quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 10





— CAPÍTULO DEZ —
A HISTÓRIA DE MONSTRO


  
HARRY ACORDOU NA MANHÃ SEGUINTE, dentro de um saco de dormir no chão da sala de visitas. Viu uma lasca de céu entre as pesadas cortinas: era um azul frio e claro de tinta aguada, entre a noite e a alvorada, e tudo estava silencioso, exceto pela respiração lenta e profunda de Hermione e Rony.
Harry olhou para as sombras escuras que eles projetavam no chão ao seu lado. Rony teve um acesso de galanteria e insistiu que Hermione dormisse sobre as almofadas do sofá, por isso a silhueta dela estava acima da dele. O braço da garota formava um arco até o chão, seus dedos a centímetros dos de Rony. Harry ficou imaginando se teriam adormecido de mãos dadas. A ideia fez com que se sentisse estranhamente solitário.
Ele ergueu os olhos para o teto sombreado, o lustre coberto de teias de aranha. A menos de vinte e quatro horas, estivera parado à entrada ensolarada de uma tenda, aguardando para conduzir os convidados do casamento aos seus lugares. Parecia que tinha sido em outra vida. Que iria acontecer agora? Deitado ali no chão, ele pensou nas Horcruxes, na missão assustadora e complexa que Dumbledore lhe deixara... Dumbledore...
O pesar que o possuíra desde a morte do diretor agora era diferente. As acusações que ouvira de Muriel na festa pareciam ter se aninhado em seu cérebro, como coisas doentias que infectavam suas lembranças do bruxo que idolatrava. Teria Dumbledore deixado aquelas coisas acontecerem? Teria agido como Duda, contente em observar o abandono e o abuso desde que não o afetassem? Poderia ter dado as costas a uma irmã que estava presa e escondida?
Harry pensou em Godric’s Hollow, nos túmulos que Dumbledore jamais mencionara, pensou nos objetos misteriosos deixados, sem explicação, no testamento do diretor, e o seu ressentimento cresceu na obscuridade.
Por que Dumbledore não lhe contara? Por que não lhe explicara? Teria tido real afeição por ele? Ou Harry tinha sido apenas um instrumento a ser polido e afinado, sem, no entanto, merecer confiança ou confidências?
O garoto não suportou ficar deitado ali, tendo por companhia apenas seus pensamentos amargurados. Desesperado para arranjar o que fazer e se distrair, deslizou para fora do saco de dormir, apanhou a varinha e saiu furtivamente da sala. No corredor, sussurrou: “Lumus!”, e começou a subir a escada à luz da varinha.
No segundo patamar ficava o quarto em que ele e Rony tinham dormido na última vez que estiveram na casa, ele espiou para dentro. As portas dos guarda-roupas estavam abertas e as roupas de cama tinham sido arrancadas. Harry se lembrou da perna de trasgo caída no chão da entrada. Alguém revistara a casa desde que a Ordem a deixara. Snape? Ou talvez Mundungo, que afanara muita coisa antes e depois da morte de Sirius?
O olhar de Harry vagueou até o porta-retratos onde por vezes aparecia Fineus Nigellus Black, o tetravô de Sirius, mas estava vazio, exibia apenas um pedaço de forro encardido. Era evidente que Fineus Nigellus estava passando a noite no gabinete do diretor de Hogwarts.
Harry continuou a subir a escada até o último patamar onde havia apenas duas portas. A que estava à sua frente tinha uma plaquinha em que se lia Sirius. O garoto jamais entrara no quarto do padrinho. Ele empurrou a porta, erguendo a varinha no alto para poder iluminar a maior área possível. O quarto era espaçoso e, antigamente, devia ter sido bonito.
Havia uma larga cama com a cabeceira de madeira entalhada, uma janela alta sombreada por compridas cortinas de veludo e um lustre coberto por uma espessa camada de pó, com tocos de velas ainda nos suportes, a cera grossa pendendo como pingos de gelo. Uma fina película de poeira cobria os quadros nas paredes e a cabeceira da cama, uma teia de aranha se estendia do lustre ao topo do grande guarda-roupa, e, quando Harry entrou no quarto, ouviu o tropel de camundongos assustados.
O adolescente Sirius tinha colado nas paredes tantos pôsteres e fotos que deixara visível muito pouco da seda cinza-prateado que a forrava. Harry só pôde supor que os pais de Sirius não tinham conseguido remover o Feitiço Adesivo Permanente que os mantinha colados à parede, porque dificilmente eles teriam apreciado o gosto do filho mais velho em matéria de decoração. Sirius parecia ter saído do caminho para aborrecer os pais.
Havia uma coleção de grandes flâmulas da Grifinória, vermelho desbotado e ouro, somente para enfatizar como ele era diferente do resto da família Sonserina. Havia muitas fotos de motos trouxas e também (Harry tinha que admirar a coragem de Sirius) vários pôsteres de garotas trouxas de biquíni, Harry sabia que eram trouxas porque não se mexiam nas fotos, seus sorrisos eram desbotados e os olhos vidrados pareciam congelados no papel. Faziam um contraste com a única foto bruxa que havia nas paredes, a de quatro alunos de Hogwarts em pé, de braços dados, rindo para o fotógrafo.
Com um assomo de prazer, Harry reconheceu seu pai, com cabelos rebeldes no alto da cabeça como os dele, também usava óculos como ele. Ao lado, estava Sirius displicentemente bonito, seu rosto, ligeiramente arrogante, muito mais jovem e feliz do que Harry jamais o vira em vida. À direita de Sirius, estava Pettigrew, mais de uma cabeça mais baixo, gorducho, os olhos aguados, radiante de prazer por ser incluído em uma turma tão legal, com os rebeldes muito admirados que tinham sido Tiago e Sirius. À esquerda de Tiago estava Lupin, mesmo então malvestido, mas com o mesmo ar de prazerosa surpresa por se ver apreciado e incluído... ou seria simplesmente porque Harry sabia o que acontecera, que ele via tudo isso na foto?
Tentou destacá-la da parede, afinal, agora lhe pertencia, Sirius lhe deixara tudo, mas a foto não soltou. Seu padrinho não correra riscos para impedir que os pais redecorassem o seu quarto.
Harry olhou para o chão. O céu lá fora estava clareando: um raio de luz revelou pedacinhos de papel, livros e pequenos objetos espalhados pelo tapete. Era evidente que o quarto de Sirius também fora revistado, embora desse a impressão de que seu conteúdo fora considerado quase todo, se não todo, imprestável. Alguns dos livros tinham sido sacudidos o suficiente para soltarem as capas, e o chão estava juncado de páginas soltas.
Harry se abaixou, apanhou uns pedaços de papel e examinou-os. Reconheceu um deles como parte de uma velha edição de História da Magia de Batilda Bagshot, e outro como uma página de um manual de manutenção de motos.
O terceiro estava escrito a mão e amassado: alisou-o.

Caro Almofadinhas,

Muito, muito obrigada pelo presente de aniversário que mandou para Harry! Foi o que ele mais gostou até agora.
Um aninho de idade e já dispara pela casa montado em uma vassoura de brinquedo, tão vaidoso que estou enviando uma foto para você ver. Sabe, a vassoura só levanta uns sessenta centímetros do chão, mas ele quase matou o gato e quebrou um vaso horrível que Petúnia me mandou no Natal (nada contra). É claro que Tiago achou muito engraçado, diz que ele vai ser um grande jogador de quadribol, mas tivemos que guardar todos os enfeites da casa e dar um jeito de ficar sempre de olho nele quando brinca.
Tivemos um chá de aniversário muito tranquilo, só nós e a velha Batilda que sempre nos tratou com carinho e vive mimando o Harry. Ficamos com pena que você não tenha podido vir, mas a Ordem vem em primeiro lugar e Harry não tem idade para saber que está fazendo anos!
Tiago está se sentindo um pouco frustrado trancado em casa, ele procura não demonstrar, mas eu percebo, além disso, Dumbledore ficou com a Capa da Invisibilidade dele, então não há possibilidade de pequenos passeios. Se você pudesse lhe fazer uma visita, isso o animaria muito. Rabicho esteve aqui no fim de semana passado, achei-o meio deprimido, mas provavelmente foram as notícias sobre os McKinnon, chorei a noite inteira quando soube.
Batilda passa por aqui quase todo dia, é uma velhota fascinante que conta as histórias mais surpreendentes sobre Dumbledore, não tenho muita certeza se ele gostaria disso caso soubesse! Fico em dúvida se devo realmente acreditar, porque me parece inacreditável que Dumbledore...

As extremidades de Harry pareceram ter adormecido. Ele ficou muito quieto, segurando o milagroso papel em seus dedos desenervados enquanto, por dentro, uma espécie de erupção silenciosa fazia a felicidade e a dor irromperem em igual medida em suas veias. Atirando-se na cama, ele se sentou.
Releu a carta, mas não conseguiu assimilar mais significados do que da primeira vez, e foi reduzido a contemplar a caligrafia em si. Sua mãe fazia os gês iguais aos dele, ele os procurou um a um na carta, e cada um lhe pareceu uma marola amiga vislumbrada por trás de um véu. A carta era um incrível tesouro, prova de que Lílian Potter vivera, realmente vivera, que sua mão quente um dia percorrera aquele pergaminho, traçando aquelas letras, aquelas palavras, palavras a respeito dele, Harry, seu filho.
Afastando as lágrimas dos olhos, impaciente, ele releu a carta, desta vez concentrando-se mais no conteúdo. Era como ouvir uma voz parcialmente lembrada. Eles tinham um gato... talvez ele tivesse morrido, como seus pais, em Godric’s Hollow... ou talvez tivesse fugido quando não houve mais quem o alimentasse... Sirius comprara para ele a primeira vassoura... seus pais conheceram Batilda Bagshot, Dumbledore teria apresentado os três? Dumbledore ficou com a Capa da Invisibilidade dele... havia alguma coisa estranha ali...
Harry parou, refletindo sobre as palavras da mãe. Por que Dumbledore guardara a Capa da Invisibilidade de Tiago? Harry se lembrava nitidamente do diretor lhe dizendo, anos atrás: “Não preciso de uma capa para ficar invisível”. Talvez algum membro da Ordem menos talentoso tivesse precisado desse auxílio e Dumbledore servira de intermediário?
Harry prosseguiu...
Rabicho esteve aqui... Pettigrew, o traidor, parecera “deprimido”, é? Teria consciência de que estava vendo Tiago e Lílian vivos pela última vez?
E, por fim, retornamos a Batilda, que contava histórias inacreditáveis sobre Dumbledore: parece inacreditável que Dumbledore...
Que Dumbledore o quê? Havia, porém, uma quantidade de coisas que pareciam incríveis sobre Dumbledore: que um dia ele tivesse recebido as notas mais baixas em uma prova de Transfiguração, por exemplo, ou que tivesse enfeitiçado bodes como fazia Aberforth...
Harry levantou-se e esquadrinhou o chão: talvez o restante da carta estivesse por ali. Ele agarrou papéis, tratando-os, em sua ansiedade, com tão pouca consideração quanto a pessoa que os encontrara primeiro, abriu gavetas, sacudiu livros, subiu em uma cadeira para passar a mão em cima do guarda-roupa e entrou embaixo da cama e da poltrona.
Por fim, de cara no chão, localizou o que lhe pareceu um pedaço de papel rasgado embaixo da cômoda. Quando o resgatou, era a maior parte da foto que Lílian descrevera na carta. Um bebê de cabelos escuros voando para dentro e para fora do papel, montado em uma minúscula vassoura, às gargalhadas, e um par de pernas que deviam pertencer a Tiago correndo atrás dele. Harry guardou a foto e a carta da mãe no bolso, e continuou a procurar a segunda folha.
Passados mais uns quinze minutos, no entanto, foi forçado a concluir que o resto da carta já não existia. Teria simplesmente se perdido nos dezesseis anos transcorridos desde que fora escrita, ou fora levada pela pessoa que revistara o quarto?
Harry tornou a ler a primeira folha, desta vez procurando pistas para o que poderia ter tornado a segunda folha valiosa. A vassoura de brinquedo não teria interesse algum para os Comensais... a única coisa potencialmente útil que via ali era a possível informação sobre Dumbledore. Parece inacreditável que Dumbledore... o quê?
— Harry! Harry! Harry!
— Estou aqui! — gritou ele — Que aconteceu?
Ele ouviu uma zoada de passos do lado de fora, e Hermione irrompeu pelo quarto.
— Nós acordamos e não sabíamos onde você estava — disse ofegante. Virando-se, gritou por cima do ombro — Rony! Encontrei ele!
A voz aborrecida de Rony ressoou a distância de vários andares abaixo.
— Ótimo! Então diga por mim que ele é um bobalhão!
— Harry, não desapareça assim, por favor, ficamos aterrorizados! Afinal, por que veio aqui em cima? — ela percorreu com o olhar o quarto saqueado — Que andou fazendo?
— Olhe o que acabei de encontrar.
E estendeu-lhe a carta de sua mãe. Hermione apanhou-a e leu-a observada pelo garoto. Quando chegou ao fim da folha, olhou para ele.
—Ah, Harry...
— E tem mais isso.
Entregou a foto rasgada, e Hermione sorriu para o bebê que entrava e saía montado na vassoura de brinquedo.
— Estive procurando o resto da carta — disse Harry — Mas não está aqui.
A amiga correu o olhar pelo quarto.
— Você fez essa bagunça toda, ou uma parte dela já estava feita quando você entrou?
— Alguém revistou o quarto antes de mim.
— Foi o que pensei. Todos os cômodos em que olhei a caminho daqui foram revirados. Que acha que estavam procurando?
— Informações sobre a Ordem, se foi o Snape.
— Mas seria de pensar que ele já tivesse tudo que precisava, quero dizer, ele fazia parte da Ordem, não é?
— Bem, então — disse Harry, ansioso para discutir sua teoria — Informações sobre Dumbledore? A segunda folha desta carta, por exemplo. Sabe essa Batilda que minha mãe menciona, sabe quem ela é?
— Quem?
— Batilda Bagshot, a autora de...
— História da Magia — completou Hermione, mostrando interesse — Então os seus pais a conheciam? Ela foi uma incrível historiadora da magia.
— E ainda está viva, e mora em Godric’s Hollow, a Tia Muriel, do Rony, esteve falando sobre ela no casamento. Ela conheceu a família de Dumbledore também. Seria bem interessante conversar com ela, não?
Para o gosto de Harry, houve um excesso de compreensão no sorriso de Hermione. Ele tirou a carta e a foto de suas mãos e guardou-as na bolsa pendurada ao pescoço, para não precisar olhar para a amiga e se trair.
— Eu entendo por que você gostaria de conversar com ela sobre sua mãe e seu pai, e Dumbledore também — disse Hermione — Mas isto não iria realmente nos ajudar a achar as Horcruxes, não é?
Harry não respondeu e ela prosseguiu:
— Harry, eu sei que você realmente quer ir a Godric’s Hollow, mas estou com medo... estou com medo da facilidade com que aqueles Comensais da Morte nos encontraram ontem. Mais que nunca, isso me faz sentir que devemos evitar o lugar onde seus pais estão enterrados. Tenho certeza que estarão esperando a sua visita.
— Não é só isso — respondeu Harry, ainda evitando olhar para a amiga — Muriel disse umas coisas sobre Dumbledore no casamento. E quero saber a verdade...
Ele contou, então, a Hermione tudo que Muriel dissera. Quando terminou, a garota comentou:
— É claro que entendo por que isso o perturbou, Harry...
— Não estou perturbado — mentiu — Eu só gostaria de saber se é ou não verdade ou...
— Harry, você acha mesmo que vai chegar à verdade ouvindo fofocas maliciosas de uma velhota como a Muriel, ou de Rita Skeeter? Como pode acreditar nelas? Você conheceu Dumbledore!
— Pensei que conhecia — murmurou o garoto,
— Mas você sabe o quanto havia de verdade em tudo que a Rita escreveu sobre você! Doge está certo, como pode deixar essa gente macular as lembranças que você tem de Dumbledore?
Harry desviou o olhar, tentando não revelar o rancor que sentia. Ali estava outra vez o impasse: escolher no que acreditar. Ele queria a verdade. Por que estavam todos tão decididos a convencê-lo de que não devia procurá-la?
— Vamos descer para a cozinha? — sugeriu Hermione após uma breve pausa — Arranjar alguma coisa para comer?
Ele concordou, mas de má vontade, e seguiu-a ao corredor onde passaram em frente a uma segunda porta.
Harry notou que havia fundos arranhões na tinta sob um pequeno aviso que tinha passado despercebido no escuro. Parou, então, no alto da escada para lê-lo. Era um aviso breve e pomposo, caprichosamente escrito à mão, o tipo de coisa que Percy Weasley poderia ter colado na porta do próprio quarto.

NÃO ENTRE
sem a expressa permissão de
Régulo Arturo Black

A agitação foi se infiltrando em Harry, mas ele não teve imediatamente certeza do porquê. Tornou a ler o aviso.
Hermione já estava um lance de escada abaixo.
— Hermione — disse ele, surpreso que sua voz estivesse tão calma — Volta aqui em cima.
— Que foi?
— R.A.B. Acho que o encontrei.
Ouviu-se uma exclamação, e Hermione correu escada acima.
— Na carta de sua mãe? Mas não vi...
Harry balançou a cabeça, apontando para o aviso na porta de Régulo. A garota leu-o e apertou o braço de Harry com tanta força que ele fez uma careta de dor.
— O irmão de Sirius? — sussurrou.
— Ele foi um Comensal da Morte, Sirius me contou a história dele, Régulo se alistou quando ainda era muito moço e depois se acovardou e tentou sair, então, eles o mataram.
— Isso faz sentido! — exclamou Hermione — Se ele foi um Comensal da Morte, teve acesso a Voldemort, e quando se desencantou deve ter querido derrubar Voldemort!
Ela largou Harry, debruçou-se no corrimão da escada e berrou:
— Rony! Rony! Vem aqui em cima, depressa!
O garoto apareceu, ofegante, um minuto depois, empunhando a varinha.
— Que aconteceu? Se é outro ataque maciço de aranhas, eu quero o meu café da manhã antes de...
Ele franziu a testa ao ver o aviso na porta do quarto, para o qual Hermione apontava silenciosamente.
— Quê? Esse era o irmão de Sirius, não era? Régulo Arturo... Régulo... R.A.B.! O medalhão... você acha...?
— Vamos descobrir — disse Harry. Ele empurrou a porta, estava trancada à chave.
Hermione apontou a varinha para a maçaneta e disse:
— Alorromora!
Ouviu-se um clique e a porta abriu.
Eles cruzaram o portal juntos, olhando para os lados. O quarto de Régulo era ligeiramente menor que o de Sirius, embora transmitisse a mesma sensação de antigo esplendor. Enquanto o irmão tinha procurado anunciar sua dessemelhança com o resto da família, Régulo tinha se esforçado para ressaltar o oposto. As cores da Sonserina, verde e prata estavam por toda parte, guarnecendo a cama, as paredes e janelas. O brasão da Família Black fora laboriosamente pintado por cima da cama com a divisa Toujours Pur[[1]]. Abaixo uma coleção de recortes de jornal, presos uns aos outros formando uma colagem irregular.
Hermione atravessou o quarto para examiná-los.
— São todos sobre Voldemort — disse ela — Pelo visto, Régulo já era fã dele anos antes de se reunir aos Comensais da Morte...
Uma nuvenzinha de pó se ergueu da colcha da cama quando Hermione se sentou para ler os recortes. Nesse intervalo, Harry tinha reparado em uma foto: um time de quadribol de Hogwarts sorria e acenava do espaço emoldurado. Ele se aproximou mais um pouco e viu as serpentes nos brasões no peito dos garotos: Sonserina.
Régulo era instantaneamente reconhecível como o garoto que estava sentado no centro da primeira fileira: tinha os mesmos cabelos escuros e o ar ligeiramente arrogante do irmão, embora fosse menor, mais franzino e menos bonito do que Sirius.
— Ele jogava na posição de apanhador — comentou Harry.
— Quê?! — exclamou Hermione distraída, ela continuava absorta nos recortes sobre Voldemort.
— Ele está sentado no centro da primeira fila, é onde o apanhador... ah, esquece — falou Harry ao perceber que ninguém lhe prestava atenção.
Rony estava de quatro procurando alguma coisa embaixo do armário.
Harry olhou ao seu redor, procurando esconderijos prováveis, e se aproximou da escrivaninha. Mais uma vez, alguém já a revistara. O conteúdo das gavetas tinha sido revirado recentemente, a poeira deslocada, mas não havia nada de valor ali: penas velhas, livros de escola antiquados que exibiam os vestígios dos maus-tratos, um tinteiro recentemente quebrado, seu resíduo pegajoso derramado sobre os objetos na gaveta.
— Há um jeito mais fácil — disse Hermione, enquanto Harry limpava os dedos sujos de tinta no jeans.
Ela ergueu a varinha e ordenou:
— Accio medalhão!
Nada aconteceu.
Rony, que estivera procurando nas dobras das cortinas desbotadas, pareceu desapontado.
— Então é isso? Não está aqui?
— Ah, poderia até estar aqui, mas protegido por contrafeitiços — respondeu a garota — Feitiços para impedir que se possa convocá-lo por magia, entende.
— Como o que Voldemort lançou na bacia de pedra na caverna — afirmou Harry, lembrando que não conseguira convocar o falso medalhão.
— Como vamos encontrá-lo, então? — perguntou Rony.
— Procurando com as mãos — respondeu Hermione.
— É uma boa ideia — disse Rony, virando os olhos para o teto e retomando o exame das cortinas. Eles verificaram cada centímetro do quarto durante mais de uma hora, mas foram forçados a concluir que o medalhão não estava ali.
Agora o sol já nascera, a luz os ofuscava mesmo através das cortinas sujas dos corredores.
— Mas poderia estar em qualquer outro lugar da casa — sugeriu Hermione, em um tom de convocação, ao descerem as escadas. Enquanto os dois garotos tinham ficado mais desanimados, ela ficara mais decidida — Quer ele tenha conseguido ou não destruir o medalhão, iria querer escondê-lo de Voldemort, não acham? Lembram aquelas lixarias todas de que precisamos nos livrar quando estivemos aqui na última vez? Aquele relógio que lançava raios e aquelas vestes velhas que tentaram estrangular Rony, Régulo talvez as tivesse posto lá para proteger o esconderijo do medalhão, ainda que a gente não tenha entendido à... à...
Harry e Rony olharam para Hermione. Ela estava parada com um pé no ar e a expressão abobada de alguém que acabou de ser obliviado, seus olhos tinham até saído de foco.
—... à época — terminou ela em um sussurro.
— Algum problema? — perguntou Rony.
— Havia um medalhão.
— Quê?! — exclamaram os dois garotos ao mesmo tempo.
— No armário da sala de visitas. Ninguém conseguiu abri-lo. E nós... nós...
Harry teve a sensação de que um tijolo tinha escorregado do seu peito para o estômago. Lembrou-se: tinha até manuseado o objeto quando passou de mão em mão, todos experimentando abri-lo. Por fim, fora atirado em um saco de lixo, junto com a caixa de pó de verrugueira e a caixa de música que deixou todo mundo com sono...
— Monstro pegou montes dessas coisas escondido de nós — disse Harry.
Era a única chance, a única e tênue esperança que lhes restava, e o garoto ia se apegar a ela até que fosse forçado a abandoná-la.
— Ele tinha um verdadeiro tesouro escondido no armário da cozinha. Vamos.
Harry desceu correndo a escada de dois em dois degraus, com os amigos em sua cola fazendo a escada reboar. O barulho foi tamanho que acordaram o retrato da mãe de Sirius ao atravessarem o corredor da entrada.
— Lixo! Sangues Ruins! Ralé! — gritou a bruxa para os garotos quando desceram desembestados para a cozinha do porão e bateram a porta ao entrar.
Harry continuou sua corrida pelo aposento, parou derrapando à porta do armário de Monstro e abriu-o com violência. Lá estava o ninho de sujeira, as mantas velhas em que o elfo costumava dormir, mas o armário já não brilhava com as quinquilharias que Monstro salvara. Havia apenas um velho exemplar de A Nobreza Natural: Uma Genealogia dos Bruxos.
Recusando-se a crer no que via, Harry puxou as cobertas e sacudiu-as. Delas caiu um camundongo morto que rolou lugubremente pelo chão. Rony gemeu ao se atirar em uma cadeira da cozinha, Hermione fechou os olhos.
— Ainda não terminou — disse Harry, e erguendo a voz berrou — Monstro!
Ouviram um forte estalo e o elfo doméstico, que relutantemente Harry herdara de Sirius, apareceu de repente diante da lareira vazia e fria: minúsculo, metade da altura de um homem, a pele pálida em pelancas, os cabelos brancos brotando em tufos das orelhas de morcego. Ainda usava os trapos imundos em que o tinham conhecido, e o olhar de desprezo que lançou a Harry demonstrou que sua atitude, com a transferência de dono, tal como os seus trajes, não havia mudado.
— Meu senhor — coaxou Monstro com a sua voz de rã-touro, e ele fez uma profunda reverência, resmungando para os próprios joelhos — De volta à velha casa da minha senhora com o traidor do sangue Weasley e a Sangue Ruim...
— Proíbo você de chamar quem quer que seja de “traidor do sangue” ou de “Sangue Ruim” — rosnou Harry.
Teria achado Monstro, com seu nariz trombudo e seus olhos injetados, um objeto decididamente repulsivo mesmo se o elfo não tivesse entregado Sirius a Voldemort.
— Tenho uma pergunta a lhe fazer — continuou Harry, o coração acelerando ao olhar para o elfo — E ordeno que me responda a verdade. Entendeu?
— Sim, meu senhor — respondeu Monstro fazendo nova reverência.
Harry viu seus lábios se moverem em silêncio, sem dúvida mastigando os insultos que fora proibido de proferir.
— Dois anos atrás — disse Harry, seu coração agora reboando nas costelas — Havia um medalhão de ouro na sala de visitas lá em cima. Nós o jogamos fora. Você o pegou de volta?
Houve um momento de silêncio em que Monstro se aprumou para encarar Harry. Em seguida respondeu:
— Peguei.
— Onde está o medalhão agora? — tornou o garoto exultando, sob o olhar animado de Rony e Hermione.
Monstro fechou os olhos como se não pudesse suportar ver aquelas reações à sua resposta.
— Foi-se.
— Foi-se? — repetiu Harry, a euforia se dissipando — Que quer dizer com esse “foi-se”?
O elfo estremeceu. Cambaleou.
— Monstro — disse Harry ameaçador — Ordeno que você...
— Mundungo Fletcher roubou tudo: os retratos da Srta. Bela e da Srta. Cissa, as luvas da minha senhora, a Ordem de Merlim, Primeira Classe, as taças de vinho com o brasão da família e, e...
Monstro tentava recuperar o fôlego: seu peito cavado subia e descia rapidamente, então seus olhos se arregalaram e ele soltou um grito de congelar o sangue.
—... e o medalhão, o medalhão do meu Senhor Régulo, Monstro agiu mal, Monstro desobedeceu às ordens dele!
Harry reagiu instintivamente: quando Monstro mergulhou para apanhar o atiçador na grelha da lareira, ele se atirou sobre o elfo e achatou-o no chão. O grito de Hermione se misturou ao de Monstro, mas Harry berrou mais alto que os dois:
— Monstro, ordeno que você fique parado!
Ele sentiu o elfo se imobilizar e soltou-o. Monstro ficou estatelado no piso frio, as lágrimas saltando dos seus olhos empapuçados.
— Harry deixe ele levantar! — sussurrou Hermione.
— Para ele poder se espancar com o atiçador? — bufou Harry, se ajoelhando ao lado do elfo — Acho que não. Certo, Monstro, quero verdade: como sabe que Mundungo Fletcher roubou o medalhão?
— Monstro viu! — exclamou ele, as lágrimas escorrendo do nariz para a boca cheia de dentes cinzentos — Monstro viu ele saindo do armário, as mãos cheias com os tesouros de Monstro. Monstro mandou o larápio parar, mas Mundungo Fletcher riu e c-correu...
— Você disse que o medalhão era do seu senhor Régulo. Por quê? De onde veio o medalhão? Qual era a ligação de Régulo com ele? Monstro, sente-se e me conte tudo que sabe sobre aquele medalhão, do que o ligava a Régulo!
O elfo sentou, enroscado como uma bola, apoiou o rosto molhado entre os joelhos e começou a se balançar para a frente e para trás. Quando falou, sua voz saiu abafada, mas bastante clara no silêncio da cozinha vazia.
— Meu senhor Sirius fugiu, ainda bem, porque ele era um garoto ruim e despedaçou o coração da minha senhora com a sua rebeldia. Mas meu senhor Régulo tinha orgulho, sabia reverenciar o nome Black e a dignidade do seu Sangue Puro. Durante anos ele falou do Lorde das Trevas, que ia tirar os bruxos da clandestinidade, dominar os trouxas e os nascidos trouxas... e quando fez dezesseis anos, meu senhor Régulo se reuniu ao Lorde das Trevas. Tão orgulhoso, tão orgulhoso, tão feliz de servir... e um dia, um ano depois que se alistou, meu senhor Régulo veio à cozinha ver Monstro. Meu senhor Régulo sempre gostou de Monstro. E meu senhor Régulo disse... disse...
O velho elfo balançou-se mais rápido que nunca.
—... disse que o Lorde das Trevas precisava de um elfo.
— Voldemort precisava de um elfo? — repetiu Harry, olhando para Rony e Hermione, que pareceram tão intrigados quanto ele.
— Ah, foi — gemeu Monstro — E meu senhor Régulo tinha oferecido Monstro. Era uma honra, disse meu senhor Régulo, uma honra para ele e para Monstro, que tinha de fazer tudo que o Lorde das Trevas mandasse... e depois v-voltar para casa.
Monstro balançou-se ainda mais rápido, expirando em soluços.
— Então Monstro foi procurar o Lorde das Trevas. O Lorde das Trevas não disse a Monstro o que iam fazer, mas levou Monstro com ele para uma caverna junto ao mar. E para além da caverna havia outra caverna, e na caverna havia um enorme lago preto...
Os pelinhos da nuca de Harry se eriçaram. A voz rouca de Monstro parecia chegar a ele vinda da outra margem daquela água escura. Ele viu o que acontecera tão claramente quanto se tivesse estado presente.
—... havia um barco...
É claro que houvera um barco, Harry conhecia o barco, minúsculo e verde espectral, enfeitiçado para transportar um bruxo e uma vítima até a ilha no meio do lago. Então fora assim que Voldemort testara as defesas que cercavam a Horcrux, pedindo emprestada uma criatura dispensável, um elfo doméstico...
— Havia uma b-bacia cheia de poção na ilha. O Lorde das T-Trevas fez Monstro beber...
O elfo tremeu da cabeça aos pés.
— Monstro bebeu, e enquanto bebia, viu coisas terríveis... as entranhas de Monstro queimaram... Monstro gritou para o senhor Régulo ir salvar ele, gritou por sua senhora Black, mas o Lorde das Trevas ria... ele fez Monstro beber a poção toda... ele pôs um medalhão na bacia vazia... tornou a encher a bacia com mais poção. Então o Lorde das Trevas foi embora e deixou Monstro na ilha...
Harry via a cena se desenrolando. O rosto branco e serpentino de Voldemort desaparecendo na escuridão, aqueles olhos vermelhos cruelmente fixos no elfo que se debatia e cuja morte ocorreria dentro de minutos, quando ele sucumbisse à sede desesperada que a poção causticante causava na vítima... mas daí em diante a imaginação de Harry não pôde prosseguir, porque não conseguiu visualizar como Monstro escapara.
— Monstro precisava de água, arrastou-se até a orla da ilha e bebeu a água do lago preto... e mãos, mãos mortas saíram da água e arrastaram Monstro para baixo...
— Como foi que você escapou? — perguntou Harry, e não se surpreendeu ao perceber que estava sussurrando.
Monstro ergueu a cabeça feia e encarou Harry com seus grandes olhos vermelhos.
— Meu senhor Régulo disse a Monstro para voltar.
— Eu sei... mas como você fugiu dos Inferi?
Monstro pareceu não entender.
— Meu senhor Régulo disse a Monstro para voltar — repetiu ele.
— Eu sei, mas...
— Ora é óbvio, não é, Harry? — interveio Rony — Ele desaparatou!
— Mas... não se podia aparatar e desaparatar na caverna — disse Harry — Do contrário, Dumbledore...
— A magia dos elfos não é como a magia dos bruxos, é? — perguntou Rony — Quero dizer, eles podem aparatar e desaparatar em Hogwarts e nós não.
Fez-se silêncio enquanto Harry digeria a informação. Como Voldemort poderia ter cometido um erro desse? Enquanto pensava, porém, Hermione falou, e sua voz estava gélida.
— É óbvio, Voldemort teria considerado os costumes dos elfos domésticos indignos de sua atenção, exatamente como os Sangues Puros que os tratam como animais. Nunca teria lhe ocorrido que eles pudessem ser capazes de uma magia que ele não dominasse.
— A lei máxima para um elfo doméstico é a ordem do seu senhor — entoou Monstro — Mandaram Monstro voltar para casa, então Monstro voltou para casa.
— Bem, então você fazia o que lhe mandavam, não é? — disse Hermione bondosamente — Não desobedecia a ordem alguma!
Monstro fez que não com a cabeça, se balançando furiosamente.
— Então que aconteceu quando você voltou? — perguntou Harry — Que disse Régulo quando você contou o que tinha acontecido?
— Meu senhor Régulo ficou muito preocupado, muito preocupado — crocitou Monstro — Meu senhor Régulo mandou Monstro ficar escondido e não sair de casa. E então... foi um pouco depois disso... meu senhor Régulo veio procurar Monstro no armário uma noite, e meu senhor Régulo estava esquisito, fora do normal, perturbado, Monstro percebeu... e ele pediu a Monstro para levá-lo até a caverna, a caverna onde Monstro tinha ido com o Lorde das Trevas...
E então tinham partido. Harry pôde visualizá-los muito claramente, o velho elfo amedrontado e o apanhador magro e moreno que tanto se parecera com Sirius... Monstro sabia como abrir a entrada oculta para a caverna subterrânea, sabia como erguer o barquinho, desta vez foi o seu amado Régulo quem o acompanhou à ilha com a bacia de veneno...
— E ele fez você beber a poção? — perguntou Harry enojado.
Monstro, porém, sacudiu a cabeça e chorou.
Hermione levou as mãos à boca: parecia ter compreendido alguma coisa.
— M-meu senhor Régulo tirou do bolso um medalhão igual ao que o Lorde das Trevas tinha — disse Monstro, as lágrimas escorrendo pelos lados do seu nariz trombudo — E ele disse a Monstro para pegar e, quando a bacia estivesse vazia, trocar os medalhões...
Os soluços de Monstro agora saíam em grandes guinchos, Harry precisou se concentrar para entendê-lo.
— E ele deu ordem... para Monstro ir embora... sem ele. E ele disse a Monstro... para ir para casa... e nunca contar à minha senhora... o que ele tinha feito... mas para destruir... o primeiro medalhão. E ele bebeu... a poção toda... e Monstro trocou os medalhões... e ficou olhando... meu senhor Régulo... ele foi arrastado para baixo d’agua... e...
— Ah, Monstro! — gemeu Hermione, que estava chorando. Ela caiu de joelhos ao lado do elfo e tentou abraçá-lo.
Na mesma hora, ele ficou de pé, fugiu dela, deixando óbvia a sua repulsa.
— A Sangue Ruim encostou em Monstro, ele não vai permitir, que iria dizer a senhora dele?
— Eu lhe disse para não chamá-la de Sangue Ruim! — vociferou Harry, mas o elfo já estava se castigando: atirou-se ao chão e bateu com a cabeça repetidamente.
— Faça ele parar, faça ele parar! — exclamou Hermione — Ah, está claro agora como isso é doentio, a obrigação que eles têm de obedecer?
— Monstro: para, para! — gritou Harry.
O elfo ficou deitado no chão, ofegando e tremendo, uma secreção verde brilhando em torno do nariz, um hematoma já se formando na testa pálida no ponto em que a batera, seus olhos inchados e injetados transbordando lágrimas.
Harry nunca vira nada tão digno de pena.
— Então você trouxe o medalhão para casa — disse ele inflexível, porque estava resolvido a conhecer a história completa — E tentou destruí-lo?
— Nada que Monstro tentou fez mossa no medalhão — lamentou-se o elfo — Monstro tentou tudo, tudo que sabia, mas nada, nada adiantou... de tão poderosos os feitiços que estavam nele. Monstro tinha certeza que, para destruir o medalhão, precisava chegar dentro dele, mas ele não abria... Monstro se castigou, tentou outra vez, se castigou, tentou outra vez. Monstro não conseguiu obedecer à ordem, Monstro não conseguiu destruir o medalhão! E sua senhora enlouqueceu de tristeza, porque meu senhor Régulo desapareceu, e Monstro não pôde contar a ela o que tinha acontecido, não, porque meu senhor Régulo tinha p-proibido Monstro de contar para a f-família o que tinha acontecido na c-caverna...
Monstro começou a soluçar tanto que suas palavras deixaram de fazer sentido. As lágrimas escorriam pelo rosto de Hermione, que observava Monstro, mas ela não se atreveu a tocá-lo novamente. Até Rony, que não era fã do elfo, parecia perturbado.
Harry se recostou e sacudiu a cabeça, tentando clarear os pensamentos.
— Não estou entendendo você, Monstro — disse ele finalmente — Voldemort tentou matar você, Régulo morreu para derrubar Voldemort, ainda assim você ficou feliz em entregar Sirius a Voldemort? Ficou feliz em procurar Narcisa e Belatriz e por meio delas passar informações a Voldemort...
— Harry, não é assim que Monstro raciocina — disse Hermione enxugando as lágrimas com o dorso da mão — Ele é um escravo, elfos domésticos estão acostumados a ser maltratados e até brutalizados, o que Voldemort fez a Monstro não foi muito diferente disso. Que significam as guerras bruxas para um elfo como Monstro? Ele é leal àqueles que são bons para ele, e a Sra. Black deve ter sido boa, e Régulo certamente o foi, portanto ele os servia de boa vontade e repetia as crenças deles. Sei o que você vai me dizer — continuou ela, quando Harry começou a protestar — Que Régulo mudou de ideia... mas, pelo visto, ele não explicou isso a Monstro, não é? E acho que sei a razão. Monstro e a família de Régulo estariam mais seguros se continuassem fiéis ao velho conceito do Sangue Puro. Régulo estava tentando proteger a todos.
— Sirius...
— Sirius era muito mau com Monstro, Harry, e não adianta me olhar assim, você sabe que é verdade. Monstro tinha passado muito tempo sozinho quando Sirius veio morar aqui, e provavelmente estava faminto por alguma afeição. Tenho certeza que a “Srta. Cissa” e a “Srta. Bela” eram absolutamente simpáticas com Monstro quando ele aparecia por lá, então ele lhes fazia um favor e contava tudo que queriam saber. Sempre disse que os bruxos um dia iriam pagar pelo modo com que tratam os elfos domésticos. Bem, Voldemort pagou... e Sirius também.
Harry não teve o que retorquir. Enquanto observava Monstro aos soluços no chão, ele se lembrou do que Dumbledore lhe dissera, poucas horas após Sirius morrer: “Acho que Sirius nunca encarou Monstro como um ser com sentimentos tão sutis quanto os de um ser humano...”.
— Monstro — disse Harry, algum tempo depois — Quando tiver vontade, ãh... por favor, se sente.
Passaram-se vários minutos até Monstro calar seus soluços. Sentou então, esfregando os olhos com os nós dos dedos, como uma criancinha.
— Monstro, vou lhe pedir para fazer uma coisa — disse-lhe Harry, e olhou para Hermione pedindo ajuda: queria dar uma ordem gentilmente, mas ao mesmo tempo não poderia fingir que não era uma ordem.
Contudo, a mudança no seu tom de voz parecia ter recebido aprovação da amiga: ela sorriu encorajando-o.
— Monstro, eu quero que você, por favor, encontre Mundungo Fletcher. Precisamos descobrir onde o medalhão, o medalhão do seu senhor Régulo, está. É realmente importante. Queremos terminar a tarefa que o seu senhor Régulo começou, queremos... ãh... garantir que ele não tenha morrido em vão.
Monstro baixou os punhos e ergueu os olhos para Harry Potter.
— Encontrar Mundungo Fletcher? — repetiu rouco.
— E trazê-lo aqui, ao Largo Grimmauld — acrescentou Harry — Você acha que poderia fazer isso para nós?
Ao ver Monstro assentir e ficar em pé, o garoto teve uma súbita inspiração. Apanhou a bolsa que Hagrid lhe dera e tirou a falsa Horcrux, o medalhão substituto em que Régulo colocara o bilhete para Voldemort.
— Monstro, eu... ãh... gostaria que você ficasse com isso — disse, colocando o medalhão nas mãos do elfo — Isto pertenceu a Régulo, e tenho certeza que ele gostaria de lhe dar como prova de gratidão pelo que você...
— Se sacrificou, colega — disse Rony, quando o elfo, dando uma olhada no medalhão, deixou escapar um uivo de choque e desespero e tornou a se atirar ao chão.
Levaram quase meia-hora para acalmar Monstro, que ficou tão comovido em receber de presente uma herança da família Black que sentiu os joelhos fracos demais para se manter em pé. Quando finalmente pôde dar alguns passos, os garotos o acompanharam ao seu armário, viram-no guardar o medalhão nas cobertas sujas, e tranquilizaram o elfo de que a proteção do objeto seria sua maior prioridade enquanto ele estivesse ausente.
Então Monstro fez duas reverências profundas para Rony e Harry, e até uma leve contração gaiata em direção a Hermione que talvez fosse uma tentativa de saudá-la respeitosamente, antes de desaparatar com o costumeiro estalo.







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