terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 91




XCI

A MÃE E O FILHO




O
 Conde de Monte Cristo cumprimentou os cinco jovens com um sorriso cheio de melancolia e dignidade e voltou a subir para a sua carruagem com Maximilien e Emmanuel.
Albert, Beauchamp e Château-Renaud ficaram sozinhos no campo de batalha. O jovem dirigiu às suas duas testemunhas um olhar que, sem ser tímido, parecia, no entanto pedir-lhes a sua opinião acerca do que acabava de se passar.
— Palavra, meu caro amigo, permita-me que o felicite! — foi Beauchamp o primeiro a dizer, quer por ter mais sensibilidade, quer por possuir menos capacidade de dissimulação — Aí está um desenlace deveras inesperado num caso tão desagradável.
Albert ficou calado e absorto nos seus pensamentos. Château-Renaud limitou-se a bater na bota com a bengala flexível.
— Não vamos embora? — perguntou, depois de um silêncio embaraçoso.
— Quando quiser — respondeu Beauchamp — Conceda-me apenas o tempo de cumprimentar o Sr. de Morcerf. Deu hoje provas de uma generosidade tão cavalheiresca... tão rara!
— Oh, com certeza! — concordou Château-Renaud.
— É magnífico um homem poder conservar sobre si mesmo um domínio tão grande! — continuou Beauchamp.
— Sem dúvida. Quanto a mim, teria sido incapaz — declarou Château-Renaud com uma frieza das mais significativas.
— Meus senhores — interrompeu-os Albert — Creio que não compreenderam que entre o Sr. de Monte Cristo e mim se passou algo muito grave...
— Pois sim, pois sim — perguntou imediatamente Beauchamp — Mas nenhum dos nossos seria capaz de compreender o heroísmo, e cedo ou tarde talvez se visse obrigado a explicar-lhe mais energicamente do que convém à saúde do seu corpo e à duração da sua vida. Quer que lhe dê um conselho de amigo? Parta para Nápoles, para Haia ou para São Petersburgo, países calmos, onde as pessoas são mais inteligentes sobre pontos de honra do que os nossos desmiolados parisienses. Uma vez lá, treine-se bem à pistola e faça muitas quartas e terças à espada. Entretanto, torne-se suficientemente esquecido para poder voltar a França com toda a tranqüilidade passados alguns anos, ou suficientemente temível nos exercícios acadêmicos para conquistar essa tranqüilidade. Não acha, Sr. de Château-Renaud, que tenho razão?
— É exatamente a minha opinião — respondeu o gentil-homem — Nada atrai mais os duelos sérios do que um duelo sem resultado.
— Obrigado, meus senhores — respondeu Albert, com um sorriso frio — Seguirei o seu conselho, não porque me deram, mas sim porque já tencionava deixar a França. Agradeço-lhes igualmente o favor que me prestaram servindo-me de testemunha. Tenho-o profundamente gravado no coração, de tal modo que, depois das palavras que acabo de ouvir, só me lembro dele.
Château-Renaud e Beauchamp entreolharam-se. Ambos tinham a mesma impressão, e o tom em que Morcerf proferira o seu agradecimento estava impregnado de tal resolução que a situação se tornaria muito embaraçosa para todos se a conversa continuasse.
— Adeus, Albert — despediu-se de súbito Beauchamp, estendendo negligentemente a mão ao jovem, sem que este parecesse sair da sua letargia.
Com efeito, não disse nada nem apertou a mão que lhe ofereciam.
— Adeus — disse por seu turno Château-Renaud, conservando na mão esquerda a sua bengalinha e cumprimentando com a direita.
Os lábios de Albert murmuraram apenas: “Adeus!”. Mas o seu olhar era mais explícito: encerrava todo um poema de cóleras contidas, de orgulhosos desdéns e de generosas indignações.
Depois das duas testemunhas subirem para a carruagem, ainda conservou durante algum tempo a sua atitude imóvel e melancólica. Por fim, soltou o cavalo da arvorezinha à volta da qual o criado atara as rédeas, saltou agilmente para a sela e retomou a galope o caminho de Paris. Um quarto de hora mais tarde entrava no palácio da Rua do Helder.
Ao descer do cavalo, pareceu-lhe ver, atrás da cortina do quarto do conde, o rosto pálido do pai. Albert virou a cabeça, com um suspiro, e entrou no seu pavilhão. Uma vez lá dentro, deitou um último olhar a todas aquelas riquezas que lhe tinham tornado a vida agradável e feliz desde a infância; olhou mais uma vez aqueles quadros, cujas figuras pareciam sorrir-lhe e cujas paisagens diriam animadas de cores brilhantes.
Depois, tirou da sua armação de carvalho o retrato da mãe, que enrolou, deixando vazia a moldura dourada que o rodeava. Em seguida pôs em ordem as suas belas armas turcas, as suas excelentes espingardas inglesas, as suas porcelanas japonesas, as suas taças engastadas, os seus bronzes artísticos, assinados por Feuchéres ou Barye, passou em revista os armários e colocou as chaves em cada um deles, atirou para dentro de uma gaveta da sua mesa, que deixou aberta, todo o dinheiro miúdo que tinha consigo, juntou-lhe as muitas jóias de fantasia que enchiam as suas taças, os seus estojos e as suas estantes, fez um inventário exato e minucioso de tudo e colocou-o no lugar mais visível de uma mesa, depois de a libertar dos livros e papéis que a cobriam.
No início deste trabalho o criado, apesar da ordem que Albert lhe dera para o deixar só, entrara no quarto.
— Que quer? — perguntou-lhe Albert, em tom mais triste do que irritado.
— Perdão, senhor — disse o criado de quarto — De fato o senhor proibiu-me de o incomodar, mas o Sr. Conde de Morcerf mandou chamar...
— E então? — perguntou Albert.
— Não quis ir aos aposentos do Sr. Conde sem ordem do senhor...
— Por quê?
— Porque o Sr. Conde sabe decerto que acompanhei o senhor ao local do duelo.
— É provável — admitiu Albert.
— E se me manda chamar é com certeza para me interrogar acerca do que se passou no bosque. Que devo responder?
— A verdade.
— Então direi que o duelo não se realizou?
— Dirá que apresentei desculpas ao Sr. Conde de Monte Cristo. Vai.
O criado inclinou-se e saiu. Albert dedicara-se então ao inventário.
Quando concluía este trabalho, chamou-lhe a atenção o ruído de cavalos no pátio e de rodas de uma carruagem que faziam estremecer os vidros. Aproximou-se da janela e viu o pai meter-se no seu coche e partir.
Mal o portão do palácio voltou a se fechar atrás do conde, Albert dirigiu-se para os aposentos da mãe e, como não houvesse ninguém para anunciá-lo, penetrou até ao quarto de cama de Mercedes, à porta do qual parou com o coração amargurado pelo que via e pelo que adivinhava.
Como se a mesma alma animasse aqueles dois corpos, Mercedes fazia nos seus aposentos o que Albert acabara de fazer nos seus. Estava tudo em ordem as rendas, os adereços, as jóias, as roupas e o dinheiro alinhavam-se nas gavetas. Nas quais a condessa punha cuidadosamente as chaves.
Albert viu todos aqueles preparativos; compreendeu-os e gritando “Minha mãe!” correu a lançar os braços ao pescoço de Mercedes.
O pintor que conseguisse captar a expressão daqueles dois rostos faria sem dúvida um belo quadro. Com efeito, todo aquele ambiente de uma resolução enérgica que não atemorizara Albert pelo que lhe dizia respeito, assustava-o pela mãe.
— Que está fazendo? — perguntou.
— E você? — respondeu ela.
— Oh, minha mãe, não pode seguir o meu exemplo! — gritou Albert, comovido a ponto de quase não poder falar — Não, a senhora não pode ter resolvido o que resolvi, pois venho comunicar-lhe que digo adeus à sua casa e... e a Si.
— Também eu, Albert — respondeu Mercedes — Também eu parto. Contara, confesso, que o meu filho me acompanhasse... enganei-me?
— Minha mãe — declarou Albert com firmeza — Não posso fazê-la compartilhar o futuro que me destino. Daqui em diante terei de viver sem nome e sem fortuna; terei, para começar a aprendizagem dessa dura existência, de pedir a um amigo o pão que comerei daqui até ao momento em que ganharei outro. Assim, minha boa mãe, vou daqui a casa de Franz lhe pedir que me empreste a pequena importância que calculei ser necessária.
— Você, meu pobre filho! — exclamou Mercedes — Você conhecer a miséria, passar fome?! Oh, não diga isso ou quebra todas as minhas resoluções!
— Mas não as minhas, minha mãe — respondeu Albert — Sou novo, sou forte e creio que sou corajoso, e desde ontem aprendi o que pode a vontade. Felizmente, minha mãe, ainda há pessoas que depois de tanto sofrerem não só não morreram como ainda ergueram nova fortuna sobre as ruínas de todas as promessas de felicidade que o céu lhes fizera, sobre os restos de todas as esperanças que Deus lhes dera! Aprendi isso, minha mãe, vi tais homens. E sei que do fundo do abismo onde os lançaram os seus inimigos se ergueram com tanto vigor e glória que dominaram o seu antigo vencedor e o derrubaram por seu turno. Não, minha mãe, não; rompi a partir de hoje com o passado e não aceito mais nada dele, nem mesmo o meu nome, porque compreende, minha mãe, não é verdade? O seu filho não pode usar o nome de um homem que deve corar diante dos outros homens!
— Albert, meu filho — disse Mercedes — Se tivesse um coração mais forte seria esse o conselho que te daria. A tua consciência falou quando a minha voz se calava; escuta a tua consciência, mas não desesperes, em nome da tua mãe! A vida ainda é bela na tua idade, meu caro Albert, pois tens apenas vinte e dois anos. E como a um coração tão puro como o teu é necessário um nome sem mácula, toma o do meu pai, que se chamava Herrera. Conheço-te, meu Albert; seja qual for a carreira que siga, se tornará dentro de pouco tempo esse nome ilustre. Então, meu amigo, reaparecerá na sociedade ainda mais brilhante do que antes das tuas passadas desventuras; e se assim não acontecer, apesar de todas as minhas previsões, deixa-me ao menos esta esperança, a mim que só terei um único pensamento, a mim que já não tenho futuro e para quem a sepultura começa no limiar desta casa.
— Farei o que deseja, minha mãe — prometeu o jovem — Sim, partilho a sua esperança: a cólera do céu não nos perseguir é a si tão pura e a mim tão inocente. Mas uma vez que estamos resolvidos, mãos à obra. O Sr. de Morcerf saiu do palácio há cerca de meia-hora. Como vê, a ocasião é favorável para evitar rumores e explicações.
— Fico à sua espera, meu filho — declarou Mercedes.
Albert correu imediatamente ao bulevar, de onde trouxe o fiacre que deveria levá-los para fora do palácio. Recordava-se de certa casinha mobiliada, na Rua dos Sains-Pêres, onde a mãe encontraria alojamento modesto, mas decente.
Foi buscar a condessa.
No momento em que o fiacre parou diante da porta e Albert se preparava para descer aproximou-se dele um homem, que lhe entregou uma carta. Albert reconheceu o intendente.
— Do Conde — disse Bertuccio.
Albert pegou a carta, abriu-a e a leu. Depois de ler procurou com os olhos Bertuccio, mas enquanto o jovem lia a carta, Bertuccio desaparecera.
Então Albert, com as lágrimas nos olhos e o peito cheio de emoção, reentrou nos aposentos de Mercedes e, sem pronunciar uma palavra, estendeu-lhe a carta.
Mercedes leu:

Albert,

Mostrando-lhe que adivinhei o projeto que se prepara para pôr em prática, creio mostrar-lhe também que compreendo a sua dificuldade. Está livre, deixa o palácio do conde e leva consigo a sua mãe, livre como o senhor. Mas, pense nisto, Albert: o senhor deve-lhe mais do que lhe pode pagar, pobre nobre coração que é. Guarde para si a luta, reclame para si o sofrimento, mas poupe-a da miséria inicial que acompanhar inevitavelmente os seus primeiros esforços. Porque ela não merece sequer a sombra da desgraça que hoje a atinge e a Providência não quer que o inocente pague pelo culpado.
Sei que ambos deixarão a casa da Rua do Helder sem levar nada. Como o soube, não procure descobrir. Sei-o e é quanto basta.
Ouça Albert, há vinte e quatro anos regressava muito contente e orgulhoso à minha pátria. Tinha uma noiva, Albert, uma santa moça que adorava, e trazia à minha noiva cento e cinqüenta luíses amealhados penosamente à custa de um trabalho sem descanso. Esse dinheiro era para ela, destinava-o, e sabendo como o mar é pérfido, enterrara o nosso tesouro no jardinzinho da casa que o meu pai habitava em Marselha, nas Alamedas de Meilhan.
A sua mãe, Albert, conhece bem essa pobre e querida casa.
Recentemente, ao regressar a Paris, passei por Marselha e fui ver essa casa de dolorosas recordações. E uma noite, de enxada na mão, sondei o canto onde enterrara o meu tesouro. A caixa de ferro estava ainda no mesmo lugar; ninguém lhe tocara; está no canto que uma bonita figueira, plantada por meu pai no dia do meu nascimento, cobre com a sua sombra.
Pois bem, Albert, esse dinheiro que outrora se destinava a ajudar na vida e a proporcionar tranqüilidade à mulher que adorava, encontrou hoje, por um acaso estranho e doloroso, o mesmo emprego.
Oh, compreenda bem o meu pensamento!
Eu, que podia oferecer milhões a essa pobre mulher, dou-lhe apenas o naco de pão escuro esquecido debaixo do meu pobre teto desde o dia em que me separei daquela que amava.
O senhor é um homem generoso, Albert; mas talvez esteja ainda cego pelo orgulho ou pelo ressentimento. Se recusar, se pedir a outro o que tenho o direito de lhe oferecer, direi que é pouco generoso da sua parte recusar a vida da sua mãe oferecida por um homem a quem o seu pai fez morrer o pai nos horrores da fome e do desespero.

Terminada a leitura, Albert permaneceu, pálido e imóvel, à espera do que decidisse a mãe. Mercedes ergueu ao céu um olhar de expressão inefável.
— Aceito — disse — Tem o direito de pagar o dote que levarei para um convento!
E metendo a carta no seio, tomou o braço do filho e, com passo mais firme do que talvez ela própria esperasse, dirigiu-se para a escada.




continua...





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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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