sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 11





— CAPÍTULO ONZE —
O SUBORNO



SE MONSTRO PODIA ESCAPAR de um lago cheio de Inferi, Harry confiava que a captura de Mundungo levaria no máximo algumas horas, e ele andou pela casa a manhã inteira em estado de grande expectativa. Contudo, Monstro não voltou aquela manhã nem à tarde. Quando anoiteceu, Harry se sentiu desanimado e ansioso, e o jantar composto principalmente de pão bolorento, no qual Hermione tentara uma variedade de malsucedidas transfigurações, não ajudou em nada.
Monstro não retornou no dia seguinte, nem no próximo. Apareceram, no entanto, dois homens de capa no largo em frente ao número doze, e ali permaneceram noite adentro, olhando em direção à casa que não podiam ver.
— Na certa, Comensais da Morte — disse Rony, enquanto ele, Harry e Hermione observavam das janelas da sala de visitas — Acham que eles sabem que estamos aqui?
— Acho que não — respondeu Hermione, embora parecesse amedrontada — Ou teriam mandado Snape atrás de nós, não?
— Vocês acham que ele esteve aqui e o feitiço de Moody prendeu a língua dele? — sugeriu Rony.
— Acho — respondeu Hermione — Do contrário, teria podido contar àquele bando como entrar, não? Mas eles provavelmente estão vigiando para ver se aparecemos. Sabem que a casa é do Harry.
— Como puderam...? — começou Harry.
— Os testamentos bruxos são examinados pelo Ministério, lembram? Saberão que Sirius deixou a casa para você.
A presença de Comensais da Morte ali fora intensificou a atmosfera agourenta no número doze. Os garotos não tinham ouvido nada de pessoa alguma fora do Largo Grimmauld desde o Patrono do Sr. Weasley, e a tensão estava começando a se manifestar. Inquieto e irritável, Rony tinha desenvolvido o incômodo hábito de brincar com o desiluminador dentro do bolso: isto enfurecia particularmente Hermione, que passava o tempo em que aguardavam Monstro estudando Os Contos de Beedle, o Bardo e não estava gostando de que as luzes piscassem.
— Quer parar com isso! — exclamou, na terceira noite da ausência de Monstro, quando a luz da sala de visita foi apagada mais uma vez.
— Desculpe, desculpe! — disse Rony, acionando o desiluminador e acendendo as luzes. — Não estou fazendo isso conscientemente!
— Bem, não pode procurar alguma coisa útil para se ocupar?
— O quê, ler histórias escritas para criancinhas?
— Dumbledore me deixou o livro, Rony...
—... e me deixou o desiluminador, quem sabe esperava que eu o usasse!
Incapaz de suportar essas briguinhas, Harry saiu da sala sem os dois perceberem. Desceu à cozinha, que ele não parava de visitar, porque tinha certeza de que era ali que Monstro provavelmente reapareceria.
No meio da escada para a entrada, no entanto, ele ouviu uma batida na porta da frente, e em seguida cliques metálicos e a corrente. Sentiu cada nervo do seu corpo se retesar: sacou a varinha e se ocultou nas sombras ao lado das cabeças dos elfos decapitados, onde ficou aguardando.
A porta abriu: ele entreviu o largo iluminado e um vulto de capa entrou sorrateiro na casa e fechou a porta. O intruso deu um passo à frente e a voz de Moody perguntou:
— Severo Snape?
Então, o vulto de pó se ergueu no final do corredor e avançou para ele, a mão cadavérica erguida.
— Não fui eu que o matei, Alvo — respondeu a voz baixa.
O feitiço se desfez, o vulto de pó explodiu e foi impossível ver o recém-chegado através da densa nuvem cinzenta que o espectro deixou ao desaparecer.
Harry apontou a varinha para o meio da nuvem.
— Não se mexa!
Ele esquecera, porém, o retrato da Sra. Black: ao som de sua ordem, as cortinas que a ocultavam se abriram repentinamente e a bruxa começou a gritar:
— Sangues-ruins e escória desonrando minha casa...
Rony e Hermione desceram atrás de Harry reboando pela escada, as varinhas apontadas para o estranho no corredor, as mãos para o alto.
— Guardem as varinhas, sou eu, Remo!
— Ah, graças aos céus — exclamou Hermione em voz baixa, dirigindo a varinha para a Sra. Black, com um estampido, as cortinas tornaram a fechar e fez-se silêncio.
Rony também baixou a varinha, mas Harry não.
— Apareça! — falou.
Lupin deu um passo para a luz, as mãos ainda no alto em um gesto de rendição.
— Sou Remo John Lupin, lobisomem, também conhecido como Aluado, um dos quatro criadores do Mapa do Maroto, casado com Ninfadora, mais conhecida como Tonks, e o ensinei a produzir um Patrono, Harry, que assume a forma de um cervo.
— Ah, tudo bem — disse Harry, baixando a varinha — Mas eu tinha que verificar, não?
— Na qualidade de seu antigo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, concordo plenamente que precisasse verificar. Rony, Hermione, vocês não deviam ter baixado a guarda tão rapidamente.
Os garotos desceram o resto da escada e correram para o recém-chegado. Protegido por uma grossa capa de viagem preta, ele parecia exausto, mas satisfeito em revê-los.
— Então, nem sinal de Severo? — perguntou.
— Não — respondeu Harry — Que está acontecendo? Estão todos bem?
— Estão — confirmou Lupin — Mas vigiados. Há uns dois Comensais da Morte no largo aí em frente...
—... sabemos...
—... precisei aparatar exatamente no último degrau à frente da porta para garantir que não me vissem. Não sabem que vocês estão aqui, ou tenho certeza que postariam mais gente lá fora, estão tocaiando todos os lugares que têm alguma ligação com você, Harry. Vamos descer, tenho muito que lhes contar e quero saber o que aconteceu depois que saíram d’A Toca.
Eles desceram à cozinha, onde Hermione apontou a varinha para a lareira. As chamas subiram instantaneamente: deram a ilusão de aconchego às frias paredes de pedra e se refletiram na superfície da mesa de madeira.
Lupin tirou algumas cervejas amanteigadas debaixo da capa de viagem, e todos se sentaram.
— Eu teria chegado aqui há três dias, mas precisei me livrar do Comensal que estava me seguindo — comentou Lupin — Então, vocês vieram direto para cá depois do casamento?
— Não — respondeu Harry — Só depois de toparmos com dois Comensais em um bar na Tottenham Court.
Lupin derramou quase toda a cerveja no peito.
— Quê?
Os garotos explicaram o que havia acontecido, quando terminaram, Lupin estava horrorizado.
— Mas como encontraram vocês tão depressa? É impossível rastrear uma pessoa que aparata, a não ser que a agarrem antes de desaparecer!
— E é pouco provável que estivessem apenas passeando pela Tottenham Court na hora, concorda? — comentou Harry.
— Pensamos — arriscou Hermione — Que talvez Harry ainda tivesse o rastreador, que acha?
— Impossível — respondeu Lupin.
Rony fez cara de quem acertou, e Harry se sentiu imensamente aliviado.
— Sem me aprofundar, se Harry ainda carregasse o rastreador, eles teriam certeza absoluta de sua presença aqui, não é mesmo? Mas não vejo como poderiam ter seguido vocês a Tottenham Court, e isso me preocupa, realmente me preocupa.
Ele pareceu perturbado, mas, se dependesse de Harry, a pergunta poderia esperar.
— Conte o que aconteceu depois que saímos, não soubemos de nada desde que o pai de Rony nos avisou que a família estava bem.
— Bem, Kingsley nos salvou — disse Lupin — Graças ao seu aviso, a maior parte dos convidados pôde desaparatar antes da invasão.
— Eram Comensais da Morte ou gente do Ministério? — interrompeu-o Hermione.
— Os dois, para todos os efeitos, agora os dois são a mesma coisa — disse Lupin — Eram uns doze, mas não sabiam que você estava lá, Harry. Arthur ouviu um boato que procuraram descobrir o seu paradeiro, torturando Scrimgeour antes de matá-lo, se for verdade, ele não o traiu.
Harry olhou para Rony e Hermione, seus rostos refletiam a mescla de choque e gratidão que ele sentia. Jamais gostara muito de Scrimgeour, mas, se o que Lupin dizia fosse verdade, o último gesto do homem fora protegê-lo.
— Os Comensais revistaram A Toca de cima a baixo — continuou Lupin — Encontraram o vampiro, mas não quiseram chegar muito perto, depois interrogaram horas seguidas os que permaneceram na casa. Estavam querendo obter informações sobre você, Harry, mas, naturalmente, ninguém mais além dos membros da Ordem sabia que você tinha estado lá. Ao mesmo tempo em que acabavam com o casamento, outros Comensais estavam invadindo as casas no campo que tinham ligação com a Ordem. Não mataram ninguém — acrescentou, depressa, prevendo a pergunta — Mas foram violentos. Queimaram a casa de Dédalo Diggle, mas, como você sabe, ele não estava, e usaram a Maldição Cruciatus na família de Tonks, tentando descobrir aonde você tinha ido depois de visitá-los. Eles estão bem... obviamente abalados... mas, sob outros aspectos, bem.
— Os Comensais da Morte romperam todos os feitiços de proteção? — perguntou Harry, lembrando-se de sua eficácia na noite em que ele se acidentara no jardim dos Tonks.
— O que você precisa compreender, Harry, é que os Comensais agora têm o Ministério todo na mão — disse Lupin — Têm o poder de usar feitiços cruéis sem medo de serem identificados ou presos. Conseguiram penetrar cada feitiço defensivo que lançamos contra eles e, uma vez dentro, agiram abertamente.
— E por que estão se dando o trabalho de inventar desculpas para descobrir o paradeiro de Harry por meio de tortura? — perguntou Hermione, com um fio de irritação na voz.
— Bem... — começou Lupin.
Hesitou um momento, então tirou da capa um exemplar dobrado do Profeta Diário.
— Leia — disse, empurrando o jornal para Harry do outro lado da mesa — Você irá saber mais cedo ou mais tarde. É o pretexto que estão usando para procurar você.
Harry abriu o jornal. Uma enorme fotografia sua ocupava a primeira página. Leu a manchete.

PROCURADO
PARA DEPOR SOBRE A MORTE DE
ALVO DUMBLEDORE

Rony e Hermione gritaram indignados, mas Harry ficou calado. Empurrou o jornal para longe, não queria ler mais nada: sabia o que dizia. Ninguém, exceto os que estavam no alto da torre quando Dumbledore morreu, sabia quem realmente o matara, e, como Rita Skeeter já divulgara para o mundo bruxo, Harry fora visto fugindo do local momentos depois da queda de Dumbledore.
— Lamento, Harry — disse Lupin.
— Então os Comensais da Morte tomaram o Profeta Diário também? — perguntou Hermione, furiosa.
Lupin assentiu.
— Mas com certeza as pessoas percebem o que está acontecendo, não?
— O golpe foi hábil e virtualmente silencioso — respondeu Lupin — A versão oficial para o assassinato de Scrimgeour é que ele renunciou, foi substituído por Pio Thicknesse, que está sob a influência da Maldição Imperius.
— Por que Voldemort não se declarou Ministro da Magia? — perguntou Rony.
Lupin riu.
— Não precisa, Rony. Ele é de fato o Ministro da Magia, então, para que iria se sentar atrás de uma mesa no Ministério? Seu fantoche, Pio Thicknesse, está cuidando da burocracia diária, deixando Voldemort livre para estender sua influência para além do Ministério. Naturalmente muitas pessoas deduziram o que aconteceu: nos últimos dias houve uma acentuada mudança na diretriz ministerial, e muitos estão murmurando que Voldemort deve estar por trás disso. Contudo, aí reside o problema: murmuram apenas. Não ousam trocar confidencias, não sabem em quem confiar, têm medo de se manifestar, porque suas suspeitas podem se confirmar e suas famílias serem atingidas. Sim, Voldemort está fazendo um jogo inteligente. Expor-se poderia ter provocado uma rebelião aberta: nos bastidores, criou confusão, incerteza e medo.
— E essa mudança acentuada na diretriz ministerial — indagou Harry — Inclui alertar o mundo bruxo contra mim e não contra Voldemort?
— Com certeza, e é um golpe de mestre. Agora que Dumbledore morreu, você, O Menino Que Sobreviveu, certamente seria o símbolo e o núcleo de qualquer resistência contra Voldemort. Mas, ao sugerir que você participou na morte do velho herói, ele não só pôs a sua cabeça a prêmio como também semeou a dúvida e o medo entre aqueles que o teriam defendido. Nesse meio tempo, o Ministério saiu em campo contra os nascidos trouxas.
Lupin apontou para o Profeta Diário.
— Vejam a página dois.
Hermione virou as páginas do jornal com a mesma expressão de nojo com que segurara os Segredos das Artes Mais Tenebrosas. E leu em voz alta:

REGISTRO PARA OS NASCIDOS TROUXAS
O Ministério da Magia está procedendo a um censo dos chamados “nascidos trouxas” para melhor compreender como se tornaram detentores de segredos da magia.
Pesquisas recentes feitas pelo Departamento de Mistérios revelam que a magia só pode ser transmitida de uma pessoa a outra quando os bruxos procriam. Portanto, nos casos em que não há comprovação de ancestralidade bruxa, os chamados nascidos trouxas provavelmente obtiveram seus poderes por meio do roubo ou uso de força. O Ministério tomou a decisão de extirpar esses usurpadores da magia e, com essa finalidade, enviou um convite para que se apresentem a uma entrevista com a recém-nomeada Comissão de Registro dos Nascidos trouxas.

— As pessoas não vão deixar isso acontecer — disse Rony.
— Já está acontecendo — informou Lupin — Os nascidos trouxas estão sendo arrebanhados, por assim dizer.
— Mas como supõem que eles possam ter “roubado” a magia? Isso é pura debilidade, se fosse possível roubar magia não haveria bruxos abortados, não acham?
— Concordo — disse Lupin — Contudo, a não ser que você possa provar que tem, no mínimo, um parente próximo que seja bruxo, concluirão que obteve o seu poder ilegalmente e será passível de punição.
Rony olhou para Hermione e disse:
— E se os Sangues Puros e os Mestiços jurarem que um nascido trouxa faz parte da família? Eu direi a todo mundo que Hermione é minha prima...
Hermione pôs a mão sobre a mão de Rony e apertou-a.
— Obrigada Rony, mas eu não poderia deixar...
— Você não terá escolha — disse Rony impetuosamente, segurando a mão dela — Eu a ensino a reconhecer a minha árvore genealógica e você poderá responder às perguntas deles.
Hermione deu uma risada gostosa.
— Rony, como estamos fugindo com Harry, a pessoa mais procurada deste país, acho que isso não tem importância. Se eu fosse voltar para a escola seria diferente. E quais são os planos de Voldemort para Hogwarts? — perguntou ela a Lupin.
— A frequência agora é obrigatória para todas as crianças bruxas. Anunciaram ontem. É uma mudança, porque antes nunca foi obrigatória. Naturalmente quase todos os bruxos da Grã-Bretanha foram educados em Hogwarts, mas os pais tinham o direito de ensinar-lhes em casa ou mandá-los estudar no exterior, se preferissem. Com isso, Voldemort terá toda a população bruxa sob vigilância desde muito jovem. E é outra maneira de extirpar os nascidos trouxas, porque os alunos devem receber um registro sanguíneo, indicando que provaram ao Ministério sua ascendência bruxa, antes de poderem se matricular.
Harry sentiu repugnância e raiva: naquele momento crianças de onze anos excitadas estariam examinando pilhas de livros de feitiços recém-comprados, sem saber que jamais veriam Hogwarts ou talvez nem as próprias famílias.
— É... é... — murmurou, tentando encontrar palavras que fizessem justiça aos pensamentos horripilantes que lhe passavam pela cabeça, mas Lupin disse-lhe brandamente:
— Eu sei.
O ex-professor hesitou.
— Eu compreenderei se você não puder confirmar, Harry, mas a Ordem está desconfiada de que Dumbledore lhe confiou uma missão.
— Confiou, e Rony e Hermione a conhecem e vão me acompanhar.
— Você pode me contar qual é a missão?
Harry encarou aquele rosto prematuramente enrugado, com a sua moldura de cabelos bastos, mas grisalhos, e desejou que pudesse lhe dar uma resposta diferente.
— Não posso, Remo, lamento. Se Dumbledore não lhe revelou, acho que também não posso.
— Supus que essa seria a sua resposta — disse Lupin, desapontado — Ainda assim, eu poderia lhe ser útil. Você me conhece e sabe o que sou capaz de fazer. Eu poderia acompanhá-lo para lhe fornecer proteção. Não haveria necessidade de me dizer exatamente o que pretendem.
Harry hesitou.
Era uma oferta tentadora, embora ele não conseguisse imaginar como iriam poder guardar segredo se Lupin estivesse com eles todo o tempo.
Hermione, no entanto, pareceu intrigada.
— E Tonks? — perguntou.
— Que tem ela?
— Bem — tornou Hermione, enrugando a testa — Vocês são casados! O que ela está achando dessa sua viagem conosco?
— Tonks estará perfeitamente segura. Na casa dos pais dela.
O tom de Lupin foi estranho, quase frio. Havia algo esquisito na ideia de Tonks ficar escondida na casa dos pais, afinal, ela era membro da Ordem e, pelo que Harry conhecia, a auror provavelmente iria querer participar da ação.
— Remo — perguntou Hermione hesitante — Está tudo bem... entende... entre você e...
— Tudo está ótimo, obrigado — respondeu ele, enfaticamente.
Hermione corou.
Houve uma segunda pausa, inoportuna e constrangedora, então Lupin acrescentou com ar de quem era forçado a admitir algo desagradável:
— Tonks vai ter um bebê.
— Ah, que maravilhoso! — guinchou Hermione.
— Excelente! — disse Rony, entusiasmado.
— Parabéns! — acrescentou Harry.
Lupin lançou aos garotos um sorriso forçado, mais parecia uma careta, antes de perguntar:
— Então... aceitam a minha oferta? Os três poderão ser quatro? Não acredito que Dumbledore desaprovasse, afinal foi ele que me nomeou professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. E, confesso, creio que estamos enfrentando uma magia que muitos de nós jamais encontraram ou imaginaram existir.
Rony e Hermione olharam para Harry.
— Só... só para deixar bem claro — disse o garoto — Você quer deixar Tonks na casa dos pais e nos acompanhar?
— Tonks estará perfeitamente segura, eles cuidarão dela — respondeu Lupin, com uma firmeza que beirava a indiferença — Harry, tenho certeza que Tiago iria querer que eu estivesse ao seu lado.
— Bem — disse Harry, lentamente — Eu não. Tenho certeza que o meu pai iria querer saber por que você não vai ficar ao lado do seu próprio filho.
A cor sumiu do rosto de Lupin. A temperatura da cozinha parecia ter caído dez graus. Rony correu o olhar pelo aposento como se o tivessem mandado memorizar cada detalhe, enquanto os olhos de Hermione iam e vinham de Harry para Lupin.
— Você não entende — disse Lupin, finalmente.
— Explique, então.
Lupin engoliu em seco.
— Cometi um grave erro me casando com Tonks. Agi contrariando o meu bom senso, e tenho me arrependido muito desde então.
— Entendo, então você vai simplesmente abandonar a moça e o filho e fugir conosco?
Lupin se pôs repentinamente de pé: a cadeira tombou para trás e ele encarou os garotos com tanta ferocidade que Harry viu, pela primeira vez na vida, a sombra do lobo em seu rosto humano.
— Você não entende o que fiz à minha mulher e ao meu filho que vai nascer? Eu jamais devia ter casado com Tonks, eu a transformei em uma pária! — Lupin chutou para o lado a cadeira que derrubara — Você até hoje só me viu na Ordem, ou sob a proteção de Dumbledore, em Hogwarts! Você não sabe como a maioria do mundo bruxo encara as criaturas como eu! Quando descobrem a minha desgraça, nem conseguem mais falar comigo! Você não percebe o que eu fiz? Até a família dela se desgostou com o nosso casamento, que pais querem ver a única filha casada com um lobisomem? E o filho... o filho...
Lupin chegou a arrancar tufos dos próprios cabelos, parecia muito descontrolado.
— A minha espécie normalmente não procria! Ele será como eu, estou convencido. Como poderei me perdoar, quando conscientemente corri o risco de transmitir a minha deficiência a uma criança inocente? E se, por milagre, ela não for como eu, então estará melhor, mil vezes melhor sem um pai do qual sempre se envergonhará!
— Remo! — sussurrou Hermione, os olhos marejados de lágrimas — Não diga isso, como uma criança poderia ter vergonha de você?
— Ah, não sei, Hermione — disse Harry — Eu teria muita vergonha dele.
Ele não sabia de onde vinha a sua raiva, mas o sentimento o fizera se levantar também. A expressão de Lupin era a de quem tinha sido esbofeteado por Harry.
— Se o novo regime acha que os que nasceram trouxas são criminosos, que fará com um mestiço de lobisomem cujo pai pertence à Ordem? Meu pai morreu tentando proteger a mim e minha mãe, e você acha que ele lhe diria para abandonar seu filho e nos acompanhar em uma aventura?
— Como... como se atreve? — disse Lupin — Não se trata de um desejo de... correr riscos ou obter glória pessoal... como se atreve a insinuar uma...
— Acho que você está sendo audacioso — disse Harry — Querendo ocupar o lugar de Sirius...
— Harry, não! — suplicou Hermione, mas ele continuou a encarar o rosto lívido de Lupin.
— Eu nunca teria acreditado — continuou Harry — O homem que me ensinou a combater dementadores... um covarde.
Lupin sacou a varinha tão rápido que Harry mal teve tempo de apanhar a própria, seguiu-se um forte estampido e ele se sentiu arremessado para trás como se tivesse levado um murro, ao bater contra a parede da cozinha e escorregar para o chão, viu a ponta da capa de Lupin desaparecer pela porta.
— Remo, Remo, volte! — gritou Hermione, mas Lupin não respondeu.
Instantes depois ouviram a porta da frente bater.
— Harry! — gritou, chorosa — Como pôde fazer isso?
— Foi fácil — respondeu Harry. Ele se levantou, sentiu um galo crescendo no lugar em que sua cabeça batera na parede. Sua raiva era tanta que o fazia tremer — Não olhe para mim desse jeito! — disse rispidamente a Hermione.
— Não se vire contra ela! — rosnou Rony.
— Não... não... não devemos brigar! — disse Hermione atirando-se entre os dois.
— Você não devia ter dito aquilo a Lupin — disse Rony a Harry.
— Ele estava pedindo — respondeu Harry.
Imagens fragmentadas sobrepunham-se celeremente em sua mente: Sirius atravessando o véu, Dumbledore suspenso, desconjuntado, no ar, um lampejo de luz verde e a voz de sua mãe pedindo misericórdia...
— Os pais — disse Harry — Não devem abandonar os filhos, a não ser... a não ser que não possam evitar.
— Harry... — disse Hermione, esticando a mão para consolá-lo, mas ele repeliu-a e se afastou, fixando as chamas que a garota tinha conjurado.
Uma vez falara com Lupin por aquela lareira, buscando consolo por causa do pai, e o professor o ajudara. Agora o rosto torturado e pálido de Lupin parecia flutuar diante de seus olhos. Ele sentiu uma onda nauseante de remorso. Nem Rony nem Hermione falaram, mas ele tinha certeza de que estavam se entreolhando às suas costas, comunicando-se em silêncio.
Harry se virou e surpreendeu-os voltando rapidamente as costas um para o outro.
— Sei que não devia tê-lo chamado de covarde.
— Não, não devia — concordou Rony, imediatamente.
— Mas é como ele está agindo.
— Mesmo assim... — disse Hermione.
— Eu sei. Mas se isto o fizer voltar para Tonks, terá valido a pena, não?
Ele não pôde evitar o tom de súplica em sua voz. Hermione pareceu receptiva, Rony, inseguro. Harry olhou para os próprios pés pensando no pai. Tiago teria apoiado o que ele dissera a Lupin ou teria se zangado com o filho pelo modo com que tratara seu velho amigo?
A cozinha silenciosa pareceu vibrar com o impacto da cena recente e a reprovação muda de Rony e Hermione. O Profeta Diário que Lupin trouxera continuava sobre a mesa, a foto de Harry na primeira página virada para o teto. Ele se aproximou e se sentou, abriu o jornal a esmo e fingiu ler. Não conseguia entender as palavras, sua mente ainda arrebatada pelo confronto com Lupin. Sabia que Rony e Hermione tinham retomado sua comunicação silenciosa por trás do Profeta. Ele virou a página com violência, e o nome de Dumbledore saltou aos seus olhos.
Harry levou alguns instantes para entender o significado da foto em que havia uma família. Sob a foto a legenda: A família Dumbledore: da esquerda para a direita, Alvo, Percival, segurando Ariana recém-nascida, Kendra e Aberforth.
Atento, Harry parou para examinar a foto.
O pai de Dumbledore, Percival, era um homem bonito, com olhos que pareciam cintilar mesmo na velha foto desbotada. O bebê, Ariana, era pouco maior que uma forma de pão e igualmente desprovido de traços marcantes.
A mãe, Kendra, tinha cabelos muito negros presos em um coque. Seu rosto parecia esculpido. Apesar do vestido de gola alta que usava, Harry lembrou-se de índios americanos ao estudar seus olhos escuros, malares altos e nariz reto. Alvo e Aberforth usavam paletós iguais com gola de renda e cortes idênticos nos cabelos até os ombros. Alvo parecia vários anos mais velho, mas sob outros aspectos, os dois meninos eram muito semelhantes, porque a foto fora tirada antes de Alvo ter o nariz fraturado ou começar a usar óculos.
A família parecia bem feliz e normal e sorria serenamente. O bebê acenava, sem direção, com o braço fora da manta. Harry olhou para o alto da foto e leu a manchete:

TRECHO EXCLUSIVO DA BIOGRAFIA DE
ALVO DUMBLEDORE A SER LANÇADA EM BREVE
por Rita Skeeter.

Pensando que não poderia se sentir pior do que já se sentia, Harry começou a ler:

Orgulhosa e arrogante, Kendra Dumbledore não poderia suportar permanecer em Mould-on-the-Wold depois da comentada detenção do marido Percival e sua prisão em Azkaban. Ela decidiu, portanto, cortar esses laços e se mudar para Godric’s Hollow, a aldeia que anos mais tarde se tornaria famosa como cenário do ataque de Você-Sabe-Quem a Harry Potter e a inexplicável sobrevivência do menino.
Godric’s Hollow, tal como Mould-on-the-Wold, era o refúgio de muitas famílias bruxas, mas, não as conhecendo, Kendra estaria a salvo da curiosidade que o crime de Percival despertara em sua antiga aldeia. Repelindo as tentativas de aproximação dos vizinhos bruxos, em pouco tempo ela garantiu que sua família fosse deixada em paz.
— Kendra bateu a porta na minha cara quando passei para lhe dar as boas-vindas levando um tabuleiro de bolos de caldeirão — conta Batilda Bagshot — No primeiro ano em que moraram lá, só vi os dois meninos. Não saberia que havia uma filha se não estivesse colhendo plangentinas ao luar no inverno depois da mudança e visse Kendra saindo com Ariana para o jardim dos fundos. Deu uma volta com a criança segurando-a com firmeza, depois tornou a entrar. Eu nem soube o que pensar daquilo.
Aparentemente, Kendra achou que mudar para Godric’s Hollow seria a oportunidade perfeita de esconder Ariana para sempre, coisa que provavelmente vinha planejando havia anos. O momento era oportuno. Ariana ainda não completara sete anos quando deixou de ser vista, e sete anos é a idade em que, se existir, a magia se revelará, segundo a maioria dos estudiosos. Nenhuma das pessoas ainda vivas se lembra de Ariana demonstrar o menor pendor para a magia. Parece evidente, portanto, que Kendra tenha decidido esconder a existência da filha para não sofrer a vergonha de admitir que dera à luz uma bruxa abortada.
Afastar-se dos amigos e vizinhos que conheciam Ariana, naturalmente, tornaria a sua prisão em casa tanto mais fácil. O pequeno número de pessoas que a partir daí conheceram sua existência guardaria o segredo, inclusive seus dois irmãos, que contornavam as perguntas embaraçosas com a resposta que a mãe lhes ensinara: “Minha irmã é muito doentinha para frequentar a escola”.
Na próxima semana: Alvo Dumbledore em Hogwarts, os prêmios e o fingimento.

Harry tinha se enganado: o que acabara de ler fez com que se sentisse pior. Ele tornou a contemplar a foto da família aparentemente feliz.
Seria verdade? Como poderia descobrir? Queria ir a Godric’s Hollow, ainda que Batilda não estivesse em condições de conversar com ele, queria visitar o lugar em que ele e Dumbledore tinham perdido entes queridos.
Já estava baixando o jornal, para perguntar a opinião de Rony e Hermione, quando um estalo ensurdecedor ecoou pela cozinha. Pela primeira vez em três dias, Harry tinha esquecido Monstro completamente.
No primeiro momento, pensou que Lupin estivesse irrompendo de volta ao aposento e, por uma fração de segundo, não percebeu o número de pernas que apareceram se debatendo na cozinha ao lado de sua cadeira. Ergueu-se de um salto enquanto Monstro, que se desvencilhava e lhe fazia uma profunda reverência, crocitou:
— Monstro retornou com o ladrão Mundungo Fletcher, meu senhor.
Mundungo levantou-se com dificuldade e sacou a varinha, Hermione, no entanto, foi mais rápida que ele.
— Expelliarmus!
A varinha de Mundungo saiu voando pelo ar e a garota a recolheu. De olhos arregalados, o bruxo se atirou em direção à escada: Rony derrubou-o e Mundungo bateu no piso de pedra com um ruído abafado.
— Quê? — berrou, contorcendo-se em tentativas para se livrar das garras de Rony — Que foi que eu fiz? Mandando um desgraçado de um elfo doméstico atrás de mim, que brincadeira é essa, que foi que eu fiz, me solte, me solte, ou...
— Você não está em posição de fazer ameaças — disse Harry.
E, atirando o jornal para o lado, atravessou a cozinha em poucos passos e se ajoelhou ao lado de Mundungo, que parou de lutar aterrorizado. Rony se levantou, ofegando, e ficou observando Harry apontar deliberadamente a varinha para o nariz do bruxo. Mundungo fedia a suor velho e fumaça de tabaco: seus cabelos estavam embaraçados e as vestes manchadas.
— Monstro pede desculpas pela demora em trazer o ladrão, meu senhor — crocitou o elfo — Fletcher sabe como evitar ser capturado, tem muitos esconderijos e cúmplices. Mesmo assim, Monstro acabou encurralando o ladrão.
— Você fez um ótimo serviço, Monstro — disse Harry, e o elfo fez nova reverência — Certo, temos algumas perguntas a lhe fazer — disse Harry a Mundungo, que imediatamente gritou:
— Entrei em pânico, ok? Nunca quis ir, sem querer ofender, colega, nunca me ofereci para morrer por você, e o infeliz do Você-Sabe-Quem veio voando direto para mim, qualquer pessoa teria se mandado, eu disse o tempo todo que não queria fazer...
— Para sua informação, nenhum dos outros desaparatou — interrompeu-o Hermione.
— Ora, vocês são metidos a heróis, é o que são, mas eu nunca fingi que pretendia me matar...
— Não estamos interessados em suas razões para abandonar Olho-Tonto — disse Harry, chegando a varinha mais perto dos olhos empapuçados e vermelhos do bruxo — Nós já sabíamos que você não prestava.
— Então, por que diabos estou sendo caçado por elfos domésticos? Ou é aquela história das taças novamente? Não tenho mais nenhuma comigo, senão você poderia ficar com elas...
— Também não queremos falar de taças, embora você esteja esquentando. Cale a boca e ouça — disse Harry.
Era uma sensação maravilhosa ter o que fazer, ter alguém de quem exigir uma pequena parcela de verdade. A varinha de Harry agora estava tão próxima da ponte do nariz de Mundungo que o bruxo ficara vesgo tentando não perdê-la de vista.
— Quando você limpou esta casa de tudo que tinha valor... — começou Harry, mas Mundungo interrompeu-o outra vez.
— Sirius nunca ligou para aquela lixaria...
Ouviram um som de pezinhos apressados, um lampejo de cobre reluzente, uma batida metálica e ressonante e um grito de dor: Monstro tinha corrido até Mundungo, acertando-o na cabeça com uma caçarola.
— Tira ele daí, tira ele daí, ele devia ser preso! — berrou o bruxo, se encolhendo quando Monstro tornou a erguer a caçarola de fundo pesado.
— Monstro, não! — gritou Harry.
Os braços finos de Monstro estremeceram sob o peso da caçarola que segurava no alto.
— Só mais uma vez, meu senhor Harry, para dar sorte!
Rony riu.
— Precisamos dele consciente, Monstro, mas, se houver necessidade de persuadi-lo, você fará as honras da casa — disse Harry.
— Muito, muito obrigado, meu senhor — disse Monstro com uma reverência, e recuou alguns passos, seus grandes olhos claros ainda pregados em Mundungo, com repugnância.
— Quando você limpou esta casa de todos os valores que conseguiu encontrar — começou Harry novamente — Levou um monte de coisas do armário da cozinha. Havia ali um medalhão... — a boca de Harry ficou repentinamente seca: ele sentiu a tensão e a excitação em Rony e Hermione — Que foi que você fez com ele?
— Por quê? — perguntou Mundungo — Tinha valor?
— Você o guardou! — gritou Hermione.
— Não, não guardou — disse Rony com perspicácia — Ele está imaginando se poderia ter pedido mais dinheiro por ele.
— Mais? — respondeu o bruxo — Pô, teria sido difícil... entreguei aquele troço de graça. Não tive escolha.
— Como assim?
— Estava vendendo coisas no Beco Diagonal e a mulher chega pra mim e pergunta se eu tenho licença para negociar artefatos mágicos. Uma desgraçada metida. Ia me multar, mas gostou do medalhão e disse que ia levar e deixar barato daquela vez e que eu me desse por feliz.
— Quem era a mulher? — perguntou Harry.
— Não sei, uma megera do Ministério.
Mundungo parou para pensar um instante, enrugando a testa.
— Mulher pequenaLaço de fita na cabeça.
Ele franziu mais um pouco a testa e acrescentou:
— Cara de sapa.
Harry deixou cair a varinha: o objeto bateu no nariz de Mundungo e soltou faíscas vermelhas nas sobrancelhas dele, que pegaram fogo.
— Aguamenti! — gritou Hermione, e um jato de água saiu de sua varinha e cobriu o bruxo, que cuspia água e se engasgava.
Harry ergueu os olhos e viu o seu próprio choque refletido nos rostos de Rony e Hermione. As cicatrizes no dorso de sua mão direita pareciam estar formigando outra vez.







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