CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS
LIVRO
VIII
CAPÍTULO
30
A
|
LBERT
NERI estava sentado em seu apartamento do Bronx escovando cuidadosamente
o seu antigo uniforme de sarja azul de policial. Tirou o distintivo e o pôs em
cima da mesa para poli-lo. O coldre e o revólver regulamentares estavam
colocados em cima de uma cadeira. Essa antiga e minuciosa rotina fazia-o feliz
de um modo estranho, era uma das poucas vezes em que ele sentia satisfação
desde que a mulher o abandonara, há quase dois anos.
Ele casara com Rita
quando ela era ainda aluna do curso secundário e ele um policial recruta. Ela
era tímida, tinha cabelo escuro e pertencia a uma família de italianos
puritanos que nunca a deixara ficar na rua depois das dez horas da noite. Neri
se achava completamente apaixonado por ela, por sua inocência, por sua virtude,
como também por sua beleza morena.
A princípio, Rita
estava fascinada pelo marido. Ele era imensamente forte e ela via muita gente
ter medo dele por causa de sua força e de sua atitude inflexível quanto ao que
era certo e errado. Raramente ele era
habilidoso. Se discordava da atitude de um grupo ou da opinião de um indivíduo,
conservava a boca fechada ou externava grosseiramente a sua discordância.
Jamais apresentava um assentimento cortês. Tinha também um temperamento
verdadeiramente siciliano e os seus
acessos fúria eram terríveis. Mas nunca se zangava com a esposa.
Neri no espaço de
cinco anos se tornara um dos policiais mais temidos da corporação da cidade de
Nova York. Também um dos mais honestos. Mas tinha os seus meios próprios de
cumprir a lei. Ele detestava delinqüentes juvenis e quando via um grupo de
rapazes desordeiros promovendo agitação na rua, à noite, perturbando os
transeuntes, ele tomava uma atitude rápida e decisiva. Empregava sua força
física verdadeiramente extraordinária, o que ele próprio não apreciava
totalmente.
Uma noite, no Central
Park, ele saltou do carro-patrulha e deteve seis rapazes de jaqueta de seda
preta. O seu companheiro ficou no assento do motorista, não querendo
envolver-se, conhecendo Neri. Os rapazes, todos eles já beirando os vinte anos,
estavam parando as pessoas para pedir cigarro de modo ameaçador, mas sem causar
realmente qualquer mal físico a ninguém. Aborreciam também as garotas que
passavam, fazendo um gesto obsceno mais francês do que americano.
Neri os enfileirou no
muro de pedra que separa o Central Park da Oitava Avenida. Era a hora
crepuscular, mas Neri levava consigo a sua arma preferida, uma enorme lanterna.
Ele nunca se preocupava em puxar o revólver; nunca era necessário. O seu rosto,
quando se zangava, era tão ameaçador, combinado com seu uniforme, que os
rapazes em geral se acovardavam. Esses não foram exceção.
Neri perguntou ao
primeiro rapaz de jaqueta de seda preta:
— Como é seu nome?
O rapaz em resposta
deu um nome irlandês.
— Saia da rua —
ordenou ao rapaz — Se eu o encontrar novamente esta noite, você se arrependerá.
Ele fez sinal com a
lanterna e o rapaz se afastou a passos rápidos. Neri seguiu o mesmo processo
com os dois rapazes seguintes, deixando-os ir em seguida. Mas o quarto rapaz
deu um nome italiano e sorriu para Neri como que para invocar certo parentesco.
Neri era indiscutivelmente de descendência italiana. Neri olhou para o rapaz
por um momento e perguntou:
— Você é italiano?
O rapaz sorriu
confiantemente.
Neri vibrou-lhe uma
pancada violenta na testa com a lanterna, fazendo-o cair de joelhos. A pele da
testa do rapaz se abriu e o sangue começou a jorrar-lhe pelo rosto. Mas era
apenas um ferimento superficial. Neri disse-lhe asperamente:
— Você, seu filho da
pula, é uma vergonha para os italianos. Você difama todos nós. Ponha-se de pé.
Deu um pontapé na anca
do rapaz, nem muito fraco, nem muito forte:
— Vá para casa e não
fique na rua. Que eu também não o apanhe mais usando essa jaqueta. Eu o
mandarei para o hospital. Agora vá para casa. Você está com sorte por eu não
ser seu pai.
Neri nem se incomodou
com os outros dois rapazes. Apenas deu-lhes um pontapé nas nádegas,
enxotando-os e dizendo-lhes que não os queria ver mais na rua aquela noite.
Em tais encontros,
tudo era feito com tamanha rapidez que não havia tempo para que juntasse gente
ou para que alguém protestasse contra as atitudes do policial. Neri entrava
logo no carro-patrulha e o seu companheiro arrancava imediatamente Ë claro que
de vez em quando apareciam sujeitos valentes que queriam brigar e às vezes até
puxavam faca. Coitados deles! Neri, agindo rapidamente com terrível ferocidade,
batia neles impiedosamente jogava-os dentro do carro-patrulha. Eles recebiam
voz de prisão sob a acusação de agressão a uma autoridade policial. Mas
geralmente só iam para a cadeia algum tempo depois, isto é, após saírem do
hospital.
Finalmente, Neri foi
transferido para a zona em que se encontrava o edifício das Nações Unidas,
principalmente porque faltou com o devido respeito ao sargento de seu distrito
O pessoal das Nações Unidas, com sua imunidade diplomática, estacionava suas
limusines em todas as ruas sem qualquer obediência aos regulamentos do
trânsito. Neri deu queixa no distrito policial e disseram-lhe para não fazer
onda, que não tomasse conhecimento do fato. Mas uma noite aconteceu que uma rua
lateral ficou intransitável devido aos automóveis negligentemente estacionados.
Já passava da meia-noite, por conseguinte Neri tirou sua enorme lanterna do
carro-patrulha e foi rua abaixo reduzindo pára-brisas a estilhaços. Não era
fácil, mesmo para diplomatas de alto posto, ter os pára-brisas consertados
rapidamente, tinham de esperar alguns dias. Choveram protestos no distrito
policial exigindo providência contra esse ato de vandalismo. Depois de uma
semana de quebra-quebra de pára-brisas, a verdade sobre o que estava realmente
acontecendo chegou ao conhecimento de uma autoridade superior e Albert Neri foi
transferido para o Harlem.
Num domingo, pouco
tempo depois, Neri, acompanhado da esposa, foi visitar a irmã viúva no
Brooklyn. Albert Neri tinha pela irmã a profunda afeição protetora comum a
todos os sicilianos e sempre a visitava pelo menos uma vez em cada dois meses
para se assegurar de que ela estava bem. Ela era muito mais velha do que ele e
tinha um filho de 20 anos de idade. O rapaz, de nome Thomas, sem a autoridade
paterna, estava dando aborrecimentos. Tinha-se metido em algumas pequenas
enrascadas, e estava ficando um pouco selvagem. Neri certa vez usara os seus
contatos na organização policial para livrar o rapaz da acusação de furto.
Nessa ocasião, ele conseguira controlar a sua raiva, mas avisou ao sobrinho:
— Tommy, se você fizer
sua mãe chorar novamente por sua causa, quem vai ajustar contas com você sou
eu.
Isso, porém, foi dito
num tom de tio camarada, não constituindo realmente uma ameaça. Mas, mesmo
sendo Tommy o pior elemento de todos os rapazes daquela zona “braba” do
Brooklyn, ele tinha medo do tio Al.
Por ocasião dessa
visita, Tommy chegara em casa muito tarde da noite de sábado e estava ainda
dormindo em seu quarto. A mãe fora acordá-lo, dizendo que se vestisse para
fazer a refeição domingueira em companhia do tio e da tia. A voz do rapaz
fez-se ouvir asperamente através da porta do quarto parcialmente aberta:
— Que se danem,
deixem-me dormir!
E a mãe voltou para a
cozinha rindo e desculpando-se.
Assim tiveram de fazer
a refeição sem ele. Neri perguntou à irmã se Tommy estava causando-lhe algum
aborrecimento, e ela balançou a cabeça.
Neri e a mulher
estavam quase para ir embora quando Tommy finalmente se levantou. Ele mal
pronunciou um “olá” e foi para a cozinha. Finalmente gritou de lá para a mãe:
— Alô, mãe, quer
preparar alguma coisa para eu comer?
Mas não era um pedido.
Era a queixa manhosa de uma criança mimada.
A mãe respondeu
estridentemente:
— Levante-se na hora
da refeição para poder comer. Não vou cozinhar novamente só para você.
Era o tipo da cena
horrorosa, aliás muito comum, mas Tommy ainda um pouco irritado do seu sono
cometeu um erro.
— Ah, então, foda-se
você e o seu mau humor, eu vou sair e comer lá fora!
Tão logo disse isso,
Tommy se arrependeu.
O tio Al pulou sobre
ele como um gato em cima de um rato. Não tanto
pelo insulto à irmã naquele dia especial, mas porque era evidente que ele
freqüentemente falava com a mãe daquele jeito quando os dois estavam a
sós. Tommy nunca se atrevia a dizer tal coisa na presença do irmão da mãe. Mas
naquele domingo ele se distraiu. Azar dele.
Ante os olhos
apavorados das duas mulheres, Al Neri deu no sobrinho uma tremenda surra
cautelosa e impiedosa. A princípio, o rapaz fez uma tentativa para se defender,
mas logo desistiu e pediu misericórdia. Neri esbofeteou-lhe o rosto até que os
seus lábios ficaram inchados e sangrando. Sacudiu a cabeça do rapaz para trás e
jogou-o de encontro à parede. Socou-lhe o estômago, depois deitou-o de bruços
no chão e bateu-lhe com o rosto no tapete. Pediu às duas mulheres que
esperassem e fez Tommy descer para a rua e entrar em seu carro. Então, disse o
diabo ao rapaz.
— Se a minha irmã
alguma vez me contar que você falou com ela novamente desse jeito, a surra que
você levou hoje vai parecer uns beijinhos de mulher — avisou a Tommy — Quero
ver você proceder como gente. Agora suba para casa e diga à minha mulher que
estou esperando por ela.
Foi dois meses depois
disso que Al Neri voltou para casa de um trabalho até tarde da noite na polícia
e verificou que a mulher o tinha abandonado.
Ela havia arrumado todas as suas coisas e retornado para a casa da família. O
pai dela informou-o que Rita tinha medo dele, que tinha medo de viver com ele
por causa do seu gênio. Al ficou assombrado e não acreditou. Nunca batera na
mulher, nunca a ameaçara de forma alguma, nunca sentira outra coisa a
não ser amor por ela. Mas ficou tão
atordoado com a atitude da esposa que resolveu deixar passar alguns dias
para ir até a casa da família dela para falar com a mulher.
Deu azar porque na
noite seguinte ele teve uma complicação no seu turno de trabalho, O carro dele
recebeu um chamado do Harlem, uma comunicação de um assalto com morte. Como de
costume, Neri saltou do carro-patrulha ainda em movimento. Já passava da
meia-noite e ele levava a sua enorme lanterna. Foi fácil localizar a
ocorrência. Havia uma multidão reunida do lado de fora da porta de uma casa de
cômodos. Uma preta disse a Neri:
— Há um homem aí
cortando uma mocinha.
Neri entrou no
corredor. Havia uma porta aberta lá no fundo com a luz muito fraca e ele ouviu
alguém gemendo. Ainda segurando a lanterna, foi andando pelo corredor e
atravessou a porta aberta.
Quase caiu quando
tropeçou em dois corpos estirados no chão. Um era de uma moça preta de cerca de
25 anos de idade. O outro era de uma menina preta que não tinha mais de 12.
Ambas estavam sangrando de cortes de navalha no rosto e no corpo. Na sala da
frente, Neri viu o homem responsável pelo crime. Ele o conhecia bem.
O homem era Wax
Baines, um conhecido cafetão, traficante de entorpecentes e valentão. Seus
olhos estavam inchados, sob o efeito de entorpecentes; a faca ensangüentada que
ele segurava na mão balançava. Neri o prendera duas semanas antes por agredir
violentamente uma de suas prostitutas na rua. Baines lhe dissera:
— Escute, homem, você
não tem nada com isso aqui.
E o companheiro de
Neri também falara algo a respeito de deixar os pretos se cortarem uns aos
outros, se assim o desejassem, mas Neri arrastou Baines para o distrito. Logo
no dia seguinte, Baines foi solto sob fiança.
Neri jamais gostara de
pretos, e trabalhar no Harlem o fez gostar ainda menos deles. Os pretos viviam
tomando entorpecentes ou se embriagando enquanto as mulheres trabalhavam ou
pegavam homem. Ele não tinha a menor consideração por qualquer desses salafrários.
Assim a descarada infração da lei cometida por Baines o enfureceu. E a visão da
menina toda cortada a navalha deixou-o doente. Completamente frio, em seu
próprio íntimo, ele resolvera não levá-lo preso.
Mas as testemunhas já
se estavam aglomerando no apartamento atrás dele, algumas pessoas que viviam no
prédio e o seu companheiro do carro-patrulha.
— Largue essa faca,
você esta preso! — ordenou Neri.
Baines deu uma
gargalhada.
— Homem, você vai ter
de usar o seu revólver para me prender — levantou a faca e falou: — Ou talvez
você queira isso!
Neri moveu-se muito
depressa para que o seu companheiro não tivesse tempo de puxar o revólver. O
preto atacou com a faca, mas os reflexos extraordinários de Neri permitiram-lhe
aparar o golpe com a palma da mão esquerda. Com a mão direita, vibrou a
lanterna descrevendo um semicírculo no ar. O golpe pegou na parte lateral da
cabeça de Baines e o fez dobrar-se sobre os joelhos comicamente como se
estivesse bêbedo. A faca caiu-lhe da mão. Ele estava completamente indefeso.
Portanto, o segundo golpe foi indesculpável, como o inquérito do departamento
de polícia e o julgamento a que Neri foi posteriormente submetido provaram com
o auxilio do testemunho das pessoas ali presentes e do seu companheiro da
polícia. Neri baixou a lanterna no alto do
crânio de Baines com uma violência incrível que fez esmigalhar o vidro; o
escudo de esmalte e a própria lâmpada despregaram-se da lanterna e voaram pelo quarto. O pesado
cilindro de alumínio do corpo da
lanterna envergou e só as pilhas em seu interior impediram-no de se
dobrar sobre si mesmo. Um observador horrorizado, um preto que morava no prédio
e que mais tarde depôs contra Neri, comentou:
— Homem, que negro de
cabeça dura!
Mas a cabeça de Baines
não era tão dura assim. O golpe atingiu-lhe violentamente o crânio. Ele morreu
duas horas depois no hospital do Harlem.
Albert Neri foi a
única pessoa a ficar surpresa quando abriram inquérito no Departamento de
Polícia para apurar as acusações contra ele de usar força excessiva. Foi
suspenso de suas funções, sendo apresentadas acusações criminais contra ele.
Depois de indiciado por homicídio, foi condenado à pena de um a dez anos de
prisão. Naquela época, ele estava tão cheio de fúria frustrada e ódio contra
toda a sociedade que não ligava para nada. Ousaram julgá-lo como um criminoso!
Ousaram mandá-lo para a prisão por matar um animal como aquele preto cafetão!
Não deram a menor importância à mulher e à menina que tinham sido talhadas a
navalha, desfiguradas para o resto da vida, e que ainda se encontravam no
hospital.
Ele não tinha medo da
prisão. Sentia que, em virtude de ter sido um policial e especialmente em
virtude da natureza de seu delito, seria bem tratado. Diversos colegas da
polícia já lhe tinham garantido que falariam com os amigos. Somente o pai de
sua mulher, um astuto italiano antiquado que possuía um mercado de peixe no
Bronx, compreendia que um homem como Albert Neri tinha pouca possibilidade de
sobreviver um ano atrás das grades. Um dos seus companheiros de prisão o
mataria; se não era quase certo que ele mataria um deles. Sentindo-se
responsável por ter sua filha abandonado um bom marido por alguma bobagem de
mulher, o sogro de Neri recorreu aos seus contatos com a Família Corleone (ele
pagava um tributo de proteção a um de seus representantes e fornecia à própria
família Corleone o melhor peixe disponível, a título de presente), e pediu a
intervenção da Família.
A Família Corleone
conhecia Albert Neri. Ele era algo como uma lenda na sua qualidade de polícia
legalmente duro; adquirira certa fama como um homem com quem não era fácil de
lidar, como um homem que podia inspirar medo por sua própria pessoa,
independentemente do uniforme e do revólver autorizado que ele usava. A Família
Corleone sempre se interessava por tais homens. O fato de ser ele um policial
não significava grande coisa. Muitos rapazes começavam trilhando uma trajetória
falsa para chegar ao seu verdadeiro destino. O tempo e a sorte geralmente o
punham no caminho certo.
Foi Pete Clemenza, com
seu faro agudo para gente boa, que levou o caso de Neri ao conhecimento de Tom
Hagen. Este estudou a cópia do dossiê oficial da polícia e ouviu Clemenza.
— Talvez tenhamos
outro Luca Brasi aqui — comentou ele.
Clemenza acenou
vigorosamente com a cabeça. Embora ele fosse muito gordo, o seu rosto nada
tinha da usual bonacheirice do homem robusto.
— Penso exatamente
assim. O próprio Mike devia cuidar disso.
E foi assim que, antes
de Albert Neri ser transferido da prisão provisória para o que seria a sua
residência permanente no interior do Estado, foi informado de que o juiz
reconsiderara o seu caso com base em novas informações e depoimentos
apresentados por altos funcionários da polícia. A sua sentença foi suspensa e
ele foi solto.
Albert Neri não era
bobo nem o seu sogro era tão altruísta. Neri soube do que acontecera e pagou a
dívida ao sogro, concordando em se divorciar de Rita. Depois fez uma viagem até
Long Beach para agradecer a seu benfeitor. Tudo foi combinado de antemão, é
claro. Michael recebeu-o em sua biblioteca.
— Diabo, eu não podia
deixar que se fizesse isso com um patrício siciliano — declarou Michael —
Deviam dar-lhe era uma boa medalha. Mas esses malditos políticos não ligam para
nada a não ser grupos de pressão. Escute, eu não teria dado um passo nesse
negócio, se não tivesse apurado tudo direitinho e verificado que injustiça lhe
fizeram. Um dos meus homens falou com sua irmã e ela nos contou como você
estava sempre preocupado com ela e com o filho dela, como você deu uma lição no
garoto, para evitar que ele se tornasse um mau elemento. O seu sogro diz que
você é o sujeito mais formidável do mundo. Isso é uma coisa rara.
O habilidoso Michael
nada mencionou a respeito de ter a mulher de Neri o abandonado.
Bateram um papo
demorado Neri sempre fora um homem taciturno, mas de repente se abriu todo com
Michael Corleone. Michael tinha apenas mais uns cinco anos de idade do que ele,
mas Neri falava como se Michael fosse muito mais velho, bastante mais velho
para ser seu pai.
— Não tem cabimento
tirar você da prisão e depois deixá-lo ao deus-dará — disse Michael finalmente
— Posso arranjar um trabalho para você. Tenho interesses em Las Vegas; com a
sua experiência, você podia ser agente de segurança num hotel. Ou se pretende
entrar em algum negócio pequeno, posso falar com os bancos para lhe fornecerem
um empréstimo.
Neri ficou totalmente
embaraçado com tamanha gentileza. Recusou a oferta orgulhosamente e depois
acrescentou:
— Tenho de ficar,
contudo, sob a jurisdição do tribunal em virtude do sursis que me concederam.
Michael retrucou
animadamente:
— Tudo isso são
detalhes sem importância, posso arranjar as coisas. Esqueça essa supervisão, e
para que os bancos não se tornem muito exigentes, vou mandar limpar a sua folha
amarela.
A folha amarela era um
registro policial dos delitos criminais cometidos por um indivíduo. Geralmente
era submetida a um juiz, quando ele estava considerando a sentença que daria a
um criminoso condenado. Neri estivera bastante tempo na organização policial
para saber que muitos criminosos aguardando sentença eram tratados
indulgentemente pelo juiz porque uma folha amarela limpa fora apresentada pelo
funcionário subornado do Departamento de Cadastros da Polícia. Portanto, não
ficou surpreso ao saber que Michael Corleone pudesse fazer tal coisa; ficou, porém,
surpreso ao verificar que tal providência seria tomada em seu favor.
— Se eu precisar de
ajuda, procurarei entrar em contato com vocês — disse Neri.
— Ótimo, ótimo —
respondeu Michael.
Ele olhou para o seu relógio, e Neri interpretou
isso como uma despedida. Levantou-se para ir embora. Mas ficou novamente surpreso.
— Está na hora do
almoço — disse Michael — Venha comer comigo e minha família. Meu pai disse que
gostaria de conhecê-lo. Vamos até a casa dele. Minha mãe deve ter algum
pimentão frito, ovos e salsichas. À moda realmente siciliana.
Aquela tarde foi a
mais agradável que Albert Neri.teve desde o seu tempo de menino, desde o tempo
anterior à morte dos pais quando tinha apenas 15 anos de idade. Don Corleone
estava no máximo de sua amabilidade e ficou satisfeitíssimo quando descobriu
que os pais de Neri tinham vindo originalmente de uma pequena aldeia situada a
poucos quilômetros apenas da própria aldeia dele. A conversa foi agradável, a
comida deliciosa, e o vinho de excelente qualidade. Neri teve então a idéia de
que estava finalmente entre a sua própria gente. Compreendia que era apenas um
convidado casual, mas sabia que podia encontrar um lugar permanente e ser feliz
em tal mundo.
Michael e o Don
acompanharam-no até o seu carro. Don Corleone apertou-lhe a mão e disse:
— Você é um bom
sujeito. Estive ensinando ao meu filho Michael aqui o negócio de azeite, estou
ficando velho, quero me aposentar. E ele vem a mim e diz que quer cuidar de seu
pequeno caso. Eu lhe respondo que trate apenas de aprender o negócio de azeite.
Mas Michael não me deixa em paz. Ele diz, temos aqui um bom sujeito, um
siciliano, e estão fazendo uma sacanagem com ele. Ele continua, não me dá
sossego enquanto não começo a me interessar pelo caso. Estou-lhe contando isso
para lhe dizer que ele tinha razão. Agora que o conheci, estou contente por
havermos tirado você daquela complicação. Assim, se pudermos fazer mais alguma
coisa por você, é só pedir. Compreende? Estamos à sua disposição.
(Lembrando-se da bondade do Don, Neri gostaria que o grande homem ainda
estivesse vivo para ver o serviço que seria feito naquele dia).
Neri levou menos de
três dias para se decidir. Compreendia que estava sendo requestado, mas
compreendia mais. Compreendia que a Família
Corleone aprovava o seu ato, pelo qual a sociedade o condenara e o punira. A
Família Corleone dava-lhe o devido valor, a sociedade não. Ele compreendia que
seria mais feliz no mundo que os Corleone tinham criado do que no mundo
lá de fora. E compreendia que a Família Corleone era a mais poderosa, dentro
dos seus estreitos limites.
Visitou Michael
novamente e pôs as cartas na mesa. Ele não queria trabalhar em Las Vegas, mas
aceitaria um emprego junto à Família em Nova York. Tornou clara a sua lealdade.
Michael ficou emocionado, Neri viu isso. Ficou então combinado. Mas Michael
insistiu para que Neri primeiro tomasse umas férias, lá em Miami no hotel da
Família, com todas as despesas pagas e um mês de salário adiantado, a fim de
que tivesse o dinheiro necessário para descansar e divertir-se tranqüilamente.
Essas férias foram o primeiro gostinho de luxo de
que Neri desfrutou. O pessoal do hotel teve um cuidado todo especial com ele,
dizendo:
— Ah, você é amigo de
Michael Corleone.
O boato se espalhou.
Deram-lhe um dos apartamentos de luxo, não o detestável quarto pequeno que se
impingiria a um parente pobre. O homem que dirigia a boate do hotel
arranjou-lhe algumas garotas bonitas. Quando Neri voltou a Nova York, tinha uma
concepção um tanto diferente da vida em geral.
Foi posto no regime de
Clemenza e submetido a provas rigorosas por esse habilíssimo dirigente de
homens. Deviam-se tomar certas precauções.
Afinal de contas, ele tinha sido da polícia. Mas a ferocidade natural de Neri
predominou apesar dos escrúpulos que ele pudesse ter por estar agora do outro
lado da cerca. Em menos de um ano, recebeu o batismo de fogo. Nunca mais
poderia voltar a ser o que fora.
Clemenza o punha nas
alturas. Neri era um homem extraordinário, o novo Luca Brasi. Seria melhor do
que Luca, gabava-se Clemenza. Afinal de contas, Neri fora descoberta sua.
Fisicamente o homem era uma verdadeira maravilha. Os seus reflexos e
coordenação eram tão notáveis que ele poderia ter sido outro Joe DiMaggio.
Clemenza também sabia que Neri não era homem que pudesse ser controlado por
alguém como ele. Neri passou a ser diretamente responsável perante Michael
Corleone, tendo Tom Hagen como o necessário amortecedor. Era um “elemento
especial” e como tal fazia jus a um salário alto, mas não tinha o seu meio de
vida próprio, a sua agência de bookmaker ou uma organização à qual oferecesse
“proteção” remunerada Era evidente que o seu respeito por Michael Corleone era
enorme, e um dia Hagen disse brincando a Michael:
— Bem, agora você tem
o seu Luca.
Michael acenou com a
cabeça. Ele o livrara da cadeia. Albert Neri lhe seria leal até a morte. E
naturalmente isso foi um truque que ele aprendeu com o próprio Don Corleone.
Enquanto aprendia o negócio, submetendo-se a longos dias de instrução
ministrada pelo pai, Michael uma vez perguntou:
— Como é que você
usava um sujeito como Luca Brasi? Um animal como aquele.
Don Corleone respondeu
fazendo-lhe a seguinte preleção:
— Há homens neste
mundo que andam por aí pedindo para ser assassinados. Você já deve ter visto
alguns deles. Brigam em mesas de jogo, saltam furiosos de seu automóvel se
alguém apenas arranha o seu pára-lama, humilham e ameaçam as pessoas cuja força
ignoram. Já vi um homem bobo propositadamente enfurecer um grupo de homens
perigosos, sem possuir ele mesmo qualquer recurso. Esses são os indivíduos que
andam pelo mundo gritando “Matem-me!
Matem-me!”. E sempre aparece alguém disposto a fazer-lhes a vontade. Lemos
sobre isso nos jornais todo dia. Tais pessoas naturalmente fazem um bocado de
mal a outras também.
E prosseguiu:
— Luca Brasi era um
homem desse tipo. Mas era um homem tão extraordinário que durante muito tempo
ninguém conseguiu matá-lo. A maioria dessa gente não nos interessa, mas um
elemento como Brasi é uma arma poderosa para ser usada. O truque, já que ele
não teme a morte, e na verdade anda à procura dela, é a gente se tornar a única
pessoa no mundo que verdadeiramente não deseja matá-lo. Ele só tem este medo,
não o da morte, mas o de que agente possa ser a pessoa que vai matá-lo. Ele é
nosso então.
Foi uma das mais
valiosas lições dadas por Don Corleone antes de morrer, e Michael a usou para
fazer de Neri seu Luca Brasi.
E agora, finalmente,
Albert Neri, sozinho em seu apartamento do Bronx, ia pôr novamente o seu
uniforme de polícial. Escovou-o caprichosamente. Agora iria polir o coldre. E o
boné de polícia também, tinha de limpar-lhe a pala, engraxar os fortes sapatos
pretos. Neri trabalhava com a maior boa vontade. Encontrara o seu lugar no
mundo, Michael Corleone depositara confiança absoluta nele, e ele não deixaria
de corresponder a essa confiança.
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