terça-feira, 11 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 98




XCVIII

A ESTALAGEM DO SINO E DA GARRAFA




E
 agora deixemos Mademoiselle Danglars e a amiga rodar pela estrada de Bruxelas e voltemos ao pobre Andréa Cavalcanti, tão malfadadamente detido no caminho da fortuna.
Apesar da sua idade ainda pouco avançada, o Sr. Andréa Cavalcanti era um rapaz muito hábil e inteligente. Por isso, vimo-lo, aos primeiros rumores que penetraram no salão, aproximar-se gradualmente da porta, atravessar uma ou duas salas e por fim desaparecer.
Uma das circunstâncias que nos esquecemos de mencionar, e que, no entanto, não deve ser omitida, é que numa das duas salas atravessadas por Cavalcanti se encontrava exposta a corbelha da noiva, constituída por diamantes, xales de caxemira, rendas de Valenciennes, véus da Inglaterra... por tudo o que compõe, enfim, esse acervo de objetos tentadores cujo nome basta para fazer pular de alegria o coração das jovens e que se chama enxoval.
Ora, ao passar por essa sala, Andréa, o que prova que era não só rapaz muito inteligente e hábil, mas também previdente, apoderou-se do mais rico de todos os adereços expostos. Munido desse viático, Andréa sentira-se metade mais leve para saltar pela janela e esgueirar-se por entre as mãos dos guardas. Alto e esbelto como um lutador antigo, musculoso como um espartano, Andréa empreendera uma corrida de um quarto de hora, sem saber para onde ia, apenas com o fito de se afastar do local onde estivera quase a ser preso.
Partido da Rua do Mont-Blanc, encontrara-se, com esse instinto das barreiras que os ladrões possuem, tal como a lebre o da toca, ao fundo da Rua Lafayette. Aí, sufocado, arquejante, parou. Estava absolutamente só e tinha à esquerda a tapada de Saint-Lazare, um vasto deserto, e à direita, Paris em toda a sua profundidade.
— Estarei perdido? — perguntou a si mesmo — Não, se puder desenvolver uma soma de atividade superior à dos meus inimigos. A minha salvação não passa, portanto, muito simplesmente de uma questão de miriâmetros.
Neste momento viu, vindo do alto do Arrabalde Poissonoiêre, um cabriolé de praça cujo cocheiro, abatido e fumando o seu cachimbo, parecia querer regressar às extremidades do Arrabalde Saint-Denis, onde sem dúvida estacionava habitualmente.
— Eh, amigo! — chamou-o Benedetto.
— Que deseja o nosso burguês? — perguntou o cocheiro.
— O seu cavalo está cansado?
— Cansado? Pois bem!... Não fez nada todo o santo dia. Quatro péssimas corridas e vinte soldos de gorjeta; sete francos ao todo e tenho de entregar dez ao patrão!
— Quer juntar a esses sete francos estes vinte?
— Com prazer, burguês! Vinte francos não é coisa que se despreze. Que é preciso fazer para isso?
— Uma coisa muito fácil se o seu cavalo não estiver cansado.
— Garanto-lhe que voará como o vento; basta dizer para que lado deve voar...
— Para o lado de Louvre.
— Ah, ah, conheço! Terra do ratafia, não é?...
— Exatamente. Trata-se apenas de apanhar um dos meus amigos com quem devo caçar amanhã na Chapelle-em-Serval. Devia esperar-me aqui com o seu cabriolé entre às onze e meia e meia-noite. Deve-se ter cansado de esperar e partiu sozinho.
— É provável.
— Bom, quer tentar apanhá-lo?
— Não pretendo outra coisa.
— Mas se o não apanharmos daqui ao Bourget, receberá vinte francos, e se o não apanharmos daqui a Louvre, trinta.
— E se o apanharmos?
— Quarenta! — respondeu Andréa, que tivera um momento de hesitação, mas refletira que não arriscava nada em prometer.
— Vamos a isso! — disse o cocheiro — Suba e a caminho.
Prrrum!...
Andréa subiu para o cabriolé, que, numa corrida rápida, atravessou o Arrabalde Saint-Denis, seguiu ao longo do Arrabalde Saint-Martin, atravessou a barreira e meteu pela interminável Villette.
Embora estivessem bem livres de apanhar o quimérico amigo, de vez em quando Cavalcanti perguntava aos transeuntes retardatários ou nas tabernas ainda abertas se tinham visto passar um cabriolé verde puxado por um cavalo baio escuro; e como na estrada dos Países Baixos circulam muitos cabriolés nove décimos dos quais verdes, as informações choviam a cada passo.
Acabavam sempre de o ver passar; não levava mais de quinhentos, duzentos ou cem passos de avanço; por fim, ultrapassavam-no e não era ele. Uma vez o cabriolé foi por seu turno ultrapassado por uma coche puxada rapidamente a galope por dois cavalos de posta.
— Ah, se tivesse aquela coche, aqueles dois bons cavalos e sobretudo o passaporte que foi preciso para os alugar!... — suspirou Cavalcanti.
Aquela coche era a que levava Mademoiselle Danglars e Mademoiselle d’Armilly.
— Depressa! Depressa! — gritou Andréa — Não deve faltar muito para o apanharmos.
E o pobre cavalo retomou o trote furioso em que viera desde a barreira e chegou todo fumegante a Louvre.
— Decididamente — disse Andréa — Não conseguirei apanhar o meu amigo e acabarei por matar o cavalo. Portanto, é melhor ficar por aqui. Tome os seus trinta francos; vou dormir no Cavalo Vermelho e seguirei na primeira carruagem em que tiver lugar. Boa noite, meu amigo.
E Andréa, depois de meter seis moedas de cinco francos na mão do cocheiro, saltou lestamente para a estrada.
O cocheiro, guardou alegremente o dinheiro e retomou a passo o caminho de Paris. Entretanto, Andréa fingiu dirigir-se para a Estalagem do Cavalo Vermelho; mas depois de parar um instante à porta a ouvir o cabriolé afastar-se até desaparecer no horizonte, retomou a sua corrida e, num passo de ginástica muito firme, percorreu mais duas léguas.
Depois, descansou. Devia estar muito perto da Chapelle-em-Serval, aonde dissera que ia. Não fora a fadiga que obrigara Andréa Cavalcanti a parar; fora a necessidade de tomar uma decisão, de estabelecer um plano.
Meter-se na diligência era impossível; optar pela posta era igualmente impossível. Para viajar de qualquer das maneiras era indispensável um passaporte.
Permanecer no departamento do Oise, ou seja, num dos departamentos mais descampados e vigiados de França, era também impossível, sobretudo tratando-se de um homem tão experiente como Andréa em matéria criminal. Sentado no parapeito do fosso, Andréa deixou cair a cabeça entre as mãos e refletiu. Dez minutos depois levantou a cabeça; a sua resolução estava tomada.
Cobriu de pó todo um lado do sobretudo que tivera tempo de tirar do cabide na antecâmara e vestir por cima do traje de cerimônia, dirigiu-se para a Chapelle-em-Serval e foi bater ousadamente à porta da única estalagem da terra.
O estalajadeiro veio abrir.
— Meu amigo — disse Andréa — Ia de Montrelontaine para Senlis quando o meu cavalo, que é um animal difícil, saltou bruscamente de lado e atirou comigo a dez passos de distância. Ora eu tenho de chegar esta noite a Compiêgne, sob pena de causar as mais graves preocupações à minha família; tem um cavalo que me alugue?
Bom ou mau, um estalajadeiro tem sempre um cavalo.
O estalajadeiro da Chapelle-em-Serval chamou o moço de estrebaria, ordenou-lhe que selasse o Branco e acordou o filho, um garoto de sete anos, para que acompanhasse o cliente montado na garupa e trouxesse o quadrúpede de volta.
Andréa deu vinte francos ao estalajadeiro e, ao tirá-los da algibeira, deixou cair um cartão de visita. Esse cartão de visita era de um dos seus amigos do Café de Paris; assim, o estalajadeiro, quando Andréa partiu e apanhou o cartão que caíra da algibeira do rapaz, ficou convencido de que alugara o cavalo ao Sr. Conde de Mauicon, Rua de Saint-Dominique, 25, nome e endereço que figuravam no cartão.
O Branco não ia depressa, mas ia num passo igual e constante. Em três horas e meia, Andréa percorreu as nove léguas que o separavam de Compiêgne, e davam quatro horas no relógio da câmara municipal quando chegou à praça onde param as diligências.
Existe em Compiêgne uma excelente estalagem, de que se recordam mesmo aqueles que só lá ficaram uma vez.
Andréa, que lá se hospedara numa das suas excursões aos arredores de Paris, lembrava-se da Estalagem do Sino e da Garrafa. Orientou-se, viu à luz de um candeeiro a tabuleta indicadora e depois de mandar embora o garoto, a quem deu todo o dinheiro miúdo que trazia consigo, foi bater à porta da estalagem, pensando com muito bom-senso que tinha diante de si três ou quatro horas e que o melhor era precaver-se, mediante um bom sono e uma boa ceia, contra as fadigas futuras.
Foi um criado quem veio abrir.
— Meu amigo — disse Andréa — Venho de Saint-Jean-au-Bois, onde jantei, e contava apanhar a carruagem que passa à meia-noite; mas perdi-me como um estúpido e há quatro horas que percorro a floresta. Dê-me, pois um desses bonitos quartos que deitam para o pátio e mande levar—me lá um frango frio e uma garrafa de vinho de Bordéus.
O criado não teve nenhuma suspeita: Andréa falava com a mais perfeita tranqüilidade, de charuto na boca e com as mãos nas algibeiras do sobretudo. O seu traje era elegante, estava bem barbeado e as suas botas apresentavam-se impecáveis; tinha, quando muito, o ar de um habitante da terra retardatário.
Enquanto o criado lhe preparava o quarto, a estalajadeira levantou-se. Andréa acolheu-a com o seu mais encantador sorriso e perguntou-lhe se não poderia ficar no número 3, onde já pernoitara na sua última passagem por Compiêgne. Infelizmente, o número 3 estava ocupado por um rapaz que viajava com a irmã.
Andréa pareceu contrariado e só se conformou quando a estalajadeira lhe garantiu que o número 7, que lhe estavam preparando, tinha absolutamente a mesma disposição que o número 3. Assim, esperou, aquecendo os pés e conversando acerca das últimas corridas de Chantilly, que lhe viessem anunciar que o quarto estava pronto.
Não fora sem motivo que Andréa falara dos bonitos quartos que davam para o pátio. De fato, o pátio da Estalagem do Sino, com a sua tripla fileira de galerias que lhe davam o ar de uma sala de espetáculos, com os seus jasmins e as suas clematites que subiam ao longo das suas colunatas, leves como uma decoração natural, era uma das mais encantadoras entradas de estalagem existentes no mundo.
O frango estava ótimo, o vinho era velho e o lume crepitava alegremente. Andréa surpreendeu-se a cear com tanto apetite como se nada tivesse acontecido. Depois deitou-se e adormeceu quase imediatamente, num desses sonos implacáveis que o homem encontra sempre aos vinte anos, mesmo quando tem remorsos.
Ora, somos forçados a confessar que Andréa poderia ter remorsos, mas não os tinha. Eis qual era o plano de Andréa, plano que lhe dera a maior parte da sua tranqüilidade: ao amanhecer, se levantaria e sairia da estalagem depois de pagar escrupulosamente a conta; se dirigiria para a floresta e compraria, a pretexto de se dedicar a estudos de pintura, a hospitalidade de um camponês; arranjaria um traje de lenhador e um machado, ou seja, despiria as galas de “leão” para envergar as vestes de operário. Depois, com as mãos terrosas, o cabelo escurecido por um pente de chumbo e o rosto bronzeado com um preparado de que os seus antigos camaradas lhe tinham dado a receita, alcançaria, de floresta em floresta, a fronteira mais próxima, caminhando de noite, dormindo de dia nos bosques ou nas pedreiras e só se aproximando de lugares habitados para comprar de vez em quando um pão.
Uma vez atravessada a fronteira, Andréa venderia os diamantes por uma importância a que juntaria uma dezena de notas que trazia sempre consigo para qualquer eventualidade e se encontraria ainda de posse de umas cinqüenta mil francos, o que não parecia à sua filosofia um começo de vida demasiado rigoroso.
De resto, contava muito com o interesse que os Danglars teriam em extinguir o falatório acerca da sua desventura. Eis por que, além da fadiga, Andréa adormeceu tão depressa e dormiu tão bem.
No entanto, para acordar mais cedo, Andréa não fechara as persianas; limitara-se apenas a correr o fecho da porta e a deixar aberta, em cima da mesa-de-cabeceira, uma navalha aguçadíssima, cuja excelente têmpera conhecia e de que nunca se separava.
Por volta das sete da manhã, Andréa foi acordado por um raio de sol que lhe veio, tépido e brilhante, brincar no rosto.
Em qualquer cérebro bem organizado a idéia dominante, e existe sempre uma, a idéia dominante, dizíamos, é a que, depois de ser a última a adormecer, é também a primeira que ilumina o despertar do pensamento. Ainda Andréa não abrira por completo os olhos e já o seu pensamento dominante se lhe impunha e segredava que dormira demais.
Saltou da cama e correu à janela.
Um guarda atravessava o pátio.
Um guarda é um dos indivíduos mais impressionantes que existem no mundo, mesmo aos olhos de um homem que não tem nada a temer; mas para uma consciência assustada e que tem algum motivo para o estar, o amarelo, o azul e o branco de que se compõe o seu uniforme adquirem aspectos assustadores.
— Porquê um guarda? — pensou Andréa. De súbito, respondeu a si mesmo com a lógica que o leitor já lhe deve ter notado — Um guarda não tem nada de extraordinário numa estalagem. Em todo o caso, vistamo-nos...
E o jovem vestiu-se com uma rapidez que não conseguira fazer-lhe perder o seu criado de quarto durante os poucos meses de vida social que levara em Paris.
— Bom — disse Andréa enquanto se vestia — Esperarei que se vá embora e quando se for embora, escaparei.
E ditas estas palavras, Andréa, já calçado e engravatado, aproximou-se devagarinho da janela e soergueu pela segunda vez a cortina de musselina.
Não só o primeiro guarda não fora embora, como ainda surgiu aos olhos do jovem segundo uniforme azul, amarelo e branco, ao fundo da escada, a única pela qual poderia descer, enquanto um terceiro, a cavalo e de mosquetão em punho, se conservava de sentinela diante da grande porta da rua, a única pela qual poderia sair.
O terceiro guarda era deveras significativo, e isto porque atrás dele se estendia um semicírculo de curiosos que bloqueavam hermeticamente a porta da estalagem.
“Procuram-me!”, foi o primeiro pensamento de Andréa “Diabo!”.
A palidez invadiu a fronte do rapaz; olhou à sua volta com ansiedade. O seu quarto, como todos os daquele andar, só tinha saída para a galeria exterior, aberta a todos os olhares.
“Estou perdido!”, foi o seu segundo pensamento.
Com efeito, para um homem na situação de Andréa a prisão significava: julgamento, sentença e morte, a morte sem misericórdia e sem demora. Por instantes comprimiu convulsivamente a cabeça entre as mãos.
Durante esses instantes, quase enlouqueceu de medo.
Mas daquele mundo de pensamentos que se lhe entrechocavam na cabeça não tardou a brotar um pensamento de esperança. Nos lábios descorados desenhou-se um sorriso pálido, que lhe iluminou as faces contraídas.
Olhou à sua volta. Os objetos que procurava encontravam-se reunidos em cima do mármore de uma mesa: eram uma pena, tinta e papel. Molhou a pena na tinta e escreveu com mão que se esforçou por tornar firme as seguintes linhas, na primeira folha do caderno:

Não tenho dinheiro para pagar, mas não sou um homem desonesto. Deixo em penhor este alfinete, que vale dez vezes a despesa que fiz.
Espero que me desculpem ter fugido ao amanhecer, tive vergonha!

Tirou o alfinete da gravata e colocou-o em cima do papel. Feito isto, em vez de deixar o fecho corrido, abriu-o, entreabriu mesmo a porta, como se tivesse saído do quarto e se houvesse esquecido de o fechar, metendo-se na chaminé como homem habituado àquele gênero de ginástica, puxou para si a antepara de papel que representava Aquiles com Deidamia, apagou com os próprios pés os vestígios dos seus passos nas cinzas e começou a escalar o tubo curvo que lhe oferecia a única via de salvação em que ainda podia ter alguma esperança.
Naquele preciso momento, o primeiro guarda que Andréa vira subia a escada, precedido pelo comissário de polícia, e apoiado pelo segundo guarda, que guardava o fundo da escada, o qual contava por seu turno com o apoio do que se encontrava à porta. Eis a que circunstância Andréa devia a visita que com tanta dificuldade se dispunha a receber.
Ao amanhecer, os telégrafos tinham funcionado em todas as direções, e cada posto, prevenido quase imediatamente, avisara as autoridades e lançara a força pública em busca do assassino de Caderousse.
Compiêgne, residência real; Compiêgne, cidade de caça; Compiêgne, cidade de guarnição, estava abundantemente fornecida de autoridades, guardas e comissários de polícia. As buscas tinham, portanto começado logo após a recepção da ordem telegráfica, e como a Estalagem do Sino e da Garrafa era o principal estabelecimento hoteleiro da cidade, começara-se muito naturalmente por ele.
Aliás, segundo o relatório das sentinelas que tinham estado durante a noite de guarda à câmara municipal, a câmara municipal ficava contígua à Estalagem do Sino, segundo o relatório das sentinelas, dizíamos, verificara-se durante a noite a chegada de vários viajantes à estalagem.
A sentinela que fora rendida às seis da manhã recordava-se até de, no momento em que ocupara o seu posto, isto é, às quatro horas e poucos minutos, ter visto um jovem montado num cavalo branco e com um camponezinho na garupa, jovem que desmontara na praça, mandara embora o campônio e o cavalo e fora bater à porta da Estalagem do Sino, que se abrira diante dele e se fechara nas suas costas. Fora sobre esse jovem tão singularmente retardatário que tinham recaído as suspeitas.
Ora, o jovem era precisamente Andréa.
E eram baseados nestes dados que o comissário de polícia e o guarda, um cabo, se encaminhavam para a porta de Andréa, que estava entreaberta.
— Oh, oh, mau sinal uma porta aberta! — exclamou o cabo, velha raposa batida nas manhas da profissão — Preferia vê-la fechada a sete chaves!
Com efeito, o bilhete e o alfinete deixados por Andréa em cima da secretária confirmaram ou, antes, apoiaram a triste realidade: Andréa fugira.
Dizemos apoiaram porque o cabo não era homem que se contentasse com uma única prova. Olhou à sua volta, espreitou debaixo da cama, correu os cortinados, abriu os armários e por fim deteve-se diante da chaminé. Graças às precauções de Andréa, nenhum vestígio da sua passagem ficara nas cinzas.
Contudo, era uma saída, e nas circunstâncias em que se encontravam, todas as saídas deviam ser objeto de rigorosa investigação.
O cabo mandou, portanto trazer um molho de lenha e palha e encheu a chaminé como se fosse um morteiro. Em seguida largou fogo a tudo. O lume fez estalar as paredes de tijolo e uma densa coluna de fumo subiu pela chaminé e foi expelida para o céu como o jato negro de um vulcão. Ninguém viu, porém, cair o fugitivo, como se esperava.
É que Andréa, desde a sua primeira juventude em luta com a sociedade, valia bem um guarda, ainda que esse guarda fosse um respeitável cabo: previra, portanto o incêndio, alcançara o telhado e escondera-se atrás da chaminé.
Por momentos teve alguma esperança de se encontrar salvo, pois ouviu o cabo chamar os dois guardas e gritar-lhes:
— Não está aqui!
Mas, estendendo cautelosamente o pescoço, viu que os dois guardas, em vez de se retirarem, como seria natural, à primeira chamada, viu, dizíamos, que, pelo contrário, os dois guardas redobravam de atenção.
Olhou por seu turno em redor: a câmara municipal, edifício colossal do século XVI, erguia-se diante de si como uma muralha sombria; à direita, pelas janelas do monumento, podiam-se observar lodos os cantos e recantos do telhado da estalagem, tal como do alto de uma montanha se vê o vale.
Andréa adivinhou que de um momento para o outro veria aparecer a cabeça do cabo de guardas em qualquer daquelas janelas. Descoberto, estaria perdido; uma perseguição nos telhados não lhe apresentava nenhuma probabilidade de êxito.
Resolveu, portanto voltar a descer, não pelo mesmo caminho por onde viera, mas sim por um caminho análogo. Procurou com a vista uma chaminé donde não saísse qualquer fumo, alcançou-a rastejando pelo telhado e desapareceu no orifício sem ser visto por ninguém. No mesmo instante abriu-se uma janelinha da câmara municipal e deu passagem à cabeça do cabo de guardas. Por momentos essa cabeça ficou imóvel como um dos relevos de pedra que decoravam o edifício, depois, com um longo suspiro de decepção, a cabeça desapareceu.
O cabo, calmo e digno como a lei que representava, passou sem responder às mil e uma perguntas da multidão aglomerada na praça e voltou a entrar na estalagem.
— Então? — perguntaram por sua vez os dois guardas.
— Então, meus rapazes, parece que de fato o bandido se distanciou de nós esta manhã ao nascer do dia — respondeu o cabo — Mas vamos mandar pessoal para as estradas de Villers-Cotterets e Noyon e revistar a floresta, onde sem dúvida nenhuma o apanharemos.
O respeitável funcionário acabava de proferir estas palavras com a entonação característica dos cabos de guardas, quando um longo grito de terror, acompanhado do toque repetido de uma campainha, soou no pátio da estalagem.
— Oh! Que é aquilo? — gritou o cabo.
— Ora aí está um viajante que parece cheio de pressa — comentou o estalajadeiro — Em que número estão a tocar?
— No número 3.
— Corre, rapaz!
Neste momento, os gritos e os toques de campainha aumentaram.
O criado desatou a correr.
— Não — disse o cabo, detendo o rapaz — Quem toca parece pedir mais alguma coisa do que o criado e nós vamos mandar-lhe um guarda. Quem está hospedado no número 3?
— O jovem que chegou esta noite com a irmã numa sege de posta e pediu um quarto com duas camas.
A campainha tocou terceira vez com uma insistência cheia de angústia.
— Vamos, Sr. comissário! — gritou o cabo — Siga-me o mais de perto possível.
— Um momento! — interveio o estalajadeiro — Para o quarto número 3 há duas escadas: uma exterior e outra interior.
— Bom, irei pela interior — respondeu o cabo — As carabinas estão carregadas?
— Estão, sim, cabo.
— Então, vigiem vocês o exterior e se ele tentar fugir, atirem-lhe. É um grande criminoso, segundo disse o telégrafo.
O cabo, seguido do comissário, desapareceu imediatamente na escada interior, acompanhado pelo sussurro que as suas revelações acerca de Andréa acabava de provocar na multidão.
Eis o que acontecera.
Andréa descera perfeitamente dois terços da chaminé, mas, chegado aí, o pé falhara-lhe e, apesar de se apoiar nas mãos, descera com mais velocidade e, sobretudo com mais barulho do que desejaria. Isso não teria importância se o quarto estivesse vazio; mas, por infelicidade sua, estava ocupado.
Duas mulheres que dormiam na mesma cama tinham sido acordadas pelo barulho. Os seus olhos estavam cravados no ponto de onde viera o barulho e tinham visto aparecer um homem pela abertura da chaminé.
Fora uma das mulheres, a loura, que soltara o grito terrível que ecoara por toda a casa, enquanto a outra, que era morena, se agarrava ao cordão da campainha e dava o alarme, tocando com todas as suas forças.
Como se vê, Andréa estava em maré de azar.
— Por piedade! — gritou, pálido, desorientado, sem ver as pessoas a quem se dirigia — Por piedade, não chamem, salvem-me! Não quero lhes fazer mal.
— Andréa, o assassino! — gritou uma das moças.
— Eugénie! Mademoiselle Danglars! — murmurou Cavalcanti, passando do terror ao espanto.
— Socorro! Socorro! — gritou Mademoiselle d’Armilly, tirando a campainha das mãos inertes de Eugénie e tocando ainda com mais força do que a companheira.
— Salvem-me, perseguem-me! — suplicou Andréa juntando as mãos — Por piedade, por compaixão, não me entreguem!
— É demasiado tarde, ouço subir — respondeu Eugénie.
— Então escondam-me em qualquer parte e digam que se assustaram sem motivo. Desviarão as suspeitas e me salvarão a vida.
As duas mulheres, agarradas uma à outra envoltas na roupa da cama, ficaram mudas àquela voz suplicante. Todas as apreensões, todas as repugnâncias se entrechocavam no seu espírito!
— Está bem, seja! — acedeu Eugénie — Volte pelo caminho por onde veio, desgraçado. Parta e não diremos nada.
— Aqui está ele! Aqui está ele! — gritou uma voz no patamar — Aqui está ele, estou vendo-o!
Com efeito, o cabo colara um olho à fechadura e vira Andréa de pé e suplicante.
Uma violenta coronhada fez saltar a fechadura e mais duas fizeram saltar o ferrolho. A porta, quebrada, caiu para dentro.
Andréa correu para a outra porta, a que deitava para a galeria do pátio, abriu-a e preparou-se para saltar. Mas os dois guardas estavam lá com as suas carabinas e levaram-nas à cara.
Andréa parou bruscamente. De pé, pálido, com o corpo um pouco inclinado para trás, segurava a navalha, agora inútil, na mão crispada.
— Fuja! — gritou Mademoiselle d’Armilly, no coração da qual entrava a piedade à medida que o terror saía — Fuja!
— Ou mate-se! — acrescentou Eugénie no tom e na atitude de uma daquelas vestais que no circo ordenavam com o polegar, ao gladiador vitorioso, que acabasse com o seu adversário vencido.
Andréa estremeceu e fitou a jovem com um sorriso de desprezo, demonstrativo de que a sua corrupção não compreendia aquela sublime ferocidade da honra.
— Matar-me! — exclamou, largando a navalha — Para quê?
— Mas você mesmo disse que o condenarão à morte e o executarão como o último dos criminosos! — gritou Mademoiselle Danglars.
— Ora!... — replicou Cavalcanti, cruzando os braços — Tenho amigos...
O cabo avançou para ele de sabre em punho.
— Pronto, pronto, meu caro, meta isso na bainha! — disse Cavalcanti — Não vale a pena tanto espalhafato, uma vez que me rendo...
E estendeu as mãos para as algemas.
As duas jovens assistiam com terror àquela horrível metamorfose que se operava diante dos seus olhos: a de um homem de sociedade que se despojava do seu invólucro e voltava à sua condição de forçado.
Andréa virou-se para elas e perguntou com um sorriso de impudência:
— Tem algum recado para o senhor seu pai, Mademoiselle Eugénie? Porque, segundo todas as probabilidades, regresso a Paris...
Eugénie escondeu o rosto nas mãos.
— Oh, não tem de que se envergonhar nem lhe quero mal por se ter metido numa carruagem e corrido atrás de mim!... — exclamou Andréa — Não era quase seu marido?
E depois desta graçola, Andréa saiu deixando as duas fugitivas entregues às amarguras da vergonha e aos comentários dos curiosos. Uma hora mais tarde, envergando ambas a sua indumentária feminina, subiam para a sua coche de viagem.
Tinham fechado a porta da estalagem para as subtrair aos primeiros olhares, mas mesmo assim, quando a porta se abriu, tiveram de passar entre alas de curiosos de olhos chamejantes e lábios murmurantes. Eugénie desceu os estores; mas se já não via, continuava a ouvir os risos escarninhos.
— Oh, porque não será o mundo um deserto?! — exclamou, lançando-se nos braços de Mademoiselle d’Armilly, com os olhos cintilantes da raiva que fazia desejar a Nero que o mundo romano tivesse apenas uma cabeça para a cortar de um só golpe.
No dia seguinte hospedavam-se no Hotel de Flandres, em Bruxelas.
Andréa entrara na véspera na Conciergerie.





continua...





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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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