— CAPÍTULO CATORZE —
O LADRÃO
HARRY ABRIU OS OLHOS E SE SENTIU OFUSCADO por uma claridade ouro e verde, não tinha ideia do que acontecera, só sabia que estava deitado no que lhe pareciam folhas e gravetos. Lutando para insuflar ar nos pulmões que sentia achatados, ele piscou os olhos e compreendeu que a luminosidade excessiva vinha do sol se infiltrando por um dossel de folhas. Então, um objeto se mexeu próximo ao seu rosto. Ele se apoiou nas mãos e nos joelhos, pronto para enfrentar um animal pequeno e feroz, mas viu que era apenas o pé de Rony. Olhando ao redor, percebeu que os três estavam deitados no chão de uma floresta, aparentemente sozinhos.
O primeiro pensamento de Harry foi a Floresta Proibida e, por um momento, mesmo sabendo como seria tolo e perigoso aparecerem nos terrenos de Hogwarts, seu coração pulou de alegria à ideia de atravessá-la furtivamente até a cabana de Hagrid. Contudo, nos poucos instantes que Rony levou para gemer baixinho e Harry começar a rastejar até o amigo, ele notou que não era a Floresta Proibida: as árvores pareciam mais jovens, mais espaçadas e o chão mais limpo.
Deparou com Hermione, também de quatro, junto à cabeça de Rony. Quando seu olhar recaiu sobre o amigo, todas as outras preocupações fugiram de sua mente, porque o sangue encharcava todo o lado esquerdo de Rony e seu rosto se destacava, branco-acinzentado, na terra forrada de folhas. A Poção Polissuco ia se dissipando agora: na aparência, Rony era um meio-termo entre Cattermole e ele próprio, seus cabelos cada vez mais ruivos e o rosto perdendo a pouca cor que lhe restava.
— Que aconteceu com ele?
— Estrunchou — respondeu Hermione, os dedos ocupados com a manga do amigo, onde o sangue estava mais profuso e escuro.
Harry observou-a, horrorizado, rasgar a camisa de Rony. Sempre pensara no estrunchamento como algo cômico, mas isso... suas entranhas se contorceram desagradavelmente ao ver Hermione expor parte do braço de Rony onde faltava um naco de carne, reluzindo por inteiro como se o tivessem cortado a faca.
— Harry, depressa, na minha bolsa, tem um frasquinho com a etiqueta Essência de Ditamno...
— Bolsa... certo...
Harry correu para o lugar onde Hermione aterrissara, apanhou a bolsinha de contas e enfiou a mão nela. Na mesma hora, objetos após objetos começaram a se apresentar ao seu toque: ele sentiu as lombadas de couro dos livros, as mangas de lã dos suéteres, saltos de sapatos...
— Depressa!
Ele apanhou sua varinha no chão e, apontando para o fundo da bolsa mágica, ordenou:
— Accio ditamno!
Um frasquinho marrom voou da bolsa, ele o aparou e voltou correndo para Hermione e Rony, cujos olhos agora estavam semicerrados: traços de córneas brancas era tudo o que se via entre suas pálpebras.
— Ele desmaiou — disse Hermione, que também estava muito pálida, já não se parecia com Mafalda, embora seus cabelos ainda conservassem algumas mechas grisalhas — Destampe-o para mim, Harry, minhas mãos estão tremendo.
O garoto arrancou a tampa do frasquinho e entregou-o a Hermione, que aplicou três gotas da poção na ferida ensanguentada. Ergueu-se uma nuvem de fumaça esverdeada e, quando se dissipou, Harry viu que o sangramento cessara. O ferimento agora parecia ter ocorrido há vários dias, uma pele nova se estendia sobre a carne antes exposta.
— Uau! — exclamou Harry.
— É só o que consigo fazer sem correr riscos — disse Hermione, trêmula — Há feitiços que o deixariam novo em folha, mas não me atrevo a usá-los por medo de errar e causar mais estrago... ele já perdeu muito sangue...
— Como foi que ele se machucou? Quero dizer... — Harry sacudiu a cabeça, tentando clarear as ideias e compreender seja lá o que tivesse acontecido — Por que estamos aqui? Pensei que estávamos voltando para o Largo Grimmauld, não?
Hermione inspirou profundamente. Parecia à beira das lágrimas.
— Harry, acho que não podemos voltar para lá.
— Que foi que você...?
— Quando desaparatamos, Yaxley me agarrou e não pude me livrar dele, foi mais forte e continuava me segurando quando chegamos ao Largo Grimmauld, aí... bem, acho que ele deve ter visto a porta, e pensou que fôssemos entrar, então afrouxou a mão e consegui me desvencilhar, e trouxe todos para cá!
— Mas cadê ele? Espere aí... você não quer dizer que Yaxley está no Largo Grimmauld? Ele não pode entrar lá, pode?
Os olhos da garota cintilaram com as lágrimas acumuladas quando assentiu.
— Harry, acho que ele pode. Eu... eu o forcei a me largar com um Feitiço Repelente, mas já o deixara penetrar a proteção do Feitiço Fidelius. Desde que Dumbledore faleceu, somos fiéis do segredo, portanto entreguei a ele o segredo, não?
Era impossível fingir. Harry sabia que a amiga tinha razão. O golpe era acachapante. Se Yaxley agora podia entrar na casa, não havia como regressarem. Naquele exato momento, ele poderia estar levando outros Comensais da Morte por aparatação. Embora a casa fosse sombria e deprimente, fora seu único refúgio: e, agora que Monstro estava mais feliz e amigo, uma espécie de lar. Com uma pontada de pesar que não estava ligada propriamente à comida, Harry imaginou o elfo doméstico ocupado em preparar o empadão de carne e rins que Harry, Rony e Hermione jamais provariam.
— Harry, sinto muito, sinto muito!
— Não seja idiota, não foi sua culpa! Se foi de alguém, foi minha...
Harry levou a mão ao bolso e tirou o olho mágico de Olho-Tonto.
Hermione se encolheu, horrorizada.
— Umbridge tinha cravado o olho na porta da sala para espionar as pessoas. Eu não podia deixá-lo lá... mas foi assim que eles souberam que havia intrusos.
Antes que Hermione pudesse responder, Rony gemeu e abriu os olhos. Continuava cinzento, e o suor brilhava em seu rosto.
— Como está se sentindo? — sussurrou Hermione.
— Péssimo — respondeu Rony rouco, fazendo uma careta ao tocar o braço ferido — Onde estamos?
— Na floresta onde foi realizada a Copa Mundial de Quadribol — informou Hermione — Eu queria um lugar fechado, escondido e esse foi...
—... o primeiro em que pensou — Harry terminou a frase por ela, correndo os olhos pela clareira aparentemente deserta.
Não pôde deixar de lembrar o que acontecera na última vez que tinham aparatado no primeiro lugar que ocorrera a Hermione, como tinham sido encontrados pelos Comensais da Morte em poucos minutos. Teria sido Legilimência? Voldemort ou os seus capangas já saberiam onde Hermione os levara?
— Você acha que devemos ir para outro lugar? — perguntou Rony a Harry, que percebeu no rosto do amigo que lhe ocorrera o mesmo pensamento.
— Não sei.
Rony ainda estava pálido e suado. Não tinha feito a menor tentativa de sentar e, pelo seu aspecto, parecia fraco demais para tentar. A perspectiva de removê-lo era assustadora.
— Por enquanto, vamos ficar aqui — respondeu Harry.
Com uma expressão de alívio, Hermione se pôs de pé.
— Aonde está indo? — perguntou Rony.
— Se vamos ficar aqui, devíamos lançar alguns feitiços de proteção ao nosso redor — replicou ela e, erguendo a varinha, começou a caminhar em um amplo círculo em torno de Harry e Rony, murmurando encantamentos.
O garoto observou pequenas turbulências no ar em torno, era como se Hermione tivesse lançado uma névoa de calor sobre a clareira.
— Salvio hexia... Protego totalum... Repello trouxatum... Abaffiato... você podia ir apanhando a barraca, Harry...
— Barraca?
— Na bolsa!
— Na... é claro — disse ele.
Desta vez, ele não se deu o trabalho de meter a mão na bolsa, mas usou outro Feitiço Convocatório. A barraca saiu em um disforme bolo de lona, corda e paus. Harry reconheceu, em parte pelo cheiro de gatos, que era a mesma barraca em que tinham dormido na noite da Taça Mundial de Quadribol.
— Pensei que pertencesse àquele cara do Ministério, o Perkins.
— Aparentemente ele não a quis mais, seu lumbago está doendo demais — respondeu Hermione, executando com a varinha uma figura complicada em oito movimentos — Então o pai de Rony disse que eu podia pegar emprestada. Erecto! — acrescentou ela, apontando a varinha para o amontoado de lona, que, em um movimento fluido, se ergueu no ar e se acomodou, inteiramente montado, no chão diante do surpreso Harry, de cuja mão voou um espeque que aterrissou com um baque final na ponta de uma corda — Cave inimicum — terminou Hermione, com um floreio para o alto — Isso é o máximo que sei fazer. No mínimo, nos avisarão da chegada deles, não posso garantir que impedirão a entrada de Vol...
— Não diga o nome! — interrompeu-a Rony, rispidamente.
Harry e Hermione se entreolharam.
— Desculpem — tornou ele, gemendo um pouco ao se erguer para encarar os amigos — Mas dá uma sensação de... azaração ou coisa parecida. Será que não podemos chamá-lo de Você-Sabe-Quem... por favor?
— Dumbledore dizia que o temor de um nome... — começou Harry.
— Caso você não tenha reparado, colega, chamar Você-Sabe-Quem pelo nome, afinal, não deu muito certo para Dumbledore — retrucou Rony — Quer... quer... pelo menos demonstrar algum respeito por Você-Sabe-Quem?
— Respeito? — repetiu Harry, mas Hermione lhe lançou um olhar avisando-o para não discutir com Rony enquanto o amigo estivesse tão fraco.
Harry e Hermione carregaram e, ao mesmo tempo, arrastaram Rony pela entrada da barraca. O interior era exatamente o que Harry lembrava: um pequeno apartamento, completo, com banheiro e uma minicozinha. Ele empurrou uma velha poltrona para o lado e depositou o amigo com cuidado na cama de baixo de um beliche. Mesmo esse percurso tão pequeno deixara Rony ainda mais pálido, e, quando terminaram de acomodá-lo no colchão, ele tornou a fechar os olhos e ficou algum tempo calado.
— Vou preparar um pouco de chá — disse Hermione, sem fôlego, tirando uma chaleira e canecas do fundo da bolsa e se dirigindo à cozinha.
Harry achou a bebida quente tão providencial quanto o uísque de fogo na noite em que Olho-Tonto tinha morrido, pareceu queimar um pouco o medo que se agitava em seu peito.
Minutos depois, Rony quebrou o silêncio.
— Que acham que aconteceu com os Cattermole?
— Com um pouco de sorte, terão conseguido fugir — disse Hermione, apertando a caneca para se tranquilizar — Desde que tenha mantido a presença de espírito por algum tempo, o Sr. Cattermole terá transportado a mulher por Aparatação Acompanhada e estarão fugindo do país com as crianças neste exato momento. Foi esse o conselho de Harry à mulher.
— Caramba, espero que tenham escapado — disse Rony, tornando a baixar a cabeça nos travesseiros. O chá parecia estar lhe fazendo bem, recuperara um arzinho de cor — Mas tive a impressão de que Reg Cattermole não era muito inteligente, pela maneira com que as pessoas se dirigiam a mim enquanto fui ele. Deus, espero que tenham conseguido... se eles acabarem em Azkaban por nossa causa...
Harry olhou para Hermione e a pergunta que tinha na ponta da língua, se a falta de varinha impediria a Sra. Cattermole de aparatar com o marido, morreu em sua boca. Hermione estava vendo Rony se preocupar com o destino dos Cattermole, e havia tanta ternura em seu rosto que Harry teve a sensação de quase surpreendê-la beijando o amigo.
— Então, pegou? — perguntou Harry, em parte para lembrar Hermione de sua presença.
— Pegou... pegou o quê? — perguntou ela, um pouquinho assustada.
— Para que foi que passamos por tudo isso? O medalhão! Onde está o medalhão?
— Você pegou? — gritou Rony, erguendo-se um pouco mais nos travesseiros — Ninguém me conta nada! Caramba, podiam ter falado!
— Ora, estivemos correndo dos dementadores para não morrer, não foi? — justificou-se Hermione — Tome aqui.
E, tirando o medalhão do bolso das vestes, entregou-o a Rony.
Era grande como um ovo de galinha. Uma letra “S” floreada, engastada com pedrinhas verdes, lampejou sombriamente à luz difusa que se infiltrava pelo teto de lona da barraca.
— Há alguma chance de alguém tê-la destruído desde que esteve na posse de Monstro? — perguntou Rony esperançoso — Quero dizer, temos certeza de que continua a ser uma Horcrux?
— Acho que sim — respondeu Hermione, retomando o medalhão das mãos dele e examinando-o atentamente — Haveria algum sinal de dano se o conteúdo tivesse sido magicamente destruído.
Ela passou-o a Harry, que virou e revirou o medalhão nos dedos. O objeto parecia perfeito, intacto. Lembrou-se dos restos estraçalhados do diário e da pedra no anel-horcrux que fendera ao ser destruída por Dumbledore.
— Acho que Monstro tinha razão. Temos que descobrir como abrir essa coisa para podermos destruí-la.
A súbita consciência do que segurava, do que estava vivo por trás das portinhas de ouro, atingiu Harry enquanto falava. Mesmo depois de todos os esforços para encontrá-lo, ele sentiu um violento impulso de arremessar longe o medalhão. Controlando-se, tentou abri-lo com os dedos, depois experimentou o feitiço que Hermione usara para abrir a porta do quarto de Régulo. Nenhum dos dois deu resultado. Devolveu, então, o medalhão a Rony e Hermione, cada um fez o que pôde, mas não tiveram maior sucesso.
— Mas você consegue sentir? — perguntou Rony com a voz abafada, ao apertar o objeto na mão.
— Como assim?
Rony passou-lhe a Horcrux.
Instantes depois, Harry pensou ter entendido o que ele queria dizer. Estaria sentindo o sangue pulsar em suas veias, ou havia alguma coisa no medalhão batendo como um minúsculo coração metálico?
— Que vai fazer com isso? — perguntou Hermione.
— Guardá-lo em segurança até descobrirmos como destruí-lo — respondeu Harry e, por menos que isso lhe agradasse, prendeu a corrente ao pescoço, deixando o medalhão pender, oculto, sob suas vestes, onde repousou sobre seu peito, ao lado da bolsa que Hagrid lhe dera.
— Acho que devíamos nos revezar para vigiar a barraca por fora — acrescentou Hermione, se pondo de pé e se espreguiçando — E também teremos que pensar em alguma coisa para comer. Você fica aqui — acrescentou, rapidamente, quando Rony tentou se levantar e seu rosto adquiriu um feio tom verdoso.
Equilibrando com cuidado sobre a barraca o bisbilhoscópio que Hermione dera de presente a Harry em seu aniversário, os dois passaram o resto do dia dividindo os turnos de vigia. O bisbilhoscópio, no entanto, permaneceu silencioso e parado o tempo todo, e, fosse por causa dos Feitiços de Proteção e Feitiços Antitrouxas que Hermione lançara ao redor, ou porque as pessoas raramente se aventuravam naquelas paragens, a clareira permaneceu deserta exceto por raros pássaros e esquilos.
A noite não trouxe alteração alguma, Harry acendeu a varinha ao substituir Hermione às dez horas e contemplou uma paisagem deserta, registrando os morcegos que voavam muito alto no retalho de céu estrelado que se avistava da clareira protegida.
Sentia fome, agora, e um pouco de tontura.
Hermione não estocara alimentos na bolsinha mágica, pois supusera que eles fossem retornar ao Largo Grimmauld naquela noite. Não havia, portanto, comida, exceto alguns cogumelos silvestres que a garota colhera entre as árvores mais próximas e cozinhara em uma vasilha. Depois de comer dois bocados, Rony afastara sua porção, parecendo enjoado, Harry só persistira para não magoar Hermione.
O silêncio circundante era quebrado por sons indistintos ocasionais e, talvez, gravetos estalando. Harry achou que fossem produzidos por animais e não por gente, contudo, empunhou com firmeza a varinha, pronta para uso. Suas entranhas, já avariadas pela porção insuficiente de cogumelos borrachudos, tremiam, causando-lhe mal-estar.
Pensara que sentiria euforia se conseguissem reaver a Horcrux, mas por alguma razão isso não acontecera, tudo que sentia, sentado naquela escuridão, da qual sua varinha iluminava uma ínfima parte, era apreensão pelo que aconteceria a seguir.
Parecia que estivera se precipitando velozmente até aquele lugar durante semanas, meses, talvez anos, mas agora estacara abruptamente, era o fim da estrada.
Havia outras Horcruxes lá fora em algum lugar, mas ele não fazia a menor ideia de onde poderiam estar. Nem mesmo sabia o que eram. Nesse meio tempo, não lhe ocorria como destruir a única que encontrara: a Horcrux que, no momento, jazia sobre seu peito nu. Curiosamente, o objeto não roubara calor do seu corpo, estava tão frio ali, sobre sua pele, que poderia ter saído da água gelada. De vez em quando, Harry pensava, ou talvez imaginasse, que podia sentir um batimento de coração mínimo, no mesmo compasso que o seu.
Pressentimentos inomináveis o assaltavam, ali no escuro: tentava resistir-lhes, afastá-los, contudo eles recorriam sem descanso. Nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver. Rony e Hermione, agora conversando baixinho na barraca às suas costas, poderiam ir embora se quisessem: ele não poderia. E parecia-lhe, naquela imobilidade em que tentava dominar o medo e a exaustão, que a Horcrux sobre seu peito marcava o tempo que lhe restava...
Que ideia idiota, disse a si mesmo, Não pense isso...
Sua cicatriz estava recomeçando a formigar.
Receava que estivesse provocando aquilo ao entreter tais pensamentos, e tentou redirecioná-los. Pensou no pobre Monstro, esperando a chegada deles em casa e, em vez disso, recebendo Yaxley. O elfo guardaria silêncio ou contaria ao Comensal da Morte tudo que sabia? Harry queria acreditar que Monstro mudara sua relação com ele durante o mês que passara, que se manteria leal, mas quem sabia o que iria acontecer?
E se os Comensais da Morte torturassem o elfo? Imagens tétricas fervilharam em sua mente e ele tentou afastá-las também, porque não havia nada que pudesse fazer por Monstro: ele e Hermione já tinham decidido não convocá-lo, e se alguém do Ministério viesse junto? Eles não podiam contar que a aparatação de elfos fosse isenta da falha que levara Yaxley ao Largo Grimmauld agarrado à manga de Hermione.
A cicatriz de Harry agora queimava.
Lembrou que havia tanta coisa que ignoravam: Lupin estava certo quando falara em magia que jamais tinham enfrentado ou imaginado.
Por que Dumbledore não lhe explicara mais? Teria pensado que haveria tempo, que viveria anos, séculos talvez, como seu amigo Nicolau Flamel? Se assim fosse, enganara-se... Snape se encarregara disso... Snape, a serpente adormecida, que atacara no alto da Torre... e Dumbledore caíra... caíra...
— Entregue-me, Gregorovitch.
A voz de Harry saiu aguda, clara e fria: sua varinha estendida à frente por uma mão branca de dedos longos. O homem para quem apontava estava suspenso no ar de cabeça para baixo, embora não houvesse cordas segurando-o, ele balançava, invisível e sinistramente preso, os membros enrolados no corpo, seu rosto aterrorizado, no mesmo nível que o de Harry, vermelho por causa do sangue que lhe afluíra à cabeça. Tinha cabelos absolutamente brancos e uma barba cerrada de pelos espessos: um Papai Noel no espeto.
— Não a tenho, não a tenho mais! Roubaram-me há muitos anos!
— Não minta para Lord Voldemort, Gregorovitch. Ele sabe... ele sempre sabe.
As pupilas do homem pendurado estavam grandes, dilatadas de medo, e pareciam inchar, cada vez mais, até que seu negrume engoliu Harry inteiro...
E agora ele se via correndo por um corredor escuro atrás do atarracado Gregorovitch, que segurava uma lanterna no alto: o bruxo adentrou um aposento no final do corredor e sua lanterna iluminou o que lhe pareceu uma oficina, aparas de madeira e ouro reluziam no foco trêmulo de luz, e ali, no peitoril da janela, achava-se, empoleirado, como uma grande ave, um jovem de cabelos dourados. Na fração de segundo que a luz da lanterna incidiu nele, Harry viu prazer em seu belo rosto, então o intruso lançou um Feitiço Estuporante de sua varinha e saltou, de costas, do peitoril com um grito de triunfo.
E Harry se viu recuando velozmente daquelas pupilas enormes como túneis, o rosto de Gregorovitch aterrorizado.
— Quem foi o ladrão, Gregorovitch? — perguntou a voz aguda e fria.
— Não sei, nunca soube, um jovem... não... por favor... POR FAVOR!
Um grito interminável seguido de um lampejo verde...
— Harry!
Ele abriu os olhos, ofegante, a testa latejando. Tinha desmaiado contra a parede da barraca: escorregara de lado pela lona e se estatelara no chão. Ergueu os olhos para Hermione, cujos cabelos cheios obscureciam o retalhinho de céu visível através da escura ramagem acima.
— Sonho — disse ele, sentando-se depressa e tentando enfrentar a carranca de Hermione com um ar de inocência — Devo ter cochilado, desculpe.
— Sei que foi a sua cicatriz! Percebo no seu rosto! Você estava espiando a mente de Vol...
— Não diga esse nome! — ouviram a voz irritada de Rony vinda das profundezas da barraca.
— Ótimo — retorquiu Hermione — Então, a mente de Você-Sabe-Quem!
— Não quis que acontecesse! — defendeu-se Harry — Foi um sonho! Você consegue controlar o que sonha, Hermione?
— Se você ao menos tivesse aprendido a usar a Oclumência...
Harry, porém, não estava interessado em levar uma descompostura de Hermione, queria discutir o que acabara de ver.
— Ele encontrou Gregorovitch, Hermione, e acho que o matou, mas, antes de matar, leu a mente do homem e vi...
— Acho que é melhor eu assumir a vigia, se o seu cansaço é tanto que você está cochilando — disse Hermione friamente.
— Eu posso terminar a vigia!
— Não, obviamente você está exausto. Vá se deitar.
Ela se largou na entrada da barraca, decidida. Aborrecido, mas querendo evitar uma briga, Harry entrou.
O rosto ainda pálido de Rony se ergueu, curioso, do beliche, Harry subiu na cama de cima, deitou-se e ficou olhando para o teto escuro de lona. Passados vários minutos, Rony falou muito baixinho para Hermione não ouvir, encolhida na entrada.
— Que é que Você-Sabe-Quem está fazendo?
Harry apertou os olhos se esforçando para recordar cada detalhe, então sussurrou no escuro:
— Encontrou Gregorovitch. Amarrou-o e estava torturando o homem.
— Como é que Gregorovitch vai fazer uma nova varinha para ele se está amarrado?
— Não sei... é esquisito, não é?
Harry fechou os olhos, pensando em tudo que vira e ouvira. Quanto mais lembrava, menos sentido fazia... Voldemort não tinha dito nada sobre a varinha de Harry, nada sobre os núcleos gêmeos, nada sobre a ideia de mandar Gregorovitch fazer uma varinha nova e mais poderosa para derrotar a de Harry...
— Queria alguma coisa de Gregorovitch — disse Harry, ainda com os olhos bem fechados — Pediu que lhe entregasse, mas Gregorovitch disse que tinham lhe roubado... e então... então...
Harry lembrou como ele, no corpo de Voldemort, parecera invadir os olhos de Gregorovitch até sua memória...
— Leu a mente de Gregorovitch e viu um rapaz louro, empoleirado no peitoril da janela, que lançou um feitiço em Gregorovitch e, dando um salto para trás, desapareceu. Ele roubou, roubou seja o que for que Você-Sabe-Quem procura. E eu... eu acho que já vi o rapaz em algum lugar...
Harry desejou poder dar mais uma olhada naquele rosto risonho.
O roubo acontecera havia muitos anos, segundo Gregorovitch. Por que o jovem ladrão lhe parecia familiar? Os ruídos da mata soavam abafados no interior da barraca, só o que Harry escutava era a respiração do amigo. Passado algum tempo, Rony sussurrou:
— Você não viu o que o ladrão estava segurando?
— Não... devia ser alguma coisa pequena.
— Harry?
As ripas de madeira da cama de Rony rangeram quando ele mudou de posição.
— Harry, você não acha que Você-Sabe-Quem estava atrás de outro objeto para transformar em Horcrux?
— Não sei — respondeu ele, lentamente — Talvez. Mas não seria perigoso criar mais uma? Hermione não disse que ele já tinha forçado a alma ao máximo?
— É, mas ele talvez não saiba disso.
— É... talvez — disse Harry.
Tivera certeza de que Voldemort andava procurando uma maneira de contornar o problema dos núcleos gêmeos, certeza de que buscava uma solução com o velho fabricante de varinhas... contudo, matara-o, aparentemente sem lhe fazer uma única pergunta sobre varinhas.
Que é que Voldemort estava tentando encontrar? Por que, com o Ministério da Magia e o Mundo Bruxo a seus pés, ele foi para longe, decidido a encontrar um objeto que no passado pertenceu a Gregorovitch e lhe foi roubado por um ladrão desconhecido? Harry ainda via o rosto do rapaz louro, era alegre e rebelde, havia nele um ar à la Fred e Jorge e seus bem-sucedidos logros. Ele voara do peitoril da janela como um pássaro, e Harry já o vira antes, mas não conseguia lembrar onde...
Com Gregorovitch morto, era um ladrão de rosto alegre que agora corria perigo, e foi nele que se detiveram os pensamentos de Harry quando os roncos de Rony começaram a ecoar da cama de baixo e ele próprio recomeçou lentamente a adormecer.
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