sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Senhor dos Anéis - As Duas Torres - Capítulo 21



— Capítulo X —
As Escolhas De Mestre Samwise




FRODO JAZIA NO CHÃO com o rosto para cima e aquela criatura monstruosa se debruçava sobre ele, tão concentrada em sua vítima que não se deu conta de Sam e de seus gritos até que ele estivesse bem próximo. Quando Sam veio correndo na direção deles, viu que Frodo já estava preso por cordas passadas em torno de seu corpo, dos tornozelos até os ombros, e Laracna, com suas grandes patas dianteiras, começava a erguê-lo e arrastá-lo dali.
Perto de Frodo jazia, luzindo no chão, a espada élfica, no local onde caíra inútil de sua mão. Sam não parou para pensar no que se deveria fazer, se estava sendo corajoso ou leal, ou se estava possesso de raiva. Deu um salto à frente e gritou, agarrando a espada de seu mestre com a mão esquerda.
Então avançou. Nunca se vira um ataque tão violento no mundo selvagem dos animais, no qual uma pequena criatura, armada apenas com minúsculos dentes, é capaz de saltar sobre uma torre de chifres e carapaça que pisa sobre seu companheiro caído.
Perturbada, como se tivesse sido despertada de algum sonho de volúpia pelo pequeno grito do hobbit, lentamente voltou a malícia apavorante de seu olhar na direção dele. Mas quase antes de ela perceber que avançava sobre ela uma fúria maior do que qualquer outra provada em anos incontáveis, a espada brilhante golpeou sua pata e decepou a garra. Sam saltou para dentro dos arcos de suas pernas, e com um rápido impulso de sua outra mão desferiu um golpe contra o aglomerado de olhos na cabeça abaixada.
Um grande olho escureceu.
Agora a infeliz criatura estava bem debaixo dela, no momento longe do alcance de seu ferrão e suas garras. Sua vasta barriga estava sobre Sam com sua luz pútrida, e o mau cheiro que vinha dela quase o derrubou. Mas ainda lhe restava fúria para mais um golpe, e antes que ela pudesse cair com o corpo sobre ele, sufocando-o com toda a sua pequena coragem atrevida, ele, num esforço desesperado, rasgou-lhe um talho no corpo com a reluzente espada élfica.
Mas Laracna não era como os dragões, e não tinha nenhum outro ponto frágil a não ser os olhos. Calombosa, esburacada e corrompida era a sua carapaça antiga como a eternidade, mas sua espessura era sempre alimentada de dentro para fora, formando camada sobre camada de excrescência maligna. A lâmina fez um talho horroroso, mas aquelas dobras hediondas não podiam ser perfuradas pela força humana, nem mesmo se elfos ou anões forjassem o aço, nem se a mão de Beren ou de Túrin o brandissem. Ela recuou quando golpeada, e então ergueu a enorme bolsa de sua barriga bem acima da cabeça de Sam. O veneno espumava e borbulhava do ferimento. Abrindo agora as pernas, ela fez seu enorme peso cair sobre ele outra vez. Cedo demais.
Pois Sam ainda estava de pé e, deixando cair sua própria espada, segurou com as duas mãos a espada élfica com a ponta para cima, afastando aquele teto horrível; e assim Laracna, com o impulso de sua própria disposição maligna, num esforço maior que o da mão de qualquer guerreiro, jogou-se sobre um cravo cruel. A espada foi penetrando cada vez mais fundo, enquanto Sam era lentamente prensado contra o chão.
Laracna jamais conhecera tal aflição, nem sonhara conhecer, em todo o seu vasto mundo de maldades. Nem o soldado mais valente da antiga Gondor, nem o orc mais selvagem preso numa armadilha, jamais lhe tinham resistido daquela maneira, ou enfiado uma lâmina em sua amada carne. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Erguendo-se de novo, num repelão violento devido à dor, encolheu sob o corpo as pernas contorcidas e pulou para trás num salto convulsivo.
Sam caíra de joelhos ao lado da cabeça de Frodo, os sentidos confusos devido ao terrível fedor, as duas mãos ainda agarrando o punho da espada. Apesar da névoa diante de seus olhos, ele percebia vagamente o rosto de Frodo, e tenazmente lutava para se controlar e se libertar do desfalecimento que o ameaçava. Lentamente ergueu a cabeça e a viu, apenas a alguns passos de distância, fitando-o, a boca emporcalhada por um cuspe venenoso, e um líquido esverdeado escorrendo de seu olho ferido. Estava agachada, com a barriga trêmula estatelada sobre o chão, os grandes arcos das pernas tremendo, enquanto reunia forças para um outro salto, desta vez para esmagar e ferroar até a morte: nada de pequenas picadas venenosas para acalmar a luta de sua comida; desta vez para matar e depois estraçalhar.
No momento em que o próprio Sam se agachava, olhando para ela, enxergando sua morte naqueles olhos, um pensamento lhe ocorreu, como se alguma voz remota lhe tivesse falado, e ele tateou o peito com a mão esquerda e encontrou o que procurava: frio, duro e sólido pareceu-lhe ao tato, naquele mundo fantasmagórico de horror, o Frasco de Galadriel.
— Galadriel! — disse ele numa voz sumida, e então ouviu vozes distantes mas nítidas: o clamor dos elfos andando sob as estrelas nas amadas sombras do Condado, e a música dos elfos como lhe chegara em sonhos no Salão de Fogo da casa de Elrond.
Então sua língua se soltou e sua voz gritou numa língua desconhecida:

Gilthoniel! A Elbereth!
A Elbereth Gilthoniel
o menel palan-diriel,
le nallon si di’nguruthos!
A tiro nin, Fanuilos!

Com isso levantou-se cambaleando e outra vez era Samwise, o hobbit, filho de Hamfast.
— Agora venha, sua nojenta! — gritou ele. — Você machucou meu mestre, sua bruta, e vai pagar por isso. Nós vamos seguir em frente, mas primeiro vamos acertar as contas com você. Venha, e experimente isso de novo!
Como se o espírito indomável do hobbit tivesse colocado sua força em ação, o cristal se acendeu de repente como uma tocha branca em sua mão. Queimava como uma estrela que, saltando do firmamento, corta o ar escuro com uma luz intolerável. Nenhum terror igual vindo do céu jamais queimara no rosto de Laracna antes. Os raios daquela luz penetraram sua cabeça machucada e a cortaram com uma dor insuportável, e a terrível infecção de luz se espalhou de um olho para outro. Ela caiu para trás, golpeando o ar com as patas dianteiras, sua visão fulminada por relâmpagos internos, sua mente agonizando.
Então, virando sua cabeça mutilada, rolou no chão e começou a se arrastar, garra após garra, na direção da abertura no penhasco escuro lá atrás.
Sam avançou. Cambaleava como um bêbado, mas avançou. E Laracna finalmente recuou, encolhida e derrotada, tentando aos trancos e barrancos correr dele. Atingiu o buraco e, passando apertada, deixou um rastro de muco verde-amarelado e esgueirou-se para dentro, no momento em que Sam desfechava um último golpe em suas pernas rastejantes. Depois ele caiu no chão.
Laracna se fora, e se porventura permaneceu por muito tempo em sua toca, cuidando de sua malícia e miséria, e em lentos anos de escuridão se curou de dentro para fora, reconstruindo o aglomerado de olhos, até poder, com fome mortal, armar mais uma vez suas horripilantes ciladas nas fendas das Montanhas da Sombra, esta história não conta.
Sam foi deixado em paz. Exausto, enquanto a noite da Terra Inominada caía sobre o lugar da batalha, arrastou-se de volta ao seu mestre.
— Mestre, querido mestre — disse ele, mas Frodo não dizia nada.
Assim que ele saíra correndo, ávido, alegre por se ver livre, Laracna se aproximara por trás, com uma velocidade espantosa, e com um golpe certeiro lhe ferroara o pescoço.
Agora ele jazia pálido, imóvel e sem nada ouvir.
— Mestre, querido mestre! — disse Sam, e esperou durante um longo silêncio, escutando em vão.
Então, o mais rápido possível, cortou as cordas que o prendiam e pousou a cabeça sobre o peito de Frodo e aproximou-a de sua boca, mas não percebeu qualquer sopro de vida, nem sentiu a mais leve palpitação em seu coração. Várias vezes esfregou as mãos do mestre, e tocou sua testa, mas seu corpo estava todo frio.
— Frodo, Sr. Frodo! — chamou ele — Não me deixe aqui sozinho! É o seu Sam que está chamando. Não vá para onde eu não possa segui-lo! Acorde, Sr. Frodo! Oh, acorde, Frodo, meu querido, meu querido. Acorde!
Então uma onda de ódio tomou conta dele, que se pôs a correr em volta do corpo de seu mestre, furioso, apunhalando o ar, golpeando as pedras e gritando desafios. De repente voltou a si, e curvando-se olhou para o rosto de Frodo, pálido, estendido sobre o chão no crepúsculo. E subitamente percebeu que estava no quadro que lhe fora revelado no espelho de Galadriel, em Lórien: Frodo com o rosto pálido, jazendo num sono profundo sob um grande penhasco escuro. Ou essa foi a impressão que tivera na ocasião.
— Está morto! — disse ele. — Não está dormindo, está morto!
E quando disse isso, como se as palavras tivessem colocado o veneno em ação outra vez, teve a impressão de que o rosto de Frodo ficou ainda mais lívido.
Então um desespero negro se abateu sobre ele, e Sam se curvou até o chão, cobrindo a cabeça com o capuz cinzento; a noite se apoderou de seu coração, e ele perdeu os sentidos.
Quando finalmente a escuridão passou, Sam ergueu os olhos e viu que as sombras o envolviam, mas por quantos minutos ou horas o mundo continuara se arrastando ele não sabia dizer. Estava ainda no mesmo lugar, e ainda seu mestre jazia morto ao seu lado. As montanhas não tinham esboroado, e nem a terra caído em ruína.
— Que devo fazer, que devo fazer? — disse ele — Será que o acompanhei por todo esse longo caminho para nada?
Então lembrou-se de sua própria voz dizendo palavras que na ocasião lhe pareceram sem sentido, no início de sua jornada: Tenho algo a fazer antes do fim. Devo passar por isso, senhor, se o senhor me entende.
— Mas o que posso fazer? De forma alguma deixar o Sr. Frodo morto, insepulto no topo das montanhas e ir para casa. Ou será que devo prosseguir? Prosseguir? — repetiu ele, e por um momento a dúvida e o medo o agitaram — Prosseguir? É isso que devo fazer? E deixá-lo?
Então finalmente começou a chorar; e aproximando-se de Frodo compôs-lhe o corpo, juntando as mãos frias sobre o peito, e embrulhou-o com a capa; colocou a própria espada de um lado, e o cajado oferecido por Faramir do outro.
— Se devo prosseguir — disse ele — Então preciso levar sua espada, com a sua permissão, Sr. Frodo, mas vou colocar esta ao seu lado, exatamente como estava ao lado do velho rei no túmulo, e o senhor tem o seu belo casaco de mithril que o Sr. Bilbo lhe deu. E sua estrela de cristal, Sr. Frodo, o senhor a emprestou a mim e vou precisar dela, pois agora sempre estarei no escuro. Não sou digno dela, e a Senhora a deu ao senhor, mas talvez ela entendesse. O senhor entende, Sr. Frodo? Preciso prosseguir.
Mas não conseguia partir, ainda não. Ajoelhou-se e segurou a mão de Frodo, sem conseguir soltá-la. O tempo passou e ele continuava ali ajoelhado, segurando a mão de seu mestre, e travando um debate em seu coração.
Agora tentava encontrar forças para se separar e partir numa jornada solitária, de vingança. Se conseguisse ir, seu ódio o carregaria em todas as estradas do mundo, procurando, até que finalmente o encontrasse: Gollum. Então Gollum morreria encurralado. Mas não era essa a sua tarefa. Não valeria a pena deixar seu mestre por esse motivo. Isso não o traria de volta. Nada poderia trazê-lo de volta. Seria melhor que os dois tivessem morrido juntos. E essa também seria uma viagem solitária.
Fixou a ponta brilhante da espada. Pensou nos lugares pelos quais passara e onde havia um precipício negro, onde poderia cair no escuro, dentro do nada. Por ali não havia como escapar. Isso seria o mesmo que não fazer nada, nem mesmo chorar. Não era essa a sua tarefa.
— Que devo fazer então? — gritou ele de novo, e agora parecia saber perfeitamente a dura resposta: passar por isso.
Outra jornada solitária, e a pior de todas.
— O quê? Eu, sozinho, ir até a Fenda da Perdição e tudo o mais?
Ainda vacilava um pouco, mas a resolução crescia dentro dele.
— O quê? Eu tirar o Anel dele? O Conselho o deu a ele.
Mas a resposta veio imediatamente:
“E o Conselho lhe deu companheiros, para que a missão não fracassasse. E você é o último membro de toda a Comitiva. A missão não deve fracassar”.
— Gostaria de não ser o último — gemeu Sam — Gostaria que o velho Gandalf estivesse aqui, ou alguém. Por que fui deixado sozinho para tomar uma decisão? Com certeza fracassarei. E não devo pegar o Anel, tomando a dianteira.
“Mas não foi você quem tomou a dianteira, você foi colocado nessa posição. E quanto a ser a pessoa certa e adequada, bem, o Sr. Frodo também não era, como se pode dizer, nem o Sr. Bilbo. Eles não se elegeram”.
— Está bem, devo decidir sozinho. Vou decidir. Mas com certeza vou fracassar: isso seria absolutamente típico de Sam Gamgi. Deixe-me ver agora: se formos encontrados aqui, ou se o Sr. Frodo for encontrado, e a Coisa estiver com ele, bem, o Inimigo vai se apoderar dela. E isso será o fim de todos nós, de Lórien, de Valfenda e do Condado, e de tudo. E não há tempo a perder, ou de qualquer jeito será o fim. A guerra começou, e é mais que provável que as coisas já estejam indo bem para o Inimigo. Não há chance de voltar com a Coisa para obter conselhos ou permissão. Só há duas escolhas: ficar sentado aqui até que eles venham e me derrubem morto sobre o corpo de meu mestre, e A levem; ou pegá-La e partir.
Respirou fundo.
— Então é pegá-La!
Abaixou-se. Com toda a delicadeza abriu o fecho no pescoço e deslizou a mão dentro da túnica de Frodo; então, levantando a cabeça com a outra mão, beijou-lhe a fronte, e suavemente passou a corrente por cima dela. E depois a cabeça voltou a jazer em repouso. Nenhuma alteração se manifestou no rosto imóvel, e por isso, mais que por todos os outros sinais, Sam se convenceu finalmente de que Frodo estava morto e abandonara a Demanda.
— Adeus, mestre, meu querido! — murmurou ele — Desculpe o seu Sam. Ele voltará a este lugar quando o serviço estiver terminado, se conseguir terminá-lo. E então não vai deixá-lo novamente. Descanse em paz até eu voltar; e que nenhuma criatura suja se aproxime do senhor! E se a Senhora pudesse me ouvir e me conceder um desejo, eu gostaria de voltar e encontrá-lo de novo. Adeus!
Então curvou o próprio pescoço, e colocou nele a corrente, e de imediato sua cabeça foi puxada para o chão pelo peso do Anel, como se uma grande pedra tivesse sido pendurada em seu pescoço. Mas lentamente, como se o peso ficasse menor, ou como se uma nova força crescesse nele, Sam levantou a cabeça, e com um grande esforço ficou de pé e percebeu que conseguiria caminhar e carregar seu fardo. E por um momento ergueu o Frasco e olhou seu mestre, e a luz agora brilhava suavemente, com a radiação fraca da estrela vespertina no verão, e naquela luz o rosto de Frodo ficou com uma tonalidade bonita de novo, pálido mas belo, de uma beleza élfica, como o de alguém que por muito tempo andou pelas sombras. E com o consolo amargo dessa última visão Sam virou-se, escondeu a luz e foi cambaleando ao encontro da escuridão crescente.
Não precisou ir muito longe. O túnel ficara para trás a certa distância a Fenda estava a algumas centenas de metros à frente, ou menos.
A trilha estava visível no crepúsculo, um sulco profundo cavado pela passagem de usuários durante séculos, agora subindo suavemente numa vala comprida, com penhascos dos dois lados. A vala estreitou-se rapidamente. Logo Sam atingiu um longo lance de degraus largos e rasos. Agora a torre dos orcs estava bem acima dele, franzindo-se negra, e nela o olho vermelho ardia. Agora Sam estava oculto na sombra escura abaixo dele.
Finalmente estava chegando ao topo da escada e à Fenda.
— Tomei a decisão — ficava ele dizendo a si mesmo. Mas não tinha tomado. Embora tivesse feito o máximo para resolver a questão, o que estava fazendo era totalmente contra a sua tendência natural — Será que fracassei? — murmurou ele — O que deveria ter feito?
Conforme as encostas íngremes da Fenda se fechavam em torno dele, antes que realmente atingisse o topo, antes que finalmente olhasse a trilha que descia para a Terra inominada, Sam se voltou. Por um momento, imóvel numa dúvida insuportável, olhou para trás. Ainda conseguia ver, como uma pequena mancha na escuridão crescente, a boca do túnel, e teve a impressão de vislumbrar ou adivinhar onde Frodo jazia. Imaginou ter visto algo tremeluzindo no chão lá embaixo, ou talvez fosse alguma peça que lhe pregavam suas lágrimas, ao olhar daquela altura de pedra onde toda a sua vida se arruinara.
— Se ao menos me fosse concedido meu desejo, meu único desejo — suspirou ele — O de voltar e encontrá-lo.
Depois finalmente virou-se para a estrada à frente e deu alguns passos: os mais pesados e mais relutantes que jamais dera.
Apenas alguns passos, e agora alguns outros e ele já estaria descendo para jamais ver aquele lugar alto outra vez.
E então, de repente, ouviu gritos e vozes. Ficou paralisado como uma pedra. Vozes de orcs. Estavam atrás e adiante dele.
Um ruído de pés batendo no chão e gritos roucos: orcs estavam subindo para a Fenda, vindo do lado oposto, de alguma entrada para a torre, talvez. Pés avançando e gritos atrás.
Sam girou o corpo. Viu pequenas luzes vermelhas, tochas, piscando lá embaixo conforme saíam do túnel. Finalmente a caçada começara. O olho vermelho da torre não estivera cego.
Sam fora apanhado.
Agora o faiscar das tochas que se aproximavam e o tinido do aço à frente estavam muito próximos. Em um minuto atingiriam o topo e cairiam sobre ele. Sam demorara muito para tomar a decisão, e agora não adiantava mais nada.
Como poderia escapar, ou salvar-se, ou salvar o Anel? O Anel. Não se deu conta de qualquer pensamento ou decisão. Simplesmente se viu tirando a corrente e pegando o Anel na mão. O chefe do grupo de orcs apareceu na Fenda bem diante dele.
Então Sam colocou o Anel no dedo.
O mundo mudou, e um único momento de tempo se encheu de uma hora de ponderação. Imediatamente Sam percebeu que sua audição se aguçara, enquanto a visão ficara obscurecida, mas de modo diferente do obscurecimento ocorrido na toca de Laracna. Agora todas as coisas ao seu redor não estavam escuras, mas difusas; enquanto ele mesmo estava lá, num mundo cinzento e enevoado, sozinho, como uma pequena rocha sólida e negra, e o Anel, pesando em sua mão esquerda. Era como um círculo de ouro escaldante. Sam não se sentia invisível de forma alguma, mas terrível e singularmente visível; e sabia que em algum lugar um Olho o procurava.
Ouviu o estalido de pedras, o murmúrio de águas distantes no Vale Morgul, e muito abaixo, sob a rocha, a miséria borbulhante de Laracna, tateando, perdida em alguma passagem sem saída; ouviu vozes nos calabouços da torre, e os gritos dos orcs que saiam do túnel; e ensurdecedores, rugindo em seus ouvidos, a batida dos pés e o clamor dilacerante dos orcs diante dele. Encolheu-se contra o penhasco. Mas eles avançavam como uma tropa de fantasmas, figuras cinzentas distorcidas numa névoa, apenas sonhos de medo com chamas pálidas nas mãos. E passaram por ele. Sam se agachou, tentando se esgueirar para dentro de alguma fissura e se esconder.
Ficou escutando. Os orcs do túnel e os outros descendo em marcha tinham avistado uns aos outros, e agora os dois grupos corriam e gritavam. Sam ouvia ambos claramente, e entendia o que estavam dizendo. Talvez o Anel proporcionasse o entendimento de línguas, ou simplesmente o entendimento, especialmente dos servidores de Sauron, seu criador, de modo que se Sam prestava atenção conseguia entender e traduzir o pensamento para si mesmo. Com certeza o poder do Anel crescera muito, à medida que se aproximara dos lugares onde fora forjado; mas uma coisa ele não conferia, e esta coisa era a coragem. No momento Sam ainda só pensava em se esconder, em ficar agachado até que tudo se aquietasse de novo; e escutava com atenção. Não conseguia saber a que distância estavam as vozes, as palavras pareciam estar quase em seus ouvidos.
— Olá! Gorbag! Que está fazendo aqui em cima? Já guerreou bastante por hoje?
— Ordens, seu brutamontes. E o que você está fazendo, Shagrat? Cansado de ficar espreitando lá em cima? Pensando em descer e lutar?
— Ordens para você. Estou no comando desta passagem agora. Então fale com respeito. Que tem a relatar?
— Nada.
— Hai! Hai! Yoi!
Um grito interrompeu a troca de palavras dos líderes. Os orcs que estavam mais embaixo tinham avistado algo de repente. Começaram a correr. Os outros fizeram o mesmo.
— Hai! Olá! Alguma coisa aqui! Bem na estrada. Um espião, um espião!
Ouviu-se uma algazarra de buzinas ríspidas e uma babel de vozes ladrando. Com um golpe pavoroso Sam despertou de seu estado acovardado.
Avistaram seu mestre. O que iriam fazer? Ouvira sobre os orcs histórias de congelar o sangue. Não poderia suportar aquilo. Saltou de pé. Afastou a Demanda e todas as decisões de sua mente, juntamente com o medo e a dúvida. Sabia agora onde era e onde sempre fora o seu lugar: ao lado de seu mestre, embora não soubesse ao certo o que poderia fazer lá. Desceu correndo os degraus e foi pela trilha na direção de Frodo.
“Quantos são?”, pensou ele. “No mínimo trinta ou quarenta descendo da torre, e muitos mais que estão vindo lá de baixo, suponho eu. Quantos poderei matar antes que me peguem? Eles vão ver a chama da espada logo que eu a puxar, e vão me pegar mais cedo ou mais tarde. Pergunto-me se algum dia uma canção vai mencionar este fato: como Samwise caiu na Passagem Alta e construiu uma parede de corpos em volta de seu mestre. Não, canção não. Claro que não, pois o Anel será encontrado, e não haverá mais canções. Não posso evitar. Meu lugar é ao lado do Sr. Frodo. Eles precisam entender isso, Elrond, o Conselho, e os grandes Senhores e Senhoras, com toda a sua sabedoria. Os planos que fizeram fracassaram. Não posso ser o Portador do Anel. Não sem o Sr. Frodo”.
Mas os orcs agora estavam fora do alcance de sua visão obscurecida. Sam não tivera tempo para pensar em si mesmo, mas agora percebia que estava cansado, cansado à beira da exaustão: suas pernas não o levavam aonde desejava. Estava lento demais. Parecia que a trilha tinha milhas de comprimento.
Aonde tinham ido todos naquela névoa?
Lá estavam eles de novo! Ainda a uma boa distância. Um aglomerado de figuras em volta de alguma coisa que jazia no solo; alguns pareciam estar se atirando de um lado para o outro, curvados como cães sobre um rastro.
Sam tentou se sacudir.
— Vamos, Sam! — disse ele — Ou você chegará tarde demais outra vez.
Soltou a espada em seu cinto. Num minuto iria puxá-la, e então...
Ouviu-se um clamor alucinado, risos e buzinas, enquanto algo era erguido do chão.
— Ya ho! Ya harri ho! Para cima! Para cima!
Então uma voz gritou:
— Agora vamos! Pelo caminho rápido. De volta para o Portão de Baixo! Tudo indica que esta noite ela não vai nos incomodar.
O bando de vultos de orcs começou a se mexer. Quatro ao centro carregavam um corpo por sobre os ombros.
— Ya hoi!
Tinham levado o corpo de Frodo. Tinham-se ido. Sam não conseguia alcançá-los. Mesmo assim se esforçava. Os orcs atingiram o túnel e estavam entrando. Os que levavam o fardo foram primeiro, e atrás deles havia muita luta e empurrão. Sam se aproximou. Puxou a espada, uma faísca azul na sua mão trêmula, mas eles nada viram.
No momento em que chegou ofegante, o último deles desapareceu dentro do buraco negro. Por um momento parou, arquejante, com a mão no peito. Então passou a manga da camisa pelo rosto, limpando a sujeira, o suor e as lágrimas.
— Malditos imundos! — disse ele, e saltou atrás deles para dentro da escuridão.
O interior do túnel já não lhe parecia tão escuro; era mais como se ele tivesse saído de uma névoa tênue para entrar num nevoeiro mais espesso. O cansaço aumentava, mas sua vontade se consolidava cada vez mais. Teve a impressão de ver a luz de tochas um pouco à frente, mas por mais que tentasse não conseguia alcançá-las. Os orcs andam rápido em túneis, e este túnel eles conheciam bem; apesar de Laracna, eles freqüentemente eram forçados a usá-lo como o caminho mais curto que vinha da Cidade Morta por sobre as montanhas. Em que tempo distante tinham sido feitos o túnel principal e a grande caverna redonda, a moradia de Laracna desde eras passadas, eles não sabiam; mas os próprios orcs tinham cavado muitos caminhos secundários ao redor do túnel dos dois lados, para escapar da toca em suas longas idas e vindas a mando de seus mestres.
Esta noite eles não tinham a intenção de descer muito, mas se apressavam para encontrar uma passagem lateral que os conduzisse de volta à torre de vigia no penhasco. Muitos deles estavam contentes, deliciados com o que tinham visto e encontrado, e enquanto corriam tagarelavam e resmungavam á maneira de sua espécie. Sam ouvia o ruído de suas vozes roucas, graves e ríspidas no ar parado, e conseguia distinguir duas vozes em meio a todas as outras: eram mais altas, e estavam mais próximas. Os capitães dos dois grupos pareciam fechar a retaguarda, discutindo enquanto avançavam.
— Pode fazer sua gentalha parar com tanta algazarra, Shagrat? — resmungou um deles — Não queremos Laracna em cima de nós.
— Que é isso, Gorbag! Os seus estão fazendo mais da metade do barulho — disse o outro — Mas deixe os rapazes brincarem! Não precisamos nos preocupar com Laracna por algum tempo, eu acho. Parece que ela sentou num prego, e não vamos chorar por causa disso. Você viu uma nojeira por todo o caminho que vai até aquela maldita fenda onde ela mora? Já tentamos interromper a algazarra mais de cem vezes e não conseguimos nunca. Então deixe que riam. E finalmente tivemos um pouco de sorte: conseguimos alguma coisa que Lugbúrz deseja.
— Lugbúrz deseja, é? E o que você acha que é isso? Tive a impressão de que é alguma coisa élfica, mas de tamanho menor. Qual é o perigo numa coisa dessas?
— Só vou saber quando der uma olhada.
— Oho! Então eles não lhe disseram o que esperar? Eles não nos dizem tudo o que sabem, dizem? Nem metade. Mas podem cometer erros, até mesmo os Chefões podem.
— Pssiu. Gorbag! — Shagrat diminuiu o tom da voz, de forma que mesmo com sua audição estranhamente aguçada Sam podia apenas ter uma idéia do que estava sendo dito.
— Eles podem, mas tem olhos e ouvidos por toda a parte; alguns entre meu grupo, muito provavelmente. Mas não há dúvidas sobre isso, eles estão preocupados com alguma coisa. Os nazgúl lá embaixo estão, pelo que você me contou; e Lugbúrz também está. Alguma coisa quase escapou.
— Quase, você diz! — disse Gorbag.
— Está certo — disse Shagrat — Mas vamos falar sobre isso mais tarde. Espere até chegarmos ao Caminho de Baixo. Lá há um lugar onde podemos conversar um pouco, enquanto os rapazes continuam avançando.
Logo depois Sam viu as tochas desaparecerem. Então ouviu-se um ribombar e, no momento em que ele corria, um baque. Pelo que pôde adivinhar, os orcs tinham virado e entrado exatamente pela abertura pela qual Frodo e ele tentaram passar e que acharam bloqueada. Ainda estava bloqueada. Parecia haver uma grande pedra no caminho, mas os orcs de alguma forma a tinham transposto, pois Sam ouvia suas vozes do outro lado.
Estavam ainda correndo, afundando cada vez mais na montanha, de volta para a torre. Sam ficou desesperado. Eles estavam levando embora o corpo de seu mestre para alguma finalidade maligna e ele não conseguia segui-los. Forçou a pedra e a empurrou, arremeteu contra ela, mas a rocha não cedeu. Então, não muito distantes lá dentro, ou pelo menos foi essa a impressão que teve, Sam ouviu as vozes dos dois capitães conversando de novo. Parou para escutar um pouco, talvez esperando descobrir alguma coisa útil.
Talvez Gorbag, que parecia pertencer a Minas Morgul, saísse, e então ele entraria sorrateiramente.
— Não, eu não sei — disse a voz de Gorbag — As notícias chegam voando mais rápido do que qualquer pássaro, geralmente. Mas não quero saber como isso acontece. É mais seguro não perguntar. Grr! Aqueles nazgúl me dão arrepios. E tiram a pele de seu corpo assim que olham para você, e o deixam morrendo de frio no escuro do outro lado. Mas Ele gosta deles; são seus favoritos atualmente, então não adianta reclamar. Eu lhe digo, não é brincadeira trabalhar lá embaixo na cidade.
— Você deveria tentar ficar aqui em cima tendo Laracna por companhia — disse Shagrat.
— Eu gostaria de tentar em algum lugar onde não haja nenhum deles. Mas a guerra já começou, e quando estiver terminada pode ser que as coisas fiquem mais fáceis.
— Está indo bem, pelo que dizem.
— Já era de esperar isso deles — resmungou Gorbag — Veremos. Mas de qualquer forma, se tudo for bem, haverá muito mais espaço. Que você me diz? Se tivermos uma oportunidade, você e eu vamos fugir para algum outro lugar, onde nos estabeleceremos por conta própria com alguns rapazes confiáveis, nalgum lugar onde haja coisas boas e fáceis de saquear, e sem chefes.
— Ah! — disse Shagrat. — Como nos velhos tempos.
— Sim — disse Gorbag — Mas não conte com isso. Minha cabeça não está muito tranqüila. Como eu disse, os Grandes Chefes, bem — sua voz se transformou quase num sussurro — Bem, mesmo os Maiorais podem cometer erros. Alguma coisa quase escapou, diz você. E eu digo, alguma coisa realmente escapou. E temos de ficar de olhos abertos. E sempre os pobres uruks devem consertar a situação quando alguém escapa, e ninguém agradece. Mas não esqueça: os inimigos não nos amam mais do que amam a Ele, e se o derrotarem estaremos acabados também. Mas olhe aqui: quando é que mandaram você sair?
— Mais ou menos uma hora atrás, um pouco antes de você nos ver. Chegou uma mensagem: Nazgúl preocupados. Suspeita de espiões nas Escadas. Vigilância redobrada. Patrulha deve dirigir-se ao topo das Escadas. Vim imediatamente.
— Mau negócio — disse Gorbag. — Olhe aqui... nossos Vigilantes Silenciosos já estavam preocupados há mais de dois dias, isso eu sei. Mas minha patrulha só foi receber ordens para sair no dia seguinte, e nenhuma mensagem foi enviada a Lugbúrz: isso devido ao Grande Sinal que subiu, e o Nazgúl Supremo que saiu para a guerra, e tudo aquilo. E conseguiram que Lugbúrz prestasse atenção por um bom tempo, pelo que me disseram.
— O Olho estava ocupado em algum outro lugar, julgo eu — disse Shagrat — Grandes coisas acontecendo lá no oeste, pelo que dizem.
— Acho que sim — rosnou Gorbag — Mas enquanto isso os inimigos subiram as Escadas. E o que você estava fazendo? Seu dever é ficar vigiando, não é, com ou sem ordens especiais? O que está pretendendo?
— Basta! Não tente me ensinar meu serviço. Estávamos muito bem acordados. Sabíamos que havia coisas muito estranhas acontecendo!
— Muito estranhas!
— Sim, muito estranhas: luzes e gritos e tudo mais. Mas Laracna estava em ação. Meus rapazes a viram com o Safado dela.
— O Safado dela? Que é isso?
— Você deveria ter visto: um sujeitinho magro e preto; parecido com uma aranha, ou talvez mais parecido com uma rã morta de fome. Já esteve aqui antes. Veio de Lugbúrz da primeira vez, anos atrás, e recebemos ordens de Lá de Cima para deixá-lo passar. Já subiu a escada uma ou duas vezes desde então, mas nós o deixamos em paz. Parece que tem algum entendimento com a Nobre Senhora. Suponho que não seja bom de comer: ela não se importaria com ordens de Lá de Cima. Mas que bela guarda você tem no vale: ele esteve aqui em cima um dia antes de toda essa balbúrdia. Nós o vimos no inicio da noite passada. De qualquer forma, meus rapazes reportaram que a Nobre Senhora estava se divertindo um pouco, e essa noticia me pareceu satisfatória, até que a mensagem chegou. Pensei que o Safado lhe trouxera um brinquedo, ou que vocês provavelmente lhe mandariam um presente, um prisioneiro de guerra ou qualquer coisa do tipo. Não interfiro nas brincadeiras dela. Nada passa por Laracna quando ela está caçando.
— Nada, você diz! Não usou seus olhos lá atrás? Eu lhe digo, minha cabeça não está muito tranqüila. O que quer que seja que subiu as Escadas, conseguiu passar. Cortou a teia dela e conseguiu se livrar do buraco. Isso é algo a se considerar!
— Ah, bem, mas ela o pegou no fim, não pegou?
— Pegou? Pegou quem? Esse sujeitinho? Mas se era o único, então ela o teria levado para sua despensa há muito tempo, onde ele estaria agora. E se Lugbúrz o quisesse, você teria de ir e pegá-lo. Bom para você. Mas havia mais de um.
Nesse ponto, Sam começou a escutar com mais atenção, pressionando o ouvido contra a rocha.
— Quem cortou as cordas que ela passou em volta dele, Shagrat? O mesmo que cortou a teia. Você não percebeu isso? E quem enterrou um prego na Nobre Senhora? A mesma pessoa, julgo eu. E onde está ele? Onde está ele, Shagrat?
Shagrat não respondeu.
— É melhor pôr os miolos para funcionar, se é que você tem algum. Isso não é brincadeira. Ninguém, ninguém jamais enterrou um prego em Laracna, como você deveria muito bem saber. Não há o que lamentar sobre o fato, mas pense, há alguém solto nas redondezas que é mais perigoso que qualquer outro maldito rebelde que jamais andou por aí desde os maus e velhos tempos, desde o Grande Cerco. Alguma coisa realmente escapou.
— O que será, então? — resmungou Shagrat.
— Ao que tudo indica, Capitão Shagrat, eu diria que há um grande guerreiro à solta, mais provavelmente um elfo, de qualquer forma com uma espada élfica, além de um machado, talvez; e mais, está solto dentro das suas fronteiras, e você nunca pôs os olhos em cima dele. Muito estranho, realmente!
Gorbag cuspiu.
Sam deu um sorriso sinistro ao ouvir tal descrição de si mesmo.
— Ah, bem, você está sempre vendo as coisas com pessimismo — disse Shagrat — Você pode interpretar os vestígios como quiser, mas pode haver outras formas de explicá-los. De qualquer forma, tenho vigias em todos os pontos, e vou cuidar de uma coisa de cada vez. Depois de dar uma olhada no sujeito que nós pegamos, então vou começar a me preocupar com outras coisas.
— Suponho que você não vai achar muita coisa naquele sujeitinho — disse Gorbag. — Pode ser que ele não tenha tido nada a ver com o verdadeiro malfeitor. O grande sujeito com a espada afiada parece não ter achado que ele valesse muito, de qualquer forma, simplesmente o largou lá: truque comum dos elfos.
— Veremos. Venha agora! Já conversamos bastante. Vamos dar uma olhada no prisioneiro!
— Que vai fazer com ele? Não se esqueça de que o vi primeiro. Se houver algum jogo, eu e meus rapazes devemos tomar parte nele.
— Calma, calma — resmungou Shagrat — Tenho minhas ordens a cumprir. E desrespeitá-las custa mais do que a minha barriga, ou a sua. Qualquer intruso encontrado pela guarda deve ser aprisionado na torre. O prisioneiro deve ser despido. Uma descrição completa de todos os itens, roupa, arma, carta, anel ou adorno, deve ser enviada a Lugbúrz imediatamente, e somente a Lugbúrz. E o prisioneiro deve ser mantido a salvo e intacto, sob risco de morte para todos os membros da guarda, até que Ele mande alguém ou venha em pessoa. As ordens são bem claras, e é isso que vou fazer.
— Despido, é? — disse Gorbag — Quer dizer, dentes, unhas, cabelo e tudo mais?
— Não, nada disso. Estou dizendo que ele se destina a Lugbúrz. E o querem a salvo e inteiro.
— Isso vai ser difícil — riu Gorbag — A esta altura ele não passa de carniça. O que Lugbúrz fará com esse material eu não posso imaginar. Poderia muito bem acabar num caldeirão.
— Seu tolo — rosnou Shagrat — Até agora você falou de modo muito inteligente, mas há muita coisa que não sabe, embora a maioria das outras pessoas saibam. Você irá para o caldeirão ou para Laracna, se não tomar cuidado. Carniça! Isso é tudo o que você sabe sobre a Nobre Senhora? Quando ela prende com cordas, está atrás de carne. Ela não come carne morta, nem chupa sangue frio. Esse sujeito não está morto!
Sam teve uma tontura e se agarrou na pedra. Sentiu-se como se todo o mundo escuro estivesse de cabeça para baixo. O choque foi tão grande que ele quase desmaiou mas, mesmo fazendo força para manter os sentidos, em suas entranhas ouviu o comentário: “Seu tolo, ele não está morto, e seu coração sabia disso. Não confie em sua cabeça, Samwise, que não é a sua melhor parte. O seu problema é que você nunca realmente teve esperanças. Agora, o que se deve fazer? Por enquanto nada, exceto escorar-se na pedra imóvel e escutar, escutar as vozes vis dos orcs”.
— Bobagem! — disse Shagrat — Ela tem mais de um veneno. Quando está caçando, dá apenas uma leve ferroada no pescoço das vítimas, e elas ficam moles como filés de peixe, e faz então com eles o que ela gosta. Você se lembra do velho Ufthak? Nós o perdemos por dias. Então o encontramos num canto; estava pendurado, mas acordado e de olhos bem abertos. Como rimos! Ela havia se esquecido dele, talvez, mas não o tocamos, não convém se intrometer nas coisas d’Ela. Agora, esse nojentinho, ele vai acordar, daqui a algumas horas, e, além de sentir um pouco de enjôo por um tempo, vai ficar bem. Ou ficaria, se Lugbúrz o deixasse em paz. E, é claro, se não tivesse de tentar adivinhar onde está e o que aconteceu com ele.
— E o que vai acontecer com ele — riu Gorbag — De qualquer forma podemos lhe contar algumas histórias, se não pudermos fazer mais nada. Não acho que já tenha estado na adorável Lugbúrz, então pode ser que ele goste de saber o que esperar. Isso vai ser mais divertido do que eu pensei. Vamos!
— Não vai haver diversão nenhuma, estou lhe dizendo — disse Shagrat — E é preciso mantê-lo a salvo, ou já estamos mortos.
— Está certo! Mas se eu fosse você, pegaria o grande que está solto, antes de enviar qualquer relatório a Lugbúrz. Não vai soar muito bem se você disser que pegou o gatinho e deixou o gatão escapar.
As vozes começaram a se afastar. Sam ouviu o som de passos indo embora. Estava se recuperando do choque, e agora era tomado por uma fúria alucinada.
— Fiz tudo errado! — gritou ele — Sabia que faria! Agora eles o pegaram, os demônios! Os sujos! Nunca abandone seu mestre, nunca, nunca: essa era a lei que deveria ter seguido. E sabia disso em meu coração. Que me perdoem! Agora tenho de consegui-lo de volta. De alguma forma, de alguma forma!
Puxou a espada de novo e bateu na pedra com o cabo, mas só ouviu um ruído surdo. A espada, entretanto, brilhou tanto que ele conseguiu vagamente enxergar em sua luz. Para sua surpresa, notou que o grande bloco tinha o formato de uma porta pesada, com menos do dobro de sua altura. Em cima havia um espaço vazio e escuro, entre o topo e o arco baixo da abertura. Provavelmente a porta estava ali apenas para impedir a invasão de Laracna, e era fechada por dentro com algum trinco ou ferrolho fora do alcance de sua sagacidade.
Com a força que lhe restava, Sam pulou e se agarrou na parte de cima, subiu e desceu do outro lado; depois correu alucinadamente, a espada reluzente na mão, contornando uma curva e subindo através de um túnel sinuoso.
A notícia de que seu mestre ainda estava vivo despertou-o para um último esforço além de qualquer noção de cansaço. Sam não conseguia ver nada à frente, pois esse novo corredor fazia curvas e ziguezagueava constantemente, mas ele tinha a impressão de estar alcançando os dois orcs: as vozes estavam se aproximando outra vez. Agora pareciam estar bem perto.
— É isso o que eu vou fazer — disse Shagrat num tom raivoso — Colocá-lo lá em cima, no cômodo superior.
— Para quê? — resmungou Gorbag — Você não tem nenhum cárcere aqui embaixo?
— Lá ele estará a salvo, estou lhe dizendo — respondeu Shagrat — Percebe? Ele é precioso. Não confio em todos os meus rapazes, e em nenhum dos seus, nem mesmo em você, quando está louco por uma diversão. Ele vai para onde eu quiser, e aonde você não possa chegar, se não se comportar. Lá para cima, estou dizendo. Lá estará a salvo.
— É mesmo? — disse Sam — Você está se esquecendo do grande guerreiro élfico que está à solta!
E com isso correu contornando a última esquina, apenas para descobrir que por algum truque do túnel, ou pela audição que o Anel lhe proporcionava, calculara mal a distância.
Os vultos dos dois orcs ainda estavam um pouco á frente. Agora conseguia vê-los, negros e agachados contra um clarão vermelho. O corredor finalmente ficara reto, subindo numa ladeira e no fim, escancaradas, viam-se as grandes portas duplas, que provavelmente conduziam a cômodos profundos bem embaixo do alto chifre da torre.
Os orcs, carregando o seu fardo, já haviam entrado.
Gorbag e Shagrat estavam se aproximando do portão.
Sam ouviu uma explosão de cantoria rude, clangores de cornetas e o ressoar de gongos, um clamor hediondo.
Gorbag e Shagrat já estavam no limiar.
Sam gritou e brandiu Ferroada, mas sua voz fraca se afogou no tumulto.
Ninguém lhe deu atenção.
As grandes portas bateram. BUM. As barras de ferro caíram em seu encaixe, do lado de dentro.CLANGUE. O portão se fechou. Sam se jogou contra as placas de bronze trancadas e caiu no chão sem sentidos. Ficara do lado de fora e no escuro.
Frodo estava vivo, mas o Inimigo o levara.









Aqui Termina A Segunda Parte Da História Da
Guerra Do Anel.



A terceira parte conta a história da última defesa contra a sombra e do fim da missão do Portador do Anel em O RETORNO DO REI.








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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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