quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 105





CV

O CEMITÉRIO DO PÊRE-LACHAISE




O
 Sr. de Boville encontrara de fato o cortejo fúnebre que conduzia Valentine à sua última morada. O tempo estava sombrio e enevoado, um vento ainda morno, mas já mortal para as folhas amarelecidas, arrancava-as dos ramos, que ficavam pouco a pouco nus, e as fazia turbilhonar sobre a multidão imensa que enchia os bulevares.
O Sr. de Villefort, parisiense da gema, considerava o Cemitério do Pêre-Lachaise o único digno de receber os restos mortais de uma família parisiense. Os outros pareciam-lhe cemitérios de aldeia, palácios arrebicados da morte. Só no Pêre-Lachaise um defunto de boas famílias podia ficar bem instalado.
Como já vimos, comprara a concessão perpétua em que erguera o jazigo, tão rapidamente ocupado por todos os membros da sua primeira família. Lia-se na fronteira do mausoléu:
Famílias Saint-Méran e Villefort.
E isto porque tal fora a última vontade da pobre Renée, mãe de Valentine.
Era, portanto para o Pêre-Lachaise que se dirigia o pomposo cortejo saído do Arrabalde Saint-Honoré. Atravessou Paris de ponta a ponta, meteu pelo Arrabalde do Templo e depois pelos bulevares exteriores até ao cemitério. Mais de cinqüenta carruagens particulares seguiam vinte carros fúnebres, e atrás dessas cinqüenta carruagens ainda iam mais de quinhentas pessoas a pé.
Eram quase todas jovens, que a morte de Valentine fulminara como um raio e que, apesar da atmosfera glacial do século e do prosaísmo da época, sofriam a influência poética daquela bela, casta e adorável moça morta na flor da vida.
À saída de Paris todos viram chegar uma rápida equipagem de quatro cavalos, que se detiveram de súbito retesando os jarretes nervosos como molas de aço: era o Sr. de Monte Cristo. O Conde apeou-se do seu coche e juntou-se à multidão que seguia a pé o carro funerário.
Château-Renaud viu-o, desceu imediatamente do seu cupé e se juntou a ele. Beauchamp deixou também o cabriole de praça em que vinha.
O Conde olhava atentamente por todos os interstícios que deixava a multidão; era evidente que procurava alguém Por fim, não se conteve mais e perguntou:
— Onde está Morrel? Algum dos senhores sabe onde ele está?
— Já perguntamos isso mesmo a nós próprios na sala mortuária — respondeu Château-Renaud — precisamente porque nenhum de nós o viu.
O Conde calou-se, mas continuou a olhar à sua volta.
Chegaram por fim no cemitério.
O olhar penetrante de Monte Cristo examinou num relance todos os renques de teixos e pinheiros e em breve perdeu toda a inquietação: uma sombra deslizara pelas escuras alamedas arborizadas e Monte Cristo acabava, sem dúvida, de reconhecer quem procurava.
Todas as pessoas sabem como decorre um funeral naquela magnífica necrópole: grupos de preto espalhados pelas brancas alamedas, o silêncio do céu e da terra perturbado pelo estalar de algum ramo quebrado, de alguma sebe derrubada à volta de uma sepultura; depois, o canto melancólico dos padres, ao qual se junta, aqui e ali, um soluço escapado de um maciço de flores sob o qual se vê alguma mulher, absorta e de mãos postas.
A sombra que Monte Cristo notara atravessou rapidamente o quincãncio disposto atrás do túmulo de Heloísa e Abelardo, veio colocar-se, com os moços de cangalheiro, à frente dos cavalos que puxavam a carreta e do mesmo passo chegou ao local escolhido para a sepultura.
Todas as pessoas olhavam para qualquer coisa.
Monte Cristo só olhava para aquela sombra em que mal tinham reparado aqueles que a rodeavam. O Conde saiu por duas vezes do seu lugar para ver se as mãos daquele homem não procurariam alguma arma oculta no vestuário.
Quando o cortejo parou, verificou-se que a sombra era nem mais nem menos do que Morrel, que, com a sua sobrecasaca preta abotoada até acima, a testa lívida, as faces encovadas e o chapéu amarrotado pelas mãos convulsas, se encostara a uma árvore situada num cabeço que dominava o jazigo, de forma a não perder nenhum dos pormenores da cerimônia fúnebre que se ia realizar.
Tudo se passou como de costume.
Alguns homens, como sempre os menos impressionados, pronunciaram discursos. Uns lamentavam aquela morte prematura; outros dissertavam sobre a dor do pai, e alguns, bastante engenhosos, descobriram que por mais de uma vez a jovem solicitara ao Sr. de Villefort compaixão para os culpados sobre a cabeça dos quais ele tinha suspenso o gládio da justiça. Enfim, esgotaram-se as metáforas floridas e os períodos dolorosos, interpretando de todas as maneiras as estrofes de Malherbe a Dupérier.
Monte Cristo não escutava nem via nada, ou antes, só via Morrel, cuja calma e imobilidade constituíam um espetáculo assustador. A única pessoa que podia ler o que se passava no fundo do coração do jovem oficial.
— Ali está Morrel — disse de súbito Beauchamp a Debray — Onde diabo terá se metido?
E fizeram-no notar a Château-Renaud.
— Como está pálido — observou este, estremecendo.
— Deve ter frio — replicou Debray.
— Não — disse lentamente Château-Renaud — Creio que está impressionado. Maximilien é um homem muito impressionável.
— Mas se mal conhecia Mademoiselle de Villefort! — estranhou Debray — Foi você mesmo quem o disse...
— É verdade. No entanto, lembro-me de que nesse baile em casa da Sra. de Morcerf dançou três vezes com ela. O senhor sabe, Conde, aquele baile em que o senhor causou tanta impressão...
— Não, não sei — respondeu Monte Cristo, sem sequer saber a quê nem a quem respondia, ocupado como estava a vigiar Morrel, cujas faces se animavam como acontece àqueles que comprimem ou retêm a respiração — Acabaram os discursos. Adeus, meus senhores — disse bruscamente o Conde.
E deu o sinal de partida, desaparecendo sem que se soubesse por onde se esgueirara.
Terminada a cerimônia fúnebre, os presentes retomaram o caminho de Paris.
Château-Renaud ainda procurou um instante Morrel com a vista; mas enquanto seguira com o olhar o Conde, que se afastava, Morrel deixara o seu lugar e Château-Renaud, depois de procurá-lo em vão, seguira Debray e Beauchamp.
Monte Cristo correu para um renque de árvores e, oculto atrás de um grande túmulo, seguia os mais pequenos movimentos de Morrel, que pouco a pouco se aproximara do jazigo abandonado pelos curiosos e depois pelos coveiros. Morrel olhou à sua volta lenta e vagamente. Mas no momento em que o seu olhar abarcava a porção de círculo oposta à sua, Monte Cristo aproximou-se mais de uma dezena de passos sem ser visto.
O rapaz ajoelhou. De pescoço estendido, olhos fixos e dilatados e as pernas dobradas como para se lançar ao primeiro sinal, o Conde continuava a aproximar-se de Morrel. Morrel inclinou a fronte até à pedra, agarrou o gradeamento com ambas as mãos e murmurou:
— Oh, Valentine!...
Estas duas palavras repercutiam-se profundamente no coração do Conde, que deu mais um passo, bateu no ombro de Morrel e disse:
— Procurava-o, caro amigo...
Se esperava uma explosão, censuras, recriminações, Monte Cristo enganava-se.
Morrei virou-se para o seu lado e disse com ar calmo:
— Como vê, rezava.
O olhar perscrutador do Conde percorreu o rapaz dos pés à cabeça. Depois deste exame pareceu mais tranqüilo.
— Quer que o leve a Paris? — perguntou.
— Não, obrigado.
— Mas, enfim, deseja alguma coisa?
— Deixe-me rezar.
O Conde afastou-se sem fazer uma única objeção, mas para ocupar novo posto de observação donde não perdia um único gesto de Morrel, que por fim se levantou, limpou os joelhos deixados brancos pela pedra e tomou o caminho de Paris sem virar uma única vez a cabeça. Desceu lentamente a Rua da Roquette.
O Conde mandou embora a sua carruagem, estacionada no Pêre-Lachaise, e seguiu-o a cem passos. Maximilien atravessou o canal e entrou na Rua Meslay pelos bulevares. Cinco minutos depois de a porta ser fechada por Morrel, abriu-se para Monte Cristo.
Julie estava à entrada do jardim a observar com a mais profunda atenção mestre Penelon, que, levando a sua profissão de jardineiro a sério, enxertava de estaca roseiras-de-bengala.
— Olha, o Sr. Conde de Monte Cristo! — exclamou com a alegria que habitualmente manifestavam todos os membros da família quando Monte Cristo visitava a Rua Meslay.
— Maximilien acaba de entrar, não é verdade, minha senhora? — perguntou o Conde.
— Sim, creio que o vi passar — confirmou a jovem senhora — Mas, por favor, chame Emmanuel.
— Perdão, minha senhora, mas preciso subir imediatamente aos aposentos de Maximilien — respondeu Monte Cristo — Tenho de lhe dizer uma coisa da mais alta importância.
— Então vá — disse ela, acompanhando-o com o seu sorriso encantador até o Conde desaparecer na escada.
Monte Cristo depressa transpôs os dois andares que separavam o térreo dos aposentos de Maximilien. Chegado ao patamar, escutou: não se ouvia nenhum ruído.
Como na maioria das casas antigas habitadas por um único locatário, as divisões que deitavam para o patamar eram fechadas apenas por uma porta envidraçada. Simplesmente, naquela porta envidraçada não havia nenhuma chave. Maximilien fechara-se por dentro e era impossível ver além da porta, pois um cortinado de seda vermelha cobria os vidros. A ansiedade do Conde manifestava-se por um vivo rubor, sintoma de emoção pouco habitual naquele homem impassível.
— Que fazer?... — murmurou.
Refletiu um instante.
— Tocar? — prosseguiu — Oh, não! Muitas vezes o toque de uma campainha, isto é, de uma visita, acelera a resolução daqueles que se encontram na situação em que Maximilien se deve encontrar neste momento, e então ao toque da campainha responde outro ruído...
Monte Cristo estremeceu dos pés à cabeça e, como em si a decisão tinha a rapidez do relâmpago, deu uma cotovelada num dos vidros da porta, que voou em estilhaços. Depois, levantou o cortinado e viu Morrel, que, diante da sua escrivaninha, com uma pena na mão, acabava de saltar na cadeira, surpreendido pelo barulho do vidro ao quebrar-se.
— Não é nada — disse o Conde — Mil perdões, meu caro amigo! Escorreguei e bati com o cotovelo no vidro. Agora, uma vez que se partiu, aproveito para entrar. Não se incomode, não se incomode!
E, metendo o braço pelo vidro quebrado, abriu a porta.
Morrel levantou-se imediatamente, contrariado, e veio ao encontro de Monte Cristo, menos para o receber do que para lhe barrar a passagem.
— A culpa é dos seus criados — observou Monte Cristo, esfregando o cotovelo — Os seus soalhos brilham como espelhos...
— Feriu-se, senhor? — perguntou friamente Morrel.
— Não sei. Mas que fazia o senhor aqui? Escrevia?
— Eu?
— Tem os dedos sujos de tinta...
— É verdade, escrevia — respondeu Morrel — Acontece-me, às vezes, por mais militar que seja.
Monte Cristo deu alguns passos na sala.
Maximilien viu-se abrigado a deixá-lo passar; mas seguiu-o.
— Escrevia? — repetiu Monte Cristo, com um olhar que se impunha pela sua fixidez.
— Já tive a honra de lhe dizer que sim — respondeu Morrel.
O Conde deitou um olhar à sua volta.
— Com as suas pistolas ao pé do tinteiro! — exclamou, indicando a Morrel as armas pousadas em cima da escrivaninha.
— Vou viajar — respondeu Maximilien.
— Meu amigo!... — disse Monte Cristo, numa voz de uma doçura infinita.
— Senhor!
— Meu amigo, meu caro Maximilien, nada de soluções extremas, suplico-lhe!
— Eu, resoluções extremas? — perguntou Morrel, encolhendo os ombros — E em quê, peço-lhe que me diga, uma viagem é uma resolução extrema?
— Maximilien — disse Monte Cristo — Tiremos cada um pela sua parte a máscara que usamos. Maximilien, com a sua calma forçada não me engana mais do que eu o engano com a minha frívola solicitude. Compreende perfeitamente, não é verdade, que para fazer o que fiz, para partir vidros e violar a intimidade do quarto de um amigo, compreende, repito, que para fazer tudo isto era necessário que tivesse uma preocupação real, ou antes, uma convicção terrível. Morrel, o senhor quer se matar!
— Onde arranjou essas idéias, Sr. Conde! — perguntou Morrel, estremecendo.
— Repito-lhe que quer se matar! — continuou o Conde no mesmo tom de voz — E aqui está a prova.
E aproximando-se da escrivaninha, levantou a folha de papel branco que o jovem colocara sobre uma carta começada e pegou na carta.
Morrel correu para ele para a arrancar das mãos.
Mas Monte Cristo, que previra esse gesto, impediu-o agarrando Maximilien pelo pulso e detendo-o como uma corrente de aço detém uma mola no meio da sua evolução.
— Bem vê que se queria matar, Morrel! Está aqui escrito! — exclamou o Conde.
— E depois? — perguntou Morrel, passando sem transição de uma aparência calma a uma expressão violenta — E depois? Se assim fosse, se decidisse virar contra mim o cano de uma dessas pistolas, quem me impediria? Quem teria coragem de me impedir? Quando disser: “Todas as minhas esperanças estão arruinadas, o meu coração desfeito, a minha vida morta, já só existe luto e nojo à minha volta, a terra transformou-se em cinza, toda a voz humana me dilacera”; quando disser: “É um ato de piedade deixar-me morrer, porque se não me deixar morrer perderei a razão, enlouquecerei”. Vamos, senhor, quando disser isto, quando vir que o digo com as angústias e as lágrimas do meu coração, ainda me responder: “Não tem razão”? Ainda me impedirá de não ser mais infeliz? Diga, senhor, diga: terá essa coragem?
— Sim, Morrel — respondeu Monte Cristo numa voz cuja calma contrastava estranhamente com a exaltação do rapaz — Sim, terei.
— O senhor?! — gritou Morrel com crescente expressão de cólera e censura — O senhor, que me iludiu com uma esperança absurda; o senhor, que me deteve, embalou e adormeceu com vãs promessas, quando eu poderia, por meio de qualquer denúncia, de qualquer resolução extrema, salvá-la ou pelo menos vê-la morrer nos meus braços; o senhor, que finge possuir todos os recursos da inteligência, todos os poderes da matéria; o senhor, que desempenha, ou antes simula desempenhar, o papel da Providência e que não teve sequer o poder de dar um contraveneno a uma moça envenenada! Na verdade, senhor, me inspiraria compaixão se me não inspirasse horror!
— Morrel...
— Disse-me que tirasse a máscara; pois bem, faça-se a sua vontade, tiro-a sim, quando me seguiu no cemitério ainda lhe respondi porque o meu coração é bom, e quando entrou deixei-o vir até aqui. Mas, uma vez que o senhor abusa; uma vez que me vem desafiar até neste quarto para onde me retirara como se fosse a minha sepultura; uma vez que me traz uma nova tortura, a mim, que julgava tê-las experimentado todas, Conde de Monte Cristo, meu pretenso benfeitor; Conde de Monte Cristo, o salvador universal, fique satisfeito, veja morrer o seu amigo!
E Morrel, rindo como um louco, correu pela segunda vez para as pistolas.
Pálido como um espectro, mas com os olhos despedindo relâmpagos, Monte Cristo estendeu a mão sobre as armas e gritou ao insensato:
— E eu repito-lhe que não se matará!
— Veja se me impede! — replicou Morrel, num novo impulso, que, como o primeiro, se quebrou contra o braço de aço do Conde.
— Sim, o impedirei!
— Mas quem é afinal o senhor para se arrogar esse direito tirânico sobre criaturas livres e pensantes?! — gritou Maximilien.
— Quem sou? — repetiu Monte Cristo — Ouça, sou o único homem no mundo que tenho o direito de lhe dizer: “Morrel, não quero que o filho do teu pai morra hoje!”
E Monte Cristo, majestoso, transfigurado, sublime, avançou de braços cruzados para o jovem palpitante, que, dominado, mal-grado seu, pela quase divindade daquele homem, recuou um passo.
— Porque fala do meu pai? — balbuciou — Porque confundir a memória do meu pai com o que me acontece hoje?
— Porque eu sou aquele que já salvou a vida ao teu pai num dia em que se queria matar como te queres matar hoje; porque sou o homem que mandei a bolsa à tua jovem irmã e o Pharaon ao velho Morrel; porque sou Edmond Dantés, o homem que te fez saltar, em criança, nos joelhos!
Morrel deu mais um passo atrás, cambaleando, sufocado, arquejante, esmagado. Depois as forças abandonaram-no e, com um grande grito, caiu de joelhos aos pés de Monte Cristo. De repente, naquela natureza admirável operou-se uma reviravolta regeneradora súbita e completa. Levantou-se, saltou para fora do quarto e precipitou-se para a escada, gritando a plenos pulmões:
— Julie! Julie! Emmanuel! Emmanuel!
Monte Cristo quis segui-lo, mas Maximilien mais depressa se deixaria matar do que largaria o fecho da porta que fechara na cara do Conde. Aos gritos de Maximilien, Julie, Emmanuel, Penelon e alguns criados acorreram assustados. Morrel pegou-lhes nas mãos, abriu a porta e gritou numa voz estrangulada pelos soluços:
— De joelhos! De joelhos! É o benfeitor, é o salvador do nosso pai, é...
Ia a dizer: “É Edmond Dantés!”, mas o Conde deteve-o agarrando-lhe no braço.
Julie lançou-se sobre a mão do Conde; Emmanuel beijou-o como um deus tutelar; Morrel caiu pela segunda vez de joelhos e bateu com a testa no chão. Então o homem de bronze sentiu o coração dilatar-se no peito, um jato de chama devoradora brotou-lhe da garganta e dos olhos, inclinou a cabeça e chorou!
Durante alguns instantes ouviu-se no quarto um concerto de lágrimas e suspiros sublimes, que decerto pareceu harmonioso aos anjos mais queridos do Senhor.
Mal se recompôs da profunda emoção que acabava de experimentar, Julie correu para fora do quarto, desceu um andar, correu à sala com alegria infantil e retirou o globo de cristal que protegia a bolsa dada pelo desconhecido das Alamedas de Meilhan. Entretanto, Emmanuel dizia ao Conde, em voz entrecortada:
— Oh, senhor Conde, como é que, vendo-nos falar tantas vezes do nosso benfeitor desconhecido, como é que vendo-nos rodear uma recordação de tanto reconhecimento e adoração, como é que esperou até hoje para se dar a conhecer?! Foi uma crueldade para conosco e quase me atrevo a dizer, Sr. Conde, também para consigo.
— Ouça, meu amigo — respondeu o Conde — Posso tratá—lo assim porque, sem o saber, o senhor é meu amigo há onze anos: a descoberta deste segredo foi provocada por um grande acontecimento que deve ignorar. Deus é testemunha de que desejaria guardá-lo toda a vida no fundo da minha alma, mas o seu irmão Maximilien arrancou-lhe por meio de violências de que, estou certo, já se arrependeu.
Depois, vendo que Maximilien se atirara de lado para cima de uma poltrona, embora permanecendo de joelhos, acrescentou baixinho, apertando significativamente a mão de Emmanuel:
— Vele por ele...
— Por quê? — perguntou o rapaz, atônito.
— Não lhe posso dizer, mas vele por ele.
Emmanuel percorreu o quarto com um olhar circular e viu as pistolas de Morrel.
Os seus olhos cravaram-se assustados nas armas, que indicou a Monte Cristo, levantando lentamente o dedo à sua altura. Monte Cristo inclinou a cabeça. Emmanuel fez um movimento na direção das pistolas.
— Deixe-as — disse Monte Cristo.
Depois aproximou-se de Morrel e estendeu-lhe a mão, os acontecimentos tumultuosos que pouco antes tinham agitado o coração do jovem haviam cedido o lugar a um entorpecimento profundo.
Julie voltou a subir, segurava na mão a bolsa de seda e duas lágrimas brilhantes e felizes corriam-lhe pelas faces como duas gotas de orvalho matinal.
— Aqui está a relíquia — disse — Não julgue que me é menos querida desde que o salvador nos foi revelado.
— Minha filha — respondeu Monte Cristo, corando — Permita-me que recupere essa bolsa. Desde que conhecem a minha cara, só quero ser recordado pela afeição que lhes peço me concedam.
— Oh, não, não, suplico-lhe! — perguntou Julie apertando a bolsa ao coração — Porque um dia poderá deixar-nos; porque infelizmente um dia nos deixará, não é verdade?
— Acertou em cheio, minha senhora — respondeu Monte Cristo, sorrindo — Dentro de oito dias deixarei este país onde tantas pessoas que mereciam a vingança do céu viviam felizes, enquanto o meu pai morria de fome e dor.
Ao anunciar a sua próxima partida, Monte Cristo tinha os olhos fixos em Morrel e notou que as palavras “deixarei este país” não tinham tirado Morrel da sua letargia. Compreendeu que devia travar uma derradeira luta com a dor do amigo e, pegando nas mãos de Julie e Emmanuel, que reuniu e apertou nas suas, disse-lhes com a suave autoridade de um pai:
— Meus bons amigos, deixem-me só, peço-lhes, com Maximilien.
Era um meio de Julie levar dali a relíquia preciosa de que Monte Cristo se esquecia de voltar a falar. Puxou vivamente o marido, dizendo:
— Deixemo-los.
O Conde ficou com Morrel, que continuava imóvel como uma estátua.
— Então, volta a ser finalmente um homem, Maximilien? — perguntou o Conde, tocando-lhe no ombro com um dedo.
— Volto, porque recomeço a sofrer.
O Conde franziu a testa; parecia entregue a uma sombria hesitação.
— Maximilien! Maximilien! As idéias que te absorvem são indignas de um cristão.
— Oh, tranqüilize-se, meu amigo — respondeu Morrel erguendo a cabeça e mostrando ao Conde um sorriso cheio de inefável tristeza — Já não serei eu que procurarei a morte.
— Portanto, nada de armas, nada de desespero — disse Monte Cristo.
— Não, porque tenho melhor para tratar da minha dor do que o cano de uma pistola ou a ponta de uma navalha.
— Pobre louco!... Tem o quê?
— Tenho a minha dor. Ela própria me matará.
— Amigo — atalhou Monte Cristo com uma melancolia igual à dele — Escute-me. Um dia, num momento de desespero igual ao seu, porque implicava uma resolução idêntica, quis-me matar como você; outro dia, teu pai, igualmente desesperado, quis-se matar também Se alguém dissesse ao teu pai, no momento em que dirigia o cano da pistola para a testa; se me dissessem a mim, no momento em que afastava da minha cama o pão do prisioneiro, em que não tocava havia três dias; se nos dissessem a ambos, enfim, nesse momento supremo: “Viva! Um dia virá em que será feliz e abençoará a vida”; fosse de onde fosse que viesse essa voz, a acolheríamos com o sorriso da dúvida ou com a angústia da incredulidade, e, no entanto quantas vezes, ao beijar-te, o teu pai não terá abençoado a vida, quantas vezes até...
— Ah, mas o senhor só perdera a liberdade e o meu pai só perdera a fortuna! — exclamou Morrel, interrompendo o Conde — Eu perdi Valentine!
— Olha para mim, Morrel — pediu Monte Cristo com a solenidade que em certas ocasiões o tomava tão grande e persuasivo — Olha para mim: não tenho lágrimas nos olhos, nem febre nas veias, nem pulsações fúnebres no coração; contudo, te vejo sofrer, Maximilien, a ti que amo como amaria um filho! Pois bem, isto não te diz, Morrel, que a dor é como a vida e que há sempre qualquer coisa desconhecida para lá dela? Ora se te peço, se te ordeno que viva, Morrel, é na convicção de que um dia me agradecerá ter-te conservado vivo.
— Meu Deus! — exclamou o rapaz — Meu Deus, que quer dizer com isso, Conde? Cautela! Talvez o senhor nunca tenha amado...
— Criança! — respondeu o Conde.
— De amor percebo eu — prosseguiu Morrel — Como sabe, sou soldado desde que sou homem; cheguei aos vinte e nove anos sem amar, pois nenhum dos sentimentos que experimentei até então merecia o nome de amor. Aos vinte e nove anos conheci Valentine e durante cerca de dois anos amei-a, durante cerca de dois anos pude avaliar as virtudes da filha e da mulher inscritas pela própria mão do Senhor naquele coração aberto para mim como um livro. Conde, havia para mim, com Valentine, uma felicidade infinita, imensa, desconhecida, uma felicidade demasiado grande, demasiado completa, demasiado divina para este mundo; uma vez que este mundo não me deu, Conde, devo dizer-lhe que sem Valentine não existe para mim na Terra mais do que desespero e desolação.
— Disse-te que tivesses esperança, Morrel — insistiu o Conde.
— Acautele-se então, insisto também — perguntou Morrel — Porque o senhor tenta persuadir-me, e se me persuadir me fará perder a razão, porque me fará crer que posso tornar a ver Valentine.
O Conde sorriu.
— Meu amigo, meu pai! — gritou Morrel, exaltado — Acautele-se, repito-lhe pela terceira vez, porque o ascendente que tem sobre mim assusta-me; tome cautela com o sentido das suas palavras, pois, como vê, os meus olhos reanimam-se e o meu coração reacende-se e renasce; acautele-se, porque me faria acreditar em coisas sobrenaturais... obedeceria se me mandasse levantar a lousa do sepulcro da filha de Jairo; caminharia sobre as águas como o apóstolo se o senhor me fizesse sinal com a mão para caminhar sobre as águas... acautele-se, porque obedecerei.
— Tenha esperança, meu amigo — repetiu o Conde.
— Ah! — exclamou Morrel, voltando a cair de toda a altura da sua exaltação no abismo da sua tristeza — Ah, o senhor brinca comigo! Procede como essas boas mães, ou antes, como essas mães egoístas que acalmam com palavras melífluas a dor dos filhos porque os seus gritos as incomodam. Não, meu amigo, não tinha razão em dizer-lhe que se acautelasse; não, não tema nada: sepultarei a minha dor com tanto cuidado no mais intimo do meu peito, a tornarei tão profunda, tão secreta, que o senhor nem sequer terá de se incomodar a lamentá-la. Adeus, meu amigo, adeus!
— Pelo contrário — perguntou o Conde — A partir deste momento, Maximilien, viverá junto de mim e comigo, não me deixará mais, e dentro de oito dias a França ficará para trás de nós.
— E continua a dizer-me que tenha esperança?
— Digo-te que tenha esperança porque conheço um meio de te curar.
— Conde, o senhor entristece-me ainda mais, se é possível. O senhor não vê mais do que uma dor vulgar no desgosto que me feriu e julga confortar-me com um meio também vulgar, a viagem.
E Morrel abanou a cabeça com desdenhosa incredulidade.
— Que quer que te diga? — perguntou Monte Cristo — Tenho fé nas minhas promessas, deixa-me experimentar.
— Conde, o senhor prolonga apenas a minha agonia, mais nada.
— Quer dizer, é tão fraco o coração que não tem coragem de dar ao teu amigo alguns dias para a experiência que ele tenta! Vejamos, sabe porventura de que é capaz o Conde de Monte Cristo? Sabe que governa muitas forças terrestres? Sabe que possui suficiente fé em Deus para obter milagres. Daquele que disse que com a fé o homem podia mover montanhas? Pois bem, esse milagre em que tenho esperança espera-o ou então...
— Ou então... — repetiu Morrel.
— Ou então acautele-se, Morrel, ou o chamarei de ingrato.
— Tenha piedade de mim, Conde.
— Tenho tanta piedade de ti, Maximilien, ouça, tanta piedade que, se não te curar dentro de um mês, dia por dia, hora por hora... guarde bem as minhas palavras, Morrel, te colocarei eu próprio diante dessas pistolas carregadas e de uma taça do mais seguro veneno italiano, de um veneno mais seguro e mais rápido, acredita, do que aquele que matou Valentine.
— Promete-me?
— Prometo, porque sou um homem; porque também, como te disse, quis morrer, e até muitas vezes, depois de a desventura ter deixado de me perseguir, sonhei com as delícias do sono eterno.
— Oh, é verdade que me promete isso, Conde?! — gritou Maximilien, inebriado.
— Não te prometo, te juro — perguntou Monte Cristo, estendendo a mão.
— Dentro de um mês, pela sua honra, se não estiver confortado, me deixará a liberdade de dispor da minha vida, e seja o que for que faça não me chamará ingrato?
— Dentro de um mês, dia por dia, Maximilien; dentro de um mês, hora por hora, e a data é sagrada, Maximilien. Não sei se pensou nisto, mas estamos hoje a 5 de Setembro. Faz hoje dez anos que salvei o teu pai, que queria morrer.
Morrel pegou nas mãos do Conde e beijou-as.
O Conde não se opôs, como se achasse que essa adoração lhe era devida.
— Dentro de um mês — continuou Monte Cristo — Terá na mesa diante da qual estaremos sentados um e outro boas armas e uma morte suave; mas, em contrapartida, promete-me esperar até lá e viver?
— Oh, também eu lhe juro! — exclamou Morrel.
Monte Cristo atraiu o jovem ao coração e abraçou-o durante muito tempo.
— E agora — disse-lhe — A partir de hoje vai viver comigo. Ocupará os aposentos de Haydée e assim ao menos a minha filha será substituída pelo meu filho.
— Haydée! — exclamou Morrel — Que aconteceu a Haydée?
— Partiu esta noite.
— Para deixá-lo?
— Para me esperar... prepara-se, pois, para ir ter comigo à Avenida Champs-Élysées e faça-me sair daqui sem que me vejam.
Maximilien, baixou a cabeça e obedeceu, como uma criança ou como um apóstolo.




 continua....





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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de MurphyO companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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