sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 101



CI

LOCUSTA




V
alentine ficou sozinha. Mais dois relógios, atrasados em relação ao de Saint-Philippe du Roule, deram ainda a meia-noite a distâncias diferentes. Depois, excetuando o ruído de algumas carruagens distantes, tudo recaiu no silêncio. Então, toda a atenção de Valentine se concentrou no relógio do quarto, cujo pêndulo mareava os segundos.
Pôs-se a contar esses segundos e notou que eram duas vezes mais lentos do que as pulsações do seu coração. E, no entanto ainda duvidava.
A inofensiva Valentine não podia conceber que alguém desejasse a sua morte. Por quê? Com que fim? Que mal fizera que lhe tivesse suscitado um inimigo?
Não havia receio de que adormecesse. Uma única idéia, uma idéia terrível, ocupava o seu espírito tenso: a de que existia uma pessoa no mundo que tentara assassiná-la e que o ia tentar novamente. Desta vez essa pessoa, cansada de ver a ineficácia do veneno, ia, como lhe dissera Monte Cristo, recorrer ao ferro! Se o Conde não tivesse tempo de lhe acudir... se tivesse chegado o seu último momento... se nunca mais tornasse a ver Morrel... perante semelhantes pensamentos, que a cobriam ao mesmo tempo de uma palidez lívida e de um suor gelado, Valentine estava prestes a pegar no cordão da campainha e a pedir socorro.
Mas parecia-lhe ver cintilar, através da porta da estante, o olhar do Conde, esse olhar que pesava na sua memória e que, quando pensava nele, a dominava tal vergonha que perguntava a si mesma se alguma vez o reconhecimento conseguiria apagar o penoso efeito da indiscreta amizade do Conde.
Vinte minutos, vinte eternidades, passaram-se assim, e depois mais dez. Por fim o relógio rangeu com um segundo de antecedência e acabou por martelar uma vez o timbre sonoro. Nesse preciso momento um ruído de unhas quase imperceptível na madeira da estante avisou Valentine de que o Conde velava e lhe recomendava que estivesse atenta. Com efeito, do lado oposto, isto é, para as bandas do quarto de Edouard, pareceu a Valentine ouvir ranger o parqué. Apurou o ouvido e conteve a respiração até quase sufocar.
O puxador da porta rangeu e esta girou nos gonzos.
Valentine, que estava soerguida num cotovelo, só teve tempo de se deixar cair na cama e de esconder os olhos debaixo do braço.
Depois, trêmula, agitada, com o coração apertado por indizível terror, esperou.
Alguém se aproximou da cama e aflorou os cortinados. Valentine reuniu todas as suas forças e deixou ouvir e murmúrio regular da respiração que anuncia um sono tranqüilo.
— Valentine! — chamou baixinho uma voz.
A jovem estremeceu até ao fundo do coração, mas não respondeu.
— Valentine! — repetiu a mesma vez.
Igual silêncio: Valentine prometera não acordar. Depois tudo permaneceu imóvel.
Valentine ouviu apenas o ruído quase imperceptível de um líquido caindo no copo que acabara de despejar. Então atreveu-se, a coberto do braço estendido, a entreabrir as pálpebras.
Viu uma mulher de penteador branco que deitava no copo um licor preparado antecipadamente num frasco. Durante esse curto instante, Valentine conteve talvez a respiração ou fez sem dúvida algum movimento porque a mulher deteve-se e inclinou-se sobre a cama para ver melhor se ela dormia realmente: era a Sra. de Villefort.
Ao reconhecer a madrasta, Valentine foi atacada por calafrios intensos, que imprimiram movimento à cama. A Sra. de Villefort afastou-se imediatamente ao longo da parede e aí, escondida atrás dos cortinados da cama, muda, atenta, espiou o mais pequeno movimento de Valentine.
Esta recordou-se das terríveis palavras de Monte Cristo; parecera-lhe ver brilhar na mão que segurava o frasco uma espécie de punhal comprido e aguçado. Então, apelando para toda a força da sua vontade em seu auxílio, esforçou-se por fechar os olhos. Mas tal função do mais sensível dos nossos sentidos, tal função, habitualmente tão simples, tornava-se naquele momento quase impossível de executar, de tal modo a viva curiosidade se esforçava por repelir as pálpebras e atrair a verdade.
Entretanto, tranqüilizada pelo silêncio em que recomeçara a ouvir-se o ruído compassado da respiração de Valentine, sinal de que esta dormia, a Sra. de Villefort estendeu de novo o braço e, permanecendo meio escondida pelos cortinados apanhados à cabeceira da cama, acabou de deitar no copo de Valentine o conteúdo do frasco.
Depois retirou-se, sem que o mais pequeno ruído advertisse Valentine de que fora embora. Esta vira apenas desaparecer o braço, mais nada; o braço fresco e torneado de uma mulher de vinte e cinco anos, jovem e bela que derramava a morte.
É impossível exprimir o que Valentine experimentou durante o minuto e meio que a Sra. de Villefort permanecera no seu quarto.
O ruído de unhas na estante arrancou a jovem ao estado de torpor em que mergulhara e que se assemelhava à perda dos sentidos. Levantou a cabeça com esforço. A porta, sempre silenciosa, girou segunda vez nos gonzos e o Conde de Monte Cristo reapareceu.
— Então, ainda duvida? — perguntou o Conde.
— Oh, meu Deus! — murmurou a jovem.
— Viu?
— Infelizmente!
— Reconheceu a pessoa?
Valentine soltou um gemido.
— Reconheci, mas não posso acreditar — respondeu.
— Prefere então morrer e fazer morrer Maximilien!...
— Meu Deus, meu Deus! — repeliu a jovem, quase desvairada — Mas não poderei deixar esta casa, salvar-me?...
— Valentine, a mão que a persegue a alcançará em qualquer lugar. O poder de ouro comprar os seus criados e a morte lhe surgirá disfarçada sob todos os aspectos: na água que beber na fonte, no fruto que colher na árvore.
— Mas não me disse que a precaução do avozinho me imunizara contra o veneno?
— Contra um veneno e mesmo assim não empregado em dose forte. Mudará de veneno ou aumentará a dose.
Pegou no copo e molhou os lábios.
— E isso já foi feito! Já não é com brucina que a envenenam, é com um simples narcótico. Reconheço o gosto do álcool em que o dissolveram. Se tivesse bebido o que a Sra. de Villefort acaba de deitar neste copo, Valentine, estaria perdida.
— Mas, meu Deus, por que motivo me persegue assim? — gritou a jovem.
— Como, é assim tão meiga, tão boa, tão pouco crente no mal que ainda não compreendeu, Valentine?
— Não, e nunca lhe fiz mal — respondeu a jovem.
— Mas a Valentine é rica! Tem duzentos mil francos de rendimento e impede que esses duzentos mil francos de rendimento sejam do filho dela!
— Como assim? A minha fortuna não lhe pertence, herdei-a da minha família.
— Claro, e foi por isso que o Sr. e a Sra. de Saint-Méran morreram: para que a Valentine herdasse deles. E aí está por que motivo, no dia em que a fez sua herdeira, o Sr. Noirtier foi também condenado, e por que motivo a Valentine devia morrer por seu turno: para que o seu pai herdasse de si e o seu irmão, tornado filho único, herdasse do seu pai.
— Edouard! Pobre criança, é por ele que se cometem todos esses crimes?
— Compreende, finalmente!
— Mas, meu Deus, contanto que tudo isso não caia sobre ele!
— É um anjo, Valentine.
— Mas o meu avô, renunciaram a matá-lo?
— Refletiram que uma vez a Valentine morta a fortuna, a não ser que tivesse havido deserdação, reverteria naturalmente para o seu irmão e concluíam que o crime, além de inútil, era duplamente perigoso.
— E foi no espírito de uma mulher que semelhante combinação se forjou? Oh, meu Deus, meu Deus!
— Lembre-se de Perúsia, do caramanchão da estalagem da posta, do homem da capa escura que a sua madrasta interrogava acerca da aquatofana. Desde essa época que todo este projeto infernal amadurecia no seu cérebro.
— Oh, senhor, se é assim, bem vejo que estou condenada a morrer! — exclamou a meiga moça, lavada em lágrimas.
— Não, Valentine, não, porque previ todas as conspirações. Não, porque a nossa inimiga está vencida, uma vez que foi descoberta. Não, viverá Valentine, viverá para amar e ser amada, viverá para ser feliz e tornar feliz um nobre coração. Mas para viver, Valentine, tem de ter confiança em mim.
— Ordene, senhor. Que devo fazer?
— Deve tomar cegamente o que lhe darei.
— Oh, Deus é testemunha de que se estivesse sozinha preferiria morrer! — exclamou Valentine.
— Não dirá nada a ninguém, nem mesmo ao seu pai.
— O meu pai não tem nada a ver com esta horrível conspiração, não é verdade, senhor? — perguntou Valentine, juntando as mãos.
— Não, e, no entanto o seu pai, homem habituado às acusações criminais, o seu pai deve desconfiar de que todas estas mortes que desabam sobre a sua casa não são de modo algum naturais. Era ao seu pai que competia velar por si, era ele que devia estar a esta hora no lugar que ocupo; era ele que devia já ter despejado este copo; era ele que devia ter-se erguido contra o assassino. Fantasma contra fantasma... — murmurou à guisa de conclusão.
— Senhor — disse Valentine — Farei tudo para viver porque existem dois seres no mundo que me amam a tal ponto que morreriam se eu morresse: o meu avô e Maximilien.
— Velarei por eles como tenho velado por si.
— Sendo assim, senhor, disponha de mim — disse Valentine, que acrescentou em voz baixa — Oh, meu Deus, meu Deus, que irá me acontecer?
— Seja o que for que lhe aconteça, Valentine, não se assuste. Mesmo que sofra e que perca a vista, o ouvido e o tato, nada receie! Se acordar sem saber onde está, não tenha medo, ainda que ao acordar se encontre em qualquer jazigo ou encerrada num caixão. Recupere rapidamente a sua presença de espírito e diga para consigo: “Neste momento um amigo, um pai, um homem que quer a minha felicidade e a de Maximilien, esse homem vela por mim”.
— Valha-me Deus, que terrível extremidade!
— Valentine, prefere denunciar a sua madrasta?
— Preferiria morrer cem vezes! Oh, sim, morrer!
— Não, não morrerá, e seja o que for que lhe aconteça, prometa-me não se queixar, não perder a esperança?
— Pensarei em Maximilien.
— Valentine é a minha filha bem-amada. Só eu posso salvá-la e a salvarei.
No cúmulo do terror, Valentine juntou as mãos, porque sentia que chegara o momento de pedir coragem a Deus, e ergueu-se para rezar, murmurando palavras sem nexo e esquecendo que os seus ombros brancos não tinham mais nada a cobri-los além da sua comprida cabeleira e que se via pulsar o seu coração sob a renda fina da camisa de dormir.
O Conde pousou suavemente a mão no braço da jovem, puxou-lhe até ao pescoço a colcha de veludo e disse com um sorriso paternal:
— Minha filha, confie na minha dedicação como confia na bondade de Deus e no amor de Maximilien.
Valentine pousou nele um olhar cheio de reconhecimento e permaneceu dócil como uma criança debaixo da colcha que a cobria.
Então o Conde tirou da algibeira do colete a caixinha de esmeralda onde guardava as suas drágeas, abriu a tampa de ouro e deitou a mão direita de Valentine uma pastilhazinha redonda, do tamanho de uma ervilha.
Valentine pegou-lhe com a outra mão e olhou o Conde atentamente. Havia nas feições daquele intrépido protetor um reflexo da majestade e do poder divinos. Era evidente que Valentine o interrogava com a vista.
— Sim — respondeu ele.
Valentine levou a pastilha à boca e engoliu-a.
— E agora, até breve, minha filha — disse o Conde — Vou tentar dormir, porque está salva.
— Vá — disse Valentine — Sei a o que for que me aconteça, prometo-lhe não ter medo.
Monte Cristo conservou durante muito tempo os olhos fitos na jovem, que adormeceu pouco a pouco, vencida pela força do narcótico que o Conde acabava de lhe dar.
Então, este pegou no copo, despejou três quartas partes do seu conteúdo na chaminé, para que se pudesse crer que Valentine bebera o que faltava, e voltou a colocá-lo em cima da mesa-de-cabeceira.
Em seguida dirigiu-se para a porta da estante e desapareceu, depois de lançar um derradeiro olhar a Valentine, que adormecia com a confiança e a candura de um anjo deitado aos pés do Senhor.



  
continua...



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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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