CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS
CAPÍTULO
26
O
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MAGNÍFICO APARTAMENTO dava para as
terras que simulavam um país de fadas da parte dos fundos do hotel; palmeiras
transplantadas iluminadas por trepadeiras de luzes cor de laranja, duas enormes
piscinas tremeluzindo uma cor azul-escura à luz das estrelas do deserto. No
horizonte, viam-se as montanhas de areia e pedra que rodeavam Las Vegas
aninhada no seu vale, de néon. Johnny Fontane deixou cair o pesado reposteiro
cinza, luxuosamente bordado, e voltou para o quarto.
Um grupo especial de
quatro pessoas, um chefe de banca, um carteador, um carteador-substituto e uma
garçonete com sua escassa roupa de cabaré estavam aprontando as coisas para uma
função particular. Nino Valenti estava deitado no sofá, na sala de estar do
apartamento, com um copo de uísque na mão. Ele observava o pessoal do cassino
instalando a mesa de jogo com meia dúzia de cadeiras acolchoadas em torno de
sua borda externa em forma de ferradura.
— Isso é grande, isso
é grande! — exclamou numa voz engrolada de quem ainda não estava muito bêbado —
Johnny, venha cá e jogue comigo contra esses salafrários. Estou com sorte.
Vamos dar uma surra neles.
Johnny estava sentado
numa banqueta em frente ao divã.
— Você sabe que eu não
jogo — respondeu ele — Como se sente, Nino?
Nino Valenti
arreganhou os dentes para ele.
— Magnificamente.
Estou esperando algumas mulheres à meia-noite para cear, depois voltarei para a
mesa de jogo. Você sabe que eu ganhei quase cinqüenta mil dólares e o pessoal
do cassino me chateou durante uma semana?
— Sei — respondeu
Johnny Fontane — Para quem você quer deixá-los quando bater a bota?
Nino esvaziou o copo
de uísque
— Johnny, onde foi que
você arranjou essa máscara de bom moço? Você é um bobalhão, Johnny. Meu Deus,
os turistas desta cidade se divertem muito mais do que você.
— É verdade — retrucou
Johnny — Você quer que o ajude a ir até a mesa de jogo?
Nino ergueu-se com
esforço e conseguiu sentar-se no sofá, plantando os pés firmemente no tapete.
— Posso fazer sozinho
— respondeu ele.
Deixou o copo cair no
chão, levantou-se e caminhou quase com firmeza até o lugar em que a mesa de
jogo tinha sido instalada. O carteador estava pronto. O chefe da banca estava
atrás do carteador olhando. O carteador-substituto estava sentado numa cadeira
distante da mesa. A garçonete estava sentada em outra cadeira, de forma que
podia ver qualquer gesto de Nino Valenti. Nino bateu no pano verde com os nós
dos dedos.
— Fichas — pediu ele.
O chefe da banca puxou
um bloco do bolso e encheu uma folha de papel, pondo-o em frente de Nino com
uma pequena caneta-tinteiro.
— Aqui estão, Sr.
Valenti — disse ele — Os cinco mil dólares habituais para começar.
Nino rabiscou a sua
assinatura na parte inferior da folha de papel e o chefe da banca enfiou-a no
bolso. Fez um sinal com a cabeça para o carteador.
O homem, com dedos
incrivelmente ágeis, tirou pilhas de fichas de cem dólares douradas e pretas
dos escaninhos situados na sua frente Em menos de cinco segundos, Nino tinha
cinco pilhas iguais de fichas de cem dólares na sua rente, cada pilha com dez
fichas.
Havia seis quadrados
um pouco maiores do que os formatos das cartas desenhadas em branco no pano
verde, cada quadrado correspondendo ao lugar
de cada jogador. Agora Nino estava pondo apostas em três desses quadrados,
fichas simples, e assim jogando por três parceiros a cem dólares cada aposta.
Ele se recusou a pedir carta porque o carteador tinha um seis virado, uma carta
branca, e o carteador estourou. Nino arrastou as fichas e voltou-se para
Johnny Fontane dizendo:
— E assim que se
começa a noite, hem, Johnny?
Johnny sorriu. Era
raro que um jogador como Nino tivesse de assinar um vale enquanto estivesse
jogando. Uma palavra era geralmente o bastante para os grandes jogadores.
Talvez eles receassem que Nino não se lembrasse de sua retirada porque estava
bebendo. Não sabiam que Nino se lembrava de tudo.
Nino continuou
ganhando e depois da terceira rodada levantou o dedo para a garçonete. Ela foi
até o bar no fim da sala e trouxe-lhe o habitual copo de uísque. Nino apanhou a
bebida, mudou-a para a outra mão para que pudesse passar o braço em volta da
garçonete.
— Sente-se comigo, meu
bem, jogue algumas rodadas; traga-me sorte.
A garçonete era uma
garota muito bonita, mas Johnny podia ver que ela era uma profissional
completamente fria, não uma personalidade real, embora trabalhasse nisso. Ela
não ria entusiasticamente para Nino, mas estava bastante interessada numa
daquelas fichas douradas e pretas. Que diabo, pensou Johnny, porque não devia ela
conseguir uma? Ele apenas lamentava que Nino não obtivesse uma coisa melhor com
seu dinheiro.
Nino deixou a
garçonete jogar algumas rodadas por ele e depois deu-lhe uma das fichas e uma
pancadinha no traseiro para mandá-la embora da mesa. Johnny fez sinal para que
ela lhe levasse uma bebida. Ela a levou, mas levou como se tivesse
representando o momento mais dramático no filme mais dramático jamais
realizado. Lançou todo o seu encanto sobre o grande Johnny Fontane. Fez os seus
olhos cintilarem de convite ao amor, seu andar era o mais sensual já visto, sua
boca estava ligeiramente aberta como se ela estivesse pronta para morder o
objeto mais próximo de sua óbvia paixão. Ela parecia uma fêmea de animal no
auge do cio, mas era um ato premeditado. Johnny Fontane pensou, oh, Cristo, uma
delas. Era o convite mais comum das mulheres que queriam levá-lo para a cama.
Só funcionava quando ele se achava muito bêbedo, o que não era o caso agora.
Deu à garçonete um daqueles seus famosos risos inexpressivos e disse:
— Obrigado, meu bem.
A garota olhou para
ele, separou os lábios num sorriso de agradecimento, com os olhos faiscantes, o
corpo tenso com o tronco inclinando-se ligeira mente para trás de suas longas e
afinadas pernas em suas meias de malha. Uma tensão enorme parecia estar tomando
conta de seu corpo, os seios pareciam tomar-se cada vez mais cheios e inchar
explosivamente contra a sua blusa fina escassamente recortada. Então, o seu
corpo todo deu um tremor que quase deixou escapar um zunido sexual. A impressão
era de uma mulher que estava tendo um orgasmo simplesmente porque Johnny
Fontane sorrira para ela e dissera: “Obrigado, meu bem”. Foi muito bem feito,
da maneira melhor que Johnny já vira em toda a sua vida. Mas agora ele sabia
que era simulação. E era quase certo que as mulheres que faziam isso eram
prostitutas ordinárias.
Ele a acompanhou com
os olhos enquanto ela voltava para a sua cadeira e começou a tomar a sua bebida
lentamente. Johnny não queria ver essa pequena artimanha novamente. Não estava
disposto a isso naquela noite.
Demorou ainda uma hora
para que Nino Valenti começasse a fraquejar. Ele primeiro se inclinou,
cambaleou para trás e depois tombou da cadeira para mergulhar diretamente no
assoalho. Mas o chefe da banca e o carteador-substituto ficaram alerta desde o
primeiro movimento e o pegaram antes que ele atingisse o chão. Levantaram-no e
conduziram-no através do reposteiro aberto que dava para o quarto de dormir do
apartamento.
Johnny continuou a
observar a garçonete que ajudava os outros homens a despir Nino e a enfiá-lo
por baixo das cobertas. O chefe da banca contava as fichas de Nino e tomava
nota no seu bloco de vales. Depois, guardou a mesa com as fichas do carteador.
Então Johnny perguntou:
— Há quanto tempo isso
vem acontecendo?
O chefe da banca deu
de ombros.
— Esta noite foi mais
cedo. A primeira vez chamamos o médico da casa e ele receitou algo para o Sr.
Valenti e passou-lhe uma espécie de sermão. Depois Nino nos disse que não
devíamos chamar o médico quando isso acontecesse, apenas pô-lo na cama e ele
estaria bem na manhã seguinte. Assim, foi isso o que fizemos. Ele tem muita
sorte, ganhou novamente esta noite, quase três mil dólares.
— Bem — retrucou Johnny Fontane — Vamos chamar o
médico da casa aqui esta noite, está bem? Chame-o na sala de jogo se for
preciso.
Passaram-se quase 15
minutos para que Jules Segal chegasse ao apartamento. Johnny notou com
irritação que o camarada não tinha a menor aparência de médico. Nessa noite
usava uma camisa de pólo, azul, furadinha, com enfeite branco, e sapatos de
camurça brancos, sem meias. Seu aspecto era engraçadíssimo, carregando a
tradicional bolsa preta de médico.
— Você devia imaginar
um meio de carregar o seu material numa bolsa de golfe de tamanho reduzido —
disse Johnny.
Jules riu para Johnny
sem compreender e respondeu:
— Ë, essa maleta
médica é um verdadeiro trambolho. Assusta todo mundo. De qualquer forma, deviam
pelo menos mudar a cor.
Dirigiu se até onde
Nino estava deitado na cama. Quando abriu a bolsa, disse para Johnny:
— Obrigado por aquele
cheque que você me enviou pelos meus serviços. Foi demais. Eu não merecia
tanto.
— Que se dane se você
não merecia — respondeu Johnny — De qualquer modo, esqueça aquilo, já foi há
muito tempo. Que é que há com Nino?
Jules estava fazendo
um rápido exame da batida do coração, do pulso e da pressão sanguínea. Tirou
uma agulha da bolsa e enfiou-a casualmente no braço de Nino e apertou o êmbolo.
O rosto adormecido de Nino perdeu a palidez de cera, a cor voltou-lhe às faces,
como se o sangue tivesse começado a bombear mais depressa.
— Diagnóstico muito
simples — anunciou Jules animado — Tive oportunidade de examiná-lo e fazer
alguns testes, quando ele veio aqui a primeira vez e desmaiou. Fi-lo transferir
para o hospital antes de voltar a si. Está com diabetes, estável, brando,
adulto, que não é problema quando a pessoa toma cuidado, seguindo a medicação,
a dieta e assim por diante. Ele insiste em não tomar conhecimento da doença.
Além disso, está firmemente decidido a beber até morrer. O seu fígado está se
arruinando e a sua cabeça vai no mesmo caminho. Agora mesmo ele se acha em
estado de coma diabético brando. Meu conselho é que se deve interná-lo.
Johnny teve uma
sensação de alívio. Não podia ser coisa muito séria, tudo o que Nino precisava
fazer era cuidar de si mesmo.
— Você quer dizer num
desses lugares em que fazem a pessoa deixar de beber completamente? — perguntou
Johnny.
Jules foi até o bar no
canto afastado da sala e serviu uma bebida para si mesmo.
— Não — respondeu ele
— Quero dizer recolhido. Você sabe, um hospício.
— Não seja
engraçadinho — retrucou Johnny.
— Não estou brincando
— afirmou Jules — Não conheço profundamente esse negócio de psiquiatria, mas
sei alguma coisa a respeito, é parte de minha profissão. O seu amigo Nino pode
ser posto novamente em muito boa forma, a não ser que o seu fígado tenha
piorado muito, o que não podemos saber enquanto não se fizer a sua autópsia.
Mas a sua verdadeira doença é na cabeça. Em suma, ele não se importa de morrer,
talvez até queira se matar. Enquanto não se curar isso, não há esperança para
ele. Por isso é que digo, é preciso recolhê-lo a um hospital de doenças mentais
para submetê-lo ao necessário tratamento psiquiátrico.
Bateram na porta, e
Johnny foi atender.
Era Lucy Mancini. Ela
caiu nos braços de Johnny e beijou-o.
— Oh, Johnny, é tão
bom ver você por aqui — disse ela.
— Já faz muito tempo
que não nos vemos — declarou Johnny Fontane.
Ele notou que Lucy
tinha mudado. Estava mais esbelta, suas roupas eram mais finas e ela as usava
com mais elegância. O seu penteado assentava-lhe bem, era uma espécie de corte
de cabelo de menino. Ela parecia mais jovem e melhor do que ele jamais a vira
em toda a vida, e passou-lhe pela mente a idéia de que ela podia fazer-lhe
companhia ali em Las Vegas. Seria um prazer ter a seu lado uma verdadeira
mulher. Mas antes mesmo de concretizar o convite, Johnny se lembrou de que ela
a garota do médico. Assim, isso estava fora de cogitação. Ele sorriu amável
para ela e perguntou:
— Que é que faz vindo
ao apartamento de Nino de noite, hem?
Lucy bateu-lhe no
ombro.
— Ouvi dizer que Nino
estava doente e que Jules tinha subido para
cá. Eu queria apenas ver se podia ajudar. Nino está bem, não está?
— Certamente —
respondeu Johnny — Ele ficará logo bom.
— Ele está ruim como o
diabo — disse Jules, esparramando-se no sofá — Sugiro que todos nós nos
sentemos aqui para esperar que Nino volte a si. E então falaremos a ele da
necessidade de interná-lo. Lucy, você gosta dele, talvez possa ajudar. Johnny,
se você é de fato amigo dele, tem de ajudar também. Do contrário, o fígado do
velho Nino estará dentro de pouco tempo em exposição no laboratório médico de
alguma universidade.
Johnny sentiu-se
ofendido com a atitude irreverente do médico. Quem diabo pensava ele que era?
Ele ia começar a dizer isso quando ouviu a voz de Nino vindo da cama:
— Alô, companheiro
velho, que tal um trago?
Nino estava sentado na
cama. Sorriu para Lucy e disse:
— Alô, meu bem, venha
cá abraçar o velho Nino.
Ele estava com os
braços bem abertos. Lucy sentou-se na beirada da mina e deu-lhe um abraço.
Bastante estranho era que Nino não parecia estar ruim agora, seu aspecto era
quase normal.
Nino estalou os dedos.
— Vamos, Johnny, dê-me
um trago. A noite ainda é uma criança. Onde diabo está a minha mesa de jogo?
Jules tomou um gole longo de seu próprio copo e
falou para Nino:
— Você não pode beber.
O seu médico lhe proíbe.
— Foda-se o meu
médico! — urrou Nino.
Depois fez uma cara
dramática de arrependimento.
— Alô, Jules, é você.
Você é meu médico, está certo? Não me referi a você, companheiro velho. Johnny,
traga-me uma bebida ou eu me levanto da cama e vou apanhá-la.
Johnny deu de ombros e
caminhou na direção do bar.
Jules falou com
indiferença.
— Estou dizendo que
ele não deve beber.
Johnny sabia por que
Jules o irritava. A voz do médico era sempre fria, as palavras nunca se
acentuavam por mais terríveis que fossem, a
voz era sempre baixa e controlada. Se ele dava um aviso, o aviso era apenas em
palavras, a própria voz era neutra, como que descuidada. Foi isso que fez Johnny
ficar bastante aborrecido e levar a Nino o copo de uísque. Antes de
entregá-lo ao amigo, ele perguntou a Jules:
— Isto não vai
matá-lo, não é verdade?
— Não, não vai matá-lo
— respondeu Jules calmamente.
Lucy lançou-lhe um
olhar ansioso, começou a dizer alguma coisa, depois resolveu ficar quieta.
Entrementes, Nino tinha apanhado o copo e despejado a bebida goela abaixo.
Johnny estava sorrindo
para Nino; eles tinham mostrado ao idiota do médico. De repente, Nino respirou
convulsivamente, o seu rosto parecia ter ficado azul, ele não podia mais
respirar e estava sufocado, com falta de ar.
O seu corpo pulou para cima como um peixe fora da água, o seu rosto estava
impressionantemente carregado de sangue, os olhos inchados. Jules apareceu do
outro lado da cama de frente para Johnny e Lucy. Pegou Nino pelo pescoço e
segurou-o firmemente para que ele não se mexesse e mergulhou a agulha no
ombro, na parte em que se unia com o pescoço. Nino caiu mole em suas mãos, as
arfadas do seu corpo abrandaram e após um momento ele arriou novamente no
travesseiro. Seus olhos se fecharam; adormeceu profundamente.
Johnny, Lucy e Jules
voltaram para a sala de estar do apartamento e sentaram-se em volta da enorme e
sólida mesa de café. Lucy pegou um dos telefones de água-marinha e pediu que
mandassem café e alguma coisa para comer. Johnny tinha ido até o bar e
misturava uma bebida para si mesmo.
— Você sabia que ele
teria essa reação após tomar o uísque? — indagou Johnny.
Jules deu de ombros.
— Eu tinha plena
certeza disso — afirmou.
— Então por que você
não me avisou? — perguntou Johnny asperamente.
— Eu lhe avisei —
respondeu Jules.
— Você não me avisou
direito — retrucou Johnny com raiva — Você é realmente um diabo de médico. Não
tem pena de nada. Você me diz para levar Nino para um hospício, você nem sequer
se preocupa em usar uma palavra mais branda como sanatório. Você gosta de fato
de atormentar as pessoas, não é verdade?
Lucy estava olhando
para baixo, para o seu colo.
Jules continuava a rir
para Johnny Fontane.
— Nada iria impedir
você de dar aquela bebida a Nino. Você precisava mostrar que não tinha de
aceitar meus avisos, minhas ordens. Lembra-se quando você me ofereceu um
emprego como seu médico particular depois daquele negócio da garganta? Rejeitei
porque sabia que você jamais levaria a coisa a sério. Um médico pensa que é
Deus, ele é o sumo sacerdote na sociedade moderna, esta é uma de suas
recompensas. Mas você jamais me trataria desse modo. Eu seria um Deus lacaio
para você. Como os médicos que vocês têm em Hollywood. Onde vocês arranjam essa
gente, de qualquer modo? Meu Deus, eles não sabem nada ou apenas não se
importam? Eles devem saber o que está
acontecendo com Nino, mas vão-lhe dando apenas todo o tipo de droga para que
ele continue a viver. Usam aquelas roupas de seda e o bajulam porque você é um
poderoso homem do cinema e você pensa que eles são grandes sumidades. Artistas,
diretores, produtores, médicos, vocês têm coração? Certo? Mas eles pouco
se importam que vocês vivam ou morram. Bem, eu tenho a pequena mania, por
imperdoável que ela seja, de manter vivas as pessoas. Deixei você dar aquela
bebida a Nino para lhe mostrar o que poderia acontecer.
Jules inclinou-se para
Johnny Fontane e voltou a falar com a voz ainda calma, fria:
— O seu amigo está
quase no fim da linha. Será que você entende isso? Ele não tem qualquer
possibilidade sem terapia e cuidado médico rigoroso. A sua pressão sanguínea,
diabetes e maus hábitos podem causar-lhe uma hemorragia cerebral até daqui a
poucos instantes. O seu crânio poderá explodir. Isso bastante claro para você?
De fato, eu disse hospício. Quero que você compreenda o que é necessário. Ou
você não dará um passo sequer. Vou-lhe falar claramente. Você pode salvar a
vida de seu companheiro, se interná-lo num lugar apropriado. Do contrário, pode
dizer-lhe adeus.
— Jules, querido —
disse Lucy em voz baixa — Não seja tão duro. Apenas diga a ele o que tem de
dizer.
Jules levantou-se. A
sua frieza habitual tinha desaparecido, Johnny Fontane notou com satisfação. A
sua voz também tinha perdido sua monotonia não-acentuada.
— Você pensa que esta
foi a primeira vez que tive de falar a gente como você numa situação como essa?
— perguntou Jules — Eu fazia isso todo dia. Lucy pede para eu não ser duro, mas
ela não sabe do que está falando. Você sabe, eu costumava dizer às pessoas que
não comessem tanto ou morreriam, que não fumassem tanto ou morreriam, que não
trabalhassem tanto ou morreriam, que não bebessem tanto ou morreriam. Ninguém
ouvia. Você sabe por quê? Porque eu não digo: “Você morrerá amanhã”. Bem, posso
dizer-lhe que Nino pode muito bem morrer amanhã.
Jules foi até o bar e
preparou outra bebida.
— Que tal, Johnny,
você vai internar Nino?
— Não sei — respondeu
Johnny.
Jules tomou uma bebida
rápida no bar e encheu o copo novamente.
— Você sabe, é uma
coisa engraçada, a gente pode fumar até morrer, beber até morrer, trabalhar até
morrer e mesmo comer até morrer. Mas tudo isso é aceitável. A única coisa que a
gente não pode fazer medicamente é se estrepar até morrer, e é aí que se põem
todos os obstáculos.
Ele fez uma pausa para
terminar a sua bebida e continuou:
— Mas até isso é
complicação, principalmente para as mulheres. Tive clientes que não podiam mais
ter filhos. “Ë perigoso”, eu dizia a elas. “Você pode morrer”, eu dizia a elas.
E um mês depois elas apareciam, com as faces inteiramente rosadas, dizendo:
“Doutor, penso que estou grávida”, e com toda a certeza era verdade. “Mas é
perigoso”, eu dizia a elas. Minha voz costumava ter expressão naquela época. E
elas sorriam para mim, dizendo: “Mas meu marido e eu somos católicos
fervorosos”.
Ouviu-se uma batida, e
dois garçons entraram empurrando um carrinho cheio de comida e bules de cafés
de prata. Tiraram uma mesa portátil da parte de baixo do carrinho e a montaram.
Depois Johnny os dispensou.
Sentaram-se à mesa e
comeram os sanduíches quentes que Lucy pedira, acompanhados do café. Johnny
recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro.
— Então, você gosta de
salvar vidas. Como é que você se tornou um especialista em abortos?
Lucy desabafou pela
primeira vez.
— Ele queria ajudar as
moças em dificuldades, moças que poderiam cometer suicídio ou fazer alguma
coisa perigosa para se livrar da criança.
Jules sorriu para ela
e suspirou:
— Não é assim tão
simples. Tornei-me cirurgião finalmente. Eu tinha boa mão, como se diz
vulgarmente. Mas eu era tão bom que tinha medo de mim mesmo. Eu abria a barriga
de um pobre coitado e sabia que ele ia morrer. Eu operava e sabia que o câncer,
ou tumor, voltaria, mas eu os mandava embora com um sorriso e um bocado de
conversa mole. Vinha uma pobre mulher e eu cortava-lhe um seio. Um ano depois,
ela voltava e eu cortava-lhe o outro seio. Um ano depois disso, eu catava nas
suas entranhas como a gente cata as sementes de uma melancia. Depois de tudo
isso, ela morria de qualquer modo. Enquanto isso, os maridos continuavam a
telefonar e perguntar: “Que é que mostram os exames?”
Jules fez uma pausa e
prosseguiu:
— Assim, contratei
outra secretária apenas para atender esses telefonemas. Eu só via a paciente
quando ela estava completamente preparada para exame, testes ou operação. Eu
gastava o mínimo tempo possível com a vítima porque, afinal de contas, era um
homem ocupado. E finalmente eu permitia que o marido falasse comigo dois
minutos. “É o fim”, dizia eu. E eles nunca queriam ouvir esta última palavra.
Compreendiam o que significava, mas nunca a ouviam. Pensei a princípio que
inconscientemente eu baixava a voz ao pronunciar a última palavra, assim eu
conscientemente passei a dizê-la mais alto. Mas eles continuavam a não ouvi-la.
Um sujeito chegou a perguntar: “Que diabo está dizendo você? Não estou
entendendo.”
Jules começou a rir,
depois continuou:
— Assim, passei a
fazer abortos. Interessante e fácil, todo mundo feliz, é como lavar os pratos e
deixar a pia limpa. Esta era a minha classe. Eu gostava disso, gostava de
praticar abortos. Não acredito que um feto de dois meses é um ser humano,
portanto não há problemas aí. Eu ajudava jovens solteiras e mulheres casadas
que se encontravam em dificuldade, e fazia bom dinheiro. Estava longe das
linhas de frente. Quando me apanharam senti-me como um desertor que tivesse
sido preso. Mas tive sorte, um amigo mexeu os pauzinhos e conseguiu safar-me,
mas agora os grandes hospitais não me deixam operar. Assim, estou aqui. Dando
bons conselhos novamente, dos quais ninguém quer tomar conhecimento como nos
velhos tempos.
— Não estou deixando
de tomar conhecimento — retrucou Johnny Fontane — Estou pensando que decisão
devo tomar.
Lucy finalmente mudou
de assunto.
— Que está você
fazendo em Las Vegas, Johnny? Descansando de seus pesados encargos como uma das
peças importantes de Hollywood, ou trabalhando?
Johnny balançou a
cabeça e respondeu:
— Mike Corleone quer
me ver e falar comigo. Ele vai chegar esta noite de avião com Tom Hagen. Tom
disse que eles querem ver você, Lucy. Você sabe de que se trata?
Lucy balançou a
cabeça.
— Todos nós jantaremos
juntos amanhã à noite. Freddie também. Penso que tem alguma coisa a ver com o
hotel. O cassino tem perdido dinheiro ultimamente, o que não deve acontecer.
Don Corleone quer que Mike examine a situação.
— Ouvi dizer que Mike
finalmente consertou o rosto — disse Johnny.
Lucy deu uma
gargalhada.
— Acho que Kay o
convenceu a fazer isso. Ele não o fez quando eles se casaram. Por quê? Era tão
esquisito e fazia o seu nariz ficar pingando. Ele devia ter feito antes.
Ela fez uma pausa por
um momento e prosseguiu:
— Jules foi chamado
pela Família Corleone para essa operação. Ele serviu de consultor e observador.
Johnny acenou com a
cabeça e disse secamente:
— Eu lhe recomendei
que fizesse isso.
— Oh — retrucou Lucy —
De qualquer modo, Mike disse que queria fazer alguma coisa por Jules. Esse é o
motivo por que ele quer que jantemos juntos amanhã á noite.
Jules falou
pensativamente:
— Ele não confia em
ninguém. Avisou-me para acompanhar tudo o que os outros faziam. Foi uma
operação comum, direita. Qualquer médico competente a faria.
Ouviu-se um ruído
vindo do quarto de dormir do apartamento e eles olharam para o reposteiro. Nino
voltara a si novamente. Johnny levantou-se e foi sentar-se na cama. Jules e
Lucy foram até lá também. Nino deu-lhe um riso pálido.
— Está bem, vou deixar
de ser um sujeito esperto. Sinto-me realmente repugnante. Johnny, lembra-se, há
um ano atrás, o que aconteceu quando a gente estava com aquelas zinhas lá em
Palm Springs? Juro que não tive ciúme do que aconteceu. Eu estava contente.
Você acredita em mim, Johnny?
Johnny respondeu
tranqüilizadoramente:
— Certamente, Nino,
acredito em você.
Lucy e Jules olharam
um para o outro. Por tudo o que tinham ouvido a respeito de Johnny Fontane
parecia impossível que ele tomasse uma garota de um amigo íntimo como Nino. E
por que Nino dizia que não tinha ciúme um ano depois de haver acontecido? O
mesmo pensamento passou-lhe pela mente, que Nino estava bebendo para morrer
romanticamente porque uma garota o deixara para ir com Johnny Fontane.
Jules experimentou
Nino novamente.
— Vou arranjar uma
enfermeira para passar a noite aqui com você — disse Jules — Você tem realmente
de ficar alguns dias na cama. Não estou brincando.
Nino sorriu.
— Está bem, doutor,
apenas não arranje uma enfermeira bonita.
Jules telefonou para a
enfermeira e depois ele e Lucy se retiraram. Johnny sentou-se numa cadeira
perto da cama para esperar a enfermeira. Nino estava adormecendo novamente, com
um ar de cansaço no rosto. Johnny pensou no que ele dissera, em não ter ciúme
do que acontecera há mais de um ano com aquelas duas zinhas lá em Paim Springs.
Nunca lhe passara pela cabeça a idéia de que Nino pudesse ter ficado com ciúme.
* * *
Há cerca de um ano, Johnny Fontane estava
sentado no luxuoso escritório da companhia cinematográfica que dirigia, e se
sentia entediado como nunca se sentira na vida.
O que era de admirar,
pois o primeiro filme que produzira, tendo ele próprio como galã e Nino num
papel destacado, estava fazendo montanhas de dinheiro. Tudo funcionara bem.
Todos desempenharam bem sua tarefa. O filme fora produzido abaixo do orçamento
prefixado. Todo mundo ia ganhar uma fortuna com ele, e Jack Woltz estava
perdendo dez anos de sua vida. Agora Johnny tinha mais dois filmes em produção,
sendo que ele teria o principal papel num deles e Nino no outro. Nino era
grande na tela como um desses jovens galãs encantadores, fascinantes, que as
mulheres gostavam de acariciar entre os seios. Pobre menino perdido! Tudo o que
tocava transformava-se em dinheiro, que entrava a rodo. O Padrinho ganhava a
sua percentagem através do banco, e isso fazia Johnny sentir-se bem. Ele
justificara a fé do Padrinho. Mas no momento aquilo não estava ajudando muito.
E agora. que ele era
um vitorioso produtor cinematográfico independente, tinha tanto poder, talvez
mais do que tivera como cantor. Mulheres bonitas caíam em cima dele tal como
antes, embora por um motivo mais comercial. Ele possuía o seu próprio avião,
vivia até mais perdulariamente, com os rendimentos especiais que um homem de
negócios tem que os artistas não possuem. Então, que diabo o estava
aborrecendo?
Johnny sabia o que
era. A parte frontal da cabeça lhe doía, as passagens nasais lhe doíam, a sua
garganta comichava. O único meio pelo qual ele podia coçar e aliviar essa
comichão era cantando, e ele tinha medo até de cantar. Telefonara para Jules
Segal a respeito, perguntando quando poderia tentar cantar, e Jules respondera
que a qualquer momento que tivesse vontade. Assim, ele tentara, e a voz soara
tão áspera e horrorosa que desistira. E a sua garganta doeria como o diabo no
dia seguinte, doeria de modo diferente daquele como antes de serem tiradas as
verrugas. Doeria mais, queimaria. Johnny tinha medo de continuar a cantar, medo
de perder a voz para sempre ou de arruiná-la.
E se ele não podia
cantar, que diabo valia o resto? O resto era merda. Cantar era a única coisa
que ele sabia. Talvez soubesse mais sobre canto e seu tipo de música do que qualquer
outra pessoa no mundo. Ele era muito bom, agora compreendia isso. Todos esses
anos fizeram dele um verdadeiro profissional. Ninguém precisava dizer-lhe o que
era certo ou errado, ele não tinha de perguntar a ninguém. Ele sabia. Que
desperdício, que maldito desperdício.
Era sexta-feira, e
resolvera passar o fim de semana com Virginia e as meninas. Telefonara para
ela, como sempre fazia, para preveni-la de sua visita. Na verdade, para dar-lhe
a oportunidade de dizer “não”. Ela nunca dizia “não”. Nem uma só vez em todos
esses anos em que estavam divorciados. Por que ela jamais diria “não” a um
encontro das suas filhas com o pai.
Que mulher!, pensava
Johnny. Ele dera sorte com Virginia. E embora soubesse que gostava mais dela do
que de outra mulher, sabia que era impossível, para eles, viverem sexualmente
juntos. Talvez quando tivessem 65 anos de idade, quando as pessoas geralmente
se aposentam, eles se aposentassem juntos.
Mas a realidade
destruiu esses belos pensamentos, quando ele chegou na casa da ex-esposa e
verificou que Virginia estava um pouco rabugenta e as duas meninas não se
sentiam loucas para vê-lo, porque tinham prometido passar o fim de semana com
algumas amigas numa fazenda da Califórnia onde poderiam andar a cavalo.
Ele disse a Virginia que
mandasse as meninas para a fazenda e deu-lhes um beijo de despedida com um
sorriso de satisfação. Johnny as compreendia bem. Que criança não gostaria mais
de andar a cavalo numa fazenda do que ficar junto de um pai rabugento que
escolhia seus próprios momentos de ser pai? Ele falou para Virginia:
— Vou tomar uns tragos
e depois me arranco também.
— Está bem — respondeu
ela.
Ela estava num
daqueles seus maus dias, raros, mas que ocorriam de vez em quando. Não era
fácil, para ela, levar aquele tipo de vida.
Ela o viu tomar uma
dose extraordinariamente grande de bebida.
— De que é que você
está procurando se consolar? — perguntou Virginia — Tudo está correndo tão
maravilhosamente para você. Nunca sonhei que você fosse um homem de negócios
tão eficiente.
Johnny sorriu para
ela.
— Não é tão difícil
assim — retrucou ele.
Ao mesmo tempo ele
estava pensando, então isso era o que estava errado. Ele compreendia as
mulheres e sabia agora que Virginia estava desolada porque pensava que ele
possuía tudo à sua moda. As mulheres realmente detestavam ver seus homens indo
muito bem. Isso as irritava. Tornava-as menos seguras a respeito do domínio que
exerciam sobre eles através da afeição, do hábito sexual ou dos laços
matrimoniais. Assim, mais para consolá-la do que para externar as suas próprias
queixas, ele disse:
— Que diabo de
diferença faz se eu não posso cantar?
Virginia respondeu um
tanto aborrecida:
— Oh, Johnny, você não
é mais criança. Está com mais de trinta e cinco anos de idade. Por que continua
a se preocupar com essa bobagem de querer cantar? Você faz muito mais dinheiro
como produtor, não é mesmo?
Johnny olhou para ela
curiosamente e respondeu:
— Eu sou cantor. Gosto
de cantar. Que é que a idade tem a ver com isso?
Virginia estava
impaciente.
— Na verdade, jamais
gostei que você cantasse. Agora que você mostrou que pode fazer filmes,
sinto-me contente porque você não pode cantar mais.
Os dois se
surpreenderam quando Johnny retrucou furioso:
— Ë uma indecência de
sua parte dizer uma coisa dessas.
Ele estava abalado.
Como podia Virginia sentir-se assim, como podia ela detestá-lo tanto?
Virginia sorriu por
ele ter-se magoado e porque era tão insultuoso que ele se tivesse zangado com
ela e retrucou:
— Como pensa você que eu me sentia quando todas
aquelas garotas vinham correndo atrás de você devido ao seu modo de cantar?
Como você se sentiria se eu andasse com a bunda de fora pela rua para que os
homens viessem correndo atrás de mim? Assim é que eu considerava o seu canto, e
eu sempre desejei que você perdesse a voz e nunca mais pudesse voltar a cantar. Mas isso foi antes de nos divorciarmos.
Johnny terminou a
bebida.
— Você não entende
nada. Absolutamente nada.
Ele foi até a cozinha
e discou o número de Nino. Combinou encontrar-se com ele em Palm Springs para
passar o fim de semana e deu a Nino o número de uma garota para quem ele devia
telefonar, uma garota verdadeiramente bonita e encantadora com quem ele
pretendia encontrar-se.
— Ela arranjará uma
amiga para você — disse Johnny — Estarei em sua casa dentro de uma hora.
Virginia despediu-se
friamente quando, Johnny partiu. Ele pouco se incomodou, era uma das raras
vezes em que estava zangado com ela. O diabo com tudo aquilo, ele iria farrear
no fim de semana e curar aquela chateação.
De fato, tudo correu
muito bem em Palm Springs. Johnny foi para a casa que possuía lá e que estava
sempre aberta e com empregados naquela época do ano. As duas garotas eram novas
demais para proporcionarem grande diversão e não estavam muito interessadas em
conceder certo tipo de favor. Algumas pessoas vieram fazer-lhes companhia na
piscina até a hora da ceia. Nino foi para o quarto com a garota, a fim de se
aprontar para a ceia e dar uma rápida trepada, enquanto estava ainda quente do
sol. Johnny não se sentia disposto, então mandou a sua garota, uma loura
baixinha e bem recortada chamada Tina, tomar banho de chuveiro sozinha. Ele
jamais poderia fazer amor com outra mulher depois de ter brigado com Virginia.
Johnny entrou na sala
de estar com paredes de vidro onde se encontrava um piano. Quando cantava com a
banda, ele brincava com o piano apenas para se divertir, assim podia escolher
uma canção num estilo de balada meio romântica. Sentou-se e começou a
cantarolar um pouco, acompanhando-se ao piano, muito suavemente, murmurando
algumas palavras, mas não cantando realmente. Antes que ele percebesse, Tina
entrou na sala de estar preparando-lhe uma bebida e sentando-se ao seu lado ao piano. Johnny tocou algumas melodias e ela
cantarolou com ele. Ele a deixou no piano e subiu para tomar o seu banho de
chuveiro. No banheiro, ele cantou algumas frases curtas, quase que falando.
Vestiu-se e depois desceu. Tina estava ainda sozinha; Nino estava
realmente “castigando” a sua garota ou embriagando-se.
Johnny sentou-se ao
piano novamente, enquanto Tina dava uma voltinha lá fora para ver a piscina.
Ele começou a cantar uma de suas velhas canções. Não havia ardência em sua
garganta. Os tons saíam abafados, mas na intensidade correta. Ele olhou para o
pátio. Tina ainda estava lá, a porta de vidro estava fechada, ela não o
ouviria. Por algum motivo, ele não queria que ninguém ouvisse. Começou a cantar
uma velha balada de sua preferência. Cantou bem alto como se cantasse em
público, deixando a voz correr normalmente, esperando que a ardência habitual
começasse a irritar-lhe a garganta, mas não sentiu nada. Prestou atenção à sua
voz, estava um pouco diferente, mas ele gostou. Era mais grave, era a voz de um
homem, não de uma criança, rica, pensou ele, embora mais gutural. Terminou a
canção de modo cada vez mais lento e sentou-se ao piano pensando no assunto.
Atrás dele Nino
gritou:
— Você não se saiu
mal, companheiro, realmente, não se saiu mal.
Johnny virou o corpo.
Nino estava postado no vão da porta, sozinho. A sua garota não estava com ele.
Johnny sentiu um alívio. Ele não se incomodava que Nino o ouvisse.
— Sim — disse Johnny —
Vamo-nos livrar dessas duas zinhas. Mande-as para casa.
— Você é quem deve
mandá-las embora — retrucou Nino — São boas garotas, não quero melindrá-las.
Além disso, trepei duas vezes com a minha. Como é que posso mandá-la embora sem
ao menos dar-lhe de jantar?
O diabo com aquilo,
pensou Johnny. Que as garotas ouvissem mesmo que ele cantasse horrorosamente.
Ele telefonou para o diretor de uma banda que conhecia em Palm Springs e
pediu-lhe que mandasse um bandolim para Nino. O diretor da banda protestou:
— Diabo, ninguém toca
bandolim aqui na Califórnia.
— Quero que você
arranje um! — berrou Johnny.
A casa estava cheia de
equipamento de gravação, e Johnny fez as duas garotas manobrarem o botão de
ligar e desligar e o do volume. Depois do jantar, Johnny foi trabalhar. Fez
Nino tocar o bandolim como acompanhamento e cantou todas as suas velhas
canções. Cantou todas elas do começo ao fim, não poupando absolutamente a voz.
A sua garganta estava ótima, ele sentia que podia cantar toda a vida. Nos meses
em que não pudera cantar, ele às vezes pensava como deveria cantar, como
deveria pronunciar a letra da canção de um modo diferente, agora que não era
mais criança. Cantara as canções em sua cabeça com variações de ênfase mais
complicadas. Agora ele estava fazendo realmente aquilo. As vezes, saia errado
no canto real, uma coisa que parecia boa quando ele a ouvia em sua cabeça; não
saía bem quando procurava cantar em voz alta. Bem alto, pensava ele. Johnny não
ouvia a si mesmo agora, ele se concentrava em cantar. Atrapalhava-se um pouco
com o ritmo, mas isso estava bem, apenas a voz era um pouco gutural. Ele tinha
um metrônomo na cabeça que nunca falhava. Precisava apenas de um pouco de
prática.
Finalmente parou de
cantar. Tina veio em sua direção com os olhos brilhando e deu-lhe um beijo
demorado.
— Agora sei por que
mamãe vai assistir a todos os seus filmes — disse ela.
Era uma coisa errada
para se dizer em qualquer momento, menos naquele.
Johnny e Nino deram
uma gargalhada.
Tocaram a fita de
gravação e agora Johnny pôde ouvir realmente a si mesmo. A sua voz tinha mudado
bastante, mas era ainda indiscutivelmente a voz de Johnny Fontane. Tinha-se
tornado mais rica e mais grave, como ele notara antes, mas havia também a
qualidade de um homem cantando e não um rapaz. A voz tinha mais emoção
verdadeira, mais dignidade. E a parte técnica do seu canto era bem superior a
qualquer coisa que ele já tivesse feito.
Era nada menos que
magistral. E se estava tão boa agora, gutural como o diabo, como não ficaria
boa quando ele estivesse em forma novamente? Johnny arreganhou os dentes para
Nino e perguntou:
— Está tão boa quanto
eu acho?
Nino olhou
pensativamente para o seu rosto feliz.
— Está
extraordinariamente boa — respondeu — Mas vamos ver como você vai se sair
amanhã.
Johnny ficou magoado
por Nino se mostrar tão pessimista.
— Seu filho da puta,
você sabe que posso cantar assim. Não se preocupe com o dia de amanhã. Eu me
sinto otimamente bem.
Mas não cantou mais
naquela noite. Ele e Nino levaram as garotas para uma festa, e Tina passou a
noite na cama dele, mas Johnny não foi tão bom no amor. A garota ficou um pouco
decepcionada. Mas que diabo, a gente não pode fazer tudo bem num só dia, pensou
Johnny.
Acordou de manhã com
certa apreensão, com um vago terror de que sonhara que a sua voz tinha voltado.
Então quando teve certeza de que não fora um sonho, receou que a sua voz
sumisse novamente. Foi até a janela e cantarolou um pouco, depois desceu para a
sala de estar ainda de pijama. Escolheu uma melodia no piano e depois de algum
tempo tentou cantar com ela. Cantou abafadamente, mas não havia dor, nem
aspereza em sua garganta, e continuou a cantar. As cordas eram verdadeiras e
ricas, ele não precisava forçá-las absolutamente. Ela fluía fácil, fácil,
escorria naturalmente. Johnny pensou que os maus tempos tinham passado, a sua
voz voltara totalmente agora. E não se incomodava nem um pouco se fracassasse
com os filmes, não se incomodava que não tivesse conseguido levantar o pau com
Tina na noite anterior, não se incomodava que Virginia o detestasse porque ele
era capaz de cantar novamente. Por um momento só teve uma coisa a lamentar. Se
a sua voz tivesse voltado quando ele tentava cantar para as filhas, como teria
sido formidável. Isso teria sido realmente formidável.
* * *
A enfermeira do hotel
entrara no quarto empurrando um carrinho carregado de remédios. Johnny
levantou-se e olhou fixamente para Nino, que estava dormindo ou talvez
morrendo. Sabia que Nino não sentia ciúme por ele ter recuperado a voz.
Compreendia que Nino apenas tinha ciúme porque ele se sentia muito feliz por
ter recuperado a voz, porque gostava imensamente de cantar. Pois o que era
óbvio agora era que Nino não gostava bastante de coisa alguma que o fizesse
querer continuar a viver.
Continua...
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Frase Curiosa: "Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère
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