quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 93



XCIII

VALENTINE




O
 leitor já adivinhou aonde é que Morrel tinha de ir e em casa de quem era o seu encontro. Sim, logo que deixou Monte Cristo, Morrel dirigiu-se para casa de Villefort, caminhando lentamente. Dizemos lentamente porque Morrel dispunha de mais de meia-hora para percorrer quinhentos passos.
Mas, apesar de ter tempo mais do que suficiente, apressara-se em deixar Monte Cristo, pois tinha pressa de ficar só com os seus pensamentos. Sabia bem qual era a sua hora, aquela em que Valentine assistia ao almoço de Noirtier e estava certa de não ser perturbada no seu piedoso dever. Noirtier e Valentine tinham-lhe concedido duas visitas por semana e ele vinha gozar desse direito.
Quando chegou, Valentine já o esperava. Inquieta, quase desorientada, pegou-lhe na mão e levou-o à presença do avô. Tal inquietação, levada, como dizemos, quase até à desorientação, provinha do barulho que a aventura de Morcerf produzira na sociedade. Sabia-se, na sociedade sabe-se tudo, do escândalo da Ópera.
Em casa de Villefort ninguém duvidava que um duelo fosse a conseqüência forçada desse escândalo. Com o seu instinto de mulher, Valentine adivinhara que Morrel seria testemunha de Monte Cristo e, devido à coragem bem conhecida do jovem e à profunda amizade que ela lhe conhecia pelo Conde, receava que ele se não limitasse ao papel passivo que lhe competia.
Compreende-se, pois, com que avidez os pormenores da aventura foram pedidos, dados e recebidos, e Morrel pôde ler uma alegria indizível nos olhos da sua bem-amada quando ela soube que o terrível caso tivera um desfecho não menos feliz do que inesperado.
— Agora — disse Valentine, fazendo sinal a Morrel para se sentar ao lado do velho e sentando-se ela mesma no banco onde repousavam os pés do avô — Agora falemos um bocadinho das nossas coisas. Como sabe, Maximilien, o avozinho teve por momentos a idéia de deixar esta casa e alugar um apartamento fora do palácio do Sr. de Villefort...
— Sim, claro — respondeu Maximilien — Recordo-me desse projeto e de o ter até aplaudido muito.
— Pois então — disse Valentine — Aplauda-o novamente, Maximilien porque o avozinho voltou à sua idéia.
— Bravo! — exclamou Maximilien.
— E sabe que razão dá o avozinho para deixar esta casa? — perguntou Valentine.
Noirtier olhava a neta para lhe impor silêncio com a vista, mas Valentine não olhava para Noirtier; os seus olhos e o seu sorriso eram para Morrel.
— Oh, seja qual for a razão que dê o Sr. Noirtier, declaro-a boa! — exclamou Morrel.
— Ótimo — disse Valentine — Ele pretende que o ar do Arrabalde Saint-Honoré não é bom para mim.
— De fato... — declarou Morrel — Ouça, Valentine: o Sr. Noirtier talvez tenha razão; há quinze dias que noto que a sua saúde se altera.
— Sim, um bocadinho, é verdade — admitiu Valentine — Por isso, o avozinho constituiu-se meu médico, e como o avozinho sabe tudo, tenho a maior confiança nele.
— Mas, enfim, é verdade que se sente doente, Valentine? — perguntou vivamente Morrel.
— Meu Deus, não se pode dizer que me sinta doente; experimento apenas um mal-estar geral. Perdi o apetite e parece-me que o meu estômago trava uma luta para se habituar a qualquer coisa.
Noirtier não perdia uma palavra de Valentine.
— E qual é o tratamento que segue contra essa doença desconhecida?
— Oh, muito simples! — respondeu Valentine — Tomo todas as manhãs uma colher da poção que dão ao meu avô. Digo uma colher, mas a verdade é que comecei por uma e agora já vou em quatro... o avô pretende que é uma panacéia.
Valentine sorria, mas havia algo de triste e sofredor no seu sorriso.
Maximilien, ébrio de amor, olhava-a em silêncio. Estava linda, mas a sua palidez adquirira um tom mais macilento, nos seus olhos brilhava um fogo mais ardente do que de costume e as suas mãos, habitualmente de um branco de madrepérola, pareciam mãos de cera que com o tempo adquirissem um tom amarelado.
De Valentine, o jovem olhou para Noirtier, que observava com estranha e profunda atenção a neta, absorta no seu amor. Também o velho, como Morrel, notava aqueles vestígios de um sofrimento surdo, tão pouco visíveis, aliás, que tinham escapado aos olhos de todos, exceto aos do avô e do apaixonado.
— Mas essa poção, de que já vai em quatro colheres, creio ter sido receitada ao Sr. Noirtier... — observou Morrel.
— É verdade — respondeu Valentine — E é muito amarga... tão amarga que tudo o que bebo depois me parece ter o mesmo gosto.
Noirtier olhou a neta com ar interrogador.
— Sim, avozinho — confirmou Valentine — É como lhe digo. Ainda há bocado, antes de descer, bebi um copo de água açucarada. Pois tive de desistir no meio, de tal forma a água me pareceu amarga.
Noirtier empalideceu e fez sinal de que queria falar. Valentine levantou-se para ir buscar o dicionário. Noirtier seguiu-a com a vista, visivelmente angustiado. Com efeito, o sangue subia à cabeça da jovem, coloria-lhe as faces.
— É singular: um deslumbramento! — exclamou Valentine, sem perder nada da sua boa disposição — Como é que o sol me bateu nos olhos?...
E apoiou-se no parapeito da janela.
— Não há sol — disse Morrel, ainda mais inquieto com a expressão de Noirtier do que com a indisposição de Valentine. Correu para ela.
A jovem sorriu.
— Sossegue, avô — disse a Noirtier — Tranqüilize-se, Maximilien. Isto não é nada e já passou. Mas ouçam: não é o barulho de uma carruagem que ouço no pátio?
Abriu a porta de Noirtier, correu à janela do corredor e voltou precipitadamente.
— Sim — disse — É a Sra. Danglars e a filha que nos vêm visitar. Adeus, vou-me embora antes que me venham procurar aqui; isto é, até breve, fique com o avozinho, Maximilien, pois prometo não me demorar.
Morrel seguiu-a com a vista, viu-a fechar a porta e ouviu-a subir a escadinha que levava simultaneamente aos aposentos da Sra. de Villefort e aos dela própria. Logo que a jovem desapareceu, Noirtier fez sinal a Morrel para ir buscar o dicionário. Morrel obedeceu. Orientado por Valentine, depressa se habituara a compreender o velho.
No entanto, por mais prático que estivesse, como era preciso passar em revista parte das vinte e quatro letras do alfabeto e encontrar cada palavra no dicionário, só ao cabo de dez minutos o pensamento do velho foi traduzido por estas palavras:
— Mande buscar o copo de água e a garrafa que estão no quarto de Valentine.
Morrel chamou imediatamente o criado que substituíra Barrois e, em nome de Noirtier, deu-lhe aquela ordem. O criado regressou pouco depois. A garrafa e o copo estavam completamente vazios.
Noirtier fez sinal de que queria falar.
— Por que motivo estão o copo e a garrafa vazios? — perguntou — Valentine disse que só bebeu metade do copo.
A tradução desta nova pergunta levou mais cinco minutos.
— Não sei — respondeu o criado — Mas a criada de quarto está nos aposentos de Mademoiselle Valentine. Foi talvez ela quem os despejou.
— Pergunte-lhe — disse Morrel, traduzindo desta vez o pensamento de Noirtier pelo olhar.
O criado saiu e voltou quase imediatamente.
— Mademoiselle Valentine passou pelo seu quarto para ir ao da Sra. de Villefort — informou — E ao passar, como tinha sede, bebeu o que restava no copo. Quanto à garrafa, o Sr. Edouard despejou-a para fazer um lago para os seus canários.
Noirtier ergueu os olhos ao céu como um jogador que arrisca numa jogada tudo o que possui. Em seguida, os olhos do velho fixaram-se na porta e não deixaram mais essa direção.
Fora, com efeito, a Sra. Danglars e a filha que Valentine vira. Tinham-nas conduzido ao quarto da Sra. de Villefort, que dissera recebê-las nos seus aposentos. Por isso, Valentine passara pelo seu quarto, que ficava no mesmo andar do da madrasta, apenas separados pelo de Edouard.
As duas mulheres entraram com essa espécie de rigidez oficial que faz pressagiar uma comunicação. Entre pessoas do mesmo nível social, um pequeno cambiante‚ imediatamente notado. A Sra. de Villefort correspondeu àquela solenidade com igual solenidade.
Nesse momento entrou Valentine, e as reverências recomeçaram.
— Cara amiga — disse a baronesa, enquanto as duas jovens davam as mãos — Venho com Eugénie anunciar-lhe em primeira mão o próximo casamento da minha filha com o príncipe Cavalcanti.
Danglars mantivera o título de príncipe. O banqueiro popular achara que isso era melhor do que Conde.
— Então, permita que lhe dê os meus sinceros parabéns — respondeu a Sra. de Villefort — O Sr. Príncipe Cavalcanti parece-me um rapaz cheio de raras qualidades.
— Bom — disse a baronesa, sorrindo — Falando como amigas, devo dizer-lhe que o príncipe não nos parece ser ainda o que será. Há nele um pouco dessa extravagância que nos permite a nós, franceses, reconhecer ao primeiro olhar um gentil-homem italiano ou alemão. No entanto, revela um excelente coração, muita delicadeza de espírito, e quanto a vantagens, o Sr. Danglars afirma que a sua fortuna é majestosa; é esta a sua palavra.
— Além disso — interveio Eugénie, folheando o álbum da Sra. de Villefort — Acrescente, minha senhora, que tem uma inclinação muito especial por esse rapaz.
— Claro que escuso de lhe perguntar se partilha essa inclinação... — insinuou a Sra. de Villefort.
— Eu?! — respondeu Eugénie com a sua habitual altivez — Oh, de modo nenhum, minha senhora! A minha vocação era não me acorrentar aos cuidados de um lar ou aos caprichos de um homem, fosse qual fosse. A minha vocação era ser artista e conseqüentemente livre de coração, de corpo e de pensamento.
Eugénie pronunciou estas palavras em tom tão vibrante e firme que o rubor subiu à cara de Valentine. A tímida moça não podia compreender aquela natureza enérgica, que parecia não possuir nenhum dos complexos da mulher.
— De resto — continuou Eugénie — Já que o meu destino é casar, quer queira, quer não, devo agradecer à Providência ter-me ao menos proporcionado os desdéns do Sr. Albert de Morcerf, sem essa Providência, seria hoje a mulher de um homem desonrado.
— É de fato assim — confirmou a baronesa, com a estranha ingenuidade que se encontra por vezes nas grandes damas e que o convívio rotineiro lhes não consegue fazer perder por completo — Sem essa hesitação dos Morcerf, a minha filha casaria com o Sr. Albert. O general fazia muito empenho no casamento e até veio pressionar o Sr. Danglars. Escapamos de boa!
— Mas então toda essa vergonha do pai recai sobre o filho? — perguntou timidamente Valentine — O Sr. Albert parece-me completamente inocente de todas essas traições do general.
— Perdão, querida amiga — atalhou a implacável Eugénie — Mas o Sr. Albert reclamou e merece a sua parte nessas traições. Parece que depois de ter provocado ontem o Sr. de Monte Cristo na Ópera lhe apresentou hoje desculpas no campo da honra.
— Impossível! — exclamou a Sra. de Villefort.
— Ah, querida amiga — interveio a Sra. Danglars com a mesma ingenuidade que já lhe apontamos — É absolutamente verdade! Soube-o pelo Sr. Debray, que assistiu à explicação.
Valentine também conhecia a verdade, mas não se pronunciou. Atraída por uma palavra às suas recordações, encontrava-se em pensamento no quarto de Noirtier, onde a esperava Maximilien.
Absorta nessa espécie de contemplação intima, Valentine havia um instante que deixara de tomar parte na conversa; seria até impossível repetir o que fora dito nos últimos minutos, quando de súbito a mão da Sra. Danglars, apoiando-se no seu braço, a tirou do seu devaneio.
— Que disse, minha senhora? — perguntou Valentine, estremecendo ao contato dos dedos da Sra. Danglars como estremeceria a um contato elétrico.
— Disse, minha querida Valentine, que decerto não está bem...
— Eu? — perguntou a jovem, passando a mão pela testa escaldante.
— Sim. Veja-se naquele espelho. Corou e empalideceu sucessivamente três ou quatro vezes no espaço de um minuto.
— De fato, está muito pálida! — exclamou Eugénie.
— Oh, não se preocupe, Eugénie! Ando assim há uns dias.
E por menos experiente que fosse, a jovem compreendeu que era ocasião de sair. Aliás, a Sra. de Villefort veio em seu auxílio.
— Retire-se, Valentine — disse — Está realmente doente e esta senhoras se dignarão a desculpá-la. Beba um copo de água pura e ficará melhor.
Valentine beijou Eugénie, cumprimentou a Sra. Danglars, já levantada para se retirar, e saiu.
— Esta pobre criança — disse a Sra. de Villefort depois de Valentine sair — Preocupa-me seriamente e não me admiraria nada se lhe acontecesse algum acidente grave.
Entretanto, Valentine, numa espécie de exaltação de que se não dava conta, atravessara o quarto de Edouard sem responder a não sei que travessura do garoto e, através do seu quarto, chegara à escadinha. Descera todos os degraus, exceto os três últimos, e ouvia já a voz de Morrel quando de súbito lhe passou uma nuvem pelos olhos, o seu pé hirto falhou o degrau, as suas mãos não tiveram força para se agarrar ao corrimão e, roçando pela parede, rolou, mais do que desceu, do alto dos três últimos degraus.
Morrel abriu a porta de um salto e encontrou Valentine estendida no patamar. Rápido como o relâmpago, levantou-a nos braços e sentou-a numa poltrona.
Valentine abriu os olhos.
— Oh, que grande desajeitada! — exclamou com febril volubilidade — Já não sei o que faço... esqueci-me de que havia mais três degraus antes do patamar!
— Feriu-se, Valentine? — perguntou Morrel — Oh, meu Deus, meu Deus!
Valentine olhou à sua volta e viu o mais profundo terror pintado nos olhos de Noirtier.
— Sossega, avozinho — disse, procurando sorrir — Não foi nada, não foi nada... foi apenas uma tontura.
— Mais uma vertigem! — exclamou Morrel, juntando as mãos — Oh, tenha cuidado com isso, Valentine, suplico-lhe!
— Mas por quê, porquê, se lhe digo que tudo passou e não foi nada? — perguntou Valentine — Agora deixem-me dar-lhes uma novidade: Eugénie casa-se dentro de oito dias e daqui a três dias haverá uma espécie de grande festim, um banquete de noivado. Estamos todos convidados, o meu pai, a Sra. de Villefort e eu... foi pelo menos o que deduzi.
— Quando será a nossa vez de nos ocuparmos desses pormenores? — suspirou Maximilien — Oh, Valentine, já que tem tanto poder sobre o nosso avozinho, procure que ele lhe responda: “Em breve!”.
— Quer dizer que conta comigo para estimular a lentidão e despertar a memória do avozinho? — perguntou Valentine.
— Claro! — exclamou Morrel — Meu Deus, meu Deus, apresse-se. Enquanto não for minha, Valentine, parecerá sempre que vai fugir.
— Oh! — exclamou Valentine num gesto convulsivo — Oh, na verdade, Maximilien, é demasiado tímido para um oficial, para um soldado que, segundo dizem, nunca conheceu o medo... ah, ah, ah!
E rompeu num riso estridente e doloroso. Os braços retesaram-se e contorceram-se, a cabeça caiu-lhe para trás na poltrona e ficou imóvel. O grito de terror que Deus acorrentava nos lábios de Noirtier brotou-lhe do olhar.
Morrel compreendeu: era urgente pedir socorro.
O rapaz agarrou-se à campainha. A criada de quarto que estava nos aposentos de Valentine e o criado que substituíra Barrois acorreram simultaneamente. Valentine estava tão pálida, tão fria e tão inanimada que, sem escutarem o que lhes diziam, se deixaram dominar pelo medo que velava constantemente sobre aquela casa maldita e saíram para os corredores a gritar por socorro.
A Sra. Danglars e Eugénie retiravam-se naquele preciso instante, mas puderam ainda saber a causa de todo aquele rebuliço.
— Bem lhes tinha dito! — exclamou a Sra. de Villefort — Pobre criança!




 continua...






________________________________________________________
Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário para elogiar ou criticar o T.World. Somente com seu apoio e ajuda, o T.World pode se tornar ainda melhor.