segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 17





— CAPÍTULO DEZESSETE —
O SEGREDO DE BATILDA



— HARRY, pare.
— Que foi?
Tinham acabado de alcançar o túmulo do Abbott desconhecido.
— Tem alguém ali. Alguém nos observando. Sinto. Ali, perto dos arbustos.
Eles ficaram muito quietos, abraçados, olhando a densa sebe escura em torno do cemitério.
Harry não conseguia enxergar nada.
— Tem certeza?
— Vi uma coisa se mexer. Poderia jurar que vi...
Ela o largou para deixar livre a mão da varinha.
— Estamos parecendo trouxas — lembrou Harry.
— Trouxas que acabaram de depositar flores no túmulo dos seus pais! Harry, tenho certeza de que há alguém ali!
Harry pensou no História da Magia, diziam que o cemitério era mal-assombrado. E se...? Então, ele ouviu um ruído abafado e viu um montinho de neve deslocada no arbusto para o qual Hermione apontara.
Fantasmas não deslocam neve.
— É um gato — disse Harry, após alguns segundos — Ou um pássaro. Se fosse um Comensal da Morte já estaríamos mortos. Mas vamos sair daqui e poderemos tornar a vestir a capa.
Eles olharam para trás várias vezes enquanto se dirigiam à saída do cemitério. Harry que não se sentia tão corajoso quanto fingia estar quando tranquilizou Hermione, ficou feliz de alcançar o portão e a calçada escorregadia. Tornaram, então, a se cobrir com a Capa da Invisibilidade. O bar estava mais cheio do que antes: vozes em seu interior agora cantavam a canção natalina que tinham ouvido ao se aproximar da igreja. Por um momento, Harry pensou em sugerir que se refugiassem ali, mas, antes que pudesse falar, Hermione murmurou:
— Vamos por aqui.
E puxou-o pela rua escura, que saía da aldeia, na direção oposta àquela da qual tinham vindo.
Harry divisou ao longe o ponto em que os chalés terminavam e a estradinha entrava em campo aberto. Eles caminharam o mais rápido que ousaram, passaram por outras tantas janelas em que cintilavam luzes multicoloridas, os contornos de árvores de Natal erguendo sombras através das cortinas.
— Como vamos encontrar a casa da Batilda? — perguntou Hermione, que tremia um pouco e não parava de espiar por cima do ombro — Harry? Que acha? Harry?
Ela puxou-o pelo braço, mas Harry não a escutara. Estava olhando para uma massa escura onde acabavam as casas. No momento seguinte, ele acelerou o passo, arrastando Hermione: ela escorregou um pouco no gelo.
— Harry...
— Olhe... olhe aquilo, Hermione...
— Não estou... ah!
Ele estava vendo: o Feitiço Fidelius devia ter se extinguido com Tiago e Lílian. A sebe crescera livremente nos dezesseis anos desde que Hagrid retirara Harry dos escombros ainda espalhados pelo capim, que chegava à cintura. A maior parte do chalé permanecia de pé, embora inteiramente coberta de hera escura e neve, mas o lado direito do andar superior explodira, por ali, Harry estava seguro, o feitiço se voltara contra quem o lançara. Ele e Hermione pararam ao portão, contemplando as ruínas do que tinha sido, no passado, uma casa exatamente como as vizinhas.
— Por que será que ninguém a reconstruiu? — sussurrou Hermione.
— Talvez não se possa reconstruí-la? Talvez seja como os ferimentos produzidos pelas Artes das Trevas que não são curáveis?
Ele passou a mão para fora da capa e segurou o portão muito enferrujado e coberto de neve, sem querer abri-lo, mas tentando, simplesmente, tocar alguma parte da casa.
— Você não vai entrar, vai? Parece perigoso, pode... ah, Harry, olhe!
Seu toque no portão parecia ter bastado. Erguera-se uma placa diante deles, através do emaranhado de urtigas e ervas daninhas, como uma flor bizarra que crescesse instantaneamente e, na inscrição dourada na madeira, ele leu:

Neste local, na noite de 31 de Outubro de 1981,
Lílian e Tiago Potter perderam a vida.
Seu filho, Harry, é o único bruxo
a ter sobrevivido à Maldição da Morte.
Esta casa, invisível aos trouxas, foi mantida
em ruínas como um monumento aos Potter
e uma lembrança da violência
que destruiu sua família.

A toda volta desse texto conciso, havia rabiscos feitos por outros bruxos que tinham visitado o local em que O Menino Que Sobreviveu realizara tal feito. Alguns assinaram seus nomes em tinta perpétua, outros gravaram as iniciais na madeira, outros, ainda, deixaram mensagens. As mais recentes, que se destacavam, reluzentes, sobre os dezesseis anos de grafitos mágicos, diziam mais ou menos o mesmo:

“Boa sorte, Harry, onde quer que esteja”.
“Se ler esta mensagem, Harry, saiba que estamos com você!”.
“Viva Harry Potter”.

— Eles não deviam ter rabiscado a placa! — comentou Hermione, indignada.
Harry, porém, sorriu para ela.
— É genial. Fico feliz que tenham escrito. Eu...
E se calou.
Um vulto muito agasalhado capengava pela estradinha em sua direção, recortado pela iluminação clara, na praça ao longe. Harry achou, embora fosse difícil julgar, que era o vulto de uma mulher. Ela se movia com lentidão, possivelmente receosa de escorregar no chão nevado. Suas costas curvadas, sua corpulência, seu andar arrastado, tudo indicava uma idade muito avançada. Eles observaram sua aproximação em silêncio. Harry estava aguardando para ver se ela entraria em um dos chalés pelo caminho, mas sabia, instintivamente, que não faria isso. Por fim, ela parou a uns poucos metros dos dois e, simplesmente, ficou ali no meio da rua congelada, encarando-os.
Ele não precisou que Hermione beliscasse seu braço. Praticamente não havia chance de que a mulher fosse trouxa: estava parada de olhos pregados em uma casa que lhe seria inteiramente invisível se não fosse bruxa.
Mesmo supondo que fosse uma bruxa, no entanto, era um comportamento estranho sair em uma noite tão fria, simplesmente para contemplar uma velha ruína.
Pelas regras da magia normal, ela não deveria poder vê-los. Contudo, Harry tinha a estranha impressão de que sabia da presença deles ali, e também sabia quem eram. No momento em que ele chegou a essa inquietante conclusão, a mulher ergueu a mão enluvada e fez sinal para que se aproximassem.
Hermione se achegou a Harry sob a capa, seu braço comprimindo o dele.
— Como é que ela sabe?
Ele sacudiu a cabeça. A mulher tornou a chamá-los, mais energicamente. Harry poderia pensar em muitas razões para não obedecer, contudo, suas suspeitas a respeito da identidade dela tornavam-se mais fortes a cada segundo em que continuavam parados, se encarando na rua deserta.
Seria possível que estivesse esperando por eles todos esses longos meses? Que Dumbledore lhe tivesse dito para esperar porque Harry acabaria aparecendo? Não seria provável que fosse a coisa que se mexera nas sombras do cemitério e os seguira até ali? Até a sua capacidade de senti-los sugeria um poder à la Dumbledore, que ele jamais encontrara.
Harry, por fim, falou, fazendo Hermione ofegar sobressaltada.
— A senhora é Batilda?
O vulto agasalhado assentiu e tornou a lhes fazer sinal para se aproximarem.
Sob a capa, Harry e Hermione se entreolharam. Ele ergueu as sobrancelhas. Hermione fez um aceno breve e nervoso com a cabeça.
Os dois foram ao encontro da mulher e, na mesma hora, ela deu meia-volta e saiu manquejando pelo caminho que viera. Conduzindo-os pela fileira de casas, entrou por um portão. Os garotos a seguiram por um caminho ladeado por um jardim quase tão crescido quanto o que tinham acabado de deixar. Ela se atrapalhou um instante com a chave à porta, abriu-a e se afastou para deixá-los entrar.
A bruxa cheirava mal, ou talvez fosse a casa: Harry torceu o nariz ao passarem por ela, e tirou a capa. Agora ao seu lado, o garoto percebeu como era miúda, curvada pela idade, mal alcançava o seu peito. A bruxa fechou a porta, as juntas dos dedos azuis e manchados contra a tinta descascada, então se virou e espiou o rosto de Harry. Seus olhos tinham cataratas e pregas fundas de pele transparente, e todo o seu rosto era riscado de pequenas veias rompidas e manchas marrons. Ele ficou em dúvida se a mulher realmente poderia vê-lo, e, mesmo que pudesse, o que veria se não o trouxa careca cuja identidade ele roubara?
O odor de velhice, de poeira, de roupas sujas e de comida rançosa piorou quando ela retirou o xale preto roído de traças, revelando uma cabeleira branca e rala que deixava visível o couro cabeludo.
— Batilda? — repetiu Harry.
Ela tornou a assentir. Harry percebeu a presença do medalhão contra sua pele, a coisa ali dentro, que por vezes batia, acabara de despertar; ele a sentia pulsar através do ouro frio. Será que entendia que a coisa que a destruiria estava tão perto?
Batilda passou por eles arrastando os pés, empurrando Hermione para o lado como se não a tivesse visto e desapareceu, provavelmente em uma sala de visitas.
— Harry, não me sinto muito segura — sussurrou Hermione.
— Olhe o tamanho dela, acho que poderíamos dominá-la, se fosse preciso — comentou Harry — Escute, devia ter lhe dito, eu já sabia que não está batendo bem da bola. Muriel chamou-a de gagá.
— Entre! — convidou Batilda da sala vizinha.
Hermione se assustou e agarrou o braço de Harry.
— Tudo bem — disse ele, tranquilizando-a, e entrou à sua frente.
Batilda andava vacilante pela sala, acendendo velas, mas o lugar continuava muito escuro, para não falar de sua extrema sujeira. Os pés de Harry esmagavam uma grossa camada de poeira e seu nariz sentia, sob o odor de mofo e umidade, algo pior, talvez carne estragada. Perguntou-se quando teria sido a última vez que alguém viera à casa de Batilda para verificar se estava tudo bem. Ela parecia ter esquecido seus dotes de magia, porque se atrapalhava acendendo as velas, seus punhos de renda em constante risco de pegar fogo.
— Deixe-me ajudá-la — ofereceu-se Harry, tirando os fósforos de sua mão. Ela o observou terminar de acender os tocos de vela sobre pires por toda a sala, precariamente equilibrados sobre pilhas de livros e mesinhas laterais cheias de copos rachados e bolorentos.
A última superfície em que Harry localizou uma vela foi uma cômoda bombée, em que havia um grande número de fotografias. Ao acender a vela, a chama se refletiu nos vidros e porta-retratos de prata empoeirados.
Ele viu as fotos se mexerem brevemente. Enquanto Batilda apanhava umas achas de lenha para a lareira, Harry murmurou ‘Tergeo”. A poeira desapareceu das fotos e ele viu imediatamente que faltava uma meia dúzia delas nos porta-retratos mais trabalhados. Ficou em dúvida se Batilda ou outra pessoa as teria removido. Então, a visão de uma foto mais ao fundo da coleção atraiu sua atenção, e ele a apanhou.
Era o ladrão de cabelos dourados e rosto risonho, o rapaz que se empoleirara no peitoril da janela de Gregorovitch, sorrindo indolentemente para Harry, em seu porta-retrato de prata.
E ocorreu-lhe instantaneamente onde o vira antes: em A Vida e as Mentiras de Alvo Dumbledore, de braço dado com Dumbledore, e devia ser lá que estavam as fotos desaparecidas: no livro de Rita.
— Sra.... Srta. Bagshot? — disse ele, e sua voz tremeu um pouco — Quem é ele?
Batilda estava parada no meio da sala observando Hermione acender o fogo para ela.
— Srta. Bagshot? — repetiu Harry, e adiantou-se com a foto nas mãos, no instante em que as achas pegavam fogo na lareira.
Batilda ergueu os olhos ao ouvi-lo, e a Horcrux bateu mais rápido em seu peito.
— Quem é esse rapaz? — perguntou Harry, estendendo a foto.
Batilda olhou solenemente para a foto e em seguida para Harry.
— A senhorita sabe quem é? — insistiu em um tom mais lento e alto do que o normal — Esse rapaz? A senhorita o conhece? Como é o nome dele?
Batilda tinha um ar hesitante. Harry sentiu uma horrível frustração. Como Rita fizera aflorar as lembranças da bruxa?
— Quem é esse rapaz? — perguntou, mais uma vez, em voz alta.
— Harry, que está fazendo? — indagou Hermione.
— A foto, Hermione, é do ladrão, o ladrão que roubou Gregorovitch! Por favor! — pediu ele a Batilda — Quem é?
Ela, porém, continuou olhando calada.
— Por que a senhora nos pediu para acompanhá-la, Sra... Srta... Bagshot? — perguntou Hermione, também alteando a voz — A senhora queria nos dizer alguma coisa?
Sem dar sinal de ter ouvido Hermione, Batilda agora se adiantou para Harry. Com um pequeno movimento de cabeça, ela espiou para o hall de entrada.
— Quer que a gente vá embora? — perguntou ele.
Ela repetiu o gesto, desta vez apontando primeiro para ele, depois para si mesma e, em seguida, para o teto.
— Ah, certo... Hermione, acho que ela quer que eu suba com ela.
— Está bem, vamos.
Quando, porém, Hermione começou a andar, Batilda sacudiu a cabeça com surpreendente energia, e mais uma vez apontou para Harry, depois para si mesma.
— Quer que eu vá com ela, sozinho.
— Por quê? — perguntou Hermione, e sua voz soou alta e ríspida na sala iluminada a velas, a velha sacudiu levemente a cabeça ao ouvir o barulho.
— Talvez Dumbledore tenha dito para entregar a espada a mim e somente a mim?
— Você realmente acha que ela sabe quem você é?
— Acho — respondeu Harry, olhando para os olhos esbranquiçados fixos nos dele — Acho que sabe.
— Bem, então ok, mas seja rápido, Harry.
— Vá na frente — disse Harry a Batilda.
Ela pareceu entender, porque passou por ele e se encaminhou para a porta. Harry olhou para trás e sorriu querendo tranquilizar Hermione, mas não sabia se a amiga teria visto o seu gesto, ela parou apertando o corpo com os braços em meio à sujeira iluminada a velas, o olhar na estante. Quando Harry foi saindo da sala, sem que Hermione ou Batilda vissem, ele guardou, no paletó, o porta-retrato de prata com a foto do ladrão desconhecido.
Os degraus eram altos e estreitos: Harry se sentiu tentado a colocar as mãos nas nádegas da corpulenta Batilda para garantir que não caísse de costas por cima dele, o que parecia extremamente provável. Devagar, arquejando um pouco, ela subiu ao primeiro andar, virou à direita e levou-o para um quarto de teto baixo.
Estava muito escuro e fedia horrivelmente: Harry acabara de divisar a borda de um penico embaixo da cama quando Batilda fechou a porta e até isso foi engolido pela escuridão.
— Lumus! — disse Harry, e sua varinha acendeu.
Levou um susto: Batilda se aproximara dele naqueles segundos de escuridão, e ele nem a ouvira.
— Você é Potter? — sussurrou ela.
— Sim, sou.
Ela assentiu lenta e solenemente. Harry sentiu a Horcrux batendo depressa, mais depressa do que o seu próprio coração: foi uma sensação desagradável e enervante.
— A senhora tem alguma coisa para mim? — perguntou Harry, mas a bruxa pareceu se distrair com a ponta acesa de sua varinha — A senhora tem alguma coisa para mim? — repetiu ele.
Então, ela fechou os olhos e várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: a cicatriz de Harry ardeu dolorosamente, a Horcrux vibrou tanto que o peito do suéter do garoto chegou a mexer, o quarto escuro e fétido se dissolveu momentaneamente. Ele sentiu uma súbita sensação de alegria e falou com uma voz aguda e fria: Segure-o!
Harry oscilou sem sair do lugar: o quarto escuro e malcheiroso pareceu tornar a se fechar ao seu redor, ele não sabia o que acabara de acontecer.
— A senhora tem alguma coisa para mim? — perguntou, pela terceira vez, bem mais alto.
— Aqui — sussurrou ela, apontando para um canto.
Harry ergueu a varinha e viu os contornos de uma penteadeira muito cheia sob uma janela com cortinas. Desta vez, Batilda não foi à frente. Harry passou entre ela e a cama desfeita, a varinha erguida. Não queria tirar os olhos dela.
— Que é? — indagou ao chegar à penteadeira em que havia uma pilha de alguma coisa que, pelo cheiro e aspecto, parecia roupa de cama suja.
— Ali — disse ela apontando para a massa informe.
E, no instante em que ele virou a cabeça e varreu com o olhar o amontoado confuso à procura de um punho de espada, um rubi, ela fez um movimento estranho: Harry percebeu-o pelo canto do olho, o pânico fez com que se voltasse e o horror o paralisou ao ver o velho corpo se despojar e uma grande cobra sair do lugar onde fora o pescoço da bruxa.
A cobra atacou-o quando ele ergueu a varinha: a força da mordida em seu braço fez a varinha girar para o alto em direção ao teto, sua luz rodopiou sem direção pelo quarto e se apagou. Então, um poderoso golpe de cauda em seu diafragma deixou-o completamente sem ar: ele tombou de costas sobre a penteadeira, no meio do monte de roupa imunda...
Harry rolou para o lado, evitando, por um triz, o rabo da cobra, que golpeava a penteadeira onde ele estivera um segundo antes, cacos da superfície de vidro choveram sobre ele quando bateu no chão. Lá de baixo, ele ouviu Hermione chamar:
— Harry?
Não conseguiu, porém, repor ar suficiente nos pulmões para responder: então uma massa lisa e pesada esmagou-o contra o chão e ele a sentiu deslizar por cima dele, forte, musculosa...
— Não! — ofegou, preso ao chão.
— Sim — sussurrou a voz — Sssim... seguro você... seguro você...
— Accio... Accio varinha...
Nada aconteceu, porém, e ele precisava das mãos para tentar empurrar para longe a cobra que se enrolava em torno do seu tronco, tirando-lhe o ar, comprimindo a Horcrux contra seu peito, um círculo de gelo que pulsava de vida, a centímetros do seu próprio coração disparado, e seu cérebro se inundava de luz branca e fria, obliterando todo pensamento, sua respiração sufocada, passos distantes, tudo indo...
Um coração de metal batia fora do seu peito, e agora ele estava voando, voando sentindo o triunfo em seu coração, sem precisar de vassoura nem de testrálio...
Harry foi bruscamente acordado na escuridão fedorenta, Nagini o soltara. Ele se levantou com ajuda dos braços e viu a cobra recortada contra a luz do corredor: ela atacou, e Hermione atirou-se para o lado com um grito. Seu feitiço se desviou e bateu na janela cortinada, despedaçando-a. O ar gelado encheu o quarto no momento em que Harry mergulhou para evitar mais uma chuva de cacos de vidro e seu pé escorregou em um objeto cilíndrico... sua varinha...
Ele se abaixou e apanhou-a, mas agora o quarto estava dominado pela cobra, que golpeava com o rabo.
Hermione não estava à vista e, por um momento, Harry pensou o pior, mas ouviu, então, um estampido alto e um clarão vermelho, e a cobra voou pelo ar atingindo com força o rosto do garoto, ao subir, volta a volta, o animal foi desenrolando, em direção ao teto. Harry ergueu a varinha, mas, ao fazê-lo, sua cicatriz queimou mais dolorosamente, mais intensamente do que fizera em anos.
— Ele está vindo! Hermione, ele está vindo!
Enquanto Harry berrava, a cobra caiu, sibilando ferozmente. Instaurou-se o caos: a cobra destruiu as prateleiras na parede e cacos de porcelana voaram para todo lado no momento em que Harry saltava por cima da cama e agarrava a forma escura que ele sabia ser Hermione...
Ela gritou de dor ao ser puxada por cima da cama: a cobra tornou a armar um bote, mas Harry sabia que algo pior do que o animal estava a caminho, talvez já estivesse no portão, sua cabeça ia rachar de dor na cicatriz...
A cobra avançou quando ele deu um salto veloz, arrastando Hermione junto, quando Nagini atacou, Hermione gritou: “Confringo!”, e o feitiço voou pelo quarto, explodindo o espelho do guarda-roupa e ricocheteando contra eles, quicando do chão ao teto. Harry sentiu o calor do feitiço queimar o dorso de sua mão. Cacos do espelho cortaram-lhe a face no momento em que, puxando Hermione, saltou da cama para a penteadeira desmantelada e, dali, direto para a janela estilhaçada e o vácuo, o grito dela ecoando pela noite enquanto rodopiavam pelo ar...
Então, sua cicatriz se rompeu e ele era Voldemort e estava correndo pelo quarto fétido, as mãos longas e brancas agarrando o peitoril da janela ao vislumbrar o homem careca e a mulher miúda girarem e desaparecerem, e ele gritou enfurecido, um grito que se fundiu ao da garota e ecoou pelos jardins escuros e se sobrepôs ao repique dos sinos da igreja no dia de Natal.
E seu grito foi o grito de Harry, sua dor, a dor de Harry... que pudesse acontecer ali, onde acontecera antes... ali, à vista da casa onde ele chegara tão perto de saber o que era morrer... morrer... a dor era tão terrível... irrompia do seu corpo... mas, se não tinha corpo, por que sua cabeça doía tanto, se estava morto, como poderia senti-la de forma tão insuportável, a dor não cessava com a morte, não ia...
A noite úmida de ventania, duas crianças vestidas de abóboras atravessavam a praça bamboleando, e as vitrines das lojas cobertas de aranhas de papel, todos os adornos baratos e kitsch dos trouxas simbolizando um mundo em que eles não acreditavam... e ele seguia deslizando, aquele senso de propósito e poder e correção que sempre experimentava nessas ocasiões... não raiva... isso era para almas mais fracas que ele... mas triunfo, sim... esperara por isso, desejara isso...
— Bonita fantasia, moço!
Ele viu o sorriso do menino vacilar quando se aproximou o suficiente para espiar sob o capuz da capa, viu o medo anuviar o rostinho pintado: então a criança deu meia-volta e fugiu correndo... por baixo da veste, ele acariciou o punho da varinha... um simples movimento e a criança jamais chegaria à mãe... mas desnecessário, muito desnecessário...
E, ao longo de uma rua mais escura, ele caminhou, e agora seu destino estava finalmente à vista, o Feitiço Fidelius desfeito, embora os moradores ainda não soubessem... e ele fez menos ruído do que as folhas mortas que esvoaçavam pela calçada quando se emparelhou com a sebe escura e espiou por cima...
Eles não tinham fechado as cortinas, viu-os claramente na pequena sala de visitas, o homem alto de cabelos negros e óculos, fazendo baforadas de fumaça colorida saírem de sua varinha para divertir o menininho de cabelos negros e pijama azul. A criança ria e tentava pegar a fumaça, segurá-la em sua mãozinha fechada...
Uma porta abriu e a mãe entrou, dizendo palavras que ele não pôde ouvir, seus longos cabelos acaju caindo pelo rosto. O pai ergueu o filho do chão e entregou-o à mãe. Atirou a varinha sobre o sofá e se espreguiçou, bocejando...
O portão rangeu um pouco quando ele o abriu, mas Tiago Potter não ouviu. Sua mão branca tirou a varinha de sob a capa e apontou-a para a porta que se abriu com violência. Já cruzara a porta quando Tiago chegou correndo ao hall. Foi fácil, fácil demais, ele nem chegara a apanhar a varinha...
— Lílian, pegue Harry e vá! É ele! Vá! Corra! Eu o atraso...
Detê-lo, sem uma varinha na mão!... Ele riu antes de lançar a maldição...
— Avada Kedavra!
O clarão verde inundou o hall apertado, iluminou o carrinho de bebê encostado à parede, fez os balaústres da escada lampejarem como raios e Tiago Potter caiu como uma marionete cujos cordões tivessem sido cortados...
Ele ouviu a mulher gritar no primeiro andar, encurralada, mas, enquanto tivesse bom senso, ela, pelo menos, nada teria a temer... ele subiu a escada, achando graça nos esforços que ela fazia para se entrincheirar no... ela também não tinha varinha... como eram idiotas e confiantes em julgar que sua segurança eram os amigos, que as armas poderiam ser postas de lado mesmo por instantes...
Ele arrombou a porta, atirou para o lado a cadeira e as caixas apressadamente empilhadas para defendê-la com um displicente aceno da varinha... e ali estava ela, a criança nos braços. Ao vê-lo, Lílian largou o filho no berço às suas costas e abriu bem os braços, como se isso pudesse adiantar, como se ocultando-o esperasse ser escolhida como alvo...
— O Harry não, o Harry não, por favor, o Harry não!
— Afaste-se, sua tola... afaste-se, agora...
— Harry não, por favor, não, me leve, me mate no lugar dele...
— Este é o meu último aviso...
— Harry não! Por favor... tenha piedade... tenha piedade... Harry não! Harry não! Por favor... farei qualquer coisa...
—Afaste-se... afaste-se, garota...
Ele poderia tê-la afastado do berço à força, mas lhe pareceu mais prudente liquidar todos... o clarão verde lampejou pelo quarto e ela tombou como o marido. Todo esse tempo, a criança não gritara: sabia ficar em pé segurando as grades do berço, e ergueu os olhos para o rosto do intruso com uma espécie de vivo interesse, talvez achando que fosse seu pai escondido sob a capa, e que ele produziria mais luzes bonitas, e sua mãe reapareceria a qualquer momento, rindo...
Ele apontou a varinha certeiramente para o rosto do menino: queria ver acontecer, a destruição desse perigo inexplicável. A criança começou a chorar: notara que ele não era Tiago. Não gostava de bebê chorando, nunca fora capaz de suportar as criancinhas choramingando no orfanato...
— Avada Kedavra!
Então ele sucumbiu: não era mais nada exceto dor e terror e precisava se esconder, não aqui nos destroços da casa em ruínas, onde a criança estava presa, aos berros, mas longe... longe...
— Não — gemeu ele.
A cobra se arrastou pelo chão imundo e atravancado, e ele matara o garoto, contudo ele era o garoto...
—Não...
Agora estava parado à janela estilhaçada da casa de Batilda, absorto nas lembranças de sua maior perda, e a seus pés a enorme cobra rastejava pelos cacos de porcelana e vidro... ele baixou os olhos e viu algo... algo inacreditável...
—Não...
— Harry, está tudo bem, você está bem!
Ele se abaixou e apanhou a foto amassada. Ali estava ele, o ladrão desconhecido, o ladrão que ele estava procurando...
— Não... eu a deixei cair... eu a deixei cair...
— Harry, tudo bem, acorde, acorde!
Ele era Harry... Harry, e não Voldemort... e a coisa que fazia o ruído abafado não era uma cobra. Abriu os olhos.
— Harry — sussurrou Hermione — Você está se sentindo... bem?
— Estou — mentiu ele.
Estava na barraca, deitado em uma das camas baixas do beliche, sob uma montanha de cobertores. Percebia que era quase manhã pela quietude e friagem, a luz pálida além do teto da barraca. Ele estava encharcado de suor, sentia o suor nos lençóis e cobertores.
— Escapamos.
— Sim — disse Hermione — Precisei usar o Feitiço de Levitação para deitar você no beliche, não consegui levantá-lo. Você esteve... bem, você não esteve muito...
Havia olheiras arroxeadas sob seus olhos castanhos e ele viu uma pequena esponja em sua mão: Hermione estivera enxugando o rosto dele.
— Você esteve doente — ela terminou a frase — Muito doente.
— Quanto tempo faz que partimos?
— Horas. Está quase amanhecendo.
— E eu estive... o quê, inconsciente?
— Não, exatamente — respondeu Hermione constrangida — Esteve gritando e gemendo e... dizendo coisas — acrescentou em um tom que deixou Harry inquieto.
Que teria feito? Berrara maldições como Voldemort, chorara como o bebê no berço?
— Não consegui retirar a Horcrux de você — disse Hermione, e ele percebeu que a amiga queria mudar de assunto — Ficou presa, presa no seu peito. Deixou uma marca, lamento. Tive de usar o Feitiço de Corte para soltá-la. A cobra também o mordeu, mas limpei o ferimento e apliquei um pouco de ditamno...
Ele arrancou do corpo a camiseta suada que usava e olhou para baixo. Havia uma oval escarlate sobre seu coração, onde o medalhão o queimara. Viu também as marcas de furos quase cicatrizadas em seu braço.
— Onde guardou a Horcrux?
— Na minha bolsa. Acho que não devíamos usá-la por um tempo.
Ele se recostou nos travesseiros e fitou o rosto atormentado e cinzento de Hermione.
— Não devíamos ter ido a Godric’s Hollow. Foi minha culpa, minha inteira culpa, sinto muito.
— Não foi sua culpa. Eu quis ir também; realmente pensei que Dumbledore tivesse deixado a espada lá para você.
— É, bem... entendemos mal, não foi?
— Que aconteceu, Harry? Que aconteceu quando ela o levou pra cima? A cobra estava escondida em algum lugar? E simplesmente saiu e a matou e atacou você?
— Não. Ela era a cobra... ou a cobra era ela... todo o tempo.
— Q-quê?
Ele fechou os olhos. Ainda podia sentir o cheiro da casa de Batilda em seu corpo: isso tornava o episódio pavorosamente vívido.
— Batilda devia estar morta havia algum tempo. A cobra estava... estava dentro dela. Você-Sabe-Quem levou-a para Godric’s Hollow para esperar. Você tinha razão. Ele sabia que eu voltaria.
— A cobra estava dentro dela?
Ele reabriu os olhos.
Hermione parecia revoltada, nauseada.
— Lupin disse que haveria magia que jamais imagináramos existir — respondeu Harry — Ela não quis falar na sua frente porque era a linguagem das cobras, pura ofidioglossia, e não percebi, mas é claro que a entendi. Uma vez no quarto, a cobra mandou uma mensagem a Você-Sabe-Quem, ouvi a transmissão em minha cabeça, senti-o excitado, disse para me segurar lá... então...
Lembrou-se da cobra saindo do pescoço de Batilda.
Hermione não precisava conhecer os detalhes.
—... ela se transformou, se transformou em uma cobra e me atacou.
Harry baixou os olhos para as marcas dos furos.
— Não era para me matar, só para me segurar ali até Você-Sabe-Quem chegar. Se ele ao menos tivesse conseguido matar a cobra, teria valido a pena tudo...
Desgostoso, sentou-se e atirou as cobertas para o lado.
— Harry, não, tenho certeza que precisa descansar!
— Você é que precisa dormir. Sem querer ofender, você está com uma cara horrível. Estou ótimo. Vou fazer a vigia por um tempo. Onde está minha varinha?
Ela não respondeu, olhou-o apenas.
— Onde está minha varinha?
Ela mordeu os lábios e as lágrimas encheram seus olhos.
— Harry...
— Onde está minha varinha?
Hermione se abaixou para apanhá-la ao lado da cama e entregou-a.
A varinha de azevinho e fênix estava quase partida ao meio. Um frágil fio de pena de fênix mantinha as metades penduradas. A madeira rachara inteiramente. Harry apanhou o objeto como se fosse um organismo vivo que tivesse sofrido um grave ferimento. Não conseguiu pensar direito: tudo pareceu uma fusão de pânico e medo. Estendeu, então, a varinha para Hermione.
— Conserte-a. Por favor.
— Harry, acho que quando se parte assim...
— Por favor, Hermione, tente!
— R-Reparo!
A parte pendurada da varinha tornou a emendar.
Harry empunhou-a.
— Lumus!
A varinha soltou uma faisquinha e se apagou.
Harry apontou-a para Hermione.
— Expelliarmus!
A varinha de Hermione sacudiu, mas não se soltou de sua mão. A fraca tentativa de magia foi demais para a varinha, que tornou a se partir em dois. Harry contemplou-a, consternado, incapaz de absorver o que estava vendo... a varinha que sobrevivera a tanto...
— Harry — Hermione sussurrou tão baixinho que ele quase não pôde ouvi-la — Sinto muito mesmo. Acho que fui eu. Quando estávamos indo embora, entende, a cobra avançou para nós, então lancei um Feitiço Detonador e ele ricocheteou para todo lado e deve ter... deve ter atingido...
— Foi um acidente — disse Harry, maquinalmente. Sentia-se vazio, atordoado — Encontraremos... encontraremos um jeito de consertá-la.
— Harry, acho que não conseguiremos — disse Hermione, as lágrimas escorrendo pelo rosto — Lembra... lembra o Rony? Quando partiu a varinha no acidente com o carro? Nunca mais foi a mesma, ele teve que comprar uma nova.
Harry pensou em Olivaras, sequestrado e refém de Voldemort, em Gregorovitch, que estava morto. Como iria encontrar uma varinha nova?
— Bem — replicou Harry, em um tom falsamente objetivo — Bem, acho que por ora precisarei pedir a sua emprestada enquanto vigio.
O rosto brilhando de lágrimas, Hermione entregou a varinha e Harry saiu, deixando-a sentada junto à cama dele, nada mais desejando senão ficar longe da amiga.






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