quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 15





— CAPÍTULO QUINZE —
A VINGANÇA DO DUENDE



CEDO NA MANHÃ SEGUINTE, antes que os outros acordassem, Harry deixou a barraca em busca da árvore mais antiga e de aparência mais nodosa e elástica que pudesse encontrar. Ali, à sua sombra, ele enterrou o olho de Olho-Tonto Moody e marcou o local gravando, com a sua varinha, uma pequena cruz na casca. Não era muita coisa, mas Harry sentiu que Olho-Tonto teria preferido isso a ficar engastado na porta de Dolores Umbridge.
Voltou, então, à barraca e esperou os outros acordarem para discutir o que fariam a seguir.
Harry e Hermione acharam que era melhor não pararem em lugar algum muito tempo, e Rony concordou, com a única ressalva de que o próximo deslocamento os deixasse próximos a um sanduíche de bacon. Hermione desfez, portanto, os feitiços que lançara sobre a clareira, enquanto os dois amigos apagavam todas as marcas e impressões no solo que pudessem indicar que haviam acampado ali. Em seguida, desaparataram para a periferia de uma pequena cidade comercial.
Depois de armarem a barraca ao abrigo de um pequeno arvoredo que cercaram com feitiços defensivos, Harry arriscou uma surtida sob a Capa da Invisibilidade para procurar alimentos. Sua tentativa, porém, não saiu conforme planejara. Mal acabara de entrar na cidade quando um frio anormal, uma névoa baixa e um repentino escurecimento do céu o fizeram estacar, congelado.
— Mas você sabe conjurar um Patrono genial! — protestou Rony, quando Harry voltou à barraca de mãos vazias, sem fôlego, dizendo uma única palavra: “Dementadores”.
— Não consegui... produzir um — arquejou, comprimindo uma pontada no lado do corpo — Não quis... aparecer.
As expressões de pesar e desapontamento dos amigos deixaram-no envergonhado.
Fora uma experiência aterrorizante ver ao longe os dementadores deslizando da névoa, e compreender, quando o frio paralisante obstruiu os seus pulmões e gritos distantes encheram seus ouvidos, que ele não ia conseguir se proteger. Harry precisou de toda a sua força de vontade para se despregar do chão e correr, deixando os dementadores sem olhos se deslocarem entre os trouxas que talvez não os vissem, mas que, certamente, sentiriam o desespero que eles lançavam por onde quer que passassem.
— Continuamos, então, sem comida.
— Cala a boca, Rony — cortou-o Hermione — Harry, que aconteceu? Por que acha que não conseguiu conjurar o seu Patrono? Ontem você fez isso perfeitamente!
— Não sei.
Harry afundou-se em uma das velhas poltronas de Perkins, sentindo-se, a cada momento, mais humilhado. Receava que alguma coisa tivesse desabilitado dentro dele. O dia de ontem parecia ter sido muitos séculos atrás: hoje, sentia-se novamente com treze anos, o único garoto que desmaiara no Expresso de Hogwarts.
Rony chutou o pé de uma cadeira.
— Quê? — rosnou para Hermione — Estou morrendo de fome! Depois que quase morri de tanto sangrar, só comi uns dois cogumelos!
— Então vá e abra caminho à força entre os dementadores — retrucou Harry, mordido.
— Eu iria, mas estou com um braço na tipoia, caso você não tenha reparado!
— Muito conveniente.
— E que quer dizer...
— É claro! — exclamou Hermione, dando um tapinha na testa e fazendo os dois se calarem de susto — Harry, me dá o medalhão! — pediu impaciente, estalando os dedos para o garoto ao ver que não reagira — Você ainda está usando a Horcrux!
Ela estendeu as mãos e Harry tirou a corrente de ouro pela cabeça.
No momento em que o objeto desencostou de sua pele, o garoto se sentiu livre e estranhamente leve. Não tinha percebido que estava suado e que havia um peso comprimindo seu estômago até as duas sensações desapareceram.
— Melhor? — perguntou Hermione.
— Nossa, muito melhor!
— Harry — tornou ela, agachando-se à sua frente e usando um tom de voz que o garoto associava a visitas a gente muito doente — Você não acha que foi possuído, acha?
— Quê? Não! — exclamou ele, na defensiva — Lembro-me de tudo que fizemos enquanto estive usando o medalhão. Eu não saberia o que fiz se estivesse possuído, não é? Gina me contou que, às vezes, ela não conseguia se lembrar de nada.
— Hum — disse Hermione, contemplando o pesado medalhão — Bem, talvez seja melhor não o usarmos. Podemos simplesmente guardá-lo aqui na barraca.
— Não vamos deixar essa Horcrux por aí — disse Harry, com firmeza — Se a perdermos, se a roubarem...
— Ah, tá bem, tá bem — respondeu ela, colocando o medalhão no próprio pescoço e escondendo-o por baixo da blusa — Mas vamos nos revezar, assim ninguém irá usá-la por muito tempo.
— Ótimo — disse Rony, irritado — E agora que já acertamos isso, será que podemos comer alguma coisa?
— Tudo bem, mas vamos procurar em outro lugar — propôs Hermione, lançando um olhar rápido para Harry — Não tem sentido ficar aqui, sabendo que os dementadores estão atacando.
Eles acabaram pernoitando em um extenso campo de uma propriedade rural isolada, na qual obtiveram ovos e pão.
— Não estamos roubando, não é? — perguntou Hermione, em tom preocupado, enquanto devoravam ovos mexidos com torrada — Não se eu deixei um dinheiro no galinheiro, concordam?
Rony virou os olhos para o alto e disse com a boca estufada:
— Er-mi-ne, cê precupo demais. Elaxa!
E, de fato, ficou muito mais fácil relaxar depois de estarem bem alimentados: a discussão sobre os dementadores foi esquecida entre risos, e Harry se sentiu animado, e até esperançoso, quando assumiu a primeira das três vigias da noite.
Esta foi a primeira vez que constataram que uma barriga cheia gera bom humor, e, uma vazia, desentendimento e tristeza. A Harry, isso não surpreendeu muito, porque chegara várias vezes à beira da inanição na casa dos Dursley. Hermione suportou razoavelmente bem as noites em que só conseguiam arranjar frutinhas e biscoitos velhos, sua paciência talvez um pouco mais curta do que o normal e seus silêncios melancólicos.
Rony, no entanto, fora acostumado a três deliciosas refeições por dia, cortesia de sua mãe ou dos elfos domésticos de Hogwarts, e a fome o tornava irracional e irascível. Sempre que a falta de comida coincidia com sua vez de usar a Horcrux, ele se tornava decididamente desagradável.
— E agora? — era o seu constante refrão. Não parecia ter ideias a contribuir, mas esperava que Harry e Hermione sugerissem planos, enquanto ele ficava parado, remoendo a escassez de comida.
Assim, Harry e Hermione passavam horas infrutíferas, tentando decidir onde procurar as outras Horcruxes e como destruir a que tinham em seu poder, suas conversas se tornando cada vez mais repetitivas, pois não tinham novas informações.
Uma vez que Dumbledore dissera a Harry que acreditava que Voldemort tivesse escondido as Horcruxes em lugares que julgava importantes, os dois não paravam de desfiar, em uma espécie de ladainha enfadonha, os lugares onde sabiam que o lorde vivera ou visitara. O orfanato onde nascera e crescera, Hogwarts onde fora educado, Borgin & Burkes, onde trabalhara ao terminar a escola, depois a Albânia, onde passara os anos de exílio: essa era a base de suas especulações.
— É, vamos à Albânia. Não vamos gastar mais do que uma tarde para vasculhar o país inteiro — disse Rony, sarcasticamente.
— Não pode haver nada lá. Ele já tinha criado cinco das Horcruxes quando foi para o exílio, e Dumbledore tinha certeza de que a cobra era a sexta — contrapôs Hermione — Sabemos que a cobra não está na Albânia, normalmente acompanha Vol...
— Eu não pedi para você parar de dizer isso?
— Ótimo! A cobra normalmente está com Você-Sabe-Quem... feliz agora?
— Nem tanto.
— Não consigo vê-lo escondendo nada na Borgin & Burkes — disse Harry, que já defendera esse ponto de vista muitas vezes, mas repetiu-o apenas para quebrar o incômodo silêncio — Borgin e Burkes eram especialistas em objetos das Trevas, teriam reconhecido uma Horcrux imediatamente.
Rony bocejou acintosamente. Reprimindo um forte impulso de atirar alguma coisa no amigo, Harry continuou:
— Ainda acho que ele poderia ter escondido alguma coisa em Hogwarts.
Hermione suspirou.
— Mas Dumbledore a teria encontrado, Harry!
O garoto repetiu o argumento que sempre trazia à baila em favor de sua teoria.
— Dumbledore confessou a mim que nunca presumiu conhecer todos os segredos de Hogwarts. E estou lhe dizendo que se havia um lugar que Vol...
— Oi!
— VOCÊ-SABE-QUEM, então! — gritou Harry, irritado além da conta — Se havia um lugar que Você-Sabe-Quem considerava realmente importante era Hogwarts!
— Ah, corta essa — caçoou Rony — A escola dele?
— É, a escola dele! Foi o primeiro lar verdadeiro que ele teve, o lugar que o tornava especial, que significava tudo para ele, e mesmo depois que saiu...
— É de Você-Sabe-Quem que estamos falando, certo? Não é de você, é? — indagou Rony.
Puxava a corrente da Horcrux em seu pescoço: Harry foi assaltado pelo desejo de agarrar a corrente e usá-la para estrangular o amigo.
— Você nos contou que Você-Sabe-Quem pediu a Dumbledore para lhe dar emprego depois que saiu da escola — disse Hermione.
— Isso.
— E Dumbledore achou que ele só queria voltar para procurar alguma coisa, provavelmente um objeto de outro dos fundadores para transformá-lo em uma Horcrux?
—É.
— Mas ele não conseguiu o emprego, certo? — conferiu Hermione — Então, ele nunca teve oportunidade de procurar lá o objeto de um fundador e escondê-lo na escola!
— Ok, então — concordou Harry, vencido — Esqueça Hogwarts.
Sem outras pistas, eles viajaram a Londres e, protegidos pela Capa da Invisibilidade, procuraram o orfanato onde Voldemort fora criado. Hermione entrou escondida em uma biblioteca e descobriu, pelos registros, que o estabelecimento fora demolido havia anos. Visitaram o local e depararam com uma torre de escritórios.
— Poderíamos tentar cavar nas fundações? — sugeriu Hermione sem muita convicção.
— Ele não teria escondido uma Horcrux aqui — disse Harry, que, na verdade, sempre soubera disso: o orfanato fora o lugar de que Voldemort estava decidido a fugir, ele jamais teria escondido uma parte da alma lá. Dumbledore mostrara a Harry que o lorde buscava grandiosidade ou misticismo na escolha de seus esconderijos, esse canto desolado e cinzento de Londres nem de longe poderia lembrar Hogwarts ou o Ministério ou um edifício como Gringotes, o banco dos bruxos, com suas portas de ouro e seus pisos de mármore.
Mesmo sem novas ideias, eles continuaram a viajar pelo campo, a cada noite armando a barraca em um lugar diferente, por medida de segurança. Toda manhã, eles se certificavam de ter removido as pistas de sua presença, então partiam em busca de outro lugar isolado e protegido, deslocando-se por aparatação a outras matas, a fendas sombrias em rochedos junto ao mar, a charnecas arroxeadas, a encostas de montanhas cobertas de tojos e, uma vez, a uma enseada pedregosa.
A cada doze horas, mais ou menos, eles passavam a Horcrux de um para outro, como se estivessem jogando em câmara lenta uma partida perversa de passar o anel, temendo a hora em que, se errassem, a prenda seriam doze horas de mais ansiedade e medo.
A cicatriz de Harry não parava de formigar. Acontecia com maior frequência, segundo observou, quando estava usando a Horcrux. Por vezes, ele não conseguia evitar demonstrar a dor.
— Quê? Que foi que você viu? — indagava Rony, sempre que via Harry fazer caretas.
— Um rosto — murmurava Harry, todas as vezes — O mesmo rosto. O ladrão que roubou Gregorovitch.
E Rony lhe dava as costas sem fazer esforço algum para esconder o seu desapontamento.
Harry sabia que o amigo estava esperando notícias de sua família ou dos membros restantes da Ordem da Fênix, mas, afinal, ele, Harry, não era uma antena de televisão, só podia ver o que Voldemort estava pensando no momento, e não sintonizar o que lhe agradasse. E, pelo que via, o lorde estava refletindo demoradamente sobre o jovem desconhecido de rosto sorridente, cujo nome e paradeiro Harry tinha certeza de que Voldemort sabia tanto quanto ele. Uma vez que sua cicatriz continuava a arder e o rapaz sorridente de cabelos dourados tantalizava sua memória, ele aprendeu a reprimir qualquer sinal de dor ou mal-estar, porque os outros dois manifestavam impaciência à simples menção do ladrão. Não podia culpá-los inteiramente, vendo-os tão desesperados para encontrar uma pista que os levasse às Horcruxes.
À medida que os dias se alongavam em semanas, Harry começou a suspeitar que Rony e Hermione estivessem conversando sem ele e sobre ele. Várias vezes tinham parado abruptamente de falar quando ele entrara na barraca, e, em outras duas, Harry os encontrara por acaso, conversando em segredo a uma pequena distância, as cabeças juntas, falando rapidamente. Em ambas, os amigos tinham se calado ao perceber sua aproximação e se apressado a fingir que estavam ocupados em apanhar lenha ou água.
Harry não podia deixar de se perguntar se teriam concordado em acompanhá-lo nessa viagem, que agora julgavam sem objetivo e errática, apenas porque pensaram que tinha um plano secreto de que eles tomariam conhecimento no devido tempo. Rony não estava fazendo o menor esforço para esconder o seu mau humor, e Harry começava a recear que Hermione também estivesse desapontada com a sua falta de liderança. Desesperado, ele tentou pensar em outros locais para Horcruxes, mas o único que continuava a lhe ocorrer era Hogwarts, e, como os amigos não achavam que fosse provável, ele parou de sugeri-lo.
O Outono foi desdobrando-se sobre os campos à medida que eles se deslocavam: agora, estavam montando a barraca sobre palhas secas e folhas caídas. Névoas naturais se misturavam àquelas lançadas pelos dementadores, o vento e a chuva aumentavam seus problemas.
O fato de que Hermione estivesse identificando melhor os cogumelos comestíveis não chegava a compensar inteiramente o seu isolamento contínuo, a falta da companhia de outras pessoas, ou sua total ignorância sobre o que estava acontecendo na guerra contra Voldemort.
— Minha mãe — disse Rony certa noite, quando se achavam na barraca, à margem de um rio em Gales — É capaz de conjurar do nada uma comida gostosa.
Ele cutucava, rabugento, os pedaços de peixe carbonizado em seu prato. Harry olhou automaticamente para o pescoço de Rony e viu, conforme esperava, o brilho da corrente de ouro da Horcrux. Conseguiu refrear o impulso de xingar o amigo, cuja atitude melhoraria um pouco no momento em que tirasse o medalhão.
— Sua mãe não conjura comida do nada — disse Hermione — Ninguém pode fazer isso. Comida é a primeira das cinco principais exceções à Lei de Gamp sobre a Transfiguração Elemen...
— Ah, vê se fala em língua de gente, tá! — retorquiu Rony, extraindo uma espinha de peixe presa entre os dentes
— É impossível preparar comida boa do nada! Você pode convocá-la se souber onde achar, você pode transformá-la, você pode aumentar a quantidade se já tem alguma...
—... pois não se dê o trabalho de aumentar esta aqui, tá uma porcaria — retrucou ele.
— Harry apanhou o peixe e eu fiz o melhor que pude! Estou notando que sempre sou eu que acabo resolvendo o problema da comida, porque sou uma menina, suponho!
— Não, porque a gente supõe que você seja melhor em magia! — disparou Rony.
Hermione se levantou de repente e os pedaços de peixe assado escorregaram do seu prato de estanho para o chão.
— Você pode cozinhar amanhã, Rony, você pode procurar os ingredientes e tentar transformá-los em alguma coisa que valha a pena comer, e eu vou me sentar aqui e fazer cara feia e reclamar e você vai poder ver...
— Calem a boca! — exclamou Harry, levantando-se de um salto e erguendo as mãos — Calem já a boca!
Hermione fez cara de indignação.
— Como você pode apoiar o Rony? Ele quase nunca cozinha...
— Hermione, fica quieta, estou ouvindo alguém!
Harry ficou muito atento, as mãos ainda erguidas, alertando-os para não falarem. Então, sobrepondo-se à correnteza do rio escuro ao lado, ele tornou a ouvir vozes. Virou-se para o bisbilhoscópio. Não se mexera.
— Você lançou o Abaffiato sobre nós, certo? — sussurrou ele para Hermione.
— Lancei tudo — sussurrou ela em resposta — O Abaffiato, o Antitrouxas e o da Desilusão, todos. Sejam quem for, não devem poder nos ver nem ouvir.
Passos arrastando e atritando no solo, somados ao ruído de gravetos e pedras deslocados, indicavam que várias pessoas desciam a encosta íngreme e arborizada em direção ao estreito barranco do rio, onde os garotos tinham armado a barraca. Eles apanharam as varinhas e aguardaram. Os feitiços que tinham lançado ao redor deviam bastar na escuridão quase total para protegê-los da curiosidade dos trouxas e dos bruxos normais.
Se esses fossem Comensais da Morte, então, pela primeira vez, suas defesas iriam ser testadas pelas Artes das Trevas.
As vozes foram alteando, mas continuaram ininteligíveis à medida que os homens alcançavam a margem. Harry estimava que seus donos estivessem a menos de seis metros de distância, mas o rio encachoeirado os impedia de ter certeza. Hermione passou a mão na bolsinha de contas e começou a remexer nela, um momento depois, puxou três Orelhas Extensíveis e jogou uma para cada garoto, que imediatamente inseriu as pontas dos fios cor da pele nos ouvidos e pôs as outras pontas fora da entrada da barraca.
Em segundos, Harry ouviu uma preocupada voz masculina.
— Devia haver salmão aqui ou acham que ainda está muito no início da temporada? Accio salmão!
Ouviram-se claramente os peixes espadanando e, em seguida, batendo contra corpos. Alguém resmungou apreciativamente. Harry empurrou a Orelha Extensível mais fundo no ouvido: acima do murmúrio do rio, distinguiu outras vozes, mas não estavam falando inglês nem outro idioma que ele já tivesse ouvido. Era uma língua dura e pouco melodiosa, uma sequência de ruídos rascantes e guturais, e, aparentemente, havia dois homens, um com a voz ligeiramente mais grave e lenta que a do outro.
Uma fogueira foi acendida do outro lado da lona, grandes sombras passaram entre a barraca e as chamas. O aroma delicioso de salmão assado flutuou torturante em sua direção. Em seguida, ouviram o tinido de talheres sobre pratos, e o primeiro homem tornou a falar.
— Tome aqui, Grampo, Gornope.
— Duendes! — articulou Hermione, silenciosamente, para Harry, que apenas assentiu.
— Obrigado — agradeceram os duendes, ao mesmo tempo, em inglês.
— Então, há quanto tempo vocês três estão fugindo? — ouviram uma nova voz melodiosa e agradável, era vagamente familiar a Harry, que imaginou um homem barrigudo de rosto jovial.
— Seis semanas... sete... não lembro — disse o homem cansado — Topei com Grampo nos primeiros dois dias e unimos forças com Gornope logo depois. É bom ter alguma companhia.
Houve uma pausa, enquanto os talheres raspavam os pratos e canecas eram erguidas e repostas no chão.
— O que o fez fugir, Ted? — continuou o homem.
— Sabia que vinham me prender — respondeu Ted, o homem de voz melodiosa, e Harry repentinamente identificou-o: era o pai de Tonks — Tinha ouvido falar que os Comensais da Morte estavam na área a semana passada, e concluí que era melhor sumir. Recusei-me a fazer o registro para nascidos trouxas por princípio, entende, portanto sabia que era uma questão de tempo, sabia que, no final, teria que partir. Minha mulher deve estar bem, ela tem sangue puro. Encontrei, então, o Dino há, o quê, alguns dias, filho?
— É — confirmou outra voz, e Harry, Rony e Hermione se entreolharam em silêncio, mas transbordando de contentamento ao reconhecerem, sem sombra de dúvida, a voz de Dino Thomas, seu colega na Grifinória.
— Nascido trouxa, hein? — perguntou o primeiro homem.
— Não tenho certeza — respondeu Dino — Meu pai abandonou minha mãe quando eu era pequeno. Não tenho prova de que ele fosse bruxo.
O grupo ficou em silêncio por um tempo, exceto pelos ruídos de mastigação, então Ted tornou a falar.
— Devo confessar, Dirk, estou surpreso de encontrar você. Satisfeito, mas surpreso. Correu a notícia de que você tinha sido preso.
— Fui. Estava a caminho de Azkaban quando tentei fugir, estuporei Dawlish e roubei a vassoura dele. Foi mais fácil do que se poderia esperar. Acho que ele não está muito normal no momento. Talvez tenha sido Confundido. Se foi, eu gostaria de apertar a mão do bruxo que fez isso, porque provavelmente salvou a minha vida.
Houve mais uma pausa em que a fogueira estalejou e o rio correu em cachoeira. Então, Ted perguntou:
— E vocês dois como se encaixam? Eu, ah, tive a impressão de que a maioria dos duendes apoiava Você-Sabe-Quem.
— Teve uma impressão falsa — disse o duende de voz mais aguda — Não tomamos partido. É uma guerra de bruxos.
— Por que estão na clandestinidade, então?
— Por prudência — respondeu o duende de voz mais grave — Recusei um pedido que considerei impertinente, e percebi que tinha posto em risco a minha segurança pessoal.
— Qual foi o pedido que lhe fizeram? — retornou Ted.
— Tarefas que não são condizentes com a dignidade da minha raça — informou o duende, sua voz mais áspera e menos humana quando acrescentou — Não sou um elfo doméstico.
— E você, Grampo?
— Razões semelhantes — disse o duende de voz mais aguda — O Gringotes não está mais sob o controle total da minha raça. Não reconheço senhores bruxos.
E acrescentou alguma coisa entre dentes, em grugulês, que fez Gornope rir.
— Qual foi a piada? — perguntou Dino.
— Ele disse — respondeu Dirk — Que há coisas que os bruxos também não reconhecem.
Fez-se um breve silêncio.
— Não entendi — tornou Dino.
— Fui à forra antes de partir — disse Grampo, em inglês.
— Grande homem... grande duende, melhor dizendo — emendou Ted, rapidamente — Conseguiu prender um Comensal da Morte em uma das caixas-fortes, imagino.
— Se tivesse conseguido, a espada não o teria ajudado a sair — replicou Grampo.
Gornope tornou a rir e até Dirk deu uma risada seca.
— Dino e eu não estamos entendendo muito bem — disse Ted.
— Severo Snape também não, embora ele não saiba disso — afirmou Grampo, e os dois duendes soltaram gargalhadas maliciosas.
Na barraca, a respiração de Harry saía ofegante de excitação: ele e Hermione se entreolhavam, prestando a maior atenção possível.
— Você não ouviu essa história, Ted? — admirou-se Dirk — Dos garotos que tentaram roubar a espada de Gryffindor do gabinete de Snape em Hogwarts?
Uma corrente elétrica pareceu atravessar Harry, fazendo vibrar cada nervo do seu corpo pregado no chão.
— Nunca ouvi uma palavra. Não saiu no Profeta, saiu?
— Dificilmente sairia — comentou Dirk, entre risadinhas — O Grampo aqui me contou, soube pelo Gui Weasley, que trabalha no banco. Um dos jovens que tentou se apossar da espada foi a irmã mais nova dele.
Harry olhou para Hermione e Rony, que estavam agarrados às Orelhas Extensíveis como se fossem cordas salva-vidas.
— Ela e uns dois amigos entraram no gabinete de Snape e quebraram a redoma de vidro em que ele, aparentemente, guardava a espada. Snape agarrou-os quando desciam a escada tentando levá-la.
— Ah, que Deus os abençoe — exclamou Ted — Que pensavam fazer, usar a espada contra Você-Sabe-Quem? Ou contra o próprio Snape?
— Bem, seja o que for que pensaram, Snape decidiu que a espada não estava segura em Hogwarts — contou Dirk — Uns dois dias mais tarde, quando recebeu permissão de Você-Sabe-Quem, imagino, enviou-a a Londres, para ser guardada no Gringotes.
Os duendes recomeçaram a rir.
— Ainda não estou entendendo a graça — disse Ted.
— É uma imitação — explicou Grampo, rouco.
— A espada de Gryffindor?
— Sim, senhor. É uma cópia: uma excelente cópia, é verdade, mas fabricada por bruxos. A original foi forjada séculos atrás pelos duendes e tem certas propriedades que somente as armas fabricadas por nós possuem. Seja onde for que esteja, a espada verdadeira de Gryffindor não está na caixa-forte do Banco de Gringotes.
— Entendi — disse Ted — E acho que não se deram o trabalho de informar isso aos Comensais da Morte.
— Não vi nenhuma razão para incomodá-los com essa informação — comentou Grampo, presunçoso, e agora Ted e Dino fizeram coro às risadas de Gornope e Dirk.
No interior da barraca, Harry fechou os olhos, desejando que alguém fizesse a pergunta que precisava ser respondida, e, decorrido mais um minuto que lhe pareceram dez, Dino lhe fez esse favor: o garoto também tinha sido (lembrou-se Harry, assustado) namorado de Gina.
— Que aconteceu com Gina e os outros? Os que tentaram roubar a espada?
— Ah, foram castigados, e cruelmente — respondeu Grampo com indiferença.
— Mas eles estão ok, não? — perguntou Ted, em seguida — Quero dizer, os Weasley não precisam de mais um filho aleijado, não é?
— Eles não sofreram nenhum ferimento grave, pelo que sei — tornou Grampo.
— Sorte a deles. Com o histórico de Snape, suponho que devemos nos alegrar que ainda estejam vivos.
— Você acredita nessa história, então, Ted? — perguntou Dirk — Você acredita que Snape matou Dumbledore?
— Claro que sim. Você não vai ficar aí me dizendo que Potter teve alguma participação nisso, vai?
— É difícil hoje em dia saber no que acreditar — resmungou Dirk.
— Conheço Harry Potter — disse Dino — E considero que ele é autêntico, o Eleito, ou o nome que quiserem lhe dar.
— É, tem muita gente que gostaria de acreditar que é, filho — replicou Dirk — Eu, inclusive. Mas cadê ele? Fugiu para se salvar, pelo que parece. Eu diria que, se ele soubesse alguma coisa que ignoramos, ou tivesse algum dom especial, estaria aí lutando, convocando a resistência, em vez de se esconder. E, como você sabe, o Profeta fez acusações bem plausíveis contra ele...
— O Profeta? — caçoou Ted — Você merece que lhe mintam, se ainda lê aquele lixo, Dirk. Se quer saber dos fatos, experimente ler O Pasquim.
Houve uma súbita explosão de engasgos e engulhos, e muitas batidas de pés, pelo barulho, Dirk engolira uma espinha de peixe. Por fim, engrolou:
— O Pasquim? Aquela revistinha delirante do Xeno Lovegood?
— Não está tão delirante, ultimamente. Você está precisando dar uma lida. Xeno está publicando tudo que o Profeta tem omitido, e não fez uma única menção a Bufadores de Chifre Enrugado na última edição. Mas, entenda, quanto tempo vão deixá-lo livre para fazer isso, não sei. Xeno diz, na primeira página de toda edição, que a prioridade número um de qualquer bruxo contrário a Você-Sabe-Quem deveria ser ajudar Harry Potter.
— É difícil ajudar um garoto que desapareceu da face da Terra — disse Dirk.
— Escutem, o fato de não o terem apanhado ainda, caramba, é um feito e tanto — defendeu-o Ted — Eu teria prazer em receber umas dicas. É isso que estamos tentando fazer, não é, continuar livres?
— É, bem, você tem razão — concedeu Dirk — Com o Ministério em peso e todos os informantes procurando por ele, era de esperar que já o tivessem capturado. Mas, veja bem, quem pode afirmar que já não o tenham prendido e matado na surdina?
— Ah, não diga isso, Dirk — murmurou Ted.
Houve outra longa pausa preenchida pelo ruído dos talheres. Quando alguém recomeçou a falar foi para discutir se deviam dormir no barranco ou recuar para uma área arborizada na encosta. Decidindo que as árvores lhes ofereceriam maior proteção, eles apagaram a fogueira e tornaram a subir o morro, suas vozes morrendo ao longe.
Harry, Rony e Hermione enrolaram as Orelhas Extensíveis. Harry, que achara a necessidade de ficar calado mais difícil quanto mais escutava, agora só foi capaz de dizer:
— Gina... a espada...
— Eu sei! — disse Hermione.
E se precipitou para a bolsinha de contas, desta vez enfiando nela o braço inteiro até a axila.
— Pronto... pronto... aqui... — disse ela com os dentes cerrados, e tirou um objeto que evidentemente estava no fundo da bolsa.
Lentamente, surgiu a borda de uma moldura ornamentada. Harry correu a ajudá-la. Ao desenredarem da bolsa a moldura vazia do retrato de Fineus Nigellus, Hermione apontou a varinha para o quadro, pronta para entrar em ação a qualquer momento.
— Se alguém trocou a espada verdadeira por uma falsa quando estava no escritório de Dumbledore — ofegou ela, enquanto o quadro era aprumado na parede da barraca — Fineus Nigellus teria visto, porque está pendurado bem ao lado da redoma!
— A não ser que estivesse dormindo — lembrou Harry, mas ainda prendendo a respiração, Hermione se ajoelhou diante da tela vazia, para cujo centro apontava a varinha, pigarreou e disse:
— Ah... Fineus? Fineus Nigellus?
Nada aconteceu.
— Fineus Nigellus! — repetiu ela — Professor Black? Por favor, poderíamos falar com o senhor? Por favor?
— “Por favor” sempre ajuda — disse uma voz fria e depreciativa, e Fineus Nigellus deslizou para a tela.
No mesmo instante, Hermione exclamou:
— Obscuro!
Uma venda preta apareceu sobre os olhos escuros e inteligentes do bruxo, fazendo-o bater contra a moldura e gritar de dor.
— Quê... como se atreve... que é que você...?
— Sinto muito, Professor Black — disse Hermione — Mas é uma precaução necessária!
— Remova esse acréscimo nojento imediatamente! Remova-o, estou dizendo! Você está estragando uma grande obra de arte! Onde estou! Que está acontecendo?
— Não faz diferença onde estamos — respondeu Harry, e Fineus congelou, abandonando suas tentativas de remover a venda pintada.
— Será possível que seja a voz do intangível Sr. Potter?
— Talvez — respondeu Harry, sabendo que isto manteria seu interesse — Temos umas perguntas para lhe fazer sobre a espada de Gryffindor.
— Ah — disse Fineus Nigellus, agora virando a cabeça para cá e para lá, esforçando-se para vislumbrar Harry — Sim. Aquela tolinha foi muito imprudente...
— Não fale da minha irmã — disse Rony, rispidamente.
Fineus Nigellus ergueu as sobrancelhas com superioridade.
— Quem mais está aí? — perguntou, virando a cabeça para os lados — O seu tom de voz me desagrada. Aquela menina e seus amigos foram extremamente temerários. Roubar um diretor!
— Não estavam roubando — argumentou Harry — Aquela espada não pertence ao Snape.
— Pertence à escola do Professor Snape — corrigiu o bruxo — Exatamente qual era o direito da menina Weasley sobre a espada? Ela mereceu o castigo que recebeu, bem como o idiota Longbottom e a esquisita Lovegood!
— Neville não é idiota e Luna não é esquisita! — protestou Hermione.
— Afinal, onde estou? — repetiu Fineus Nigellus, recomeçando a se debater com a venda — Onde me trouxeram? Por que me tiraram da casa dos meus antepassados?
— Isso não faz diferença! Que castigo Snape deu a Gina, Neville e Luna? — perguntou Harry, ansioso.
— O Professor Snape mandou-os para a Floresta Proibida, para fazer um serviço com o imbecil do Hagrid.
— Hagrid não é imbecil! — esganiçou-se Hermione.
— E Snape talvez tenha pensado que isso fosse castigo — disse Harry — Mas Gina, Neville e Luna provavelmente deram boas gargalhadas com Hagrid. A Floresta Proibida... eles já enfrentaram coisa muito pior do que a Floresta Proibida, grande coisa!
O garoto se sentiu aliviado, estivera imaginando horrores, no mínimo a Maldição Cruciatus.
— O que realmente queríamos saber, Professor Black, é se mais alguém, hum, algum dia retirou a espada do gabinete? Talvez a tenham levado para ser limpa ou... outra coisa assim? — disse Hermione.
Fineus Nigellus fez nova pausa em seus esforços para ver e deu uma risadinha.
— Gente nascida trouxa — desdenhou — As armas fabricadas por duendes não precisam de limpeza, menina simplória. A prata dos duendes repele a sujeira mundana, absorve apenas o que a fortalece.
— Não chame Hermione de simplória — protestou Harry.
— As contradições me cansam — reclamou Fineus — Talvez seja hora de eu voltar ao gabinete do diretor, não?
Ainda de olhos vendados, ele começou a tatear pela moldura, procurando sair desse quadro e retornar ao de Hogwarts. Harry teve uma súbita inspiração.
— Dumbledore! O senhor pode nos trazer Dumbledore?
— Perdão? — exclamou Fineus Nigellus.
— O retrato do Professor Dumbledore... não poderia trazê-lo consigo para a mesma moldura?
Fineus Nigellus virou o rosto na direção da voz de Harry.
— Evidentemente não são apenas os nascidos trouxas que são ignorantes, Potter. Os retratos de Hogwarts podem se comunicar uns com os outros, mas não podem viajar para fora do castelo, exceto para visitar o próprio retrato pendurado em outro lugar. Dumbledore não pode vir comigo, e, depois do tratamento que recebi em suas mãos, posso lhe assegurar que não farei uma nova visita!
Ligeiramente desconcertado, Harry observou Fineus Nigellus redobrar seus esforços para abandonar a moldura.
— Professor Black — disse Hermione — O senhor poderia nos dizer, por favor, qual foi a última vez que a espada foi retirada da redoma? Antes de Gina tê-la apanhado, quero dizer?
Fineus bufou impaciente.
— Creio que a última vez que vi a espada de Gryffindor sair da redoma foi quando o Professor Dumbledore a usou para rachar um anel.
Hermione virou-se para olhar Harry. Nenhum dos dois ousou dizer mais nada diante de Fineus Nigellus, que, finalmente, conseguira localizar a saída.
— Bem, boa noite para vocês — disse o bruxo, um tanto irascível, e começou a desaparecer mais uma vez.
Somente um pedacinho da aba do seu chapéu ainda era visível quando Harry soltou subitamente um grito.
— Espere! O senhor disse a Snape que viu isso?
O bruxo tornou a enfiar a cabeça com a venda na moldura.
— O Professor Snape tem coisas mais importantes em que pensar do que as muitas excentricidades de Alvo Dumbledore. Adeus, Potter!
E dizendo isso, sumiu inteiramente, deixando atrás apenas o fundo encardido do retrato.
— Harry! — exclamou Hermione.
— Eu sei! — gritou Harry, em resposta.
Incapaz de se conter, ele deu um soco no ar: era mais do que se atrevera a esperar. Andou de um lado para o outro na barraca, sentindo que poderia ter corrido dois quilômetros, já nem sentia fome. Hermione estava comprimindo o quadro de Fineus Nigellus outra vez na bolsinha de contas, depois de fechá-la, atirou a bolsa para o lado e ergueu um rosto radiante para Harry.
— A espada pode destruir Horcruxes! Lâminas fabricadas por duendes só absorvem o que as fortalece: Harry, aquela espada está impregnada de veneno de basilisco!
— E Dumbledore não a entregou a mim porque ainda precisava dela, queria usá-la no medalhão...
—... e deve ter percebido que não deixariam você ficar com ela se a incluísse no testamento...
—... então fez uma cópia...
—... e colocou a falsa na redoma...
—... e deixou a verdadeira... onde?
Eles se entreolharam.
Harry sentiu que a resposta pairava, invisível, sobre suas cabeças, terrivelmente próxima. Por que Dumbledore não lhe dissera? Ou, na realidade, dissera, mas Harry, na hora, não tinha entendido?
— Pense! — sussurrou Hermione — Pense! Onde a teria deixado?
— Não em Hogwarts — afirmou Harry, recomeçando a andar.
— Algum lugar em Hogsmeade? — sugeriu Hermione.
— Na Casa dos Gritos? — arriscou Harry — Ninguém nunca vai lá.
— Mas Snape sabe como entrar, não seria um pouco arriscado?
— Dumbledore confiava em Snape — lembrou Harry.
— Não o suficiente para lhe contar que tinha trocado as espadas.
— É, você tem razão! — disse Harry sentindo-se ainda mais animado em pensar que Dumbledore fizera ressalvas, ainda que mínimas, à confiabilidade de Snape — Teria, então, escondido a espada bem longe de Hogsmeade? Que acha, Rony? Rony?
Harry olhou em volta. Desnorteado por um instante, pensou que o amigo tivesse saído da barraca, então viu que estava deitado no beliche, à sombra da cama de cima, parecendo chapado.
— Ah, se lembraram de mim, foi? — respondeu ele.
—Quê?
Rony bufou, com os olhos fixos no fundo da cama do alto.
— Você dois podem continuar. Não quero estragar o seu prazer.
Perplexo, Harry olhou para Hermione pedindo ajuda, mas ela abanou a cabeça, aparentemente tão pasma quanto ele.
— Qual é o problema? — perguntou Harry.
— Problema? Não tem problema — replicou Rony, recusando-se a olhar para o amigo — Pelo menos você não acha que tenha.
Ouviram vários ploques no teto de lona da barraca. Começara a chover.
— Bem, obviamente você tem — disse Harry — Quer desembuchar de uma vez?
Rony girou as longas pernas para fora da cama e sentou. Parecia hostil, diferente do normal.
— Muito bem, vou desembuchar. Não esperem que eu fique dando saltinhos na barraca porque tem mais uma droga que a gente precisa procurar. É só juntar mais essa à lista do que você ignora.
— Eu ignoro? — respondeu Harry — Eu é que ignoro?
Ploque, ploque, ploque: a chuva caía mais forte e pesada, chapinhava no rio e na margem coberta de folhas a toda volta, matraqueando pela escuridão. O medo arrefeceu o grande contentamento de Harry: Rony estava dizendo exatamente o que Harry suspeitara e receara que estivesse pensando.
— Não é que eu não esteja me divertindo a valer aqui — replicou Rony — Sabem, com esse braço aleijado e nada para comer, e o rabo congelando toda noite. Eu só esperava, entende, depois de ficar andando em círculos algumas semanas, que a gente tivesse conseguido alguma coisa.
— Rony — disse Hermione, mas em voz tão baixa que o garoto poderia fingir que não tinha ouvido por causa da forte percussão da chuva na lona da barraca.
— Pensei que você soubesse no que estava se engajando — disse Harry.
— É, eu também pensei.
— Então, qual é a parte que não está correspondendo às suas expectativas? — perguntou Harry. A raiva sobreveio agora em sua defesa — Você achou que íamos nos hospedar em hotéis cinco estrelas? Encontrar uma Horcrux por dia? Achou que voltaria para passar o Natal com mamãe e papai?
— Pensamos que você soubesse o que estava fazendo! — berrou Rony, se pondo de pé, e suas palavras atingiram Harry como facas em brasa — Pensamos que Dumbledore tivesse lhe dito o que fazer, pensamos que você tivesse um plano de verdade!
— Rony! — chamou Hermione, desta vez claramente audível, apesar da chuva retumbando no teto da barraca, mas novamente ele a ignorou.
— Bem, lamento desapontar você — disse Harry, a voz calma, embora ele se sentisse vazio e inepto — Fui franco com você desde o início, lhe contei tudo que Dumbledore me disse. E, caso você não tenha reparado, achamos uma Horcrux...
— É, e estamos tão próximos de nos livrar dela como estamos de encontrar as outras: em outras palavras, não estamos próximos de nenhuma!
— Tire o medalhão, Rony — disse Hermione, sua voz anormalmente alta — Por favor, tire. Você não estaria falando assim se não o estivesse usando o dia todo.
— Estaria, sim — retorquiu Harry que não queria que ela arranjasse desculpas para Rony — Vocês acham que não notei os dois cochichando às minhas costas? Acham que eu não percebi que era isso que pensavam?
— Harry, não estávamos...
— Não minta! — Rony jogou na cara de Hermione — Você também disse, disse que estava desapontada, disse que pensou que ele tivesse mais em que se basear do que...
— Não disse isso assim... Harry não disse! — gritou ela.
A chuva martelava a barraca, as lágrimas escorriam pelo rosto de Hermione, e a excitação de minutos antes desaparecera como se nunca tivesse existido, um fogo de artifício de curta duração que espoucara e morrera, deixando tudo escuro, molhado e frio. A espada de Gryffindor estava escondida e desconheciam onde, eram três adolescentes, em uma barraca, cujo único feito, até o momento, era não terem morrido.
— Então, por que ainda está aqui? — Harry interpelou Rony.
— Não tenho a mínima ideia.
— Então, volte para casa.
— É, eu talvez volte! — gritou Rony, e deu vários passos em direção a Harry, que não recuou — Você não ouviu o que disseram sobre minha irmã? Mas você não está nem aí, não é, é só a Floresta Proibida, Harry-Já-Enfrentou-Pior-Potter não se importa com o que acontecer a Gina lá, pois eu me importo, tá, aranhas gigantes e piração...
— Eu só quis dizer que... ela estava com os outros, e estavam com Hagrid...
—... é, entendo, você não se importa! E com o resto da minha família, “os Weasley não precisam de outro filho aleijado”, você ouviu?
— Ouvi, eu...
— Mas não se preocupou com o significado disso, não é?
— Rony! — disse Hermione, se interpondo aos dois à força — Acho que não significa que tenha acontecido nada de novo, nada que a gente não saiba. Pense, Rony, Gui já está cheio de cicatrizes, a essa altura muita gente deve ter visto que Jorge perdeu uma orelha, e você, supostamente, está morrendo de sarapintose, tenho certeza de que foi a isso que ele se referiu...
— Ah, você tem certeza, não é? Então, está bem, não vou me preocupar com eles. Tudo bem para vocês dois, não é, com os seus pais em segurança e fora do caminho...
— Meus pais estão mortos! — berrou Harry.
— E os meus podem estar indo pelo mesmo caminho! — berrou Rony.
— Então VAI! — urrou Harry — Volte para eles, finja que se curou da sua sarapintose e mamãe poderá enchê-lo de comida e...
Rony fez um movimento repentino: Harry reagiu, mas, antes que eles sacassem as varinhas dos bolsos, Hermione já erguera a dela.
— Protego! — ordenou, e um escudo invisível se expandiu entre ela e Harry, de um lado, e Rony do outro, todos foram forçados a recuar alguns passos, por força do feitiço, e os garotos se encararam cada um de um lado da barreira como se estivessem se vendo claramente pela primeira vez.
Harry sentiu um ódio corrosivo de Rony: alguma coisa se rompera entre eles.
— Deixe a Horcrux — lembrou Harry.
Rony arrancou a corrente pela cabeça e atirou o medalhão sobre uma cadeira próxima. Virou-se para Hermione.
— Que vai fazer?
— Como assim?
— Você vai ficar, ou o quê?
— Eu... — ela pareceu angustiada — Vou... vou sim. Rony, nós dissemos que viríamos com Harry, dissemos que ajudaríamos...
— Entendi. Você escolhe ficar com ele.
— Rony, não... por favor... volte aqui, volte aqui!
Ela foi impedida pelo próprio Feitiço Escudo, até removê-lo, o garoto já saíra furioso noite adentro. Harry ficou muito quieto e silencioso, escutando Hermione soluçar e chamar por Rony entre as árvores. Decorrido algum tempo, ela voltou, os cabelos escorrendo, colados no rosto.
— Ele f-f-foi embora! Desaparatou!
Ela se atirou em uma poltrona, se enroscou e caiu no choro.
Harry se sentiu aturdido. Abaixou-se, recolheu a Horcrux e colocou-a em torno do próprio pescoço. Puxou os cobertores da cama de Rony e cobriu Hermione. Depois subiu no beliche de cima e ficou olhando para a lona escura do teto, escutando a chuva bater.








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