domingo, 2 de outubro de 2011

O Senhor dos Anéis - As Duas Torres - Capítulo 9


— Capítulo IX —
Escombros E Destroços




GANDALF E A COMITIVA DO REI SE AFASTARAM, rumando ao Leste para contornar as paredes arruinadas de Isengard. Mas Aragorn, Gimli e Legolas ficaram para trás. Deixando Arod e Hasufel soltos pastando, foram sentar-se ao lado dos hobbits.
— Muito bem! Muito bem! A caçada terminou e finalmente nos encontramos outra vez, num lugar que nenhum de nós jamais pensou visitar — disse Aragorn.
— E agora que os grandes foram discutir questões importantes — disse Legolas — Os caçadores talvez possam descobrir as respostas para seus próprios pequenos enigmas. Seguimos suas pegadas até a floresta, mas há ainda muitas coisas sobre as quais eu gostaria de saber a verdade.
— E há muita coisa, também, que queremos saber sobre vocês — disse Merry — Soubemos algumas coisas por intermédio de Barbárvore, o Velho Ent, mas isso não é o suficiente.
— Tudo a seu tempo — disse Legolas — Nós fomos os caçadores, e vocês devem nos fazer um relato de suas aventuras em primeiro lugar.
— Ou em segundo — disse Gimli — O relato cairia melhor depois de uma refeição. Estou com a cabeça inchada, e já passa do meio-dia. Vocês, os vadios, podem consertar a situação conseguindo-nos um pouco das coisas que vocês disseram que saquearam. Comida e bebida poderiam compensar um pouco de sua dívida para comigo.
— Então você será servido — disse Pippin — Vai comer aqui, ou com mais conforto no que resta da casa de guarda de Saruman, ali adiante, sob o arco? Fizemos nosso piquenique aqui, para ficarmos com um olho na estrada.
— Menos que um olho! — disse Gimli — Mas eu não vou entrar em nenhuma casa de orc, nem tocar na carne que comem ou em qualquer coisa que eles tenham maltratado.
— Nós não pediríamos que fizesse isso — disse Merry — Nós mesmos já estamos cheios de orcs para o resto da vida. Mas havia muitas outras pessoas em Isengard. Saruman foi sábio o suficiente para não confiar em seus orcs. Tinha homens para guardar seus portões: alguns de seus servidores mais fiéis, eu suponho. De qualquer forma eles tinham privilégios e boas provisões.
— E erva-de-fumo? — perguntou Gimli.
— Não, acho que não — disse Merry rindo — Mas essa é outra história, que pode esperar até depois do almoço.
— Então vamos almoçar! — disse o anão.
Os hobbits foram na frente, passaram pelo arco e chegaram a uma porta larga à esquerda, no topo de uma escada, que se abria diretamente para um grande cômodo, com outras portas menores na extremidade oposta, e num canto uma lareira com chaminé. O cômodo fora cortado na rocha, e devia ter sido escuro outrora, pois suas janelas só se abriam para dentro do túnel. Mas a luz agora entrava pelo teto quebrado. Na lareira havia lenha queimando.
— Acendi uma pequena fogueira — disse Pippin — O fogo nos alegrou em meio à neblina. Havia poucos feixes, e o pouco de lenha que conseguimos encontrar estava molhada. Mas na chaminé há uma grande corrente de ar: parece que ela sobe pela rocha, e felizmente não foi bloqueada. Uma fogueira é útil. Vou preparar umas torradas. Receio que o pão seja de três ou quatro dias atrás.
Aragorn e seus companheiros sentaram-se em uma das pontas de uma longa mesa, e os hobbits desapareceram através de uma das portas internas.
— Há uma despensa ali dentro, e fora do alcance das enchentes, por sorte — disse Pippin, conforme eles voltaram carregados de pratos, tigelas, taças, facas e comida de variados tipos.
— E você não precisa torcer o nariz para as provisões, Mestre Gimli — disse Merry — Não é coisa de orc, mas comida humana, como diz Barbárvore. Vão querer vinho ou cerveja? Há um barril lá dentro, bem razoável. E isto aqui é carne de porco salgada da melhor qualidade. Ou então posso cortar algumas fatias de toicinho defumado e grelhá-las, se quiserem. Lamento que não haja nenhuma verdura. As entregas foram interrompidas nos últimos dias! Não posso lhes oferecer nenhuma outra coisa como acompanhamento a não ser manteiga e mel para os pães. Estão satisfeitos?
— Muito satisfeitos — disse Gimli — A dívida está bem reduzida.
Os três logo ficaram bem ocupados com a refeição, os dois hobbits, sem qualquer embaraço, resolveram comer outra vez.
— Precisamos fazer companhia aos nossos convidados — disseram eles.
— Estão cheios de cortesias esta manhã — disse rindo Legolas — Mas talvez, se não tivéssemos chegado, vocês estivessem comendo para fazer companhia um ao outro de novo.
— Talvez, e por que não? — disse Pippin — Passamos muito mal com os orcs, e comemos muito pouco por vários dias antes disso. Parece que faz muito tempo que não conseguimos comer a contento.
— Parece que isso não lhes fez mal algum — disse Aragorn — Na verdade, estão com uma aparência extremamente saudável.
— É sim — disse Gimli, olhando-os de cima a baixo por sobre a borda de sua taça — Veja só, seus cabelos estão duas vezes mais grossos e encaracolados do que quando nos separamos, eu poderia jurar que vocês dois cresceram, se isso fosse possível para hobbits da sua idade. Pelo menos esse Barbárvore não os deixou passar fome.
— Não deixou mesmo — disse Merry — Mas os ents só bebem, e bebida não é o suficiente para nos satisfazermos. As bebidas de Barbárvore podem ser nutritivas, mas a gente sente a necessidade de alguma coisa sólida. Até mesmo lembas não seria nada mal para variar.
— Vocês beberam as águas dos ents, é? — disse Legolas — Então acho provável que os olhos de Gimli não estejam enganados. Muitas canções estranhas foram cantadas sobre as bebidas de Fangorn.
— Já me contaram muitas histórias esquisitas sobre aquela terra — disse Aragorn — Nunca entrei ali. Vamos, contem-me alguma coisa sobre ela e sobre os ents!
— Os ents — disse Pippin — Os ents são... bem, os ents são completamente diferentes, para começo de conversa. Mas os olhos, os olhos são muito esquisitos — ele tentou algumas palavras desajeitadas que foram acabando em silêncio — Oh, bem — continuou ele — Vocês já viram alguns de longe... eles os viram, de qualquer forma, e disseram que vocês estavam a caminho... e verão muitos outros, eu espero, antes que deixemos este lugar. Vocês devem tirar suas próprias conclusões.
— Calma! Calma — disse Gimli — Estamos começando a história pelo meio. Gostaria de uma narrativa na ordem correta, começando pelo dia estranho em que nossa sociedade foi rompida.
— Você vai ouvi-la, se houver tempo — disse Merry — Mas primeiro se já terminaram de comer, vocês devem encher seus cachimbos e acendê-los. E então, por um tempo, podemos fingir que estamos a salvo outra vez em Bri, ou em Valfenda.
Pegou uma pequena bolsa de couro cheia de tabaco.
— Temos um monte — disse ele — Vocês podem levar o quanto quiserem, quando partirmos. Fizemos um bom trabalho de salvamento esta manhã, Pippin e eu. Há um monte de coisas flutuando por aí. Foi Pippin quem achou dois pequenos barris, que as águas carregaram de alguma despensa, julgo eu. Quando os abrimos, descobrimos que estavam cheios disto: uma erva-de-fumo tão boa que melhor não se poderia desejar, em ótimo estado.
Gimli pegou um pouco, esfregou-a contra a palma das mãos e cheirou.
— Parece boa, e o cheiro também é ótimo — disse ele.
— E é boa! — disse Merry — Meu caro Gimli, isso é Folha do Vale Comprido! Nos barris havia a marca registrada dos Corneteiros, para quem quisesse ver. Como chegou até aqui eu não posso imaginar. Talvez para uso particular de Saruman. Nunca soube que a folha chegasse até tão longe. Mas agora vem bem a calhar.
— Viria — disse Gimli — Se eu tivesse um cachimbo adequado. Infelizmente perdi o meu em Moria, ou antes. Não há nenhum cachimbo no meio de todas as coisas que vocês saquearam?
— Não, receio que não. Não encontrei nenhum, nem mesmo aqui nas salas de guarda. Saruman guardou esse regalo para si mesmo, ao que parece. E acho que não adiantaria nada bater às portas de Orthanc e pedir-lhe um cachimbo! Vamos ter de compartilhar os cachimbos, como os amigos fazem quando a necessidade aperta.
— Espere um segundo! — disse Pippin. Colocando a mão dentro de seu casaco, retirou uma pequena bolsa macia pendurada num cordão — Guardo um ou dois tesouros junto ao corpo, que são para mim preciosos como Anéis. Aqui está um deles: meu velho cachimbo de madeira. E aqui está outro: que nunca foi usado. Venho carregando-o comigo há muito tempo, embora não saiba por quê. Na verdade nunca esperei encontrar nenhuma erva-de-fumo na viagem, quando o meu suprimento acabasse. Mas agora acabou sendo útil, afinal de contas — ergueu um pequeno cachimbo com um fornilho largo e achatado, entregando-o a Gimli — Isso anula a dívida entre nós? — perguntou ele.
— Sem dúvida — exclamou Gimli — Meu nobre hobbit, isso me deixa profundamente endividado para com você.
— Bem, vou voltar ao ar livre, para ver o que o vento e o céu estão fazendo! — disse Legolas.
— Vamos com você — disse Aragorn.
Saíram e se sentaram sobre as pedras empilhadas à frente do portão. Agora conseguiam enxergar o vale lá embaixo: a névoa estava se erguendo e se dissipando na brisa.
— Agora vamos descansar aqui um pouco! — disse Aragorn — Vamos nos sentar sobre os escombros e conversar, como diz Gandalf, enquanto ele está ocupado em algum outro lugar. Sinto um cansaço que nunca senti antes — embrulhou-se em sua capa cinzenta, escondendo a camisa de malha, e esticou as longas pernas.
Depois deitou-se e soltou de seus lábios um tênue fio de fumaça.
— Vejam! — disse Pippin — Passolargo, o guardião, está de volta!
— Ele nunca esteve ausente — disse Aragorn — Sou Passolargo e Dúnadain também, e pertenço a Gondor e ao Norte.
Fumaram em silêncio por um tempo, ao sol, que oblíquo penetrava no vale, através de nuvens brancas suspensas no Oeste. Legolas estava deitado e quieto, olhando para o céu e o sol com olhos fixos, cantando baixinho para si mesmo. Finalmente sentou-se.
— Venham agora! — disse ele — O tempo está passando e a névoa se dissipando, ou pelo menos estaria se vocês, pessoas estranhas, não se cobrissem de fumaça. E a história?
— Bem, minha história começa comigo acordando no escuro e me vendo todo amarrado num acampamento de orcs — disse Pippin — Deixe-me ver, que dia é hoje?
— Cinco de Março, no Registro do Condado[1] — disse Aragorn.

[1] Todos os meses no calendário do Condado tinham trinta dias.

Pippin fez alguns cálculos nos dedos.
— Apenas nove dias atrás! — disse ele — Parece que já faz um ano que fomos capturados. Bem, apesar de metade disso ter sido como um sonho ruim, devo dizer que vieram depois três dias horríveis. Merry vai me corrigir, se eu me esquecer de alguma coisa importante: não vou entrar em detalhes, as chicotadas, a nojeira, o mau cheiro, e tudo aquilo, não vale a pena recordar.
Com isso ele mergulhou num relato do último combate de Boromir e da marcha dos orcs dos Emyn Muil até a Floresta. Os outros faziam sinais afirmativos com a cabeça nos pontos em que o relato se encaixava com suas suposições.
— Aqui estão alguns tesouros que vocês deixaram cair — disse Aragorn — Ficarão felizes em tê-los de volta — desafivelou o cinto embaixo de sua capa e tirou dele as duas facas nas respectivas bainhas.
— Ora, ora! — disse Merry — Nunca esperava vê-las outra vez! Marquei, alguns orcs com a minha, mas Uglúk tirou-nos as facas. O ódio com que ele as olhava! No início achei que ia me golpear, mas ele as jogou longe, como se queimassem suas mãos.
— E aqui também está seu broche, Pippin — disse Aragorn — Guardei-o a salvo, pois é um objeto muito precioso.
— Eu sei — disse Pippin — Foi um sofrimento separar-me dele, mas que mais eu poderia fazer?
— Nada mais — respondeu Aragorn — Alguém que, numa necessidade, não consegue jogar fora um tesouro está acorrentado. Você fez a coisa certa.
— Cortar as cordas de seus pulsos, isso foi um lance de esperteza! — disse Gimli — Nesse momento a sorte o ajudou, mas você agarrou a oportunidade com as duas mãos, poderíamos dizer.
— E nos impôs um belo enigma — disse Legolas — Fiquei pensando se vocês não tinham criado asas.
— Infelizmente não — disse Pippin — Mas você não estava sabendo sobre Grishnákh — ele estremeceu e não disse mais nada, deixando que Merry contasse sobre aqueles momentos horríveis: as mãos em forma de pata, o hálito quente e a força terrível dos braços peludos de Grishnákh.
— Toda essa história sobre os orcs de Barad-dûr, Lugbúrz, como dizem eles, me deixa preocupado — disse Aragorn — O Senhor do Escuro já sabia demais, e seus servidores também, e Grishnákh evidentemente enviou alguma mensagem para o outro lado do Rio depois da briga. O Olho Vermelho estará olhando na direção de Isengard. Mas, de qualquer forma, Saruman está num dilema que ele mesmo criou.
— Sim, qualquer que seja o lado vencedor, sua perspectiva é ruim — disse Merry — As coisas começaram a dar errado para ele quando seus orcs pisaram em Rohan.
— Vimos de relance o velho vilão, ou pelo menos Gandalf acha que sim — disse Gimli — Na borda da Floresta.
— Quando foi isso? — perguntou Pippin.
— Cinco noites atrás — disse Aragorn.
— Deixe-me ver — disse Merry — Cinco noites atrás... agora chegamos a uma parte da história sobre a qual vocês não sabem nada. Encontramos Barbárvore naquela manhã depois da batalha, e aquela noite passamos na Gruta da Nascente, uma das casas-ents. Na manhã seguinte fomos para o Entebate, quer dizer, uma reunião de ents e a coisa mais esquisita que já vi em minha vida. Durou todo aquele dia e o seguinte, e nós passamos as noites com um ent chamado Tronquesperto. E então, no fim da tarde do terceiro dia do debate, os ents de repente explodiram. Foi assustador. A Floresta estava tensa como se uma tempestade estivesse se formando dentro dela: então, em uníssono, explodiu. Gostaria que vocês pudessem ter ouvido a canção deles enquanto marchavam.
— Se Saruman tivesse ouvido, agora estaria a milhas de distância, mesmo que tivesse de correr com as próprias pernas — disse Pippin.

Se Isengard for um lugar de pedra fria e duro osso,
Nós vamos todos guerrear quebrar a pedra e seu portão!

— Havia muito mais. Grande parte da canção não tinha palavras, e era como uma música de trombetas e tambores. Era muito contagiante. Mas pensei que fosse apenas uma música de marcha e nada mais, apenas uma canção, até que cheguei aqui. Agora eu sei do que se trata.
— Descemos da última cordilheira entrando em Nan Curunír, depois do cair da noite — continuou Merry — Foi nesse momento que senti pela primeira vez que a própria Floresta caminhava atrás de nós. Pensei que estava tendo um sonho de ent, mas Pippin também tinha notado. Estávamos os dois com medo, mas só depois descobrimos mais sobre o que estava acontecendo. Eram os huorns, ou pelo menos é esse o jeito como os ents os chamam na “língua curta”. Barbárvore não gosta muito de falar sobre eles, mas acho que são ents que ficaram quase como árvores, pelo menos na aparência. Ficam aqui e acolá na floresta, ou nas suas bordas, silenciosos, vigiando sem parar as árvores, mas nos vales profundos há centenas e centenas deles, eu imagino. Há um grande poder neles, e parece que têm a capacidade de se ocultar nas sombras: é difícil vê-los se movendo. Mas eles se movem. Podem andar muito rápido, se estiverem furiosos. Você fica parado olhando para o tempo, talvez, ou ouvindo o farfalhar das folhas, e de repente descobre que está no meio de um bosque com grandes árvores tateando à sua volta. Eles ainda têm vozes, e conseguem falar com os ents, é por isso que são chamados de huorns, pelo que diz Barbárvore, mas ficaram esquisitos e selvagens. Perigosos. Eu ficaria apavorado se os encontrasse e não houvesse nenhum ent verdadeiro para cuidar deles. Bem, no início da noite nós descemos uma longa ravina, para dentro da extremidade mais alta do Vale do Mago, os ents e seus huorns farfalhantes atrás. Não conseguíamos vê-los, é claro, mas todo o ar estava cheio de estalidos. Estava muito escuro, uma noite carregada de nuvens. Marcharam em grande velocidade assim que deixaram as colinas, fazendo um barulho como um vento forte. A lua não apareceu através das nuvens, e não muito depois da meia-noite havia uma floresta alta em toda a volta da encosta Norte de Isengard. Não se via sinal de inimigos ou qualquer desafio. Havia uma luz brilhando numa alta janela na torre, isso era tudo. Barbárvore e alguns outros ents avançaram, ficando à vista dos grandes portões. Pippin e eu estávamos com ele. Estávamos sentados nele. Mas mesmo quando estão excitados os ents conseguem ser muito cuidadosos e pacientes. Ficaram parados feito estátuas, respirando e escutando. Então, de repente, houve uma agitação tremenda. Trombetas soaram e as muralhas de Isengard ecoaram. Pensamos que tínhamos sido descobertos, e que a batalha ia começar. Mas não foi nada disso. Todo o pessoal de Saruman estava partindo em marcha. Não sei muita coisa sobre esta guerra, ou sobre os Cavaleiros de Rohan, mas parece que a intenção de Saruman era exterminar o rei e todos os seus homens com um único golpe final. Ele evacuou Isengard. Eu vi o inimigo partindo: filas intermináveis de orcs em marcha, tropas deles montadas em grandes lobos. E também havia batalhões de homens. Muitos carregavam tochas, e com a luz pude ver seus rostos. A maioria eram homens comuns, muito altos e com os cabelos escuros, sinistros na aparência, porém não especialmente maus. Mas havia uns outros que eram horríveis: da altura de homens, mas com rostos de orcs, amarelados, de olhar esguelho, torto. Sabem de uma coisa, eles me fizeram lembrar imediatamente daquele sulista de Bri: só que ele não era tão obviamente parecido com um orc como eles.
— Pensei nele também — disse Aragorn — Tivemos de lidar com muitos desses semiorcs no Abismo de Helm. Agora fica claro que o sulista era um espião de Saruman, mas se estava trabalhando com os Cavaleiros Negros, ou só para Saruman, eu não sei. É difícil saber, com essas pessoas más, quando estão unidos e quando estão enganando uns aos outros.
— Bem, todos os tipos juntos, deviam perfazer dez mil no mínimo — disse Merry — Levaram uma hora para passar pelos portões. Alguns desceram a estrada que conduz aos Vaus, e outros se desviaram e foram para o Leste. Construíram uma ponte lá embaixo, cerca de uma milha daqui, num ponto onde o rio passa por um canal muito profundo. Todos cantavam com vozes roucas, e riam, fazendo um barulho horroroso. Pensei que as coisas estavam pretas para Rohan. Mas Barbárvore não se mexeu. Ele disse:
— “Meu negócio esta noite é com Isengard, com rocha e pedra”.
— Mas embora eu não pudesse ver o que estava acontecendo na escuridão, acredito que os huorns começaram a rumar para o Sul, logo que os portões se fecharam de novo. Acho que o negócio deles era com os orcs. Já estavam lá embaixo no vale pela manhã, ou pelo menos havia uma sombra que ninguém conseguia atravessar com os olhos. Assim que Saruman tinha despachado todo o seu exército, chegou a nossa vez. Barbárvore nos pôs no chão, dirigiu-se aos portões e começou a golpear as portas, chamando Saruman. Não houve resposta, com a exceção de flechas e pedras que vieram das muralhas. Mas flechas não adiantam nada contra os ents. É claro que os machucam, e os enfurecem: como picadas de insetos. Mas um ent pode ficar crivado de flechas de orcs como uma almofada de alfinetes, sem que fique seriamente ferido. Isso porque eles não podem ser envenenados, e sua pele parece ser muito grossa, mais resistente que uma casca de árvore. Seria necessário um golpe muito pesado de machado para machucá-los de fato. Eles não gostam de machados. Mas seriam necessários muitos homens com machados para cada ent: um homem que golpeia um ent uma vez não tem uma segunda oportunidade. Um murro dado pelo punho de um ent amassa o ferro como se fosse uma lata fina. Quando Barbárvore tinha algumas flechas em seu corpo, começou a esquentar, a ficar positivamente“apressado”, como diria ele. Soltou um grande hum-hom, e mais uns doze ents vieram avançando. Um ent furioso é aterrador. Os dedos dos pés e das mãos simplesmente agarram-se à rocha e a arrancam qual casca de pão. Foi como assistir ao trabalho de grandes raízes de árvores durante uma centena de anos, tudo condensado em alguns momentos. Eles empurravam, puxavam, rasgavam, chacoalhavam, e esmurravam, e clangue-bangue, crache-craque, em cinco minutos esses portões enormes estavam no chão destruídos, e alguns dos ents já estavam começando a roer as muralhas, como coelhos num poço de areia. Não sei o que Saruman pensou que estava acontecendo, mas de qualquer forma ele não sabia como lidar com aquilo. Sua magia pode ter enfraquecido nos últimos tempos, é claro, mas de qualquer jeito acho que ele não tinha bravura suficiente, nem muita coragem, sozinho num lugar apertado, sem um monte de escravos e máquinas e coisas, se entendem o que quero dizer. Muito diferente do velho Gandalf. Fico pensando se toda a sua fama não se deveu todo esse tempo à sua esperteza ao instalar-se em Isengard.
— Não — disse Aragorn — Ele já esteve à altura de sua fama. Tinha um conhecimento profundo, um pensamento sutil, e mãos maravilhosamente habilidosas, e tinha um poder sobre as mentes dos outros. Podia persuadir os sábios e amedrontar as pessoas menores. Esse poder certamente ele ainda conserva. Não há muitas pessoas na Terra-Média que na minha opinião poderiam ficar a salvo, se fossem deixadas sozinhas para conversar com ele, mesmo agora depois de uma derrota. Gandalf, Elrond e Galadriel, talvez, agora que sua maldade foi revelada, e quase mais ninguém.
— Os ents não correm esse risco — disse Pippin — Parece que certa época ele os persuadiu, mas nunca mais vai conseguir isso. E de qualquer forma ele não os entendeu, e cometeu o grave erro de deixá-los fora de suas maquinações. Não tinha planos para eles, e já não havia tempo para planejar nada, uma vez que eles se puseram a trabalhar. Assim que nosso ataque começou, os poucos ratos que sobraram em Isengard começaram a fugir através de cada furo que os ents fizeram. Os ents deixaram os homens fugir, depois de tê-los interrogado, restavam apenas duas ou três dúzias. Não acho que muitos do povo dos orcs, de qualquer tamanho, tenham escapado. Não dos huorns: havia uma boa quantidade deles em toda a volta de Isengard naquele momento, além daqueles que tinham descido o vale. Quando os ents tinham reduzido a escombros uma grande parte da muralha Sul, e o que restava de seu povo tinha fugido abandonando-o, Saruman fugiu em pânico. Parece que ele estava junto ao portão quando chegamos: acho que veio assistir à partida de seu esplêndido exército. Quando os ents arrombaram os portões e entraram, ele partiu apressado. Eles não o viram no inicio. Mas a noite se abrira e havia uma forte luz das estrelas, o suficiente para que os ents enxergassem, e de repente Tronquesperto soltou um grito:
— “O matador de árvores, o matador de árvores!”
— Tronquesperto é uma criatura gentil, mas por isso mesmo odeia Saruman com todas as suas forças: seu povo sofreu cruelmente sob os machados dos orcs. Ele desceu aos saltos o caminho que vinha do portão interno, pois ele pode mover-se como o vento quando está enfurecido. Havia uma figura pálida fugindo, entrando e saindo entre as sombras dos pilares, e já quase alcançava as escadas que conduzem à porta da torre. Mas foi por pouco. Tronquesperto vinha tão veloz atrás dele que por um ou dois passos de distância Saruman não foi pego e estrangulado quando se esgueirou pela porta. Quando Saruman estava a salvo outra vez em Orthanc, não demorou muito para que pusesse em ação algumas de suas preciosas máquinas. Nesse momento já havia muitos ents dentro de Isengard: alguns tinham seguido Tronquesperto, e outros tinham irrompido do Norte e do Leste: estavam vagando de um lado para o outro e fazendo um grande estrago. De repente ergueram-se chamas e uma fumaça imunda: as aberturas dos poços em toda a planície começaram a cuspir e vomitar. Vários ents ficaram com queimaduras e bolhas. Um deles, que se chamava Ossofaia, eu acho, ficou preso no vapor de algum tipo de fogo líquido e queimou como uma tocha: uma cena horrível. Isso os deixou loucos. Eu achara antes que eles estavam realmente furiosos, mas estava errado. Finalmente vi como eles ficam quando se enfurecem. Foi chocante. Eles rugiram e ribombaram e produziram ruídos como trombetas, até que as rochas começaram a se partir e ruir ante o simples barulho deles. Merry e eu nos deitamos no chão e cobrimos os ouvidos com as capas. Dando voltas na rocha de Orthanc, os ents iam a largas passadas, produzindo uma tempestade como um furacão, quebrando pilares, lançando avalanches de pedras para dentro dos poços, jogando grandes lajes de pedra no ar como se fossem folhas. A torre ficou no meio de um tufão. Vi pilares de ferro e blocos de alvenaria subindo feito foguetes dezenas de metros, e se arrebentando contra as janelas de Orthanc. Mas Barbárvore se manteve calmo. Felizmente não sofrera nenhuma queimadura. Não queria que seu povo se ferisse em sua fúria, e não queria que Saruman escapasse por algum buraco em meio à confusão. Muitos ents estavam se lançando contra a rocha de Orthanc, mas ela os derrotou. É muito lisa e dura. Há alguma magia nela, talvez mais antiga e mais forte que a de Saruman. De qualquer forma, eles não conseguiram agarrá-la nem causar-lhe nenhuma rachadura: eles é que estavam se machucando e contundindo ao se baterem contra a torre. Então Barbárvore foi para dentro do círculo e gritou. Sua voz poderosíssima se ergueu acima de todo o estrondo. De repente, fez-se um silêncio mortal. Rasgando-o, pudemos ouvir uma risada aguda vinda de uma alta janela na torre. Isso provocou um estranho efeito nos ents. Antes eles estavam fervendo, nesse momento ficaram frios, sinistros como o gelo, e quietos. Deixaram a planície e se reuniram em volta de Barbárvore, completamente imóveis. Ele lhes falou em sua própria língua por uns instantes, acho que estava lhes contando sobre um plano já formado em sua mente havia muito tempo. Depois eles simplesmente desapareceram silenciosamente na luz cinzenta. O dia estava nascendo naquele momento. Ficaram vigiando a torre, acredito eu, mas os vigilantes estavam tão bem escondidos nas sombras e mantinham tamanho silêncio, que eu não conseguia vê-los. Os outros partiram para o Norte. Ficaram ocupados todo o dia, e não os vimos. A maioria do tempo ficamos sozinhos. Foi um dia melancólico, e andamos um pouco por aí, embora procurássemos ficar o máximo possível fora do campo de visão das janelas de Orthanc: elas nos observavam ameaçadoramente. Passamos uma boa parte do tempo procurando algo para comer. E também nos sentamos e conversamos, imaginando o que estaria acontecendo em Rohan, e o que teria sucedido a todo o resto de nossa Comitiva. De vez em quando ouvíamos na distância o estrondo de pedras caindo, e baques surdos ecoando nas colinas. Durante a tarde caminhamos em volta do círculo, e fomos dar uma olhada no que estava acontecendo. Havia uma grande floresta sombria de huorns na cabeceira do vale, e uma outra em volta da muralha Norte. Não ousamos entrar. Mas ouvimos um ruído de algo se rasgando ou se rompendo na parte de dentro. Os ents e os huorns estavam cavando grandes fossos e valas, fazendo grandes lagos e represas, recolhendo toda a água do Isen e de qualquer outra nascente ou riacho que conseguiam encontrar. Deixamos que continuassem seu trabalho. Quando chegou o crepúsculo, Barbárvore retornou ao portão, Estava cantarolando e ribombando para si mesmo, e parecia satisfeito. Parou e esticou os grandes braços e pernas, depois respirou fundo. Perguntei lhe se estava cansado.
— “Cansado?”, disse ele, “Cansado? Bem, cansado não, mas com o corpo enrijecido. Preciso de um bom trago do Entágua. Trabalhamos muito, quebramos mais pedras e roemos mais terra hoje do que em muitos longos anos antes. Mas está quase tudo pronto. Quando chegar a noite, não fiquem perto deste portão ou no velho túnel! Pode ser que a água cubra tudo, e por um tempo será uma água ruim, até que toda a sujeira de Saruman seja levada embora. Então o Isen poderá correr limpo outra vez”.
— Começou a derrubar mais uma parte das muralhas, como se aquilo fosse um passatempo, apenas para se divertir. Estávamos pensando que lugar poderia ser seguro para deitarmos e dormirmos um pouco, quando a coisa mais surpreendente de todas aconteceu. Ouviu-se o ruído de um cavaleiro subindo rapidamente pela estrada. Merry e eu nos deitamos e ficamos imóveis, e Barbárvore se escondeu nas sombras sob o arco. De repente, um grande cavalo veio avançando, como um clarão de prata. Já estava escuro, mas eu pude ver claramente o rosto do cavaleiro: parecia brilhar, e todas as suas roupas eram brancas. Eu me sentei, observando, de boca aberta. Tentei gritar, mas não consegui. Nem precisou. Ele parou bem ao nosso lado e olhou em nossa direção. “Gandalf!”, disse eu finalmente, mas minha voz era a penas um sussurro. Pensam que ele disse: “Olá, Pippin! Que surpresa agradável!”? Na verdade não! Ele disse:
— “Levante-se, seu Túk idiota! Onde, em nome do espanto, está Barbárvore no meio de todo este estrago? Quero vê-lo. Rápido!”
— Barbárvore ouviu sua voz e saiu das sombras imediatamente, e foi um estranho encontro. Fiquei perplexo, porque nenhum dos dois parecia surpreso. Gandalf obviamente esperava encontrar Barbárvore aqui, e Barbárvore agiu como se estivesse à toa perto dos portões de propósito para recebê-lo. Já tínhamos contado ao velho ent tudo sobre Moria. Mas quando me lembro do olhar esquisito que nos lançou naquela hora só posso supor que ele tinha visto Gandalf, ou recebido alguma notícia dele, mas não estava disposto a falar nada apressadamente. “Não tenha pressa” é seu mote, mas ninguém, nem mesmo os elfos, pode saber muito sobre os movimentos de Gandalf quando ele está ausente.
— “Hum! Gandalf”, disse Barbárvore. “Fico feliz que tenha vindo. Floresta e água, troncos e rochas eu posso dominar, mas aqui há um mago para controlarmos”.
— “Barbárvore”, disse Gandalf. “Preciso de sua ajuda. Você já fez muito, mas preciso de mais. Tenho que dar conta de cerca de dez mil orcs”.
— Então os dois saíram e fizeram uma reunião em algum canto. Deve ter parecido tudo bastante apressado para Barbárvore, pois Gandalf estava com uma ânsia tremenda, e já estava falando num ritmo bem acelerado antes que os dois desaparecessem de vista. Ficaram longe só alguns minutos, talvez um quarto de hora. Depois Gandalf voltou e veio em nossa direção, e parecia aliviado, quase contente. Só então disse que estava feliz em nos ver.
— “Mas Gandalf”, exclamei eu, “Onde você esteve? Você viu os outros?”
— “Onde quer que eu tenha estado, estou de volta”, respondeu ele à sua maneira peculiar. “Sim, vi alguns dos outros. Mas as notícias devem esperar. Esta é uma noite perigosa, e preciso cavalgar rápido. A aurora pode ser mais clara e, se assim for, vamos nos encontrar outra vez. Cuidem-se e mantenham distância de Orthanc. Adeus!”
— Barbárvore ficou muito pensativo depois que Gandalf foi embora. Evidentemente, tinha sabido muita coisa em pouco tempo, e estava digerindo a informação. Olhou-nos e disse:
— “Hum, bem, percebo que vocês não são pessoas tão apressadas como eu pensava. Disseram muito menos que poderiam, e não mais do que deviam. Hum! Esse é um monte de notícias, sem dúvida! Bem, agora Barbárvore precisa ficar ocupado outra vez”.
— Antes que se fosse, conseguimos arrancar dele algumas notícias que não nos alegraram nem um pouco. Mas naquele momento estávamos pensando mais em vocês três do que em Frodo e Sam, ou no pobre Boromir. Pois ficamos sabendo que estava acontecendo uma grande batalha, ou aconteceria em breve, e que vocês estavam nela, e poderiam nunca mais voltar.
— “Os huorns vão ajudar”, disse Barbárvore.
— Depois se afastou e não o vimos outra vez até hoje cedo. Foi uma noite negra. Deitamo-nos sobre uma pilha de pedras, e não conseguíamos ver nada. Névoa ou sombras cobriam tudo como um grande cobertor em toda a nossa volta. O ar parecia quente e pesado, e estava cheio de ruídos farfalhantes, estalidos e murmúrios semelhantes a vozes passando. Acho que outras centenas de huorns estavam avançando em direção à batalha. Mais tarde houve um grande estrondo de trovão ao Sul, e clarões e relâmpagos ao longe, sobre Rohan. De tempos em tempos conseguíamos ver os picos das montanhas, a milhas e milhas de distância, penetrando de súbito na escuridão, brancos e pretos, para depois como o dos trovões nas colinas, mas diferentes. Algumas vezes todo o vale ecoava. Devia ser por volta de meia-noite quando os ents arrebentaram as represas e derramaram sobre Isengard toda a água armazenada através de uma fenda na muralha Norte. A escuridão dos huorns tinha passado, e o trovão se afastara. A lua afundava atrás das montanhas ocidentais. Isengard começou a se encher de córregos e lagos negros que avançavam cada vez mais. As águas reluziram na última luz da lua, enquanto se espalhavam por toda a planície. De quando em quando, escoavam através de algum poço ou gárgula. Um grande vapor esbranquiçado subia chiando. A fumaça se levantava em ondas. Houve explosões e rajadas de fogo. Uma grande espiral de vapor subia se enrolando, dando voltas e mais voltas em Orthanc, até transformá-la numa grande montanha de nuvem, com a parte inferior em chamas, e o topo iluminado pela lua. E ainda mais águas jorravam, até que finalmente Isengard ficou parecendo uma enorme tigela rasa, soltando fumaça e borbulhando.
— Vimos uma nuvem de fumaça e vapor vindo do Sul a noite passada, quando atingimos a abertura do Nan Curunír — disse Aragorn — Receamos que Saruman nos estivesse preparando algum feitiço.
— Não ele! — disse Pippin — Naquela hora é mais provável que ele estivesse sufocando e não rindo. Ontem pela manhã a água tinha penetrado por todos os buracos, e havia um denso nevoeiro. Refugiamo-nos naquela casa de guarda ali, e estávamos apavorados. O lago começou a transbordar derramando-se através do velho túnel, e a água cobria os degraus com grande rapidez. Pensamos que íamos ficar presos como orcs num buraco, mas encontramos uma escada sinuosa na parte posterior da despensa, que nos levou até o topo do arco. Sair foi um aperto, já que as passagens estavam rachadas e meio bloqueadas com pedras caídas perto do topo. Ali ficamos sentados bem acima da enchente e assistimos ao afogamento de Isengard. Os ents continuavam a derramar mais água, até que todas as fogueiras estivessem apagadas e todas as cavernas cheias. A névoa lentamente se juntou e subiu formando um grande guarda-chuva de nuvens: devia ter uma milha de altura. No início da noite havia um grande arco-íris sobre as colinas orientais, e então o pôr-do-sol foi apagado por um chuvisco denso que caía sobre as encostas das montanhas. Tudo ficou muito quieto. Alguns lobos uivavam num lamento, a distância. Os ents interromperam a entrada de água à noite, e mandaram o Isen de volta ao velho curso. E isso foi o fim de tudo. Desde então as águas estão baixando. Deve haver saídas em algum lugar nas cavernas lá embaixo, suponho eu. Se Saruman espiar por alguma de suas janelas, vai ver tudo desarrumado, uma desordem sombria. Sentimos uma enorme solidão. Não havia nenhum ent para conversarmos em meio a toda a ruína, e nenhuma notícia. Passamos a noite ali, em cima do arco, estava frio e úmido, e não conseguimos dormir. Tínhamos a impressão de que alguma coisa podia acontecer a qualquer momento. Saruman ainda está em sua torre. Havia um ruído na noite como o de um vento subindo o vale. Suponho que os ents e os huorns que tinham se ausentado estão de volta, mas aonde tinham ido eu não sei. Estava uma manhã cheia de névoa e umidade quando descemos e olhamos ao redor de novo, e não se via ninguém. E isso é tudo o que temos para contar. Parece que o lugar está quase pacífico depois de todo o tumulto. E mais seguro, de certa forma, já que Gandalf tinha voltado. Consegui dormir!
Então todos ficaram em silêncio por um tempo. Gimli encheu seu cachimbo outra vez.
— Há uma coisa que me pergunto — disse ele enquanto o acendia com sua pederneira e pavio — Língua de Cobra. Você disse a Théoden que ele estava com Saruman. Como ele chegou lá?
— Ah, sim, eu me esqueci dele — disse Pippin — Só chegou aqui esta manhã. Tínhamos acabado de acender a fogueira e de comer alguma coisa quando Barbárvore apareceu de novo. Escutamos sua voz murmurando e chamando nossos nomes do lado de fora.
— “Vim saber como estão passando, meus rapazes”, disse ele, “E para lhes dar alguma notícia. Os huorns voltaram. Está tudo bem, bem mesmo!”, disse ele rindo e dando tapinhas nas coxas. “Não sobrou nenhum orc em Isengard, nem machados! E virão pessoas do Sul antes do fim do dia, alguns que vocês poderão ficar alegres em ver”.
— Mal ele tinha dito isso quando ouvimos o som de cascos na estrada. Corremos para os portões, e eu parei e olhei, quase esperando ver Passolargo e Gandalf cavalgando à frente de um exército. Mas saindo da névoa veio um homem sobre um cavalo velho e cansado, ele mesmo parecia uma criatura estranha e toda torta. Não havia mais ninguém. Quando saiu da névoa, viu de repente toda a ruína e o estrago à sua frente. Parou, pasmo, e seu rosto ficou quase verde. Estava tão perplexo que a princípio não deu sinal de ter-nos visto. Quando viu, deu um grito, e tentou virar o cavalo e fugir. Mas Barbárvore deu três passadas, estendeu um braço longo e o levantou da sela. O cavalo disparou em fuga, apavorado, e ele rastejou pelo chão. Disse que era Gríma, amigo e conselheiro do rei, e tinha sido enviado trazendo mensagens importantes de Théoden para Saruman.

[FIG. 08] ORTHANC



— “Ninguém mais ousaria cavalgar pelo campo aberto, tão cheio de orcs malignos”, disse Gríma,“Então eu fui enviado. Fiz uma viagem perigosa, e estou cansado e faminto. Desviei de meu caminho em direção ao Norte, fugindo dos lobos que me perseguiam”.
— Percebi os olhares oblíquos que ele lançou para Barbárvore, e disse para mim mesmo: “Mentiroso”.Barbárvore olhou para ele com seu jeito lento e demorado por vários minutos, até que o infame estivesse estrebuchando no chão. Então disse finalmente:
— “Ha, hin, estava esperando você, Mestre Língua de Cobra”.
— O homem teve um sobressalto ao ouvir aquele nome.
— “Gandalf chegou aqui primeiro. Por isso, sei sobre você o quanto preciso, e sei também o que fazer com você. Ponha todos os ratos na mesma ratoeira, disse Gandalf, e é isso o que vou fazer. Agora sou o senhor de Isengard, mas Saruman está trancado na torre, você pode ir para lá e lhe transmitir todas as mensagens que conseguir imaginar”.
— “Deixe-me ir, deixe-me ir!”, disse Língua de Cobra. “Eu sei o caminho”.
— “Você sabia o caminho, não duvido”, disse Barbárvore. “Mas as coisas mudaram um pouco por aqui. Vá e veja com seus próprios olhos!”
— Barbárvore permitiu a passagem de Língua de Cobra, e ele se foi mancando através do arco, seguido de perto por nós, até que atingiu o círculo e pôde ver toda a água que estava entre ele e Orthanc. Então voltou-se para nós.
— “Deixem-me ir embora”, choramingou ele. “Deixem-me ir embora! Minhas mensagens são inúteis agora”.
— “De fato são”, disse Barbárvore “E você só tem duas escolhas: ficar comigo até que Gandalf e seu mestre cheguem, ou atravessar a água. O que você escolhe?”
— O homem tremeu à menção do nome de seu mestre e colocou um pé na água, mas recuou.
— “Não sei nadar”, disse ele.
— “Não é fundo”, disse Barbárvore. “A água está suja, mas isso não vai lhe fazer mal, Mestre Língua de Cobra. Entre agora!”
— Com isso o patife foi aos trambolhões entrando na água, que atingiu a altura de seu pescoço antes de perder-se de vista à distância. A última visão que tive foi dele se agarrando em algum barril velho ou pedaço de madeira. Mas Barbárvore foi andando na água atrás dele, vigiando seu avanço.
— “Bem, ele entrou lá”, disse o ent ao retornar, “Vi-o se arrastando escada acima como um rato emporcalhado. Ainda há alguém na torre: uma mão apareceu e o puxou para dentro. Então ele está lá, e espero que a recepção seja a seu gosto. Agora preciso ir e me lavar desse lodo. Estarei lá em cima, na encosta Norte, se alguém quiser me ver. Aqui embaixo não há água limpa, adequada para um ent beber, ou para se lavar. Então vou pedir a vocês dois, rapazes, que fiquem de olho no portão à espera das pessoas que estão chegando. Quem vem vindo é o Senhor dos Campos de Rohan, vejam bem! Devem recebê-lo da melhor maneira possível: seus homens travaram uma grande luta com os orcs. Talvez vocês conheçam melhor que os ents a maneira correta nas palavras dos homens para um senhor dessa importância. Houve muitos senhores nos campos verdes na minha época, e nunca aprendi suas falas e seus nomes. Eles vão querer comida humana, e vocês sabem tudo sobre isso, julgo eu. Então achem algo adequado para um rei comer, se puderem”.
— E este é o fim da história. Mas eu gostaria de saber quem é esse Língua de Cobra. Ele era mesmo o conselheiro do rei?
— Era — disse Aragorn — E ao mesmo tempo um espião e servidor de Saruman em Rohan. A sorte não lhe foi mais gentil do que ele merecia. A visão das ruínas de tudo o que ele considerava tão forte e magnífico deve ter sido uma punição quase suficiente. Mas receio que coisas piores lhe estão reservadas.
— É sim. Não acho que Barbárvore o mandou para Orthanc por gentileza — disse Merry — Ele parecia sinistramente satisfeito com a coisa toda, e estava rindo para si mesmo quando foi tomar seu banho e beber algo. Ficamos muito ocupados depois disso, vasculhando os escombros e vistoriando tudo. Encontramos duas ou três despensas em lugares diferentes aqui perto, acima do nível da água. Mas Barbárvore mandou uns ents aqui para baixo, e eles carregaram uma boa parte do material.
— “Queremos comida humana para vinte e cinco pessoas”, disseram os ents. Então vocês podem ver que alguém contou cuidadosamente o número de sua comitiva antes que chegassem. Evidentemente a intenção era que vocês três fossem com os grandes. Mas não teriam passado melhor. Enviamos a mesma coisa que guardamos aqui, eu juro. Melhor aqui, porque nós não mandamos bebida.
— “E bebida?”, eu perguntei aos ents.
— “Temos a água do Isen”, disseram-me eles, “E isso é bom o bastante para os ents e para os homens”. Mas espero que os ents tenham tido tempo de preparar um pouco de suas próprias bebidas com a água das nascentes das montanhas, e então poderemos ver a barba de Gandalf se enrolando toda quando ele voltar. Depois que os ents se foram, ficamos cansados e famintos. Mas não podemos reclamar. Nosso trabalho foi bem recompensado. Foi em meio à nossa busca por comida humana que Pippin descobriu a jóia de todo o escombro, aqueles barris do Vale Comprido. “Erva-de-fumo é melhor depois da comida”, disse Pippin, foi assim que tudo aconteceu.
— Agora entendemos tudo perfeitamente — disse Gimli.
— Tudo, menos uma coisa — disse Aragorn — Folha da Quarta Sul em Isengard. Quanto mais penso nisso, mais eu acho o fato curioso. Nunca estive em Isengard, mas já viajei por esta região, e conheço bem as terras desertas que ficam entre Rohan e o Condado. Nem mercadoria nem pessoas passaram por ali em muitos longos anos, não abertamente. Acho que Saruman tinha negócios secretos com alguém no Condado. Podem-se encontrar Línguas de Cobra em várias outras casas além da do Rei Théoden. Havia uma data nos barris?
— Havia — disse Pippin — Foi a colheita de 1417, a do ano passado, não, do ano anterior, é claro: um bom ano.
— Bem, qualquer mal que estivesse à solta está terminado agora, eu espero, ou então está além de nosso alcance no momento — disse Aragorn.
— Mas acho que vou mencionar o fato a Gandalf, embora pareça um assunto sem importância em meio às suas grandes questões.
— Fico pensando o que ele estará fazendo — disse Merry — A tarde está avançando. Vamos dar uma olhada. De qualquer forma, você pode entrar em Isengard agora se quiser, Passolargo. Mas a vista não é muito animadora.



 continua..




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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

3 comentários:

  1. Uma semana sem poder ver o pc, agora meus estão curados :) ...

    Estava com saudades desse livro ... :)

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    1. Meus olhos estão curados ha ha ha

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    2. Seus olhos não poderiam começar por um capítulo melhor: a Última Marcha dos Ents. xD

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