— CAPÍTULO DOIS —
O Grande Erro De Tia Guida
HARRY DESCEU PARA O CAFÉ
NA MANHÃ seguinte e já encontrou os três Dursley sentados à mesa. Estavam
assistindo a uma televisão novinha em folha, um presente de boas-vindas para as
férias de verão em casa de Duda, que andara se queixando, em várias vozes,
sobre a grande distância entre a geladeira e a televisão da sala. Duda passara
a maior parte do verão na cozinha, seus miúdos olhinhos de porco fixos na telinha
e sua papada em cinco camadas balançando enquanto ele comia sem parar.
Harry
sentou-se entre Duda e Tio Válter, um homem grande e socado, com pescoço de
menos e bigodes de mais. Longe de desejarem a Harry um feliz aniversário, os
Dursley não deram qualquer sinal de que tinham reparado em sua entrada na
cozinha, mas o menino estava mais do que acostumado com isso para se importar.
Serviu-se de uma fatia de torrada e em seguida olhou para o repórter na
televisão, que já ia adiantado na transmissão de uma notícia sobre um fugitivo
da prisão.
—
Alertamos os nossos telespectadores de que Black está armado e é extremamente
perigoso. Se alguém o avistar deverá ligar para o número do plantão de
emergência imediatamente.
— Nem
precisa dizer quem ele é — riu-se Tio Válter, espiando o prisioneiro por cima
do jornal — Olhem só o estado dele, a imundice do desleixado! Olhem o cabelo
dele!
E
lançou um olhar de esguelha, maldoso, para Harry, cujos cabelos despenteados
sempre tinham sido uma fonte de grande aborrecimento para o tio. Comparado ao
homem da televisão, porém, cujo rosto ossudo era emoldurado por um emaranhado
que lhe chegava aos cotovelos, Harry se sentiu, na verdade, muito bem penteado.
O
repórter reaparecera.
— O
Ministério da Agricultura e da Pesca irá anunciar hoje...
—
Espere aí! — berrou Tio Válter, olhando furioso para o repórter — Você não
disse de onde esse maníaco fugiu! De que adiantou o alerta? O louco pode estar
passando na minha rua neste exato momento!
Tia
Petúnia, que era ossuda e tinha cara de cavalo, virou-se depressa e espiou com
atenção pela janela da cozinha. Harry sabia que a tia simplesmente adoraria
poder ligar para o telefone do plantão de emergência. Era a mulher mais
bisbilhoteira do mundo e passava a maior parte da vida espionando os vizinhos
sem graça, que nunca faziam nada errado.
—
Quando é que eles vão aprender — exclamou Tio Válter, batendo na mesa com o
punho grande e arroxeado — Que a forca é a única solução para gente assim?
— É
verdade — concordou Tia Petúnia, que ainda procurava ver alguma coisa por entre
a trepadeira do vizinho.
Tio
Válter terminou de beber a xícara de chá, deu uma olhada no relógio de pulso e
acrescentou:
— É
melhor eu ir andando, Petúnia. O trem de Guida chega às dez.
Harry,
cujos pensamentos andavam no andar de cima com o Estojo para Manutenção de
Vassouras, foi trazido de volta à terra com um tranco desagradável.
— Tia
Guida? — o garoto deixou escapar — É... ela não está vindo para cá, está?
Tia
Guida era irmã de Tio Válter. Embora não fosse um parente consanguíneo de Harry
(cuja mãe fora irmã de Tia Petúnia), a vida inteira ele tinha sido obrigado a
chamá-la de “tia”. Tia Guida morava no campo, em uma casa com um grande jardim,
onde ela criava buldogues. Raramente se hospedava na Rua dos Alfeneiros, porque
não conseguia suportar a idéia de se separar dos seus preciosos cachorros, mas
cada uma de suas visitas permanecia horrivelmente nítida na cabeça de Harry.
Na
festa do quinto aniversário de Duda, Tia Guida tinha dado umas bengaladas nas
canelas de Harry para impedi-lo de vencer o primo em uma brincadeira. Alguns
anos mais tarde, ela aparecera no Natal trazendo um robô computadorizado para
Duda e uma caixa de biscoitos de cachorro para Harry. Na última visita, um ano
antes do garoto entrar para Hogwarts, ele pisara sem querer o rabo do cachorro
favorito da tia. Estripador perseguira Harry até o jardim e o acuara em cima de
uma árvore, mas Tia Guida se recusara a recolher o cachorro até depois da
meia-noite. A lembrança desse incidente ainda produzia lágrimas de riso nos
olhos de Duda.
—
Guida vai passar uma semana aqui — rosnou Tio Válter — E enquanto estamos nesse
assunto — ele apontou um dedo gordo e ameaçador para Harry — Precisamos acertar
algumas coisas antes de eu sair para apanhá-la.
Duda
fez ar de riso e desviou o olhar da televisão. Assistir a Harry ser maltratado
pelo pai era sua diversão favorita.
— Em
primeiro lugar — rosnou Tio Válter — Você vai falar com bons modos quando se
dirigir a Guida.
—
Tudo bem — disse Harry com amargura — Se ela fizer o mesmo quando se dirigir a
mim.
— Em
segundo lugar — continuou o tio, fingindo não ter ouvido a resposta de Harry —
Como Guida não sabe nada da sua anormalidade, não quero nenhuma... nenhuma
gracinha enquanto ela estiver aqui. Você vai se comportar, está me entendendo?
— Eu
me comporto se ela se comportar — retrucou Harry entre dentes.
— E
em terceiro lugar — disse Tio Válter, seus olhinhos maldosos agora simples
fendas na enorme cara púrpura — Dissemos a Guida que você freqüenta o Centro
St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis.
—
Quê?— berrou Harry.
— E
você vai sustentar essa história, moleque, ou vai se dar mal — cuspiu Tio
Válter.
Harry
ficou sentado ali, o rosto branco e furioso, encarando o Tio Válter, sem
conseguir acreditar no que ouvia. Tia Guida vinha fazer uma visita de uma
semana, era o pior presente de aniversário que os Dursley já tinham lhe dado,
incluindo nessa conta o par de meias velhas do tio.
—
Bom, Petúnia — disse Tio Válter, levantando-se com esforço — Vou indo para a
estação, então. Quer me acompanhar para dar um passeio, Dudoca?
— Não
— respondeu o menino, cuja atenção se voltara para a televisão agora que o pai
acabara de ameaçar Harry.
— O
Dudinha tem que ficar elegante para receber a titia — disse Tia Petúnia,
alisando os cabelos louros e espessos do filho — Mamãe comprou para ele uma
linda gravata-borboleta.
Tio
Válter deu uma palmadinha no ombrão de porco de Duda.
—
Vejo vocês daqui a pouco, então — disse ele, e saiu da cozinha.
Harry
que estivera sentado numa espécie de transe de horror, teve uma idéia
repentina. Abandonando a torrada, ele se levantou depressa e acompanhou o tio
até a saída.
Tio
Válter estava vestindo o paletó que usava no carro.
— Eu
não vou levar você — rosnou ele ao se virar e ver Harry observando-o.
—
Como se eu quisesse ir — disse Harry friamente — Quero lhe perguntar uma coisa.
O tio
mirou-o desconfiado.
— Os
alunos do terceiro ano em Hog... na minha escola às vezes têm permissão para
visitar o povoado próximo — disse Harry.
— E
daí? — retrucou o tio, tirando as chaves do carro de um gancho próximo à porta.
—
Preciso que o senhor assine o formulário de autorização — disse Harry depressa.
— E
por que eu iria fazer isso? — falou o tio com desdém.
— Bom
— respondeu Harry, escolhendo cuidadosamente as palavras — Vai ser duro fingir
para Tia Guida que eu freqüento o Saint não sei das quantas...
E
Harry ficou satisfeito de ouvir uma inconfundível nota de pânico em sua voz.
—
Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis! — berrou.
—
Exatamente — disse Harry, encarando com toda a calma o rosto púrpura do tio — É
muita coisa para eu me lembrar. Tenho que parecer convincente, não é mesmo? E
se eu, sem querer, deixar escapar alguma coisa?
— Vou
fazer picadinho de você, não é mesmo? — rugiu o tio, avançando para o sobrinho com
o punho levantado.
Mas
Harry aguentou firme.
—
Fazer picadinho de mim não vai ajudar Tia Guida a esquecer o que eu poderia
contar a ela — disse em tom de ameaça.
Tio
Válter parou, o punho ainda levantado, a cara de uma feia cor marrom-arroxeada.
— Mas
se o senhor assinar o meu formulário de autorização — apressou-se Harry a
acrescentar — Juro que vou me lembrar da escola que o senhor diz que frequento,
e vou me comportar como um trou... como se fosse normal e todo o resto.
Harry
percebeu que o tio estava considerando a proposta, mesmo que seus dentes
estivessem arreganhados e uma veia latejasse em sua têmpora.
—
Certo — disse por fim, bruscamente — Vou vigiar o seu comportamento muito de
perto durante a visita de Guida. Se, quando terminar, você tiver andado na
linha e sustentado a história, eu assino a droga do formulário.
E,
dando meia-volta, abriu a porta e bateu-a com tanta força que uma das vidraças
no alto se soltou.
Harry
não voltou à cozinha. Subiu as escadas e foi para o quarto. Se ia se comportar
como um trouxa de verdade, era melhor começar já. Devagar e com tristeza,
reuniu seus presentes e cartões de aniversário e escondeu-os debaixo da tábua
solta do soalho com os deveres de casa. Depois, foi até a gaiola de Edwiges.
Errol parecia ter-se recuperado, ele e Edwiges estavam dormindo, com a cabeça
enfiada embaixo da asa.
Harry
suspirou e cutucou as corujas; para acordá-las.
—
Edwiges — disse deprimido — Você vai ter que dar o fora por uma semana. Vá com
Errol. Rony cuidará de você. Vou escrever um bilhete para ele explicando. E não
me olhe assim — os grandes olhos âmbar de Edwiges se encheram de censura — Não
é minha culpa. É o único jeito que tenho de conseguir uma autorização para
visitar Hogsmeade com Rony e Hermione.
Dez
minutos depois, Errol e Edwiges (que levava um bilhete para Rony amarrado na
perna) saíram voando pela janela e desapareceram de vista. Harry, agora se
sentindo completamente infeliz, guardou a gaiola vazia dentro do armário.
Mas
não teve muito tempo para se entristecer. Não demorou quase nada e Tia Petúnia
já estava gritando lá embaixo para Harry descer e se preparar para dar as
boas-vindas à hóspede.
—
Faça alguma coisa com o seu cabelo! — disse Tia Petúnia bruscamente quando o
sobrinho chegou embaixo.
Harry
não via sentido em tentar fazer seu cabelo ficar penteado. Tia Guida adorava
criticá-lo, por isso, quanto mais desarrumado, mais satisfeita ela iria ficar.
Demasiado
cedo, ouviu-se um ruído de pneu triturando areia quando o carro de Tio Válter
entrou de marcha a ré pelo caminho da garagem, depois, batidas de portas e
passos no jardim.
—
Atenda a porta! — sibilou Tia Petúnia para Harry. Com uma sensação de grande
tristeza e depressão na boca do estômago, Harry abriu a porta.
Na
soleira encontrava-se Tia Guida. Era muito parecida com o Tio Válter;
corpulenta, alta, socada, a cara púrpura, tinha até bigode, embora não tão
peludo quanto o do irmão. Em uma das mãos ela trazia uma enorme mala, e,
aninhado sob a outra, um buldogue velho e mal-humorado.
—
Onde está o meu Dudoca? — bradou Tia
Guida — Onde está o meu sobrinho fofo?
Duda
veio gingando em direção ao hall, os cabelos louros emplastrados na cabeça
gorda, uma gravata-borboleta quase invisível sob a papada quíntupla. Tia Guida
largou a mala na barriga de Harry, deixando-o sem ar, agarrou Duda num abraço
apertado com o braço livre e plantou-lhe uma beijoca na bochecha.
Harry
sabia perfeitamente bem que Duda só aguentava os abraços da tia porque era bem
pago para isso, e não deu outra, quando os dois se separaram, Duda levava uma
nota novinha de vinte libras apertada na mão gorda.
—
Petúnia! — exclamou Tia Guida, passando por Harry como se ele fosse um cabide
de chapéus.
As
duas se beijaram, ou melhor, Tia Guida deu uma queixada na bochecha ossuda de
Tia Petúnia. Tio Válter entrou nesse momento, sorrindo jovialmente e fechou a
porta.
—
Chá, Guida? — ofereceu — E o que é que o Estripador vai tomar?
—
Estripador pode beber um pouco de chá no meu pires — respondeu Tia Guida
enquanto seguiam todos para a cozinha, deixando Harry sozinho no hall com a
mala.
Mas o
menino não ia se queixar, qualquer desculpa para ficar longe da tia era
bem-vinda, por isso começou a carregar a pesada mala para o quarto de hóspedes,
demorando o máximo que pôde.
No
momento em que voltou à cozinha, Tia Guida já fora servida de chá e bolo de
frutas e Estripador lambia alguma coisa, fazendo muito barulho, a um canto.
Harry viu Tia Petúnia fazer uma ligeira careta ao ver gotas de chá e baba
pontilharem o seu chão limpo. Ela detestava animais.
—
Quem ficou cuidando dos outros cachorros, Guida? — perguntou Tio Válter.
— Ah,
deixei o Coronel Fubster tratando deles — ribombou em resposta Guida — Ele
entrou para a reforma agora e é bom ter alguma coisa para fazer. Mas não pude
deixar o coitado do Estripador, tão velho. Ele fica doente de tristeza quando
viajo.
Estripador
recomeçou a rosnar quando Harry se sentou. Isto atraiu a atenção de Tia Guida
para Harry, pela primeira vez.
—
Então! — vociferou ela — Ainda está por aqui?
—
Estou — respondeu o menino.
— Não
diga “estou” nesse tom ingrato —
rosnou Tia Guida — É uma grande bondade Válter e Petúnia acolherem você. Eu não
teria feito o mesmo. Eu o teria mandado direto para um orfanato se alguém
largasse você na minha porta.
Harry
estava doido para responder que preferia viver em um orfanato do que com os
Dursley, mas a lembrança do formulário de Hogsmeade fez com que se calasse. Ele
se esforçou para dar um sorriso constrangido.
— Não
me venha com sorrisinhos! — trovejou Tia Guida — Estou vendo que não melhorou
nada desde a última vez que o vi. Tive esperanças que a escola lhe desse
educação à força, se fosse preciso.
Ela
tomou um grande gole de chá, limpou o bigode e continuou:
—
Aonde mesmo que você o está mandando Válter?
— St.
Brutus — respondeu o tio prontamente — É uma instituição de primeira classe
para casos irrecuperáveis.
—
Entendo. Eles usam a vara em St. Brutus? — vociferou ela do lado oposto da
mesa.
Tio
Válter fez um breve aceno de cabeça por trás de Tia Guida.
—
Usam — respondeu Harry. Depois, sentindo que devia fazer a coisa bem-feita,
acrescentou — O tempo todo.
—
Ótimo — aprovou Tia Guida — Eu não aceito essa conversa fiada de não bater em
gente que merece. Uma boa surra de vara resolve noventa e nove casos em cem.
Você já apanhou muitas vezes?
— Ah,
já — respondeu Harry — Um monte de vezes.
Tia
Guida apertou os olhos.
— Não
gosto do seu tom, moleque. Se você consegue falar das surras que leva com esse
tom displicente, obviamente não estão lhe batendo com a força que deviam.
Petúnia, se eu fosse você escreveria à escola. Deixaria claro que os tios
aprovavam o uso de força extrema no
caso desse moleque.
Talvez
Tio Válter estivesse preocupado que Harry pudesse esquecer o acordo que tinham
feito; o caso é que ele mudou o assunto bruscamente.
—
Ouviu o noticiário hoje de manhã, Guida? E aquele prisioneiro que fugiu, hein?
* * *
Enquanto Tia Guida
começava a se fazer em casa, Harry se surpreendeu pensando quase com saudade na
vida na Rua dos Alfeneiros, nº. 4 sem ela.
Tio
Válter e Tia Petúnia em geral encorajavam Harry a ficar fora do caminho deles,
o que o menino fazia com a maior satisfação. Tia Guida, por outro lado, queria
Harry debaixo dos seus olhos o tempo todo, para poder fazer, com aquele
vozeirão, sugestões para melhorá-lo. Adorava comparar Harry a Duda, e tinha o
maior prazer de comprar presentes caros para Duda enquanto olhava feio para
Harry, como se o desafiasse a perguntar por que não recebera um presente
também. Além disso, ela não parava de soltar piadas de mau gosto sobre as
razões de Harry ser uma pessoa tão deficiente.
—
Você não deve se culpar pelo que os meninos são hoje, Válter — comentou ela
durante o almoço do terceiro dia — Se existe alguma coisa podre por dentro, não
há nada que ninguém possa fazer.
Harry
tentou se concentrar na comida, mas suas mãos tremiam e seu rosto começou a
arder de raiva. “Lembre-se do formulário”,
disse a si mesmo. “Pense em Hogsmeade.
Não diga nada. Não se levante...”
Tia
Guida esticou a mão para a taça de vinho.
—
Isso é uma das regras básicas da criação — disse ela — A gente vê isso o tempo
todo com os cachorros. Se tem alguma coisa errada com uma cadela, vai ter
alguma coisa errada com o filhote...
Naquele
momento, a taça de vinho que Tia Guida segurava explodiu em sua mão. Cacos de
vidro voaram para todo lado e ela gaguejou e piscou, a caraça vermelha
pingando.
—
Guida! — guinchou Tia Petúnia — Guida, você está bem?
— Não
se preocupe — resmungou Tia Guida, enxugando o rosto com o guardanapo — Devo
ter segurado a taça com muita força. Fiz a mesma coisa na casa do Coronel
Fubster no outro dia. Não precisa se preocupar, Petúnia, tenho a mão pesada...
Mas
Tia Petúnia e Tio Válter olharam desconfiados para Harry. Por isso o menino
resolveu que era melhor não comer a sobremesa e se retirar da mesa o mais
depressa que pudesse.
No
corredor, apoiou-se na parede e respirou profundamente. Fazia muito tempo desde
a última vez que se descontrolara e fizera uma coisa explodir. Não podia deixar
que isso acontecesse de novo. O formulário de Hogsmeade não era a única coisa
em jogo, se ele continuasse a agir assim, ia se encrencar com o Ministério da
Magia.
Harry
ainda era um bruxo menor de idade, portanto, pela lei dos bruxos, ele era
proibido de fazer mágica fora da escola. A ficha dele não era muito limpa.
Ainda no verão anterior recebera uma carta oficial em que o avisavam muito
claramente que se o Ministério tomasse conhecimento de qualquer magia ocorrida
na Rua dos Alfeneiros, ele seria expulso de Hogwarts. Harry ouviu os Dursley se
levantarem da mesa e correu escada acima para sair do caminho.
Harry
conseguiu sobreviver os três dias seguintes forçando-se a pensar no manual de
Faça a Manutenção da sua Vassoura sempre que Tia Guida implicava com ele. A
coisa funcionou muito bem, embora seu olhar parecesse vidrado, porque Tia Guida
começou a ventilar a opinião de que ele era mentalmente deficiente.
Finalmente,
um finalmente muito demorado, chegou a última noite da estada de Tia Guida. Tia
Petúnia preparou um jantar caprichado e Tio Válter abriu várias garrafas de
vinho. Eles conseguiram terminar a sopa e o salmão sem mencionar nem uma vez os
defeitos de Harry. Quando comiam a torta merengue de limão, Tio Válter deu um
cansaço em todo mundo com uma longa conversa sobre a Grunnings, sua empresa de
brocas, depois Tia Petúnia preparou o café e o marido apanhou uma garrafa de
conhaque.
—
Posso lhe oferecer essa tentação, Guida?
Tia
Guida já bebera muito vinho. Sua cara enorme estava muito vermelha.
— Só
um pouquinho, então — disse ela rindo — Um pouquinho mais... mais... aí,
perfeito.
Duda
estava comendo o quarto pedaço de torta. Tia Petúnia bebericava café com o dedo
mindinho esticado. Harry realmente queria desaparecer e ir para o quarto, mas
deparou com os olhinhos zangados do Tio Válter e viu que teria de aguentar até
o fim.
— Aah
— exclamou Tia Guida, estalando os lábios e pousando o cálice de conhaque — Um
senhor jantar, Petúnia. Normalmente só como uma coisinha rápida à noite, com
uma dúzia de cachorros para cuidar...
Ela
soltou um gostoso arroto e deu umas palmadinhas na grande barriga coberta de
tweed.
— Me
desculpem. Mas gosto de ver um menino de tamanho saudável — continuou ela,
dando uma piscadela para Duda — Você vai ter tamanho de homem, Dudoca, como seu
pai. Sim, senhor, acho que vou querer mais um pouquinho de conhaque, Válter... agora
esse outro aí...
Ela
virou a cabeça para indicar Harry que sentiu um aperto no estômago.
O manual, pensou depressa.
—
Esse aí tem um jeito ruim e mirrado. A gente vê isso nos cachorros. Pedi ao
Coronel Fubster para afogar um no ano
passado. Era um ratinho. Fraco. Subnutrido.
Harry
tentou se lembrar da página doze do seu livro Feitiço para Reverter Feitiços Persistentes.
— A
coisa toda está ligada ao sangue, como eu ia dizendo ainda outro dia. O sangue ruim acaba aflorando. Mas, não
estou dizendo nada contra a sua família, Petúnia — ela deu umas pancadinhas na
mão ossuda da cunhada com sua mão que mais parecia uma pá — Mas sua irmã não
era flor que se cheirasse. Isso acontece nas melhores famílias. Depois, fugiu
com aquele imprestável e aí está o resultado, bem diante dos olhos da gente.
Harry
olhava fixamente para o próprio prato, sentindo uma zoeira engraçada nos
ouvidos. “Segure sua vassoura pela cauda
com firmeza”, pensou. Mas não conseguiu se lembrar do que vinha depois. A voz
de Tia Guida parecia perfurá-lo como se fosse uma das brocas do Tio Válter.
—
Esse Potter — continuou Tia Guida bem alto, agarrando a garrafa e derramando
mais conhaque no copo e na toalha da mesa — Você nunca me contou o que ele
fazia.
Tio
Válter e Tia Petúnia tinham uma expressão extremamente tensa. Duda chegara a
levantar os olhos da torta para olhar os pais, boquiaberto.
—
Ele... não trabalhava — disse Tio Válter, sem chegar a olhar de todo para Harry
— Desempregado.
— Era
o que eu esperava — disse Tia Guida, bebendo um enorme gole de conhaque e
limpando o queixo na manga — Um parasita preguiçoso, imprestável, sem eira nem
beira que...
— Não
era não — exclamou Harry inesperadamente.
Todos
à mesa ficaram muito quietos.
Harry
tremia da cabeça aos pés. Nunca sentira tanta raiva na vida.
—
MAIS CONHAQUE! — bradou Tio Válter, que empalidecera sensivelmente. Ele
esvaziou a garrafa no cálice de Tia Guida — Você, moleque — rosnou para Harry —
Vá se deitar, ande...
—
Não, Válter — soluçou Tia Guida, erguendo a mão, os olhinhos injetados e fixos
em Harry — Continue, moleque, continue. Tem orgulho dos seus pais, é? Eles saem
por aí e se matam num acidente de
carro, imagino que bêbados...
—
Eles não morreram num acidente de carro! — protestou Harry, que percebeu que se
levantara.
—
Morreram num acidente de carro, sim, seu mentiroso infeliz, e jogaram você nos
ombros de parentes decentes e trabalhadores! — gritou Tia Guida, inchando de fúria — Você é um ingrato,
insolente e...
Mas
repentinamente ela se calou. Por um instante pareceu que tinham-lhe faltado
palavras. Parecia estar inchando, engasgada de tanta raiva... mas não parou de inchar. Sua cara enorme e
vermelha começou a crescer, os olhos miúdos saltaram das órbitas, e a boca se
esticou tanto que a impedia de falar, no segundo seguinte vários botões
simplesmente saltaram do seu paletó de tweed e ricochetearam nas paredes, ela
inflou como um balão monstruoso, a barriga transbordou o cós da saia, os dedos
engrossaram como salames...
—
GUIDA! — berraram Tio Válter e Tia Petúnia juntos quando o corpo dela começou a
se erguer da cadeira em direção ao teto. Estava completamente redonda agora,
como uma enorme bóia com olhinhos porcinos, e as mãos e os pés se projetaram
estranhamente do corpo que flutuava no ar, dando estalinhos apopléticos.
Estripador
entrou derrapando na sala, latindo enlouquecido.
—
NÃÃÃÃÃÃÃO!
Tio
Válter agarrou Guida por um pé e tentou puxá-la para baixo, mas quase foi
erguido do chão também. Um segundo depois, Estripador avançou, e de um salto
abocanhou a perna do Tio Válter.
Harry
se precipitou, para fora da sala de jantar antes que alguém pudesse impedi-lo,
e correu para o armário sob a escada. A porta do armário se abriu magicamente
quando ele se aproximou. Em segundos, o garoto tinha arrastado o seu malão para
a porta da rua.
Subiu
aos saltos a escada e se atirou embaixo da cama, levantando a tábua solta do
soalho, agarrou a fronha cheia de livros e presentes de aniversário.
Arrastou-se para fora, passou a mão na gaiola vazia de Edwiges, correu de volta
ao lugar em que deixara o malão, na hora em que Tio Válter irrompia da sala de
jantar, com a perna da calça em tiras ensangüentadas.
—
VOLTE AQUI! — urrou — VOLTE AQUI E FAÇA-A VOLTAR AO NORMAL!
Mas
uma raiva que não media consequências se apoderara de Harry. Ele deu um chute
no malão para abri-lo, puxou a varinha e apontou-a para o Tio Válter.
— Ela
mereceu — disse ofegante — Ela mereceu o que aconteceu. E o senhor fique longe
de mim.
Depois,
tateou às costas à procura do trinco da porta.
—
Vou-me embora. Para mim já chega.
E no
momento seguinte Harry estava na rua escura e silenciosa, puxando o malão
pesado, a gaiola de Edwiges debaixo do braço.
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