecem lentamente e começam a correr gota a gota, o Conde de Monte Cristo sentiu igualmente nascer-lhe no peito o velho fel extravasado que outrora inundara o coração de Edmond Dantés.
A partir daí acabou-se para ele o céu bonito, as barcas graciosas, o sol quente; o céu velou-se de crepes fúnebres e o aparecimento do negro gigante chamado Castelo d’If fê-lo estremecer como se lhe tivesse surgido de súbito o fantasma de um inimigo mortal.
Chegaram.
Instintivamente, o Conde recuou até à extremidade do barco. O patrão teve de lhe dizer com a sua voz mais diferente:
— Chegamos, senhor.
Monte Cristo lembrou-se de que naquele mesmo local, naquele mesmo rochedo, fora violentamente arrastado pelos seus guardas e que o tinham obrigado a subir a rampa picando-lhe os rins com a ponta das baionetas.
O caminho parecera então muito longo a Dantés; Monte Cristo achou-o muito curto. Cada remada fizera brotar, juntamente com a poalha úmida do mar, um milhão de pensamentos e recordações.
Desde a revolução de Julho que não havia prisioneiros no Castelo d’If; apenas um posto destinado a impedir o contrabando se encontrava instalado na casa da guarda. Um porteiro recebia os curiosos à porta para lhes mostrar aquele monumento de terror transformado em monumento de curiosidade.
E, no entanto, embora conhecesse pormenorizadamente o que ia ver, quando entrou debaixo da abóbada, quando desceu a escada negra, quando o conduziram às celas que pedira para ver, uma palidez fria invadiu-lhe a testa, cujo suor gelado lhe refluiu até ao coração.
O Conde perguntou se ainda havia algum antigo carcereiro do tempo da Restauração; todos tinham sido reformados ou se dedicavam a outras profissões. O porteiro que o acompanhava estava ali desde 1830 apenas. Levaram-no a sua própria cela.
Reviu a luz baça filtrar-se através do estreito respiradouro; reviu o lugar onde estava a cama, retirada depois, e atrás da cama, embora tapada, mas ainda visível devido às pedras mais novas, a abertura praticada pelo Abade Faria.
Monte Cristo sentiu as pernas fraquejarem-me; pegou num banco de madeira e sentou-se.
— Contaram-se algumas histórias acerca deste castelo além da relacionada com a prisão de Mirabeau? — perguntou o Conde — Existe alguma tradição relacionada com estas celas lúgubres, onde custa a crer que homens alguma vez tenham encerrado um homem vivo?
— Existe, sim, senhor — respondeu o porteiro — E a respeito desta mesma cela o carcereiro Antoine transmitiu-me uma.
Monte Cristo estremeceu.
O carcereiro Antoine era o seu carcereiro. Quase lhe esquecera o nome e o rosto, mas assim que o seu nome foi pronunciado reviu-o tal qual era, com o rosto rodeada de barba, o seu casaco escuro e o seu molho de chaves, cujo tilintar lhe parecia ainda ouvir.
O Conde virou-se e julgou vê-lo na sombra do corredor, tornada mais densa pelo contraste com a luz do archote que ardia nas mãos do porteiro.
— O senhor quer que a conte? — perguntou o porteiro.
— Pois sim, conte — respondeu Monte Cristo.
E pôs a mão no peito para comprimir as violentas pulsações do coração, assustado por ir ouvir contar a sua própria história.
— Conte — repetiu.
— Esta cela — prosseguiu o porteiro — Era ocupada por um prisioneiro, há muito tempo, um homem perigosíssimo, ao que parece, e tanto mais perigoso quanto lhe não faltava engenho. Nessa altura, havia outro homem no castelo, mas esse não era mau, era um pobre padre louco.
— Ah, sim, louco!... — repetiu Monte Cristo — E qual era a sua loucura?
— Oferecia milhões se lhe restituíssem a liberdade.
Monte Cristo ergueu os olhos ao céu, mas não viu o céu: havia um véu de pedra entre ele e o firmamento. Pensou que houvera um véu não menos espesso entre os olhos daqueles a quem o Abade Faria oferecia tesouros e os tesouros que lhes oferecia.
— Os prisioneiros podiam ver-se? — perguntou Monte Cristo.
— Oh, não, senhor, era expressamente proibido! Mas eles eludiram a proibição abrindo uma galeria que ia de uma cela à outra.
— E qual dos dois abriu a galeria?
— O mais novo, com certeza — respondeu o porteiro — O rapaz era engenhoso e forte, ao passo que o pobre abade era velho e fraco. Além disso, tinha o espírito demasiado vacilante para seguir uma idéia.
— Cegos!... — murmurou Monte Cristo.
— Seja como for — continuou o porteiro — O mais novo abriu a galeria. Com quê? Ninguém sabe. Mas abriu-a, e a prova é que ainda se vêem sinais dela. Repare, não os vê?
E aproximou o archote da parede.
— Sim, realmente... — respondeu o Conde, com a voz embargada pela emoção.
— Daí resultou que os dois prisioneiros comunicaram um com o outro. Quanto tempo durou a comunicação? Ninguém sabe. Ora, um dia o prisioneiro velho adoeceu e morreu. Adivinha o que fez o novo? — perguntou o porteiro, interrompendo-se.
— Diga.
— Apoderou-se do defunto, que deitou na sua própria cama com a cara virada para a parede, voltou à cela vazia, tapou o buraco e meteu-se no saco do morto. Já viu semelhante idéia?
Monte Cristo fechou os olhos e sentiu-se passar de novo por todas as impressões que experimentara quando aquela tela grosseira, ainda impregnada do frio do cadáver, lhe tocara na cara.
O porteiro continuou:
— Veja o senhor qual era o seu plano: julgava que enterravam os mortos no Castelo d’If, e como estava convencido de que não gastavam dinheiro com caixões para os presos, contava levantar a terra com os ombros. Mas infelizmente havia no castelo um costume que prejudicava o seu plano: não enterravam os mortos; limitavam-se a prender-lhes um peso aos pés e a lançá-los ao mar. Foi o que se fez e o nosso homem foi lançado à água do alto da galeria. No dia seguinte encontraram o verdadeiro morto na sua cama e adivinharam tudo, porque os coveiros disseram então o que se não tinham atrevido a dizer até ali, isto é, que no momento em que o corpo fora lançado no vácuo tinham ouvido um grito terrível, abafado imediatamente pela água, na qual desaparecera.
O Conde respirou penosamente.
O suor corria-lhe pela testa e a angústia apertava-lhe o coração.
— Não — murmurou — Não! A dúvida que experimentei era um princípio de esquecimento. Mas aqui o coração sangra de novo e volta a sentir-se faminto de vingança. E o prisioneiro, nunca mais ouviram falar dele? — perguntou.
— Nunca por nunca ser. Compreende, das duas uma: ou caiu de cabeça de cinqüenta pés de altura e morreu imediatamente...
— Disse que lhe tinham prendido um pelouro aos pés; portanto, deve ter caído de pé.
— Ou caiu de pé — prosseguiu o porteiro — E então o peso do pelouro o arrastou-o para o fundo, onde ficou, pobre homem!
— Lamenta-o?
— Claro que sim, embora morresse no seu elemento.
— Que quer dizer?
— Que corria o boato de que o desgraçado fora, no seu tempo, um oficial de marinha preso por bonapartista.
— É verdade — murmurou o Conde para consigo — Deus fê-lo flutuar à superfície das vagas e das paixões, e assim o pobre marinheiro vive na memória de alguns narradores. Conta-se a sua terrível história ao canto da lareira e estremece-se no momento em que ele fende o espaço para mergulhar no mar profundo. Nunca souberam o seu nome? — perguntou o Conde em voz alta.
— Ah sim, claro!... — respondeu o guarda.
— Como?
— Era só conhecido pelo número 34.
— Villefort, Villefort... — murmurou o Conde — O que não terá pensado quando o meu fantasma importunava as tuas insônias...
— O senhor quer continuar a visita? — perguntou o porteiro.
— Sim, sobretudo se me quiser mostrar a cela do pobre abade.
— Ah! A do número 27?
— Sim, a do número 27 — repetiu Monte Cristo.
E pareceu-lhe ouvir ainda a voz do Abade Faria quando lhe perguntara o seu nome e ele lhe gritara o número através da parede.
— Venha.
— Espere, deixe-me dar uma última vista de olhos à cela.
— Calha bem — disse o guia — Porque me esqueci da chave da outra.
— Vá buscá-la.
— Deixo-lhe o archote.
— Não, leve-o.
— Mas fica sem luz...
— Enxergo bem no escuro.
— Olha, é como ele!...
— Ele quem?
— O número 34. Dizem que estava tão habituado às trevas que era capaz de ver um alfinete no canto mais escuro da cela.
— Mas precisou de dez anos para o conseguir — murmurou Monte Cristo.
O guia afastou-se com o archote.
O Conde dissera a verdade: bastaram-lhe apenas uns segundos na escuridão para distinguir tudo como em pleno dia. Então olhou a toda a volta de si e reconheceu realmente a sua cela.
— Sim, aqui está a pedra em que me sentava! E aqui a marca dos meus ombros escavada na muralha! E aqui uns restos do sangue que me correu da testa no dia em que quis partir a cabeça contra a parede! Oh, estes números!... Lembro-me deles... Fi-los num dia em que calculava a idade do meu pai, para saber se o encontraria vivo, e a idade de Mercedes, para saber se a encontraria livre... tive um momento de esperança depois de fazer estes cálculos... não contava com a fome nem com a infidelidade!
E um riso amargo saiu da boca do Conde. Acabava de ver, como num sonho, o pai a ser conduzido à sepultura... e Mercedes dirigindo-se para o altar!
No outro lance da muralha deu com os olhos numa inscrição. Ainda se destacava, a branco, na parede esverdeada:
“Meu Deus, conserva-me a memória!”
Oh, sim, era esta a minha única prece nos últimos tempos! — exclamou — Já não pedia a liberdade pedia a memória, receava enlouquecer e esquecer. Meu Deus conservaste-me a memória e lembrei-me. Obrigado, obrigado, meu Deus!
Neste momento a luz do archote refletiu-se nas paredes; era o guia que descia.
Monte Cristo foi ao seu encontro.
— Siga-me — disse o homem.
E sem necessitar de vir à superfície, fê-lo seguir por um corredor subterrâneo que o conduziu a outra entrada.
Também ali Monte Cristo foi assaltado por um mundo de pensamentos.
A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o meridiano traçado na muralha, com o auxílio do qual o Abade Faria contava as horas; depois os restos da cama em que o pobre prisioneiro morrera. Ao ver isto, em vez das angústias que o Conde experimentara na sua cela, um sentimento suave e terno, um sentimento de reconhecimento, encheu-lhe o coração e duas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.
— Era aqui que estava o abade louco — informou o guia — Era por ali que o rapaz vinha ter com ele — e mostrou a Monte Cristo a entrada da galeria, que daquele lado ficara aberta — Pela cor da pedra — continuou — Um sábio descobriu que devia haver mais ou menos dez anos que os dois prisioneiros comunicavam um com o outro. Pobres homens, muito se devem ter aborrecido durante esses dez anos!
Dantés tirou alguns luíses da algibeira e estendeu a mão para o homem que pela segunda vez o lamentava sem o conhecer. O porteiro aceitou-os, julgando receber algumas moedas de pouco valor, mas à luz do archote verificou que o visitante lhe dera muito dinheiro.
— Senhor — disse-lhe — Deve ter se enganado...
— Como assim?
— Deu-me moedas de ouro.
— Bem sei.
— Sabe?!
— Sim.
— Era sua intenção dar-me este ouro?
— Era.
— E posso guardá-lo com a consciência tranqüila?
— Pode.
O porteiro olhou atônito para Monte Cristo.
— E honestidade — acrescentou o Conde, como Hamlet.
— Senhor — tornou o porteiro, que não ousava acreditar na sua sorte — Senhor, não compreendo a sua generosidade...
— É fácil de compreender, meu amigo — perguntou o Conde — Fui marinheiro e a sua história comoveu-me mais do que qualquer outra.
— Então, senhor — disse o guia — Já que é tão generoso, merece que lhe ofereça qualquer coisa.
— Que tem para me oferecer, meu amigo? Conchas, objetos de palha? Obrigado.
— Não, senhor; não, senhor! Qualquer coisa que se refere à história que lhe contei há pouco.
— Deveras?! — exclamou o Conde, entusiasmado — O quê?
— Ouça, vou contar-lhe o que aconteceu — disse o porteiro — Pensei aqui para comigo: “Encontra-se sempre qualquer coisa numa cela onde um prisioneiro permaneceu quinze anos...” E pus-me a sondar as paredes.
— Ah! — exclamou Monte Cristo lembrando-se do duplo esconderijo do abade — Com efeito.
— À força de procurar — continuou o porteiro — Descobri que a parede soava a oco à cabeceira da cama e na lareira da chaminé.
— Claro, claro — disse Monte Cristo.
— Levantei as pedras e encontrei...
— Uma escada de corda? Ferramentas? — antecipou-se o Conde.
— Como sabe? — perguntou o porteiro, surpreendido.
— Não sei, mas calculo — respondeu o Conde — Habitualmente‚ esse gênero de coisas que se encontra nos esconderijos dos prisioneiros.
— Exato, senhor, uma escada de corda e ferramentas — confirmou o guia.
— E ainda as tem? — perguntou Monte Cristo.
— Não, senhor. Vendi esses objetos, que eram muito curiosos, a visitantes. Mas resta-me outra coisa...
— O quê? — perguntou o Conde com impaciência.
— Resta-me uma espécie de livro escrito em tiras de pano.
— Oh, ainda tem esse livro?! — exclamou Monte Cristo.
— Não sei se é um livro — respondeu o porteiro — Mas ainda o tenho, como lhe disse.
— Vá buscá-lo, meu amigo, vá — pediu o Conde — E se for o que presumo, não se arrependerá...
— Vou num pé e venho noutro, senhor.
E o guia saiu.
Então, Monte Cristo foi ajoelhar-se piedosamente diante dos restos daquela cama de que a morte fizera para ele um altar.
— Oh meu segundo pai — disse — Tu que me deste a liberdade, a ciência e a riqueza; tu que, a exemplo das criaturas de essência superior à nossa, conhecias a ciência do bem e do mal, se no fundo da sepultura resta alguma coisa de nós que estremeça ao ouvir a voz daqueles que ficaram na Terra; se na transfiguração que sofre o cadáver alguma coisa animada paira nos lugares onde muito amamos e sofremos, nobre coração, espírito supremo, alma profunda, por uma palavra, por um sinal, por uma revelação qualquer, conjuro-te, em nome do amor paternal que me concedias e do respeito filial que te dedicava, a tirar-me este resto de dúvida que, a não se transformar em convicção, se transformar em remorso.
O Conde baixou a cabeça e juntou as mãos.
— Veja, senhor! — disse uma voz atrás dele.
Monte Cristo estremeceu e virou-se.
O porteiro estendia-lhe as tiras de pano em que o Abade Faria registrara todos os tesouros da sua ciência. Aquele manuscrito era a grande obra do Abade Faria acerca da realeza na Itália.
O Conde pegou-lhe sofregamente e os seus olhos pousaram em primeiro lugar na epígrafe. Leu: “Arrancará os dentes do dragão e calcarás aos pés os leões, disse o Senhor”.
— Ah, aqui está a resposta! — exclamou — Obrigado, meu pai, obrigado!
Depois disse, tirando da algibeira uma carteirinha que continha dez notas de mil francos cada uma:
— Tome, aceite esta carteira.
— O senhor a está me dando?
— Dou, mas com a condição de só ver o que tem dentro depois de me ir embora.
E apertando ao peito a relíquia que acabava de recuperar e que tinha para ele o valor do mais rico tesouro, saiu do subterrâneo e meteu-se na barca.
— Para Marselha! — ordenou.
E enquanto se afastava, disse com os olhos cravados na sombria prisão:
— Ai daqueles que me mandaram encerrar naquela prisão e daqueles que esqueceram que lá estive encerrado!
Quando voltou a passar diante dos Catalães, o Conde virou-se, envolveu a cabeça na capa e murmurou um nome feminino. A vitória era completa; o Conde vencera duas vezes a dúvida. O nome que pronunciara com uma expressão de ternura que era quase de amor fora o nome de Haydée.
Assim que pôs pé em terra, Monte Cristo dirigiu-se para o cemitério, onde sabia encontrar Morrel. Também ele, dez anos antes, procurara piedosamente uma sepultura naquele cemitério, e procurara-a em vão. Ele, que regressava a França com milhões, não conseguira encontrar a sepultura do pai morto de fome.
Morrel bem mandara lá colocar uma cruz, mas a cruz caíra e o coveiro queimara-a, como fazem todos os coveiros a toda a madeira velha que encontram caída nos cemitérios. O digno negociante fora mais feliz: morto nos braços dos filhos, fora, levado por eles, dormir o sono eterno junto da mulher, que o precedera dois anos na eternidade.
Duas grandes lajes de mármore com os seus nomes encontravam-se colocadas uma ao lado da outra num pequeno recinto fechado por uma balaustrada de ferro e sombreado por quatro ciprestes. Maximilien estava encostado a uma das árvores e olhava sem ver para as duas sepulturas. A sua dor era profunda, quase desvairada.
— Maximilien, não é para aí que deve olhar, é para ali — disse-lhe o Conde, indicando-lhe o céu.
— Os mortos estão em toda a parte — perguntou Morrel — Não foi o que me disse quando me trouxe de Paris?
— Maximilien — disse o Conde — Pediu-me durante a viagem que lhe permitisse ficar uns dias em Marselha. Continua a ser essa a sua vontade?
— Já não tenho vontade, Conde, mas parece-me que esperarei menos penosamente aqui do que em outro lugar.
— Tanto melhor, Maximilien, porque vou deixá-lo, mas levo comigo a sua palavra, não é verdade?
— Oh, a esquecerei, Conde, a esquecerei! — respondeu Morrel.
— Não, não a esquecerá porque acima de tudo é um homem honrado, Morrel; porque jurou e porque vai jurar novamente.
— Conde, tenha compaixão de mim! Sou tão infeliz, Conde!
— Conheci um homem mais infeliz do que o senhor, Morrel.
— Impossível.
— Claro! — exclamou Monte Cristo — É um dos orgulhos da nossa pobre humanidade cada homem julgar-se mais infeliz do que outro infeliz que chora e geme a seu lado.
— Quem pode ser mais infeliz do que o homem que perdeu o único bem que amava e desejava no mundo?
— Ouça, Morrel — disse Monte Cristo — E fixe um instante o espírito no que lhe vou dizer. Conheci um homem que, tal como o senhor, depositara todas as suas esperanças de felicidade numa mulher. Esse homem era novo e tinha um velho pai que amava e uma noiva que adorava. Ia casar com ela quando de súbito um desses caprichos do destino que fariam duvidar da bondade de Deus se Deus se não revelasse mais tarde mostrando que tudo é para ele um meio de conduzir à sua unidade infinita, quando de súbito um capricho do destino lhe roubou a liberdade, a amada e o futuro com que sonhava e que julgava pertencer-lhe, pois, cego como estava, só podia ler no presente, e o lançou no fundo de uma masmorra.
— Pois sim, mas sai-se de uma masmorra ao fim de oito dias, de um mês, de um ano... — observou Morrel.
— Ele ficou lá catorze anos, Morrel — disse o Conde, pousando a mão no ombro do rapaz.
Maximilien estremeceu.
— Catorze anos!... — murmurou.
— Catorze anos — repetiu o Conde — Também ele, durante esses catorze anos, teve muitos momentos de desespero. Também ele, como o senhor, Morrel, julgando-se o mais infeliz dos homens, quis se matar.
— E depois? — perguntou Morrel.
— E depois? No momento supremo Deus se revelou por um meio humano. Porque Deus já não faz milagres. Talvez à primeira vista, os olhos velados de lágrimas precisam de tempo para se abrir por completo, não tenha compreendido a misericórdia infinita do Senhor, mas enfim, encheu-se de paciência e esperou. Um dia saiu miraculosamente da tumba, transfigurado, rico, poderoso, quase um deus. O seu primeiro pensamento foi para o pai, mas o pai morrera!
— A mim também me morreu o meu pai — observou Morrel.
— Sim, mas o seu pai morreu-lhe nos braços, amado, feliz, respeitado, rico, vergado ao peso dos anos, ao passo que o pai dele morrera pobre, desesperado, duvidando de Deus; e quando dez anos depois da sua morte o filho lhe procurou a sepultura, a sua própria sepultura desaparecera e ninguém lhe pôde dizer: “É aqui que repousa no Senhor o coração que tanto te amou”.
— Oh! — exclamou Morrel.
— Ele era portanto mais infeliz filho do que o senhor, Morrel, pois nem sequer sabia onde fora sepultado o pai.
— Mas — disse Morrel — Restava-lhe a mulher que amara, ao menos.
— Engana-se, Morrel. Essa mulher...
— Também morrera? — atalhou Maximilien.
— Pior do que isso: fora infiel, casara com um dos perseguidores do noivo. Bem vê, Morrel, que esse homem era mais infeliz, como apaixonado, do que o senhor...
— E Deus mandou consolação a esse homem? — perguntou Morrel.
— Mandou-lhe pelo menos calma.
— E esse homem ainda poderá ser feliz um dia?
— Tem essa esperança, Maximilien.
O jovem deixou cair a cabeça para o peito.
— Tem a minha promessa — disse, após um instante de silêncio e estendendo a mão a Monte Cristo — Mas lembre-se...
— Em 5 de Outubro, Morrel, espero-o na Ilha de Monte Cristo. Em 4, um iate o esperará no porto de Bástia; um iate chamado Eurus. Apresente-se ao capitão, que o levar junto de mim. Está combinado, não é verdade, Maximilien?
— Está combinado e farei o que está combinado. Mas lembre-se que em 5 de Outubro...
— Criança que ainda não sabe o que é a promessa de um homem... já lhe disse vinte vezes que nesse dia, se quiser morrer, até o ajudarei, Morrel. Adeus.
— Deixa-me?
— Deixo. Tenho que ir a Itália. Deixo-o sozinho, sozinho em luta com a desventura, sozinho com essa águia de asas poderosas que o Senhor envia aos seus eleitos para os transportar a seus pés. A história de Ganimedes não é uma fábula, Maximilien, é uma alegoria.
— Quando parte?
— Imediatamente. O navio a vapor espera-me e daqui a uma hora já estarei longe de si. Acompanha-me até ao porto, Morrel?
— Estou às suas ordens, Conde.
— Abrace-me.
Morrel acompanhou o Conde até ao porto. O fumo já saía como um penacho imenso da chaminé negra que o lançava ao céu. Pouco depois o navio partiu, e uma hora mais tarde, como dissera Monte Cristo, o mesmo penacho de fumo esbranquiçado raiava, quase invisível, o horizonte oriental, escurecido pelas primeiras neblinas da noite.




continua... 






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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.