segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 90



XC

O DUELO




D
epois da partida de Mercedes, tudo voltou a cair na sombra em casa de Monte Cristo. À volta dele e dentro dele, o seu pensamento deteve-se: o seu espírito enérgico adormeceu, como acontece com o corpo depois de uma grande fadiga.
— Pronto — dizia para consigo enquanto o candeeiro e as velas se consumiam tristemente e os criados esperavam com impaciência na antecâmara — Pronto, aí está o edifício tão lentamente preparado e erguido com tantas dificuldades e preocupações, deitado abaixo de um só golpe, com uma só palavra, com um só sopro! E esse eu que julgava valer alguma coisa, esse eu de que estava tão orgulhoso, esse eu que vira tão pequeno nas celas do Castelo d’If e soubera tornar tão grande, será amanhã um pouco de pó! Não é a morte do corpo que lamento: essa distração do princípio vital não é o repouso para que tudo tende, a que todo o desventurado aspira, essa calma da matéria pela qual ansiei tanto tempo e ao encontro da qual ia pelo caminho doloroso da fome quando Faria apareceu na minha cela? Que é a morte? Um degrau mais na calma e talvez dois no silêncio. Não, não é a existência que lamento, é a ruína dos meus projetos tão lentamente elaborados e tão laboriosamente edificados. A Providência, que julgara ser por eles, era, portanto contra eles. Deus não queria que se realizassem!
“O fardo que carreguei, quase tão pesado como um mundo e que julgara poder transportar até ao fim, estava de acordo com o um desejo e não com a minha força; estava de acordo com a minha vontade e não com o meu poder, e tive de o pousar a meio da corrida. Oh, voltei a ser fatalista, eu, a quem catorze anos de desespero e dez de esperança tinham tornado providencial! E tudo isso, meu Deus, porque o meu coração, que julgava morto, só estava adormecido; porque ele acordou, porque ele bateu, porque cedi à dor desse pulsar arrancado do fundo do meu peito pela voz de uma mulher. E no entanto — continuou o Conde, abismando-se cada vez mais nas previsões do amanhã terrível que Mercedes aceitara — E no entanto é impossível que aquela mulher, que é um coração tão nobre, tenha consentido assim por egoísmo, em me deixar matar, eu, cheio de energia e de vida! É impossível que leve a tal ponto o amor ou, antes, o delírio maternal! Há virtudes cujo exagero seria um crime. Não, ter imaginado alguma cena patética e ir lançar-se entre as espadas, o que será ridículo no terreno, embora fosse sublime aqui.
E o rubor do orgulho subia à fronte do Conde.
— Ridículo — repetiu — E o ridículo recairá sobre mim... eu, ridículo! Vamos, prefiro morrer!
E à força de exagerar assim antecipadamente as desventuras do dia seguinte às quais se condenara prometendo a Mercedes deixar-lhe viver o filho, o Conde acabou por dizer:
— Tolice, tolice, tolice! Que raio de generosidade, colocar-me como um alvo inerte na mira da pistola desse rapaz! Ele nunca acreditará que a minha morte é um suicídio, e, no entanto isso interessa à honra da minha memória... não se trata de vaidade, pois não, meu Deus? Trata-se, sim, de um justo orgulho e mais nada. Interessa à honra da minha memória que o mundo saiba que eu próprio consenti, por minha vontade, de meu livre arbítrio, em deter o meu braço já erguido para ferir, e que com esse braço, tão poderosamente armado contra os outros, me feri a mim mesmo. Isso é necessário e o farei.
E pegando numa pena tirou um papel da estante secreta da sua escrivaninha e escreveu no fundo desse papel, que não era outra coisa senão o seu testamento, feito depois da sua chegada a Paris, uma espécie de codicilo em que explicava a sua morte às pessoas menos perspicazes.
— Faço isto, meu Deus — disse com os olhos erguidos ao céu — Tanto para vossa honra como para minha. Há dez anos que me considero, ó meu Deus, o enviado da vossa vingança, e não quero que outros miseráveis como o Morcerf, não quero que um Danglars, um Villefort, e enfim que o próprio Morcerf imaginem que o acaso os desembaraçou do seu inimigo. Quero que saibam, pelo contrário, que a Providência, que já decretara a sua punição, foi corrigida unicamente pelo poder da minha vontade; que o castigo evitado neste mundo os espera no outro e que só trocaram o tempo pela eternidade.
Enquanto se debatia entre estas sombrias incertezas, sonhos maus do homem despertado pela dor, o dia veio clarear os vidros e iluminar sob as suas mãos o desbotado papel azul em que acabava de escrever a suprema justificação da Providência.
Eram cinco horas da manhã.
De súbito, um ligeiro ruído chegou-lhe aos ouvidos. Monte Cristo julgou ter ouvido qualquer coisa como um suspiro abafado. Virou a cabeça, olhou à sua volta e não viu ninguém. Apenas o ruído se repetiu com suficiente nitidez para que à dúvida sucedesse a certeza.
Então o Conde levantou-se, abriu suavemente a porta da sala e viu numa poltrona, com os braços pendentes e o belo rosto pálido inclinado para trás, a jovem Haydée, que se colocara atravessada na porta para que ele não pudesse sair sem a ver, mas a quem o sono, tão poderoso contra a juventude, surpreendera depois da fadiga de tão longa vigília.
O ruído que a porta fez ao abrir-se não despertou Haydée. Monte Cristo olhou-a com um olhar cheio de ternura e remorso.
— Ela lembrou-se que tinha um filho — disse — E eu esqueci-me que tinha uma filha!
Depois, abanando tristemente a cabeça:
— Pobre Haydée! Quis-me ver, quis-me falar, teve medo ou adivinhou qualquer coisa... oh, não posso partir sem lhe dizer adeus, não posso morrer sem a confiar a alguém!
E voltou devagarinho para o seu lugar e escreveu por baixo das primeiras linhas:

Lego a Maximilien Morrel, capitão de sipaios e filho do meu antigo patrão Pierre Morrel, armador em Marselha, a quantia de vinte milhões de francos, parte da qual deverá oferecera sua irmã Julie e a seu cunhado Emmanuel se não achar este acréscimo de fortuna prejudicial à sua felicidade. Estes vinte milhões estão escondidos numa gruta de Monte Cristo de que Bertuccio conhece o segredo.
Se o seu coração estiver livre e ele quiser casar com Haydée filha de Ali Pax de Janina que criei com o amor de um pai e que tem por mim a ternura de uma filha, cumprirá não direi a minha última vontade, mas o meu último desejo.
O presente testamento institui já Haydée herdeira do remanescente da minha fortuna que consiste em terras arrendadas na Inglaterra, na Áustria e na Holanda e em mobiliário nas minhas diversas casas e palácios e que estes vinte milhões, bem como os diversos legados feitos aos meus servidores, poderão elevar ainda a sessenta milhões.

Acabava de escrever estas últimas linhas quando um grito soltado atrás dele lhe fez cair a pena da mão.
— Haydée! — exclamou — Leu?...
Com efeito, a jovem acordada pela luz do dia que lhe ferira as pálpebras, levantara-se e aproximara-se do Conde sem que os seus passos leves, abafados pelo tapete, fossem ouvidos.
— Oh, meu senhor, porque escreve assim a estas horas? — perguntou, juntando as mãos — Porque me lega toda a sua fortuna, meu senhor? Vai-me deixar?
— Vou fazer uma viagem, querido anjo — respondeu Monte Cristo com uma expressão de melancolia e ternura infinitas — E se me acontecer alguma coisa...
O Conde deteve-se.
— E então?... — perguntou a jovem num tom autoritário que o Conde lhe não conhecia e que o fez estremecer.
— E então... se me acontecer alguma coisa — repetiu o Conde — Quero que a minha filha seja feliz.
Haydée sorriu tristemente e abanou a cabeça.
— Pensa em morrer, meu senhor? — inquiriu.
— É um pensamento salutar, minha filha, ditado pela prudência.
— Pois bem, se morrer, legue a sua fortuna a outros, porque se morrer... não precisarei de mais nada.
E pegando no papel, rasgou-o em quatro partes, que atirou para o meio da sala. Depois, como se esta energia tão pouco habitual numa escrava lhe tivesse esgotado as forças, caiu, não já adormecida desta vez, mas sim desmaiada no parque.
Monte Cristo inclinou-se para ela e levantou-a nos braços; e ao ver aquele belo rosto pálido, aqueles belos olhos fechados e aquele belo corpo inanimado e como que abandonado, ocorreu-lhe pela primeira vez a idéia de que ela talvez o amasse de forma diferente daquela como uma filha ama o pai.
— Infelizmente — murmurou com profundo desanimo — Tudo me é negado... e ainda poderia ser feliz!
Depois, levou Haydée para os seus aposentos e entregou-a, sempre desmaiada, aos cuidados das suas criadas.
E regressando ao seu gabinete, que desta vez fechou cuidadosamente, re-copiou o testamento destruído. Quando acabava, ouviu-se o ruído de um cabriole que entrava no pátio. Monte Cristo aproximou-se da janela e viu descer Maximilien e Emmanuel.
— Bom — disse para consigo — Era tempo!
E lacrou o testamento em três sítios.
Um instante depois ouviu ruído de passos na sala e foi ele próprio abrir a porta. Morrel apareceu no limiar. Chegara mais cedo cerca de vinte minutos.
— Talvez tenha vindo demasiado cedo, Sr. Conde, mas confesso-lhe francamente que não consegui dormir um minuto e que o mesmo aconteceu a todos em casa. Necessitava de o ver firme na sua corajosa decisão para eu próprio ganhar coragem.
Monte Cristo não pôde ficar indiferente a esta prova de afeição, e não foi a mão que estendeu ao jovem, mas sim os dois braços que lhe abriu.
— Morrel — disse-lhe com voz emocionada — É um belo dia para mim este em que me sinto estimado por um homem como o senhor. Bom dia, Sr. Emmanuel. Acompanham-me, portanto?...
— Meu Deus, duvidou disso?! — protestou o jovem capitão.
— Mas se eu não tivesse razão...
— Escute: observei-o ontem durante a cena da provocação, pensei na sua firmeza toda esta noite e disse para comigo que a justiça devia estar do seu lado ou então já não havia que fiar na expressão dos homens.
— Contudo, Morrel, Albert é seu amigo...
— Um simples conhecimento, Conde.
— Não o viu pela primeira vez no mesmo dia em que me viu a mim?
— Vi, sim, é verdade. Mas que quer, e necessário que me lembre para que eu o recorde.
— Obrigado, Morrel.
Em seguida tocou uma vez a campainha e disse a Ali, que apareceu imediatamente:
— Toma, manda entregar isto ao meu tabelião. É o meu testamento, Morrel. Se eu morrer, tomará conhecimento dele.
— Como? Se morrer?... — estranhou Morrel.
— Devemos prever tudo, caro amigo. Mas que fez ontem depois de me deixar?
— Fui ao Tortoni, onde, como esperava, encontrei Beauchamp e Château-Renaud. Confesso-lhe que os procurava.
— Para quê, se estava tudo combinado?
— Escute, Conde, o caso é grave, inevitável...
— Duvida disso?
— Não. A ofensa foi pública e já todos falavam dela.
— E depois?...
— Depois... esperava conseguir a troca das armas, substituir a pistola pela espada. A pistola é cega...
— E conseguiu-o? — perguntou vivamente Monte Cristo, com um imperceptível clarão de esperança.
— Não, porque conhecem a sua força à espada.
— Oh! Quem me atraiçoou?
— Os mestres-de-armas que venceu.
— Portanto, falhou?
— Recusaram terminantemente.
— Morrel, já alguma vez me viu atirar à pistola?
— Nunca.
— Bom, ainda temos tempo. Veja...
Monte Cristo pegou nas pistolas que empunhava quando Mercedes entrara, colou um ás de paus na placa metálica, e em quatro tiros acertou sucessivamente nas quatro extremidades da figura. A cada tiro, Morrel empalidecia. Examinou as balas com que Monte Cristo executava semelhante proeza e verificou que não eram maiores do que chumbo grosso.
— É de arrepiar! — exclamou — Veja, Emmanuel.
Depois, virando-se para Monte Cristo:
— Conde, em nome do céu não mate Albert! O pobre rapaz tem uma mãe!
— É justo, e eu não a tenho — perguntou Monte Cristo.
Estas palavras foram proferidas num tom que fez estremecer Morrel.
— O senhor é o ofendido, Conde.
— Sem dúvida. Que significa isso?
— Significa que será o primeiro a atirar.
— Sou o primeiro a atirar?
— Oh, pelo menos obtive isso, ou antes, exigi-o! Fizemos-lhe bastantes concessões para que não nos fizessem essa.
— E a quantos passos?
— A vinte.
Um sorriso assustador passou pelos lábios do Conde.
— Morrel, não se esqueça do que acaba de ver.
— Por isso — confessou o rapaz — Conto apenas com a sua emoção para salvar Albert.
— Eu, emocionado? — perguntou Monte Cristo.
— Ou com a sua generosidade, meu amigo. Certo da sua pontaria como está, posso dizer-lhe uma coisa que seria ridícula se a dissesse a outro.
— O quê?
— Parta-lhe um braço, fira-o, mas não o mate.
— Morrel, escute também isto: não necessito de ser encorajado a poupar o Sr. de Morcerf. O Sr. de Morcerf, anuncio-lho antecipadamente, será tão bem poupado que regressará tranquilamente com os seus dois amigos, ao passo que eu...
— Ao passo que o senhor?...
— Oh, comigo acontecerá o contrário! Terão de me trazer...
— Porquê, diga! — gritou Morrel, fora de si.
— É como lhe digo, meu caro Morrel, o Sr. de Morcerf me matará.
Morrel olhou o Conde como quem já não percebe nada.
— Que lhe aconteceu desde ontem à noite, Conde?
— O que aconteceu a Bruto na véspera da batalha de Filipos: vi um fantasma.
— E esse fantasma?...
— Esse fantasma, Morrel, disse-me que já vivera o suficiente.
Maximilien e Emmanuel entreolharam-se.
Monte Cristo puxou do relógio.
— Vamos. São sete e cinco e o encontro está marcada para as oito horas exatas.
Esperava-os uma carruagem atrelada.
Monte Cristo subiu para ela com as suas duas testemunhas. Ao atravessarem o corredor, Monte Cristo detivera-se a escutar diante de uma porta, e Maximilien e Emmanuel, que por discrição, tinham dado alguns passos em frente, julgaram ouvir responder a um soluço com um suspiro.
Ao bater das oito chegaram ao local do duelo.
— Aqui estamos — disse Morrel, deitando a cabeça fora da portinhola — E somos os primeiros.
— Desculpe, senhor — interveio Baptistin, que acompanhara o amo com um terror indizível — Mas creio ver lá adiante uma carruagem debaixo das árvores.
— De fato — disse Emmanuel — Vejo dois rapazes que passeiam e parecem esperar.
Monte Cristo saltou agilmente do coche e deu a mão a Emmanuel e Maximilien para os ajudar a descer. Maximilien reteve a mão do Conde nas suas.
— Aqui está uma mão como gosto de ver num homem cuja vida assenta na bondade da sua causa...
Monte Cristo puxou Morrel, não à parte, mas um passo ou dois atrás do cunhado.
— Maximilien, tem o coração livre? — perguntou-lhe.
Morrel olhou Monte Cristo com surpresa.
— Não lhe peço uma confidência, caro amigo, faço-lhe uma simples pergunta. Responda sim ou não, é tudo o que desejo.
— Amo uma jovem, Conde.
— E ama-a muito?
— Mais do que a vida.
— Bom, mais uma esperança que me foge... — declarou Monte Cristo.
Depois, com um suspiro:
— Pobre Haydée! — murmurou.
— Na verdade, Conde, se o conhecesse pior, o julgaria menos corajoso do que é! — observou Morrel.
— Porque penso em alguém que vou deixar e suspiro? Então, Morrel, acha próprio de um soldado conhecer tão mal a coragem? Julga que tenho medo de perder a vida? Que importância tem isso para mim, que passei vinte anos entre a vida e a morte? Aliás, esteja tranqüilo, Morrel: esta fraqueza, se porventura o é, é apenas manifestada diante de si. Sei que o mundo é um salão onde é preciso sair delicada e respeitávelmente, isto é, depois de nos despedirmos e pagarmos as nossas dívidas de jogo.
— Sempre tem cada uma! — comentou Morrel — A propósito, trouxe as suas armas?
— Eu? Para quê? Espero que esses senhores tenham trazido as deles.
— Vou me informar — disse Morrel.
— Está bem, mas nada de negociações, ouviu?
— Oh, esteja tranqüilo!
Morrel dirigiu-se para Beauchamp e Château-Renaud. Estes, ao verem aproximar-se Maximilien, deram alguns passos ao seu encontro. Os três jovens cumprimentaram-se, se não com afabilidade, pelo menos com cortesia.
— Perdão, meus senhores, mas não vejo o Sr. de Morcerf — observou Morrel.
— Mandou-nos avisar esta manhã de que se nos juntaria apenas aqui — respondeu Château-Renaud.
— Ah! — exclamou Morrel.
Beauchamp puxou do relógio.
— Oito e cinco; o atraso não é grande, Sr. Morrel — disse.
— Oh, não foi com essa intenção que falei! — respondeu Maximilien.
— De resto — interveio Château-Renaud — Vem aí uma carruagem.
Com efeito, uma carruagem avançava a galope por uma das avenidas que desembocavam no cruzamento onde se encontravam.
— Suponho, meus senhores — disse Morrel — Que vieram munidos de pistolas. O Sr. Conde de Monte Cristo declara renunciar ao direito de se servir das suas.
— Previmos essa delicadeza da parte do Conde, Sr. Morrel — respondeu Beauchamp — E trouxe armas que comprei há oito ou dez dias julgando que me seriam necessárias num caso idêntico. Estão absolutamente novas e ninguém se serviu ainda delas. Quer vê-las?
— Sr. Beauchamp — perguntou Morrel, inclinando-se — Uma vez que me garante que o Sr. de Morcerf não conhece essas armas, não acha que a sua palavra me basta?
— Meus senhores — disse Château-Renaud — Não é Morcerf que vem naquela carruagem, são, se não me engano,... Franz e Debray.
Com efeito, os dois jovens anunciados aproximavam-se.
— Por aqui, meus senhores? — estranhou Château-Renaud, trocando com cada um o seu aperto de mão — Por que acaso...
— Estamos aqui — atalhou Debray — Porque Albert nos mandou pedir esta manhã que viéssemos.
Beauchamp e Château-Renaud entreolharam-se atônitos.
— Meus senhores, creio compreender — interveio Morrel.
— Sim?...
— Ontem à tarde recebi uma carta do Sr. de Morcerf pedindo-me que fosse à Ópera.
— E eu também — disse Debray.
— E eu — secundou-o Franz.
— E nós também — disseram Château-Renaud e Beauchamp.
— Queria que estivessem presentes quando da provocação — disse Morrel — E quer que assistam ao duelo.
— Sim, deve ser isso, Sr. Maximilien — admitiram os jovens — É muito provável que tenha acertado.
— Mas o caso é que Albert não aparece — murmurou Château-Renaud — Já está atrasado dez minutos.
— Ele aí está! — anunciou Beauchamp — E a cavalo... vejam, vem a galope seguido do criado.
— Que imprudência vir a cavalo para se bater à pistola! — exclamou Château-Renaud — E eu que lhe ensinei tão bem a lição!...
— Além disso, veja — acrescentou Beauchamp — Colarinho e gravata, sobrecasaca aberta, colete branco... porque não desenhou também um alvo no estômago? Seria mais simples e acabaria tudo mais depressa!
Entretanto, Albert chegara a dez passos do grupo formado pelos cinco jovens. Deteve o cavalo, desmontou e atirou a rédea para o braço do criado. Aproximou-se.
Estava pálido e tinha os olhos vermelhos e inchados. Via-se que não dormira um segundo toda a noite. Cobria-lhe a fisionomia um matiz de gravidade triste, que lhe não era habitual.
— Obrigado, meus senhores, por se terem dignado aceitar o meu convite — disse — Creiam que lhos não posso estar mais reconhecido por essa prova de amizade.
Quando Morcerf se aproximara, Morrel dera uma dezena de passos atrás e encontrava-se afastado.
— Os meus agradecimentos são também extensivos a si, Sr. Morrel — declarou Albert — Aproxime-se, pois, que não está a mais.
— Senhor — respondeu Maximilien — Talvez ignore que sou testemunha do Sr. de Monte Cristo...
— Não tinha a certeza, mas já calculava. Tanto melhor, quantos mais homens de honra houver aqui mais satisfeito me sentirei.
— Sr. Morrel — disse Château-Renaud — Pode anunciar ao Sr. Conde de Monte Cristo que o Sr. de Morcerf já chegou e que estamos à sua disposição.
Morrel fez um gesto para ir desempenhar da sua missão. Ao mesmo tempo, Beauchamp tirava a caixa das pistolas da carruagem.
— Esperem, meus senhores — atalhou Albert — Tenho duas palavras a dizer ao Sr. Conde de Monte Cristo.
— Em particular? — perguntou Morrel.
— Não, senhor, diante de todos.
As testemunhas de Albert entreolharam-se deveras surpreendidas. Franz e Debray trocaram algumas palavras em baixa e Morrel, satisfeito com aquele incidente inesperado, foi ter com o Conde, que passeava numa alameda lateral com Emmanuel.
— Que me quer ele? — perguntou Monte Cristo.
— Ignoro, mas pede para falar consigo.
— Oh, que não tente Deus com qualquer novo ultraje! — exclamou Monte Cristo.
— Não creio que seja essa a sua intenção — tranqüilizou-o Morrel.
O Conde aproximou-se acompanhado de Maximilien e Emmanuel. O seu rosto calmo e cheio de serenidade contrastava estranhamente com o rosto transtornado de Albert, que também se aproximava seguido dos quatro jovens. A três passos um do outro, Albert e o Conde pararam.
— Meus senhores, aproximem-se — disse Albert — Desejo que nem uma palavra do que vou ter a honra de dizer ao Sr. Conde de Monte Cristo se perca. Porque o que vou ter a honra de lhe dizer deverá ser repetido pelos senhores a quem entenderem, por mais estranho que o meu discurso lhes pareça.
— Estou à espera, senhor — atalhou o Conde.
— Senhor — disse Albert, primeiro numa voz trêmula, mas depois cada vez mais firme — Senhor, censurava-o por ter divulgado a conduta do Sr. de Morcerf no Epiro; porque por mais culpado que fosse o Sr. Conde de Morcerf; não me parecia que o senhor tivesse o direito de o punir. Mas hoje, senhor, sei que esse direito lhe pertence. Não é de forma alguma a traição de Fernand Mondego para com Ali-Paxá que me leva a desculpá-lo tão prontamente, Sr. de Monte Cristo, é a traição do pescador Fernand para consigo, são as desventuras inauditas que se seguiram a essa traição. Por isso lhe digo, por isso o proclamo em voz alta: sim, senhor, tinha razão em vingar-se do meu pai, e eu, seu filho, agradeço-lhe não ter feito pior!
Se tivesse caído um raio no meio dos espectadores desta cena inesperada não os teria surpreendido mais do que a declaração de Albert. Quanto a Monte Cristo, os seus olhos tinham-se lentamente erguido para o céu com uma expressão de infinito reconhecimento, e não conseguia manifestar suficientemente a sua admiração pela forma como a natureza fogosa de Albert, cuja coragem conhecera no meio dos bandidos romanos, se submetera tão de pressa àquela humilhação. Reconheceu nisso a influência de Mercedes e compreendeu por que motivo aquele nobre coração se não opusera ao sacrifício que sabia antecipadamente não se realizar.
— Agora, senhor — disse Albert — Se considera suficientes as desculpas que acabo de lhe apresentar, dê-me a sua mão, por favor. Depois do mérito tão raro da infalibilidade, que parece ser o seu, o primeiro de todos os méritos, na minha opinião, é saber reconhecer a nossa sem-razão. Mas este reconhecimento só a mim diz respeito. Eu procedia bem segundo os homens, mas o senhor procedia bem segundo Deus. Só um anjo podia salvar um de nós da morte, e esse anjo desceu do céu, se não para nos tornar amigos, pois a fatalidade não o permite, pelo menos para nos tornar dois homens que se estimam.
Com os olhos úmidos, o peito arquejante e a boca entreaberta, Monte Cristo estendeu a Albert uma mão, que este agarrou e apertou com um sentimento que se assemelhava a misterioso terror.
— Meus senhores — prosseguiu Albert — O Sr. de Monte Cristo digna-se aceitar as minhas desculpas. Procedi precipitadamente para com ele e a precipitação é má conselheira: procedi mal. Agora, a minha falta está reparada. Espero que a sociedade me não considere covarde por ter feito o que a minha consciência me mandou fazer. Mas, em todo o caso, se alguém se enganasse a meu respeito — acrescentou o jovem, erguendo orgulhosamente a cabeça e como se dirigisse um desafio aos seus amigos e aos seus inimigos — Procuraria corrigir as opiniões.
— Que se passou esta noite? — perguntou Beauchamp a Château-Renaud — Parece-me que estamos a fazer aqui uma triste figura.
— Com efeito, o que Albert acaba de fazer ou é muito miserável ou é muito belo — respondeu o barão.
— Mas que quer dizer isto? — perguntou Debray a Franz — Como, o Conde de Monte Cristo desonra o Sr. de Morcerf e teve razão aos olhos do filho deste?! Pois se tivessem havido dez Janina na minha família, só me consideraria obrigado a uma coisa: bater-me dez vezes.
Quanto a Monte Cristo, com a cabeça inclinada e os braços pendentes, esmagado pelo peso de vinte e quatro anos de recordações, não pensava nem em Albert, nem em Beauchamp, nem em Château-Renaud, nem em nenhuma das pessoas que se encontravam ali. Pensava na corajosa mulher que lhe viera pedir a vida do filho, a quem oferecera a sua e que acabava de lhe salvar por meio da confissão de um terrível segredo de família, capaz de matar para sempre em Albert o sentimento da piedade filial.
— Sempre a Providência! — murmurou — Ah, só hoje tenho realmente a certeza de ser um enviado de Deus!



 continua...






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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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