quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 19





— CAPÍTULO DEZENOVE —
A CORÇA PRATEADA



ESTAVA NEVANDO quando Hermione assumiu a vigia à meia-noite. Os sonhos de Harry foram confusos e perturbadores: Nagini entrava e saía, primeiro, de um gigantesco anel rachado, depois, de uma coroa de heléboros. Ele acordou várias vezes, em pânico, convencido de que alguém o chamara ao longe, imaginando que o vento a açoitar a barraca fossem passos ou vozes.
Por fim, levantou-se no escuro e foi se juntar a Hermione, que estava encolhida na entrada da barraca lendo História da Magia à luz da varinha. A neve continuava a cair profusamente, e ela recebeu com alívio a sugestão de guardarem tudo cedo e continuar a viagem.
— Vamos para algum lugar mais abrigado — concordou ela, trêmula, vestindo um suéter de atletismo por cima do pijama — Passei o tempo todo achando que ouvia gente andar aqui fora. E tive até a impressão de ter visto alguém uma ou duas vezes.
Harry parou no ato de vestir um suéter e deu uma olhada no silencioso e imóvel bisbilhoscópio sobre a mesa.
— Tenho certeza de que foi imaginação — disse Hermione, parecendo nervosa — No escuro, a neve prega peças aos nossos olhos... mas talvez seja bom desaparatarmos com a Capa da Invisibilidade, só por precaução.
Meia-hora depois, a barraca já guardada, Harry usando a Horcrux e Hermione segurando a bolsinha de contas, desaparataram. Foram engolidos pela habitual compressão, os pés do garoto deixaram o chão fofo de neve e bateram com força em terra congelada e coberta de folhas, ou essa foi sua impressão.
— Onde estamos? — perguntou ele, correndo os olhos por um arvoredo diferente enquanto Hermione abria a bolsinha e começava a puxar lá de dentro os paus da barraca.
— Na Floresta do Deão. Acampei aqui uma vez com os meus pais.
Ali, também, a neve cobria as árvores em torno e fazia um frio cortante, mas, pelo menos, estavam abrigados do vento.
Eles passaram a maior parte do dia na barraca, buscando calor junto às forte chamas azuis que Hermione era perita em produzir, e que podiam ser recolhidas e transportadas em um jarro. Harry tinha a sensação, que era reforçada pela solicitude de Hermione, de estar convalescendo de uma doença breve, mas aguda. Naquela tarde, a neve tornou a cair, e, em consequência, até a clareira abrigada recebeu nova camada da neve fina como pó.
Após duas noites de pouco sono, os sentidos de Harry pareciam mais aguçados do que o normal. Sua fuga de Godric’s Hollow, por um fio, fizera Voldemort parecer mais próximo que antes, mais ameaçador. Quando a noite desceu, Harry recusou a oferta de Hermione de fazer a vigia e lhe disse para ir se deitar.
O garoto levou uma almofada velha para a entrada da barraca e se sentou, usando todos os suéteres que possuía e, ainda assim, sentiu frio. Com a passagem das horas, a escuridão foi adensando até se tornar virtualmente impenetrável. Ele já ia tirar o Mapa do Maroto para espiar o pontinho que representasse Gina quando lembrou que eram as férias de Natal e que ela teria regressado à Toca.
O mínimo movimento parecia se amplificar na vastidão da mata. Harry sabia que o lugar devia estar pululando de seres vivos, mas desejou que todos se mantivessem imóveis e silenciosos para ele poder diferenciar suas corridas e passos furtivos dos ruídos que pudessem anunciar outros movimentos sinistros. Lembrou-se do som de uma capa deslizando sobre folhas mortas havia muitos anos, e imediatamente pensou tê-lo ouvido antes de se sacudir mentalmente. Os feitiços de proteção tinham funcionado durante semanas, por que iriam se romper agora? Contudo, ele não conseguiu se livrar da sensação de que havia alguma coisa diferente essa noite.
Várias vezes ele se levantou bruscamente, o pescoço doendo porque adormecera e relaxara o corpo em um ângulo torto contra a parede da barraca. A noite atingiu tal densidade de aveludado negror que ele poderia estar flutuando no limbo entre a desaparatação e a aparatação. Tinha acabado de erguer a mão diante do rosto para verificar se conseguiria ver os dedos quando aconteceu.
Uma luz prateada apareceu logo à frente, movendo-se entre as árvores. Qualquer que fosse sua origem, ela se deslocava silenciosamente. A luz parecia simplesmente estar vindo em sua direção. Ele se pôs de pé com um salto, a voz congelada na garganta, e ergueu a varinha de Hermione.
Apertou os olhos quando a luz ameaçou cegá-lo, as árvores à sua frente silhuetas negras, e ela sempre a se aproximar...
Então a fonte da luz saiu de trás de um carvalho.
Era uma corça branco-prateada, um luar que brilhava e ofuscava, pisando com cautela, em silêncio, sem deixar rastros na fina poeira de neve. Ela veio ao seu encontro, a bela cabeça altiva, com olhos rasgados e longas pestanas, no alto.
Harry fitou o animal, assombrado, não por sua estranheza, mas por sua inexplicável familiaridade. Sentiu que estivera à sua espera, mas que esquecera, até aquele momento, que tinham combinado se encontrar. Seu impulso de gritar por Hermione, tão forte instantes antes, desaparecera. Ele sabia, teria apostado a vida, que ela viera buscá-lo, e a mais ninguém.
Eles se contemplaram por longos momentos e, então, a corça lhe deu as costas e se afastou.
— Não — exclamou ele, e sua voz quebrou por falta de uso — Volte aqui!
A corça continuou a avançar deliberadamente entre as árvores, e seu fulgor não tardou a se listrar com as sombras dos troncos grossos e escuros. Por um instante, ele hesitou, trêmulo. A cautela lhe sussurrou: poderia ser um truque, um engodo, uma armadilha. O instinto, porém, o instinto soberano lhe disse que aquilo não era magia das Trevas. Ele partiu em seu encalço.
A neve rangia sob seus pés, mas a corça não fazia ruído ao passar entre as árvores, porque era apenas luz. Sempre mais fundo pela mata, ela o conduzia, e Harry andava depressa, certo de que, quando parasse, ela o deixaria se aproximar. E Harry lhe falaria, e a voz diria a ele o que precisava saber.
Finalmente, ela parou. Tornou a virar a bela cabeça para ele, e Harry correu ao seu encontro, uma pergunta ardendo em seu íntimo, mas, ao abrir a boca para fazê-la, a corça desapareceu.
Embora a escuridão a tivesse engolido inteira, sua imagem reluzente continuava gravada na retina do garoto, obscurecia sua visão, mais intensamente quando ele baixava as pálpebras, desorientando-o. Sobreveio, então, o medo: a presença da corça significara segurança.
— Lumus! — sussurrou ele, e a ponta da varinha se acendeu.
A imagem da corça foi desaparecendo a cada vez que piscava ali parado, escutando os sons da floresta, os distantes estalidos de gravetos, o farfalhar suave da neve. Estaria em vias de ser atacado? A corça o teria atraído a uma armadilha? Ele estaria imaginando que havia alguém parado, à espreita, além do alcance da varinha? Ergueu-a mais alto.
Ninguém avançou para ele, não houve clarão de luz verde detrás de árvore alguma. Por que, então, ela o conduzira àquele lugar?
Alguma coisa lampejou à luz da varinha, e Harry se virou para examiná-la, mas viu apenas um pequeno poço congelado, a superfície negra rachada, cintilando à claridade da varinha no alto.
Ele se aproximou com certa cautela e espiou. O gelo refletiu sua sombra distorcida e o feixe de luz da varinha, mas, no fundo, sobre a carapaça cinzenta e difusa, outra coisa brilhou.
Uma grande cruz prateada...
Seu coração saltou à boca, ele caiu de joelhos à beira do poço e virou a varinha em ângulo para inundar o fundo com o máximo de luz. Um brilho vermelho-escuro... uma espada com rubis brilhantes no punho... a Espada de Gryffindor estava no fundo do poço.
Mal respirando, olhou-a espantado. Como era possível? Como viera parar em um poço na mata, tão perto do lugar em que estavam acampados? Teria uma magia desconhecida atraído Hermione a esse lugar, ou a corça, que ele tomara por um Patrono, seria uma espécie de guardiã do poço? Ou teria a espada sido colocada ali depois de sua chegada, precisamente porque estavam ali? Nesse caso, onde estaria a pessoa que tinha querido passá-la a Harry? Mais uma vez, ele dirigiu a varinha para as árvores e arbustos circundantes, procurando uma silhueta humana, o brilho de um olho, mas não viu ninguém.
Sentiu, contudo, um pouco mais de medo fermentar sua euforia ao voltar a atenção para a espada que repousava no fundo do poço congelado. Apontou a varinha para a forma prateada e murmurou:
— Accio espada!
A arma não se mexeu. Não esperara que o fizesse. Se fosse tão fácil, a espada estaria caída no chão, aguardando que ele a recolhesse, e não no fundo de um poço congelado. Ele contornou o círculo de gelo, fazendo esforço para lembrar a última vez que a espada viera às suas mãos. Ele corria, então, extremo perigo e pedira ajuda.
— Socorro — murmurou, mas a espada continuou no fundo do poço, indiferente, imóvel.
Que era mesmo, Harry perguntou a si mesmo (voltando a andar), que Dumbledore lhe dissera da última vez que ele tivera a espada? Somente um verdadeiro membro da Grifinória poderia ter tirado isto do chapéu. E quais eram as qualidades que definiam um aluno da Grifinória? Uma vozinha na cabeça de Harry respondeu: a audácia, a coragem e o cavalheirismo distinguem os membros da Grifinória.
Harry parou de andar e deixou escapar um longo suspiro, seu hálito esfumaçado dispersando-se rapidamente no ar gélido. Sabia o que tinha de fazer. Para ser sincero, imaginara que chegaria a esse ponto no momento em que localizara a espada no gelo.
Ele correu o olhar pelas árvores ao redor, mas estava convencido, agora, de que ninguém ia atacá-lo. Tinham tido oportunidade quando ele caminhara sozinho pela mata, tinham tido muito tempo enquanto examinava o poço. A essa altura, a única razão para sua demora era a perspectiva imediata ser profundamente desconvidativa.
Com os dedos pouco ágeis, Harry começou a tirar suas várias camadas de roupa. Onde entrava o “cavalheirismo” nisso, lamentou-se, não estava muito seguro, a não ser que cavalheirismo fosse não chamar Hermione para fazer isso por ele.
Uma coruja piou em algum lugar enquanto se despia, e ele pensou em Edwiges com um aperto no coração. Tremia de frio agora, seus dentes batiam sem parar, mas ele continuou a se despir até ficar apenas de cueca e pés descalços na neve. Colocou a bolsa contendo as metades de sua varinha, a carta de sua mãe, o caco do espelho de Sirius e o velho pomo por cima das roupas, então apontou a varinha de Hermione para o gelo.
— Difffindo!
O feitiço estalou no silêncio como o estampido de uma arma: a superfície do poço rachou e pedaços de gelo escuro flutuaram na água agitada. Pelo que Harry pôde calcular, não era fundo, mas, para recuperar a espada, teria que submergir de corpo inteiro. Refletir sobre a tarefa à frente não a tornaria mais fácil, nem a água mais quente. Ele se acercou do poço e depositou a varinha de Hermione no chão, ainda acesa. Depois, tentando não imaginar a temperatura extrema a que chegaria nem a violência com que logo estaria se sacudindo, pulou.
Cada poro do seu corpo gritou em protesto: o próprio ar em seus pulmões pareceu congelar quando submergiu, até a altura dos ombros, na água gelada.
Mal conseguia respirar; tremendo com tanta força que chegava a provocar marolas na borda do poço, ele procurou sentir a espada com os pés dormentes. Só queria mergulhar uma vez. Harry adiou o momento da total imersão de segundo a segundo, ofegando e se sacudindo, até se convencer de que aquilo precisava ser feito. Então, reuniu toda a sua coragem e mergulhou.
O frio extremo foi angustiante: queimou-o como fogo. Seu próprio cérebro pareceu congelar quando ele cortou a água escura até o fundo e esticou as mãos ao encontro da espada. Seus dedos se fecharam em torno do punho: ele a puxou para cima.
Então alguma coisa se fechou em torno do seu pescoço. Pensou que fossem plantas aquáticas, embora nada tivesse roçado nele quando mergulhara, e ele ergueu a mão livre para se desvencilhar. Não era planta: a corrente da Horcrux apertava e lentamente comprimia sua traqueia.
Harry bateu os pés com força, tentando voltar à superfície, mas conseguiu apenas se impelir contra o lado rochoso do poço.
Debatendo-se, sufocando, ele esgravatou o pescoço, seus dedos congelados incapazes de soltar a corrente, e agora surgiam pontinhos luminosos em seu cérebro, e ele ia se afogar, não havia mais nada, nada que pudesse fazer, e os braços que se fecharam em torno do seu peito certamente eram os da Morte...
Engasgando e engulhando, encharcado e mais gelado do que já estivera na vida, ele recobrou os sentidos, de cara na neve. Perto, outra pessoa ofegava e tossia e cambaleava.
Hermione viera em seu socorro, como viera quando a cobra atacara... contudo, não parecia ser ela, não com aquelas tossidas compridas, não a julgar pelo peso dos passos...
Harry não teve forças para levantar a cabeça e conhecer a identidade do seu salvador. Só conseguiu levar a mão trêmula à garganta e sentir o lugar em que o medalhão cortara fundo sua carne. Não estava ali: alguém o retirara. Então, uma voz ofegante falou do alto:
—Você... é... maluco?
Nada além do choque de ouvir aquela voz poderia ter dado a Harry energia para se levantar. Tremendo violentamente, ele se pôs de pé, vacilante.
Diante dele, viu Rony, completamente vestido, mas encharcado até os ossos, os cabelos colados no rosto, a Espada de Gryffindor em uma das mãos e a Horcrux pendurada na corrente partida na outra.
— Por que não tirou essa coisa antes de mergulhar, pô? — ofegou Rony, segurando a Horcrux, que balançava para frente e para trás na corrente curta em uma paródia de hipnose.
Harry não conseguiu responder. A corça prateada não era nada, nada comparada ao reaparecimento de Rony, nem conseguia acreditar. Tremendo de frio, apanhou o monte de roupas ainda na beira do poço e começou a se vestir. Enfiando suéter após suéter pela cabeça, Harry fitava Rony, como se esperasse vê-lo desaparecer cada vez que o perdia de vista. Entretanto, ele tinha que ser real: acabara de mergulhar no poço, salvara a vida de Harry.
— Foi v-você? — perguntou ele por fim, os dentes castanholando, a voz mais fraca do que o normal por causa do quase estrangulamento.
— Bem, foi — respondeu Rony, parecendo ligeiramente atordoado.
— V-você conjurou aquela corça?
— Quê? Não, claro que não! Pensei que você é que estivesse conjurando!
— Meu Patrono é um cervo.
— Ah, é. Achei que estava diferente. Sem galhada.
Harry pendurou a bolsa de Hagrid no pescoço, vestiu o último suéter, abaixou-se para recolher a varinha de Hermione e encarou Rony.
— Como veio parar aqui?
Aparentemente, Rony tivera esperança de que essa questão fosse levantada mais tarde, ou nunca.
— Bem, eu... você entende... voltei. Se... — ele pigarreou — Entende. Vocês ainda me quiserem.
Houve um silêncio em que o assunto da partida de Rony pareceu se levantar como uma muralha entre os dois. Contudo, ele estava ali. Voltara. Acabara de salvar a vida de Harry.
Rony baixou os olhos para as mãos. Pareceu momentaneamente surpreso ao ver os objetos que carregava.
— Ah, sim, tirei-a do poço — disse desnecessariamente, estendendo a espada para Harry examiná-la — Foi por isso que você pulou aí dentro, certo?
— Foi — respondeu Harry — Mas não estou entendendo. Como foi que você chegou aqui? Como nos encontrou?
— É uma longa história. Passei horas procurando vocês, a mata é bem grande, não é? E estava pensando que teria de me entocar embaixo de uma árvore e esperar amanhecer, quando vi aquela corça vindo e você atrás.
— Você não viu mais ninguém?
— Não. Eu...
Ele hesitou olhando para duas árvores que cresciam juntas a alguns metros de onde estavam.
— Achei que tinha visto alguma coisa se mexendo lá adiante, mas na hora estava correndo para o poço, porque você tinha mergulhado e não tinha voltado à tona, então eu não ia me desviar para... ei!
Harry já estava correndo para o lugar que Rony indicara. Os dois carvalhos cresciam muito juntos, havia apenas um vão de uns poucos centímetros, à altura dos olhos, entre seus troncos, um lugar ideal para ver sem ser visto. O solo em torno das raízes, porém, não tinha neve, e Harry não viu marcas de pés. Ele voltou para onde Rony ficara esperando ainda segurando a espada e a Horcrux.
— Viu alguma coisa lá? — perguntou Rony.
— Não.
— Então, como foi que a espada apareceu no poço?
— A pessoa que conjurou o Patrono deve tê-la colocado lá.
Os dois olharam para a bainha lavrada da espada, o punho cravejado de rubis refulgia fracamente à luz da varinha de Hermione.
— Você acha que esta é a verdadeira? — perguntou Rony.
— Só há um jeito de descobrir, não é?
A Horcrux ainda balançava na mão de Rony. O medalhão vibrava ligeiramente. Harry sabia que a coisa ali dentro se agitava outra vez. Sentira a presença da espada e tentara matar Harry para não deixar que ele a possuísse. Agora não era o momento para longas discussões, agora era o momento de destruir o medalhão de uma vez por todas. Harry olhou para os lados, segurando a varinha no alto e viu onde: uma pedra achatada sob a copa de um sicômoro.
— Vem comigo — disse ele, e saiu andando, limpou a neve da superfície da pedra e estendeu a mão para a Horcrux.
Quando Rony lhe ofereceu a espada, no entanto, Harry balançou a cabeça.
— Não, você é que tem de fazer isso.
— Eu? — espantou-se Rony — Por quê?
— Porque você tirou a espada do poço. Acho que ela escolheu você.
Não estava sendo bom nem generoso. Com a mesma certeza com que soube que a corça era benévola, sabia que Rony é quem tinha de brandir a espada. Dumbledore ensinara a Harry pelo menos alguma coisa sobre certos tipos de magia, do poder incalculável de determinados atos.
— Vou abri-lo — disse Harry — E você o transpassa. Imediatamente, ok? Porque o que estiver aí dentro oferecerá resistência. O pedacinho de Riddle no diário tentou me matar.
— Como você vai abrir? — indagou Rony.
Ele parecia aterrorizado.
— Vou pedir que se abra, usando a ofidioglossia.
A resposta veio tão facilmente aos seus lábios que ele pensou que, no íntimo, sempre a soubera; talvez precisasse do recente confronto com Nagini para tomar consciência disso. Ele olhou para o “S” serpentino, cravejado de cintilantes pedrinhas verdes: era fácil visualizá-lo como uma minúscula cobra, enroscada sobre a rocha fria.
— Não! — disse Rony — Não, não abre isso! Estou falando sério!
— Por que não? — perguntou Harry — Vamos nos livrar dessa droga, já faz meses...
— Não posso, Harry, estou falando sério... faz você...
— Mas por quê?
— Porque essa coisa me faz mal! — alegou Rony, se afastando do medalhão sobre a rocha — Não consigo enfrentá-la! Não estou dando uma desculpa, Harry, pelo meu comportamento, mas ela me afetou mais do que a você ou Hermione, me fez pensar coisas, coisas que de qualquer jeito eu já estava pensando, mas ficaram piores, não sei explicar, então eu tirava esse medalhão e minha cabeça voltava ao normal, e quando eu tornava a pôr essa bosta... não posso fazer isso, Harry!
Ele recuara, a espada caída de um lado, balançando a cabeça.
— Você pode — retrucou Harry — Sei que pode! Você acabou de pegar a espada, sei que é você quem tem de usá-la. Por favor, destrua o medalhão, Rony.
O som do seu nome pareceu ter agido como um estimulante. Engoliu em seco, respirou com força pelo seu comprido nariz e tornou a se aproximar da pedra.
— Me diga quando — pediu Rony, rouco.
— Quando eu disser “três” — respondeu Harry, voltando sua atenção para o medalhão e estreitando os olhos, concentrando-se na letra “S”, imaginando uma cobra, enquanto o conteúdo do objeto debatia-se como uma barata presa.
Teria sido fácil sentir pena, exceto que o corte no pescoço de Harry ainda ardia.
— Um... dois... três... Abra!
A última palavra saiu como um silvo e um rosnado e as portinhas douradas do medalhão se abriram, par a par, com um estalido.
Sob cada janelinha de vidro em seu interior piscava um olho vivo, escuro e bonito como os de Tom Riddle tinham sido antes de se tornarem vermelhos e terem fendas em vez de pupilas.
— Fure ele com a espada — disse Harry, mantendo o medalhão parado sobre a rocha.
Rony ergueu a espada nas mãos trêmulas: a ponta oscilou sobre os olhos que giravam freneticamente, e Harry segurou o medalhão com força, se preparando, já imaginando o sangue escorrendo das janelinhas vazias.
Então a voz sibilou da Horcrux.
— Vi o seu coração, e ele é meu!
— Não dê ouvidos a ele! — falou Harry, com rispidez — Perfure-o!
— Vi os seus sonhos, Rony Weasley, e vi os seus temores. Tudo que você deseja é possível, mas tudo que você teme também é possível...
— Perfure-o! — berrou Harry, sua voz ecoou pela árvores ao redor, a ponta da espada oscilou, e Rony contemplou os olhos de Riddle.
— Sempre o menos amado pela mãe que desejava uma filha... menos amado agora pela garota que prefere o seu amigo... sempre segundo, sempre, eternamente na sombra...
— Rony, perfure-o agora! — urrou Harry, sentia o medalhão estremecendo em suas mãos e sentia medo do que sobreviria.
Rony ergueu a espada ainda mais alto e, ao fazer isso, os olhos de Riddle rutilaram. Das janelinhas do medalhão, dos olhos, brotaram, como duas bolhas grotescas, as cabeças de Harry e Hermione, estranhamente deformadas.
Rony berrou chocado e recuou ao ver as figuras desabrochando para fora do medalhão, primeiro os troncos, depois as cinturas, por fim as pernas, que se ergueram do medalhão, lado a lado como árvores de uma única raiz, balançando sobre o Rony e o Harry real, que retirara rápido os dedos do medalhão inesperadamente incandescente.
— Rony! — gritou Harry, mas o Riddle-Harry agora estava falando com a voz de Voldemort, e Rony olhou hipnotizado para o rosto do amigo.
— Por que voltou? Estávamos muito bem sem você, mais felizes sem você, contentes com sua ausência... rimos de sua burrice, sua covardia, sua presunção...
— Presunção — ecoou Riddle-Hermione, agora mais bonita e mais terrível do que a Hermione real: ela balançou gargalhando, diante de Rony, que expressava horror, mas estava petrificado, a espada pendendo inutilmente ao lado do corpo — Quem poderia olhar para você, quem jamais olharia para você ao lado de Harry Potter? Que foi que você já fez, comparado a O Eleito? Quem é você comparado ao Menino Que Sobreviveu?
— Rony, perfure-o, PERFURE-O! — berrou Harry, mas o amigo não se mexeu: seus olhos estavam arregalados, e neles se refletiam o Riddle-Harry e o Riddle-Hermione, os cabelos dos dois rodopiando como labaredas, seus olhos vermelhos e brilhantes, suas vozes ressoando em um dueto maligno.
— Sua mãe confessou — desdenhou Riddle-Harry, enquanto Riddle-Hermione debochava — Que preferia que eu fosse filho dela, que faria a troca satisfeita...
— Quem não iria preferir ele, que mulher aceitaria você? Você não é nada, nada, nada perto dele — cantarolava Riddle-Hermione, esticando-se como uma cobra e se enrolando em Riddle-Harry, envolvendo-o em um abraço: seus lábios se tocaram.
No chão à frente, Rony ergueu o rosto angustiado: brandiu a espada no alto, os braços trêmulos.
— Vamos, Rony! — berrou Harry.
Rony olhou para ele e Harry pensou ter visto um laivo vermelho nos olhos do amigo.
—Rony...?
A espada lampejou, mergulhou: Harry atirou-se para longe, houve um clangor de metal e um grito que pareceu interminável. Harry se virou, escorregando na neve, a varinha empunhada para se defender: mas não havia contra o que lutar. As monstruosas versões dele e Hermione tinham desaparecido: havia apenas Rony, parado, a espada frouxa na mão, contemplando os fragmentos do medalhão destruído sobre a pedra achatada.
Lentamente, Harry se encaminhou para ele, sem saber o que dizer ou fazer. Rony arquejava. Seus olhos não estavam mais vermelhos, mas no tom normal de azul, e estavam também úmidos.
Harry se abaixou, fingindo não ter visto, e apanhou os pedaços da Horcrux. Rony perfurara os vidros das duas janelinhas: os olhos de Riddle tinham desaparecido e a seda manchada que forrava o medalhão desprendia uma leve fumaça. A coisa que vivia na Horcrux tinha sumido, torturar Rony fora o seu último ato.
A espada bateu com estrépito quando Rony a largou no chão. Ele caíra de joelhos, a cabeça nos braços. Seu corpo sacudia, mas não de frio, percebeu seu amigo. Harry enfiou o medalhão partido no bolso, ajoelhou-se ao lado de Rony e colocou a mão cautelosamente em seu ombro. Entendeu como um bom sinal que Rony não a tivesse empurrado.
— Depois que você foi embora — disse Harry baixinho, feliz que o rosto do amigo estivesse escondido — Ela chorou uma semana. Provavelmente mais, só que não queria que eu visse. Teve muitas noites em que nem nos falamos. Com a sua partida...
Não pôde terminar, somente agora com a volta de Rony é que compreendia inteiramente o quanto lhes custara a ausência do amigo.
— Ela é como uma irmã — continuou Harry — Eu a amo como uma irmã e acho que ela sente o mesmo com relação a mim. Sempre foi assim. Pensei que você soubesse.
Rony não respondeu, olhou para o outro lado e enxugou audivelmente o nariz na manga. Harry tornou a se levantar e se dirigiu ao lugar em que estava a enorme mochila de Rony, a metros de distância, largada pelo amigo ao correr para o poço e impedir Harry de se afogar. Levou-a às costas e voltou para Rony, que, à sua aproximação, se levantou com os olhos injetados, mas recomposto.
— Me desculpe — disse com a voz grave — Me desculpe por ter ido embora. Sei que fui um... um... — ele correu os olhos pela escuridão que o rodeava, como se esperasse que uma palavra suficientemente pejorativa caísse do céu e o definisse.
— Você compensou isso hoje à noite — respondeu Harry — Apanhou a espada. Destruiu a Horcrux. Salvou minha vida.
— Isso me faz parecer bem melhor do que fui — murmurou Rony.
— Coisas desse tipo sempre parecem mais legais faladas do que realmente foram — afirmou Harry — É o que venho tentando lhe dizer há anos.
Simultaneamente, os dois se adiantaram e se abraçaram.
Harry apertou as costas encharcadas de Rony.
— E agora — disse Harry ao se separarem — Só precisamos encontrar outra vez a barraca.
Não foi difícil, porém. Embora a caminhada pela mata, acompanhando a corça, tivesse parecido longa, com Rony ao seu lado a viagem de volta pareceu surpreendentemente curta. Harry mal pôde esperar para acordar Hermione, e foi com crescente agitação que entrou na barraca seguido por Rony mais atrás.
Estava gloriosamente quente depois do poço e da mata. A única iluminação vinha das chamas azuis que ainda tremeluziam em uma tigela no chão. Hermione estava ferrada no sono, enroscada por baixo das cobertas, e não se mexeu até que Harry a chamou várias vezes.
— Hermione!
Ela acordou e sentou-se depressa, afastando os cabelos do rosto.
— Que aconteceu? Harry? Você está bem?
— Calma, tudo está bem. Mais do que bem. Estou ótimo. Tem alguém aqui.
— Como assim? Quem...?
Ela viu Rony parado ali, segurando a espada, escorrendo água no tapete puído. Harry recuou para um canto menos iluminado, tirou a mochila de Rony e tentou se fundir com a lona da barraca.
Hermione deslizou do beliche e foi ao encontro de Rony como uma sonâmbula, os olhos pregados no rosto pálido do garoto. Parou bem diante dele, seus lábios entreabertos, seus olhos arregalados. Rony deu um sorriso débil e esperançoso, e começou a erguer os braços.
Hermione atirou-se para frente e começou a socar cada centímetro do corpo dele ao seu alcance.
— Ai... ui... me larga! Que...? Hermione... AI!
— Você... absoluto... palhaço... Ronald... Weasley!
Ela pontuava cada palavra com um soco: Rony recuou, protegendo a cabeça contra o assalto de Hermione.
— Você... se arrasta... aqui... depois de... semanas... e... mais... semanas... ah, cadê a minha varinha?
Parecia disposta a arrancar a varinha das mãos de Harry, e ele reagiu instintivamente.
— Protego!
Um escudo invisível irrompeu entre Rony e Hermione: a violência foi tal que a jogou de costas no chão. Cuspindo os cabelos da boca, ela tornou a se levantar.
— Hermione! — disse Harry — Calm...
— Não vou me acalmar! — berrou ela. Nunca antes ele a vira se descontrolar daquele jeito, parecia enlouquecida — Devolva a minha varinha! Devolva já!
— Hermione, por favor...
— Não me diga o que fazer, Harry Potter — guinchou ela — Não ouse! Devolva-me agora mesmo! E VOCÊ!
Ela apontava para Rony em funesta acusação: parecia uma maldição, e Harry não pôde culpar Rony por recuar vários passos.
— Corri atrás de você! Chamei você! Pedi para você voltar!
— Eu sei — respondeu Rony — Hermione, eu lamento, eu realmente...
— Ah, você lamenta!
Ela deu uma gargalhada, aguda, descontrolada. Rony olhou para Harry pedindo ajuda, mas o amigo apenas fez uma careta indicando sua incapacidade.
— Você volta aqui depois de semanas... semanas... e acha que tudo vai ficar bem se você disser que lamenta?
— E que mais eu posso dizer? — gritou Rony, e Harry ficou contente de vê-lo reagir.
— Ah, não sei! — berrou Hermione, sarcástica — Vasculhe o seu cérebro, Rony, só vai precisar de uns segundinhos...
— Hermione — interrompeu-a Harry, considerando aquilo um golpe baixo — Ele acabou de salvar a minha...
— E eu com isso! — gritou ela — Não quero saber o que foi que ele fez! Semanas e mais semanas, por ele poderíamos estar mortos...
— Eu sabia que não estavam mortos! — urrou Rony, abafando a voz de Hermione pela primeira vez, praticamente encostando no escudo entre eles — O Profeta só fala no Harry, o rádio só fala no Harry, estão procurando por vocês em toda parte, um monte de boatos e histórias malucas, eu sabia que na mesma hora teria notícias, se vocês morressem, você não sabe o que eu passei...
— O que você passou?
A voz da garota estava tão aguda que mais um pouco só os morcegos conseguiriam ouvi-la, mas atingira um tal nível de indignação que ficou temporariamente muda, e Rony aproveitou a oportunidade.
— Eu quis voltar no minuto em que desaparatei, mas topei direto com uma quadrilha de sequestradores, Hermione, e não pude ir a lugar algum!
— Uma quadrilha de quê? — perguntou Harry, enquanto Hermione se atirava em uma poltrona com os braços e as pernas cruzados com tanta força que lhe pareceu que fosse levar anos para descruzá-los.
— Sequestradores — disse Rony — Estão por toda parte, quadrilhas tentando ganhar dinheiro prendendo nascidos trouxas e traidores do sangue, o Ministério está oferecendo uma recompensa pelos capturados. Eu estava sozinho e me acharam com cara de estudante, então ficaram realmente animados, pensando que eu fosse um nascido trouxa se escondendo. Tive que falar rápido para não me arrastarem até o Ministério.
— Que foi que disse a eles?
— Que era o Lalau Shunpike. Foi o primeiro nome que me ocorreu.
— E eles acreditaram?
— Não eram muito brilhantes. Um deles, decididamente, era meio trasgo, o cheiro dele...
Rony olhou para Hermione, visivelmente esperançoso de que ela pudesse se enternecer com essa pitada de humor, mas sua fisionomia continuava inflexível acima dos joelhos cruzados.
— Enfim, tiveram a maior discussão pra decidir se eu era ou não o Lalau. Para ser franco, foi meio patético, mas eram cinco e eu apenas um, e tinham tirado a minha varinha. Então, dois deles se atracaram e, enquanto os outros estavam distraídos, consegui dar um soco no estômago do que estava me segurando, agarrei a varinha dele, desarmei o outro cara que estava segurando a minha e desaparatei. Não fiz isso muito bem e tornei a me estrunchar...
Rony levantou a mão direita para mostrar que estavam lhe faltando duas unhas. Hermione ergueu as sobrancelhas com frieza.
—... e fui parar a quilômetros do lugar em que vocês estavam. Quando finalmente cheguei à margem do rio onde acampamos... vocês tinham partido.
— Que história arrebatadora! — exclamou Hermione, naquele tom superior que adotava quando queria magoar — Você deve ter ficado simplesmente aterrorizado. Nesse meio tempo, fomos a Godric’s Hollow e, vejamos, que foi que aconteceu, Harry? Ah, sim, a cobra de Você-Sabe-Quem apareceu por lá e quase nos liquidou, e então chegou Você-Sabe-Quem em pessoa e por uma fração de segundo não nos agarrou.
— Quê? — exclamou Rony, olhando boquiaberto de Hermione para Harry, mas ela o ignorou.
— Imagine perder as unhas, Harry! Isto realmente põe os nossos sofrimentos em perspectiva, não?
— Hermione — disse Harry, em voz baixa — Rony acabou de salvar a minha vida.
Ela pareceu não ouvi-lo.
— Mas tem uma coisa que eu gostaria de saber — disse ela, fixando o olhar uns trinta centímetros acima da cabeça de Rony — Exatamente, como foi que nos encontrou hoje à noite? Isto é importante. Quando soubermos, poderemos nos certificar de que não estamos recebendo a visita de alguém que não queremos ver.
Rony amarrou a cara para ela e puxou um pequeno objeto de prata do bolso do jeans.
— Com isto.
Hermione precisou encarar Rony para ver o que estava mostrando aos dois.
— O desiluminador? — perguntou, tão admirada que se esqueceu de demonstrar frieza e ferocidade.
— Não serve só para acender e apagar luzes. Não sei como funciona ou por que aconteceu dessa vez e nenhuma outra, porque estou querendo voltar desde que fui. Mas eu estava escutando o rádio, muito cedo na manhã de Natal, e ouvi... ouvi você.
Rony estava olhando para Hermione.
— Você me ouviu pelo rádio? — perguntou ela, incrédula.
— Não, ouvi você saindo do meu bolso. A sua voz — ele tornou a erguer o desiluminador — Saiu daqui.
— E exatamente o que foi que eu disse? — perguntou Hermione, seu tom uma mescla de ceticismo e curiosidade.
— Meu nome. “Rony”. E disse... alguma coisa sobre uma varinha...
O rosto de Hermione assumiu um afogueado escarlate. Harry lembrou-se: tinha sido a primeira vez que qualquer dos dois tinha pronunciado o nome de Rony em voz alta desde que ele partira, Hermione falara quando discutiam o conserto da varinha de Harry.
— Então, tirei-o do bolso — continuou Rony, olhando para o desiluminador — E não me pareceu diferente nem nada, mas eu tinha certeza que tinha ouvido sua voz. Então o liguei. E a luz se apagou no meu quarto, mas outra luz apareceu fora da janela.
Rony ergueu a mão vazia e apontou para frente, seus olhos focalizados em alguma coisa que nem Harry nem Hermione estavam vendo.
— Era uma bola luminosa, meio pulsante e azulada, como a luz que aparece ao redor de uma Chave de Portal, entendem?
— Sim — disseram Harry e Hermione juntos, automaticamente.
— Senti que o momento era aquele. Apanhei as minhas coisas, arrumei-as na mochila e saí com ela para o jardim. A bolinha luminosa estava pairando lá, esperando por mim, e, quando eu saí, ela oscilou um pouco e eu a acompanhei atrás do barraco então... bem, ela entrou em mim.
— Desculpe? — estranhou Harry, certo de que não ouvira direito.
— Foi como se ela flutuasse ao meu encontro — disse Rony, ilustrando o movimento com o dedo indicador livre — Direto para o meu peito e então... entrou. Foi aqui — ele indicou um ponto junto ao coração — Eu a senti, era quente. E, uma vez dentro de mim, eu soube o que devia fazer, soube que ela ia me levar aonde eu precisava ir. Então desaparatei e me vi na encosta de um morro. Havia neve para todo lado...
— Estivemos lá — disse Harry — Acampamos duas noites lá, e, na segunda, passei o tempo todo pensando que ouvia alguém andar no escuro e chamar!
— É, bem, deve ter sido eu — disse Rony — Pelo visto, os seus feitiços de proteção funcionam, porque não vi nem ouvi vocês. Mas tinha certeza de que estavam por perto, então acabei me enfiando no meu saco de dormir e esperei que um de vocês aparecesse. Pensei que teriam de se tornar visíveis quando guardassem a barraca.
— Na verdade, não — disse Hermione — Temos desaparatado com a Capa da Invisibilidade, por precaução. E partimos realmente cedo, porque, como disse Harry, tínhamos ouvido alguém andando às tontas por lá.
— Bem, passei o dia inteiro naquele morro — continuou Rony — Na esperança que vocês aparecessem. Mas, quando começou a escurecer, eu percebi que devíamos ter nos desencontrado, então tornei a clicar o desiluminador, a luz azul saiu e entrou em mim, desaparatei e acabei chegando a esta mata. Mas não os vi, então só me restou a esperança de que um ou outro acabasse aparecendo: e o Harry apareceu. Bem, vi primeiro a corça, obviamente.
— Você viu o quê? — perguntou Hermione, ríspida.
Os dois garotos explicaram o que acontecera e, à medida que iam contando a história da corça prateada e da espada no poço, Hermione franzia a testa ora para um, ora para outro, tão concentrada que se esqueceu de manter as pernas travadas.
— Mas deve ter sido um Patrono! — exclamou — Vocês não conseguiram ver quem o conjurou? Não viram ninguém? Não acredito! E a corça levou vocês à espada! É inacreditável! E o que aconteceu depois?
Rony explicou que observara Harry pular no poço e aguardara que o amigo voltasse à tona, e, percebendo que havia alguma coisa errada, mergulhara e salvara o amigo, depois voltara para pegar a espada. Ele contou até a abertura do medalhão, então hesitou e Harry interveio.
—... e Rony perfurou-o com a espada.
— E... e a Horcrux sumiu? Assim? — sussurrou ela.
— Bem, ela... gritou — respondeu Harry, olhando de soslaio para Rony — Veja.
Harry atirou o medalhão no colo dela. Cautelosamente, Hermione o apanhou e examinou as janelinhas furadas. Decidindo que finalmente era seguro, Harry removeu o Feitiço Escudo com um aceno da varinha de Hermione e virou-se para Rony.
— Agora há pouco você falou que fugiu dos sequestradores com uma varinha a mais?
— Quê? — disse Rony, que observava Hermione examinar o medalhão — Ah... falei sim.
Ele desafivelou a mochila e tirou uma varinha curta e escura de um dos bolsos.
— Tome. Calculei que é sempre bom a gente ter uma sobressalente.
— E calculou bem — disse Harry, estendendo a mão — A minha quebrou.
— Você está brincando? — perguntou Rony, mas naquele momento Hermione se levantou e ele pareceu mais uma vez apreensivo.
Hermione guardou a Horcrux destruída na bolsinha de contas, voltou para a cama e se acomodou sem dizer mais nada. Rony passou a nova varinha a Harry.
— Foi o melhor que se poderia esperar, imagino — murmurou Harry.
— É. Poderia ter sido pior. Lembra aqueles passarinhos que ela lançou contra mim?
— Ainda não eliminei essa possibilidade — respondeu a voz abafada de Hermione debaixo das cobertas, mas Harry viu Rony sorrindo quando tirou os pijamas marrons da mochila.







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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 18





— CAPÍTULO DEZOITO —
A VIDA E AS MENTIRAS DE ALVO DUMBLEDORE



O SOL ESTAVA NASCENDO: a imensidão descolorida do céu se estendia sobre Harry, indiferente a ele e ao seu sofrimento. Sentou-se à entrada da barraca e inspirou profundamente o ar limpo. O simples fato de estar vivo para ver o sol subir a encosta coberta de neve cintilante deveria ser o maior tesouro da terra, contudo não conseguia apreciá-lo: seus sentidos tinham sido bloqueados pela calamidade que era a perda de sua varinha. Contemplou o vale coberto de neve, os sinos de igreja ecoando distantes no esplendoroso silêncio.
Sem perceber, Harry estava enterrando os dedos nos braços como se tentasse resistir à dor física. Derramara seu sangue mais vezes do que poderia contar, perdera todos os ossos do braço direito uma vez, essa viagem já lhe rendera cicatrizes no peito e nos braços para se somar às da mão e da testa, mas nunca, até aquele momento, sentira-se tão letalmente enfraquecido, vulnerável e nu, como se lhe tivessem arrancado a melhor parte do seu poder em magia. Sabia exatamente o que Hermione diria se ele expressasse qualquer desses pensamentos: a varinha é tão boa quanto o bruxo. Ela, no entanto, estava enganada, em seu caso, era diferente. Ela não sentira a varinha girar como a agulha de uma bússola e disparar labaredas douradas contra o inimigo. Harry perdera a proteção dos núcleos gêmeos, e só agora, que já não existia, ele entendia o quanto se fiara nela.
Tirou do bolso os pedaços da varinha partida e, sem olhar, guardou-os na bolsa de Hagrid, que levava pendurada ao seu pescoço. Estava, agora, demasiado cheia de objetos quebrados e inúteis para receber mais um.
Através do couro de briba, sua mão roçou pelo velho pomo e, por um momento, precisou resistir à tentação de apanhar o objeto e atirá-lo longe. Impenetrável, adverso, inútil como todo o resto que Dumbledore deixara...
A fúria contra o diretor irrompeu nele como lava, queimando-o por dentro, eliminando qualquer outro sentimento. Por absoluto desespero, eles tinham acreditado que Godric’s Hollow guardava as respostas e se convencido de que deviam retornar, que tudo fazia parte de um caminho secreto traçado por Dumbledore, mas não havia mapa nem plano.
Dumbledore os deixara às cegas no escuro, para enfrentar terrores desconhecidos e não sonhados, sozinhos e desamparados: nada lhes foi explicado, nada oferecido voluntariamente, não tinham espada e Harry não tinha mais varinha. Deixara cair a foto do ladrão, e, sem dúvida, agora seria fácil Voldemort descobrir quem ele era... agora tinha todas as informações.
— Harry?
Hermione parecia receosa de que ele pudesse enfeitiçá-la com sua própria varinha. O rosto riscado de lágrimas, ela se agachou do lado dele, duas xícaras de chá tremendo em suas mãos e alguma coisa volumosa sob o braço.
— Obrigado — disse ele, apanhando uma das xícaras.
— Posso falar com você?
— Pode — respondeu ele, porque não queria magoá-la.
— Harry, você queria saber quem era o homem na foto. Bem... lhe trouxe o livro.
Timidamente, empurrou-o para o colo dele, um exemplar intacto de A Vida e as Mentiras de Alvo Dumbledore.
— Onde... como...
— Estava na sala de visitas de Batilda, à vista... esse bilhete saindo entre as folhas, na parte de cima do livro.
Hermione leu em voz alta as poucas linhas em tinta verde-ácido e letra garranchosa.
— “Querida Batty, obrigada por sua ajuda. Envio-lhe um exemplar do livro, espero que goste. Você me contou tudo, mesmo que não se lembre. Rita”. Acho que deve ter chegado quando a verdadeira Batilda ainda estava viva, mas talvez ela não estivesse em condições de lê-lo.
— Não, provavelmente não estava.
Harry contemplou com desprezo o rosto de Dumbledore e experimentou uma onda de selvagem prazer: agora iria conhecer tudo que o diretor nunca pensara que valeria a pena lhe contar, quer ele quisesse ou não.
— Você continua realmente aborrecido comigo, não? — perguntou Hermione.
Harry ergueu os olhos e viu novas lágrimas escorrendo dos olhos da garota, e percebeu que a ira devia estar evidente em seu rosto.
— Não — respondeu, baixinho — Não, Hermione, sei que foi um acidente. Estava tentando nos tirar de lá, vivos, e você foi incrível. Eu estaria morto se você não tivesse estado lá para me ajudar.
Ele tentou retribuir o sorriso lacrimoso de Hermione e voltou sua atenção para o livro. A lombada estava rígida, era óbvio que nunca fora aberto antes. Harry virou rapidamente as páginas, procurando as fotografias. Encontrou a que procurava quase instantaneamente, o jovem Dumbledore e seu belo companheiro, às gargalhadas por causa de uma piada havia muito esquecida. Harry baixou os olhos para a legenda.
Dumbledore pouco depois da morte da mãe com seu amigo Gerardo Grindelwald.
Harry boquiabriu-se com a última palavra da frase durante longos momentos. Grindelwald. Seu amigo, Grindelwald. Olhou de esguelha para Hermione, que continuava a fixar o nome como se não conseguisse acreditar no que via. Lentamente, virou-se para Harry.
— Grindelwald?
Desconsiderando as fotografias restantes, Harry procurou nas páginas próximas uma recorrência do nome fatídico. Logo descobriu-a e leu vorazmente, mas se perdeu: precisaria ler os parágrafos anteriores para a informação fazer algum sentido e, finalmente, se viu no início de um capítulo intitulado “O Bem Maior”. Juntos, ele e Hermione começaram a ler...

Próximo ao seu aniversário de dezoito anos, Dumbledore deixou Hogwarts cercado de glórias: monitor-chefe, detentor do prêmio Barnabus Finkley por excepcional proficiência em feitiços, representante da juventude britânica na Suprema Corte dos Bruxos, medalha de ouro por contribuição pioneira à Conferência Internacional de Alquimia no Cairo.
Dumbledore pretendia, então, fazer uma grande viagem com Elifas “Bafo de Cão” Doge, o dedicado, mas pouco inteligente colega com quem se associara na escola. Os dois jovens estavam hospedados no Caldeirão Furado, em Londres, preparando-se para partir para a Grécia na manhã seguinte, quando chegou uma coruja trazendo a notícia do falecimento da mãe de Dumbledore. “Bafo de Cão” Doge, que se recusou a dar depoimento para este livro, publicou sua versão sentimental do que aconteceu a seguir. Descreveu a morte de Kendra como um golpe trágico, e a decisão tomada por Dumbledore de cancelar sua viagem como um ato de nobre abnegação.
Sem dúvida, Dumbledore retornou imediatamente a Godric’s Hollow, presume-se que para “cuidar” do irmão e da irmã mais jovens. Entretanto, qual foi o cuidado que realmente dispensou aos dois?
— Ele não batia bem, aquele Aberforth — diz Enid Smeek, cuja família vivia nos arredores de Godric’s Hollow, à época — Vivia solto. Claro que, sem mãe nem pai, eu teria me condoído dele, mas o garoto não parava de atirar excremento de bode na minha cabeça. Não creio que Alvo se preocupasse com ele, enfim, nunca os vi juntos.
Então, que fazia Alvo, se não estava consolando seu selvagem irmão mais moço? A resposta, pelo visto, é: continuava a manter a irmã presa.
Embora seu primeiro carcereiro tivesse morrido, não houve alteração na lamentável situação de Ariana Dumbledore. Sua existência continuava a ser conhecida apenas por estranhos confiáveis como “Bafo de Cão” Doge, capazes de acreditar na história da “saúde precária”.
Outro amigo da família facilmente persuasível foi Batilda Bagshot, a famosa historiadora da magia que há muitos anos vive em Godric’s Hollow. Kendra, naturalmente, repelira suas primeiras tentativas de dar as boas-vindas à família. Entretanto, anos mais tarde, a autora enviou uma coruja a Alvo em Hogwarts, favoravelmente impressionada por seu ensaio sobre a transformação de trans-espécies na Transfiguração Hoje. Este contato inicial levou-a a conhecer toda a família Dumbledore. Quando Kendra faleceu, Batilda era a única pessoa em Godric’s Hollow que falava com a mãe de Dumbledore.
Infelizmente, o brilho intelectual demonstrado por Batilda em épocas anteriores hoje está morrendo. “O fogão está aceso, mas o caldeirão está vazio”, me disse Ivor Dillonsby, ou na frase um pouco mais literal de Enid Smeek: “Ela está completamente caduca.” Ainda assim, a combinação de técnicas de reportagem comprovadamente eficazes me permitiu obter suficientes pérolas para montar um colar de escândalos.
Tal como a maioria do mundo bruxo, Batilda atribui a morte prematura de Kendra a um “feitiço que ricocheteou”, uma história repetida por Alvo e Aberforth anos mais tarde. Batilda também repete a história familiar sobre Ariana, dizendo-a “frágil” e “delicada”. Sobre um assunto, porém, Batilda compensou os meus esforços para obter um pouco de soro da verdade, porque ela, e somente ela, conhece integralmente a história do segredo mais bem guardado da vida de Alvo Dumbledore. Revelado pela primeira vez, ele põe em dúvida tudo que os admiradores acreditaram a respeito de Dumbledore: seu suposto ódio às Artes das Trevas, sua oposição à opressão dos trouxas e até sua devoção à própria família.
No mesmo verão em que Dumbledore voltou para casa em Godric’s Hollow, já então órfão e chefe de família, Batilda Bagshot concordou em aceitar em sua casa o sobrinho-neto Gerardo Grindelwald.
O nome de Grindelwald é merecidamente famoso: em uma lista dos Bruxos das Trevas Mais Famosos de Todos os Tempos, ele só perde o primeiro lugar porque, uma geração mais tarde, surgiu Você-Sabe-Quem para roubar-lhe a coroa.
Na medida em que Grindelwald jamais estendeu sua campanha de terror à Grã-Bretanha, os detalhes de sua ascensão ao poder não são muito divulgados em nosso país. Educado em Durmstrang, uma escola famosa por sua lamentável tolerância com as Artes das Trevas, Grindelwald mostrou-se precocemente tão genial quanto Dumbledore. Em vez de canalizar suas habilidades para a conquista de prêmios e medalhas, no entanto, Gerardo Grindelwald dedicou-se a outras atividades. Aos dezesseis anos, mesmo Durmstrang concluiu que não poderia continuar a fazer vista grossa às suas experiências viciosas, e expulsou-o.
Dali em diante, o que se soube dos movimentos seguintes de Grindelwald é que passou alguns meses no exterior. Sabemos agora que ele decidiu visitar a tia-avó em Godric’s Hollow, e que ali, embora possa parecer extremamente chocante a muita gente, Grindelwald fez uma grande amizade com Alvo Dumbledore.
— Ele me pareceu um rapaz encantador — tartamudeou Batilda — A despeito do que tenha se tornado mais tarde. Naturalmente apresentei-o ao pobre Alvo, que sentia falta da companhia de rapazes de sua idade. Os dois imediatamente tornaram-se amigos.
Sem a menor dúvida. Batilda me mostra uma carta que guardou, enviada por Alvo Dumbledore a Gerardo Grindelwald altas horas da noite.
— Sim, mesmo depois de passarem o dia todo discutindo, os dois rapazes muito brilhantes davam-se tão bem quanto um caldeirão em fogo, às vezes eu ouvia uma coruja bater na janela do quarto de Gerardo para entregar uma carta de Alvo! Ocorrera-lhe uma ideia e precisava contá-la a Gerardo sem demora!
E que ideias! Por mais chocantes que possam parecer aos fãs de Alvo Dumbledore, vejam os pensamentos do seu herói aos dezessete anos, tal como foram relatados ao seu novo e melhor amigo (veja o fac-símile da carta original na página 463):

Gerardo,

O seu argumento de que a dominação dos bruxos visa ao PRÓPRIO BEM dos trouxas é, a meu ver, crítico. Sim, fomos dotados de poder e, sim, esse poder nos dá o direito de governar, mas isto também nos dá responsabilidades sobre os governados. Devemos enfatizar este ponto, pois será a pedra angular da nossa construção. Onde discordarmos, como certamente ocorrerá, ela deverá ser a base dos nossos contra-argumentos.
Assumimos o poder PELO BEM MAIOR.
E segue-se daí que, onde encontrarmos resistência, devemos usar apenas a força necessária. (Este foi o seu erro em Durmstrang! Não me queixo, porém, porque se você não fosse expulso, jamais teríamos nos conhecido).

Alvo

Apesar do espanto e consternação que venha a causar aos seus numerosos admiradores, essa carta é uma prova de que, no passado, Alvo Dumbledore sonhou derrubar o Estatuto de Sigilo e estabelecer o domínio bruxo sobre os trouxas. Que choque para aqueles que sempre viram em Dumbledore o maior campeão dos nascidos trouxas! Como parecem vazios aqueles discursos sobre a promoção dos direitos dos trouxas à luz dessa nova evidência que o condena! Como Alvo Dumbledore parece desprezível conspirando para assumir o poder quando deveria estar pranteando a mãe e cuidando da irmã!
Sem dúvida, os que estão decididos a manter Dumbledore em seu pedestal desmoronadiço gaguejarão que ele não chegou a executar esses planos, que deve ter mudado de opinião, que caiu em si. Contudo, a verdade parece ainda mais chocante.
Quase dois meses depois de iniciarem sua nova grande amizade, Dumbledore e Grindelwald se separaram e nunca mais se veriam até o seu lendário duelo (veja detalhes no capítulo 22). Que terá causado esse abrupto rompimento? Dumbledore recobrara o juízo? Dissera a Grindelwald que não participaria dos seus planos?
Infelizmente, não.
— Acho que foi a morte da pobrezinha da Ariana que provocou a separação — diz Batilda — Foi um terrível choque. Gerardo estava na casa de Dumbledore quando aconteceu, e voltou à minha casa muito perturbado e me disse que queria regressar à sua terra no dia seguinte. Extremamente angustiado, entende. Providenciei, então, uma Chave de Portal e foi a última vez que o vi. Alvo ficou transtornado com a morte de Ariana. Foi terrível para os dois irmãos. Tinham perdido toda a família, exceto um ao outro. Não admira que tenham se descontrolado. Aberforth culpou Alvo, entende, como costumam fazer as pessoas em circunstâncias aflitivas. Mas Aberforth sempre foi um pouco desconexo, coitado. Ainda assim, fraturar o nariz de Alvo no enterro não foi uma atitude decente. Ver os filhos brigando daquele jeito diante do corpo da filha teria destruído Kendra. Uma pena que Gerardo não pudesse ficar para o funeral... pelo menos teria sido um consolo para Alvo...
Essa espantosa briga ao lado do caixão, de que só têm conhecimento os que compareceram ao enterro de Ariana Dumbledore, levanta várias questões.
Exatamente por que Aberforth culpou Dumbledore pela morte da irmã? Teria sido, como supõe Batilda, apenas um extravasamento de pesar? Ou haveria razões mais concretas para sua fúria? Grindelwald, expulso de Durmstrang por ataques quase fatais a colegas estudantes, fugiu do país horas depois da morte da moça, e Alvo (por vergonha ou medo?) nunca mais o viu, até ser forçado pelo clamor do mundo bruxo.
Nem Dumbledore nem Grindelwald jamais se referiram a essa breve amizade de adolescente mais tarde na vida.
Contudo, não se pode duvidar de que Dumbledore adiou, durante uns cinco anos de tumultos, fatalidades e desaparecimentos, o seu ataque a Gerardo Grindelwald. Teria sido um resquício de afeição pelo homem ou o temor da revelação dessa grande amizade do passado que levou Dumbledore a hesitar? E teria sido com relutância que Dumbledore se dispôs a capturar o homem que no passado sentira tanto prazer em conhecer?
Como morreu a misteriosa Ariana? Teria sido a vítima involuntária de algum rito das Trevas? Teria casualmente surpreendido o que não deveria, enquanto os dois rapazes treinavam para a sua futura tentativa de glória e dominação? É possível que Ariana Dumbledore tenha sido a primeira pessoa a morrer “pelo Bem Maior”?

O capítulo terminava ali, e Harry ergueu os olhos.
Hermione chegara antes dele à última linha. Tirou o livro de suas mãos, parecendo um pouco assustada com a expressão no rosto do amigo, e fechou-o sem olhar, como se escondesse uma coisa indecente.
— Harry...
Ele, porém, balançou a cabeça.
Alguma certeza recôndita ruíra em seu íntimo, a mesma sensação que experimentara após a partida de Rony. Confiara em Dumbledore, acreditara que era a personificação da bondade e da sabedoria. Tudo eram cinzas: quanto mais poderia perder? Rony, Dumbledore, a varinha de fênix...
— Harry — Hermione parecia ter ouvido seus pensamentos — Me escute. Não... não é uma leitura muito agradável...
—... é, pode-se dizer que não...
—... mas, não esqueça, Harry, é uma história da Rita Skeeter.
— Você leu aquela carta para o Grindelwald, não?
— Li... li — ela hesitou, parecendo perturbada, aninhando a caneca de chá nas mãos frias — Acho que foi o pior. Sei que Batilda achou que fosse apenas conversa fiada, mas “Pelo Bem Maior” tornou-se o lema de Grindelwald, sua justificativa para todas as atrocidades que cometeu mais tarde. E... pela carta... parece que foi Dumbledore que lhe deu a ideia. Dizem que “Pelo Bem Maior” foi gravado na entrada de Nurmengard.
— Que é Nurmengard?
— A prisão que Grindelwald mandou construir para seus oponentes. Foi onde ele próprio terminou, quando Dumbledore o capturou. Enfim, é... horrível pensar que as ideias de Dumbledore possam ter ajudado a ascensão de Grindelwald ao poder. Por outro lado, nem mesmo a Rita pode fingir que eles tenham convivido mais do que uns poucos meses no verão, quando eram realmente muito jovens e...
— Achei que você diria isso — interrompeu-a Harry.
Não queria extravasar sua raiva na amiga, mas foi difícil manter a voz firme.
— Achei que você diria que “eles eram muito jovens”. Tinham a mesma idade que nós, agora. E estamos aqui arriscando nossas vidas para combater as Artes das Trevas, e ele estava lá, de segredinhos com o seu novo melhor amigo, conspirando para assumir o poder e dominar os trouxas.
Harry não conseguiria refrear por mais tempo a sua fúria, levantou-se e andou um pouco, tentando descarregá-la.
— Não estou defendendo o que Dumbledore escreveu — disse Hermione — Toda aquela besteira sobre o “direito de governar” se repete em “Magia é Poder”. Mas, Harry, ele tinha acabado de perder a mãe, estava confinado em casa sozinho...
— Sozinho? Ele não estava sozinho! Tinha a companhia do irmão e da irmã, da bruxa abortada que ele estava mantendo presa...
— Não acredito — replicou Hermione. Ela se pôs de pé também — Seja qual for o problema daquela garota, não acho que fosse uma bruxa abortada. O Dumbledore que conhecemos jamais, jamais, teria permitido...
— O Dumbledore que pensamos conhecer não queria conquistar os trouxas à força! — berrou Harry, sua voz ecoando pelo ermo topo do morro, fazendo vários melros negros levantarem voo, gritando em círculos pelo céu perolado.
— Ele mudou, Harry, ele mudou! É muito simples! Talvez acreditasse naquelas coisas quando tinha dezessete anos, mas dedicou todo o resto da vida a combater as Artes das Trevas! Foi Dumbledore quem deteve Grindelwald, foi ele que sempre votou pela proteção dos trouxas e pelos direitos dos nascidos trouxas, foi ele que combateu Você-Sabe-Quem desde o princípio e que morreu tentando derrubá-lo!
O livro de Rita Skeeter jazia no chão entre os dois, de modo que o rosto de Alvo Dumbledore sorria melancolicamente para ambos.
— Harry, me desculpe, mas acho que a verdadeira razão por que está tão furioso é que Dumbledore nunca lhe contou nada disso.
— Vai ver é! — berrou Harry, e atirou os braços para o alto, sem saber se estava tentando reprimir a raiva ou se proteger do peso da própria desilusão — Veja o que ele me pediu, Hermione! Arrisque sua vida, Harry! Outra vez! Mais uma! E não espere que eu lhe explique tudo, confie cegamente em mim, confie que sei o que estou fazendo, confie em mim ainda que eu não confie em você! Nunca a verdade por inteiro! Nunca!
Sua voz quebrou com o esforço e os dois ficaram parados se fitando na claridade e na solidão, e Harry sentiu que eram insignificantes como insetos sob aquele vasto céu.
— Ele o amava — sussurrou Hermione — Eu sei que amava.
Harry deixou cair os braços.
— Não sei quem ele amava, Hermione, mas nunca a mim. Isto não é amor, a confusão em que me deixou. Ele dividiu muito mais o que realmente pensava com Gerardo Grindelwald, , do que jamais dividiu comigo.
Harry apanhou a varinha de Hermione, que deixara cair na neve, e tornou a se sentar na entrada da barraca.
— Obrigado pelo chá. Terminarei a vigia. Volte para o calor aí dentro.
Ela hesitou, mas reconheceu que fora dispensada.
Apanhou o livro e voltou para a barraca, mas, ao fazê-lo, passou levemente a mão pela cabeça dele. Àquele toque, Harry fechou os olhos e odiou-se por desejar que o que a amiga tinha dito fosse verdade: que Dumbledore realmente gostava dele.







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