sexta-feira, 9 de março de 2012

O PODEROSO CHEFÃO - CAPÍTULO 26



CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS



CAPÍTULO
26




O
 MAGNÍFICO APARTAMENTO dava para as terras que simulavam um país de fadas da parte dos fundos do hotel; palmeiras transplantadas iluminadas por trepadeiras de luzes cor de laranja, duas enormes piscinas tremeluzindo uma cor azul-escura à luz das estrelas do deserto. No horizonte, viam-se as montanhas de areia e pedra que rodeavam Las Vegas aninhada no seu vale, de néon. Johnny Fontane deixou cair o pesado reposteiro cinza, luxuosamente bordado, e voltou para o quarto.
Um grupo especial de quatro pessoas, um chefe de banca, um carteador, um carteador-substituto e uma garçonete com sua escassa roupa de cabaré estavam aprontando as coisas para uma função particular. Nino Valenti estava deitado no sofá, na sala de estar do apartamento, com um copo de uísque na mão. Ele observava o pessoal do cassino instalando a mesa de jogo com meia dúzia de cadeiras acolchoadas em torno de sua borda externa em forma de ferradura.
— Isso é grande, isso é grande! — exclamou numa voz engrolada de quem ainda não estava muito bêbado — Johnny, venha cá e jogue comigo contra esses salafrários. Estou com sorte. Vamos dar uma surra neles.
Johnny estava sentado numa banqueta em frente ao divã.
— Você sabe que eu não jogo — respondeu ele — Como se sente, Nino?
Nino Valenti arreganhou os dentes para ele.
— Magnificamente. Estou esperando algumas mulheres à meia-noite para cear, depois voltarei para a mesa de jogo. Você sabe que eu ganhei quase cinqüenta mil dólares e o pessoal do cassino me chateou durante uma semana?
— Sei — respondeu Johnny Fontane — Para quem você quer deixá-los quando bater a bota?
Nino esvaziou o copo de uísque
— Johnny, onde foi que você arranjou essa máscara de bom moço? Você é um bobalhão, Johnny. Meu Deus, os turistas desta cidade se divertem muito mais do que você.
— É verdade — retrucou Johnny — Você quer que o ajude a ir até a mesa de jogo?
Nino ergueu-se com esforço e conseguiu sentar-se no sofá, plantando os pés firmemente no tapete.
— Posso fazer sozinho — respondeu ele.
Deixou o copo cair no chão, levantou-se e caminhou quase com firmeza até o lugar em que a mesa de jogo tinha sido instalada. O carteador estava pronto. O chefe da banca estava atrás do carteador olhando. O carteador-substituto estava sentado numa cadeira distante da mesa. A garçonete estava sentada em outra cadeira, de forma que podia ver qualquer gesto de Nino Valenti. Nino bateu no pano verde com os nós dos dedos.
— Fichas — pediu ele.
O chefe da banca puxou um bloco do bolso e encheu uma folha de papel, pondo-o em frente de Nino com uma pequena caneta-tinteiro.
— Aqui estão, Sr. Valenti — disse ele — Os cinco mil dólares habituais para começar.
Nino rabiscou a sua assinatura na parte inferior da folha de papel e o chefe da banca enfiou-a no bolso. Fez um sinal com a cabeça para o carteador.
O homem, com dedos incrivelmente ágeis, tirou pilhas de fichas de cem dólares douradas e pretas dos escaninhos situados na sua frente Em menos de cinco segundos, Nino tinha cinco pilhas iguais de fichas de cem dólares na sua rente, cada pilha com dez fichas.
Havia seis quadrados um pouco maiores do que os formatos das cartas desenhadas em branco no pano verde, cada quadrado correspondendo ao lugar de cada jogador. Agora Nino estava pondo apostas em três desses quadrados, fichas simples, e assim jogando por três parceiros a cem dólares cada aposta. Ele se recusou a pedir carta porque o carteador tinha um seis virado, uma carta branca, e o carteador estourou. Nino arrastou as fichas e voltou-se para Johnny Fontane dizendo:
— E assim que se começa a noite, hem, Johnny?
Johnny sorriu. Era raro que um jogador como Nino tivesse de assinar um vale enquanto estivesse jogando. Uma palavra era geralmente o bastante para os grandes jogadores. Talvez eles receassem que Nino não se lembrasse de sua retirada porque estava bebendo. Não sabiam que Nino se lembrava de tudo.
Nino continuou ganhando e depois da terceira rodada levantou o dedo para a garçonete. Ela foi até o bar no fim da sala e trouxe-lhe o habitual copo de uísque. Nino apanhou a bebida, mudou-a para a outra mão para que pudesse passar o braço em volta da garçonete.
— Sente-se comigo, meu bem, jogue algumas rodadas; traga-me sorte.
A garçonete era uma garota muito bonita, mas Johnny podia ver que ela era uma profissional completamente fria, não uma personalidade real, embora trabalhasse nisso. Ela não ria entusiasticamente para Nino, mas estava bastante interessada numa daquelas fichas douradas e pretas. Que diabo, pensou Johnny, porque não devia ela conseguir uma? Ele apenas lamentava que Nino não obtivesse uma coisa melhor com seu dinheiro.
Nino deixou a garçonete jogar algumas rodadas por ele e depois deu-lhe uma das fichas e uma pancadinha no traseiro para mandá-la embora da mesa. Johnny fez sinal para que ela lhe levasse uma bebida. Ela a levou, mas levou como se tivesse representando o momento mais dramático no filme mais dramático jamais realizado. Lançou todo o seu encanto sobre o grande Johnny Fontane. Fez os seus olhos cintilarem de convite ao amor, seu andar era o mais sensual já visto, sua boca estava ligeiramente aberta como se ela estivesse pronta para morder o objeto mais próximo de sua óbvia paixão. Ela parecia uma fêmea de animal no auge do cio, mas era um ato premeditado. Johnny Fontane pensou, oh, Cristo, uma delas. Era o convite mais comum das mulheres que queriam levá-lo para a cama. Só funcionava quando ele se achava muito bêbedo, o que não era o caso agora. Deu à garçonete um daqueles seus famosos risos inexpressivos e disse:
— Obrigado, meu bem.
A garota olhou para ele, separou os lábios num sorriso de agradecimento, com os olhos faiscantes, o corpo tenso com o tronco inclinando-se ligeira mente para trás de suas longas e afinadas pernas em suas meias de malha. Uma tensão enorme parecia estar tomando conta de seu corpo, os seios pareciam tomar-se cada vez mais cheios e inchar explosivamente contra a sua blusa fina escassamente recortada. Então, o seu corpo todo deu um tremor que quase deixou escapar um zunido sexual. A impressão era de uma mulher que estava tendo um orgasmo simplesmente porque Johnny Fontane sorrira para ela e dissera: “Obrigado, meu bem”. Foi muito bem feito, da maneira melhor que Johnny já vira em toda a sua vida. Mas agora ele sabia que era simulação. E era quase certo que as mulheres que faziam isso eram prostitutas ordinárias.
Ele a acompanhou com os olhos enquanto ela voltava para a sua cadeira e começou a tomar a sua bebida lentamente. Johnny não queria ver essa pequena artimanha novamente. Não estava disposto a isso naquela noite.
Demorou ainda uma hora para que Nino Valenti começasse a fraquejar. Ele primeiro se inclinou, cambaleou para trás e depois tombou da cadeira para mergulhar diretamente no assoalho. Mas o chefe da banca e o carteador-substituto ficaram alerta desde o primeiro movimento e o pegaram antes que ele atingisse o chão. Levantaram-no e conduziram-no através do reposteiro aberto que dava para o quarto de dormir do apartamento.
Johnny continuou a observar a garçonete que ajudava os outros homens a despir Nino e a enfiá-lo por baixo das cobertas. O chefe da banca contava as fichas de Nino e tomava nota no seu bloco de vales. Depois, guardou a mesa com as fichas do carteador. Então Johnny perguntou:
— Há quanto tempo isso vem acontecendo?
O chefe da banca deu de ombros.
— Esta noite foi mais cedo. A primeira vez chamamos o médico da casa e ele receitou algo para o Sr. Valenti e passou-lhe uma espécie de sermão. Depois Nino nos disse que não devíamos chamar o médico quando isso acontecesse, apenas pô-lo na cama e ele estaria bem na manhã seguinte. Assim, foi isso o que fizemos. Ele tem muita sorte, ganhou novamente esta noite, quase três mil dólares.
— Bem — retrucou Johnny Fontane — Vamos chamar o médico da casa aqui esta noite, está bem? Chame-o na sala de jogo se for preciso.
Passaram-se quase 15 minutos para que Jules Segal chegasse ao apartamento. Johnny notou com irritação que o camarada não tinha a menor aparência de médico. Nessa noite usava uma camisa de pólo, azul, furadinha, com enfeite branco, e sapatos de camurça brancos, sem meias. Seu aspecto era engraçadíssimo, carregando a tradicional bolsa preta de médico.
— Você devia imaginar um meio de carregar o seu material numa bolsa de golfe de tamanho reduzido — disse Johnny.
Jules riu para Johnny sem compreender e respondeu:
— Ë, essa maleta médica é um verdadeiro trambolho. Assusta todo mundo. De qualquer forma, deviam pelo menos mudar a cor.
Dirigiu se até onde Nino estava deitado na cama. Quando abriu a bolsa, disse para Johnny:
— Obrigado por aquele cheque que você me enviou pelos meus serviços. Foi demais. Eu não merecia tanto.
— Que se dane se você não merecia — respondeu Johnny — De qualquer modo, esqueça aquilo, já foi há muito tempo. Que é que há com Nino?
Jules estava fazendo um rápido exame da batida do coração, do pulso e da pressão sanguínea. Tirou uma agulha da bolsa e enfiou-a casualmente no braço de Nino e apertou o êmbolo. O rosto adormecido de Nino perdeu a palidez de cera, a cor voltou-lhe às faces, como se o sangue tivesse começado a bombear mais depressa.
— Diagnóstico muito simples — anunciou Jules animado — Tive oportunidade de examiná-lo e fazer alguns testes, quando ele veio aqui a primeira vez e desmaiou. Fi-lo transferir para o hospital antes de voltar a si. Está com diabetes, estável, brando, adulto, que não é problema quando a pessoa toma cuidado, seguindo a medicação, a dieta e assim por diante. Ele insiste em não tomar conhecimento da doença. Além disso, está firmemente decidido a beber até morrer. O seu fígado está se arruinando e a sua cabeça vai no mesmo caminho. Agora mesmo ele se acha em estado de coma diabético brando. Meu conselho é que se deve interná-lo.
Johnny teve uma sensação de alívio. Não podia ser coisa muito séria, tudo o que Nino precisava fazer era cuidar de si mesmo.
— Você quer dizer num desses lugares em que fazem a pessoa deixar de beber completamente? — perguntou Johnny.
Jules foi até o bar no canto afastado da sala e serviu uma bebida para si mesmo.
— Não — respondeu ele — Quero dizer recolhido. Você sabe, um hospício.
— Não seja engraçadinho — retrucou Johnny.
— Não estou brincando — afirmou Jules — Não conheço profundamente esse negócio de psiquiatria, mas sei alguma coisa a respeito, é parte de minha profissão. O seu amigo Nino pode ser posto novamente em muito boa forma, a não ser que o seu fígado tenha piorado muito, o que não podemos saber enquanto não se fizer a sua autópsia. Mas a sua verdadeira doença é na cabeça. Em suma, ele não se importa de morrer, talvez até queira se matar. Enquanto não se curar isso, não há esperança para ele. Por isso é que digo, é preciso recolhê-lo a um hospital de doenças mentais para submetê-lo ao necessário tratamento psiquiátrico.
Bateram na porta, e Johnny foi atender.
Era Lucy Mancini. Ela caiu nos braços de Johnny e beijou-o.
— Oh, Johnny, é tão bom ver você por aqui — disse ela.
— Já faz muito tempo que não nos vemos — declarou Johnny Fontane.
Ele notou que Lucy tinha mudado. Estava mais esbelta, suas roupas eram mais finas e ela as usava com mais elegância. O seu penteado assentava-lhe bem, era uma espécie de corte de cabelo de menino. Ela parecia mais jovem e melhor do que ele jamais a vira em toda a vida, e passou-lhe pela mente a idéia de que ela podia fazer-lhe companhia ali em Las Vegas. Seria um prazer ter a seu lado uma verdadeira mulher. Mas antes mesmo de concretizar o convite, Johnny se lembrou de que ela a garota do médico. Assim, isso estava fora de cogitação. Ele sorriu amável para ela e perguntou:
— Que é que faz vindo ao apartamento de Nino de noite, hem?
Lucy bateu-lhe no ombro.
— Ouvi dizer que Nino estava doente e que Jules tinha subido para cá. Eu queria apenas ver se podia ajudar. Nino está bem, não está?
— Certamente — respondeu Johnny — Ele ficará logo bom.
— Ele está ruim como o diabo — disse Jules, esparramando-se no sofá — Sugiro que todos nós nos sentemos aqui para esperar que Nino volte a si. E então falaremos a ele da necessidade de interná-lo. Lucy, você gosta dele, talvez possa ajudar. Johnny, se você é de fato amigo dele, tem de ajudar também. Do contrário, o fígado do velho Nino estará dentro de pouco tempo em exposição no laboratório médico de alguma universidade.
Johnny sentiu-se ofendido com a atitude irreverente do médico. Quem diabo pensava ele que era? Ele ia começar a dizer isso quando ouviu a voz de Nino vindo da cama:
— Alô, companheiro velho, que tal um trago?
Nino estava sentado na cama. Sorriu para Lucy e disse:
— Alô, meu bem, venha cá abraçar o velho Nino.
Ele estava com os braços bem abertos. Lucy sentou-se na beirada da mina e deu-lhe um abraço. Bastante estranho era que Nino não parecia estar ruim agora, seu aspecto era quase normal.
Nino estalou os dedos.
— Vamos, Johnny, dê-me um trago. A noite ainda é uma criança. Onde diabo está a minha mesa de jogo?
Jules tomou um gole longo de seu próprio copo e falou para Nino:
— Você não pode beber. O seu médico lhe proíbe.
— Foda-se o meu médico! — urrou Nino.
Depois fez uma cara dramática de arrependimento.
— Alô, Jules, é você. Você é meu médico, está certo? Não me referi a você, companheiro velho. Johnny, traga-me uma bebida ou eu me levanto da cama e vou apanhá-la.
Johnny deu de ombros e caminhou na direção do bar.
Jules falou com indiferença.
— Estou dizendo que ele não deve beber.
Johnny sabia por que Jules o irritava. A voz do médico era sempre fria, as palavras nunca se acentuavam por mais terríveis que fossem, a voz era sempre baixa e controlada. Se ele dava um aviso, o aviso era apenas em palavras, a própria voz era neutra, como que descuidada. Foi isso que fez Johnny ficar bastante aborrecido e levar a Nino o copo de uísque. Antes de entregá-lo ao amigo, ele perguntou a Jules:
— Isto não vai matá-lo, não é verdade?
— Não, não vai matá-lo — respondeu Jules calmamente.
Lucy lançou-lhe um olhar ansioso, começou a dizer alguma coisa, depois resolveu ficar quieta. Entrementes, Nino tinha apanhado o copo e despejado a bebida goela abaixo.
Johnny estava sorrindo para Nino; eles tinham mostrado ao idiota do médico. De repente, Nino respirou convulsivamente, o seu rosto parecia ter ficado azul, ele não podia mais respirar e estava sufocado, com falta de ar. O seu corpo pulou para cima como um peixe fora da água, o seu rosto estava impressionantemente carregado de sangue, os olhos inchados. Jules apareceu do outro lado da cama de frente para Johnny e Lucy. Pegou Nino pelo pescoço e segurou-o firmemente para que ele não se mexesse e mergulhou a agulha no ombro, na parte em que se unia com o pescoço. Nino caiu mole em suas mãos, as arfadas do seu corpo abrandaram e após um momento ele arriou novamente no travesseiro. Seus olhos se fecharam; adormeceu profundamente.
Johnny, Lucy e Jules voltaram para a sala de estar do apartamento e sentaram-se em volta da enorme e sólida mesa de café. Lucy pegou um dos telefones de água-marinha e pediu que mandassem café e alguma coisa para comer. Johnny tinha ido até o bar e misturava uma bebida para si mesmo.
— Você sabia que ele teria essa reação após tomar o uísque? — indagou Johnny.
Jules deu de ombros.
— Eu tinha plena certeza disso — afirmou.
— Então por que você não me avisou? — perguntou Johnny asperamente.
— Eu lhe avisei — respondeu Jules.
— Você não me avisou direito — retrucou Johnny com raiva — Você é realmente um diabo de médico. Não tem pena de nada. Você me diz para levar Nino para um hospício, você nem sequer se preocupa em usar uma palavra mais branda como sanatório. Você gosta de fato de atormentar as pessoas, não é verdade?
Lucy estava olhando para baixo, para o seu colo.
Jules continuava a rir para Johnny Fontane.
— Nada iria impedir você de dar aquela bebida a Nino. Você precisava mostrar que não tinha de aceitar meus avisos, minhas ordens. Lembra-se quando você me ofereceu um emprego como seu médico particular depois daquele negócio da garganta? Rejeitei porque sabia que você jamais levaria a coisa a sério. Um médico pensa que é Deus, ele é o sumo sacerdote na sociedade moderna, esta é uma de suas recompensas. Mas você jamais me trataria desse modo. Eu seria um Deus lacaio para você. Como os médicos que vocês têm em Hollywood. Onde vocês arranjam essa gente, de qualquer modo? Meu Deus, eles não sabem nada ou apenas não se importam? Eles devem saber o que está acontecendo com Nino, mas vão-lhe dando apenas todo o tipo de droga para que ele continue a viver. Usam aquelas roupas de seda e o bajulam porque você é um poderoso homem do cinema e você pensa que eles são grandes sumidades. Artistas, diretores, produtores, médicos, vocês têm coração? Certo? Mas eles pouco se importam que vocês vivam ou morram. Bem, eu tenho a pequena mania, por imperdoável que ela seja, de manter vivas as pessoas. Deixei você dar aquela bebida a Nino para lhe mostrar o que poderia acontecer.
Jules inclinou-se para Johnny Fontane e voltou a falar com a voz ainda calma, fria:
— O seu amigo está quase no fim da linha. Será que você entende isso? Ele não tem qualquer possibilidade sem terapia e cuidado médico rigoroso. A sua pressão sanguínea, diabetes e maus hábitos podem causar-lhe uma hemorragia cerebral até daqui a poucos instantes. O seu crânio poderá explodir. Isso bastante claro para você? De fato, eu disse hospício. Quero que você compreenda o que é necessário. Ou você não dará um passo sequer. Vou-lhe falar claramente. Você pode salvar a vida de seu companheiro, se interná-lo num lugar apropriado. Do contrário, pode dizer-lhe adeus.
— Jules, querido — disse Lucy em voz baixa — Não seja tão duro. Apenas diga a ele o que tem de dizer.
Jules levantou-se. A sua frieza habitual tinha desaparecido, Johnny Fontane notou com satisfação. A sua voz também tinha perdido sua monotonia não-acentuada.
— Você pensa que esta foi a primeira vez que tive de falar a gente como você numa situação como essa? — perguntou Jules — Eu fazia isso todo dia. Lucy pede para eu não ser duro, mas ela não sabe do que está falando. Você sabe, eu costumava dizer às pessoas que não comessem tanto ou morreriam, que não fumassem tanto ou morreriam, que não trabalhassem tanto ou morreriam, que não bebessem tanto ou morreriam. Ninguém ouvia. Você sabe por quê? Porque eu não digo: “Você morrerá amanhã”. Bem, posso dizer-lhe que Nino pode muito bem morrer amanhã.
Jules foi até o bar e preparou outra bebida.
— Que tal, Johnny, você vai internar Nino?
— Não sei — respondeu Johnny.
Jules tomou uma bebida rápida no bar e encheu o copo novamente.
— Você sabe, é uma coisa engraçada, a gente pode fumar até morrer, beber até morrer, trabalhar até morrer e mesmo comer até morrer. Mas tudo isso é aceitável. A única coisa que a gente não pode fazer medicamente é se estrepar até morrer, e é aí que se põem todos os obstáculos.
Ele fez uma pausa para terminar a sua bebida e continuou:
— Mas até isso é complicação, principalmente para as mulheres. Tive clientes que não podiam mais ter filhos. “Ë perigoso”, eu dizia a elas. “Você pode morrer”, eu dizia a elas. E um mês depois elas apareciam, com as faces inteiramente rosadas, dizendo: “Doutor, penso que estou grávida”, e com toda a certeza era verdade. “Mas é perigoso”, eu dizia a elas. Minha voz costumava ter expressão naquela época. E elas sorriam para mim, dizendo: “Mas meu marido e eu somos católicos fervorosos”.
Ouviu-se uma batida, e dois garçons entraram empurrando um carrinho cheio de comida e bules de cafés de prata. Tiraram uma mesa portátil da parte de baixo do carrinho e a montaram. Depois Johnny os dispensou.
Sentaram-se à mesa e comeram os sanduíches quentes que Lucy pedira, acompanhados do café. Johnny recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro.
— Então, você gosta de salvar vidas. Como é que você se tornou um especialista em abortos?
Lucy desabafou pela primeira vez.
— Ele queria ajudar as moças em dificuldades, moças que poderiam cometer suicídio ou fazer alguma coisa perigosa para se livrar da criança.
Jules sorriu para ela e suspirou:
— Não é assim tão simples. Tornei-me cirurgião finalmente. Eu tinha boa mão, como se diz vulgarmente. Mas eu era tão bom que tinha medo de mim mesmo. Eu abria a barriga de um pobre coitado e sabia que ele ia morrer. Eu operava e sabia que o câncer, ou tumor, voltaria, mas eu os mandava embora com um sorriso e um bocado de conversa mole. Vinha uma pobre mulher e eu cortava-lhe um seio. Um ano depois, ela voltava e eu cortava-lhe o outro seio. Um ano depois disso, eu catava nas suas entranhas como a gente cata as sementes de uma melancia. Depois de tudo isso, ela morria de qualquer modo. Enquanto isso, os maridos continuavam a telefonar e perguntar: “Que é que mostram os exames?”
Jules fez uma pausa e prosseguiu:
— Assim, contratei outra secretária apenas para atender esses telefonemas. Eu só via a paciente quando ela estava completamente preparada para exame, testes ou operação. Eu gastava o mínimo tempo possível com a vítima porque, afinal de contas, era um homem ocupado. E finalmente eu permitia que o marido falasse comigo dois minutos. “É o fim”, dizia eu. E eles nunca queriam ouvir esta última palavra. Compreendiam o que significava, mas nunca a ouviam. Pensei a princípio que inconscientemente eu baixava a voz ao pronunciar a última palavra, assim eu conscientemente passei a dizê-la mais alto. Mas eles continuavam a não ouvi-la. Um sujeito chegou a perguntar: “Que diabo está dizendo você? Não estou entendendo.”
Jules começou a rir, depois continuou:
— Assim, passei a fazer abortos. Interessante e fácil, todo mundo feliz, é como lavar os pratos e deixar a pia limpa. Esta era a minha classe. Eu gostava disso, gostava de praticar abortos. Não acredito que um feto de dois meses é um ser humano, portanto não há problemas aí. Eu ajudava jovens solteiras e mulheres casadas que se encontravam em dificuldade, e fazia bom dinheiro. Estava longe das linhas de frente. Quando me apanharam senti-me como um desertor que tivesse sido preso. Mas tive sorte, um amigo mexeu os pauzinhos e conseguiu safar-me, mas agora os grandes hospitais não me deixam operar. Assim, estou aqui. Dando bons conselhos novamente, dos quais ninguém quer tomar conhecimento como nos velhos tempos.
— Não estou deixando de tomar conhecimento — retrucou Johnny Fontane — Estou pensando que decisão devo tomar.
Lucy finalmente mudou de assunto.
— Que está você fazendo em Las Vegas, Johnny? Descansando de seus pesados encargos como uma das peças importantes de Hollywood, ou trabalhando?
Johnny balançou a cabeça e respondeu:
— Mike Corleone quer me ver e falar comigo. Ele vai chegar esta noite de avião com Tom Hagen. Tom disse que eles querem ver você, Lucy. Você sabe de que se trata?
Lucy balançou a cabeça.
— Todos nós jantaremos juntos amanhã à noite. Freddie também. Penso que tem alguma coisa a ver com o hotel. O cassino tem perdido dinheiro ultimamente, o que não deve acontecer. Don Corleone quer que Mike examine a situação.
— Ouvi dizer que Mike finalmente consertou o rosto — disse Johnny.
Lucy deu uma gargalhada.
— Acho que Kay o convenceu a fazer isso. Ele não o fez quando eles se casaram. Por quê? Era tão esquisito e fazia o seu nariz ficar pingando. Ele devia ter feito antes.
Ela fez uma pausa por um momento e prosseguiu:
— Jules foi chamado pela Família Corleone para essa operação. Ele serviu de consultor e observador.
Johnny acenou com a cabeça e disse secamente:
— Eu lhe recomendei que fizesse isso.
— Oh — retrucou Lucy — De qualquer modo, Mike disse que queria fazer alguma coisa por Jules. Esse é o motivo por que ele quer que jantemos juntos amanhã á noite.
Jules falou pensativamente:
— Ele não confia em ninguém. Avisou-me para acompanhar tudo o que os outros faziam. Foi uma operação comum, direita. Qualquer médico competente a faria.
Ouviu-se um ruído vindo do quarto de dormir do apartamento e eles olharam para o reposteiro. Nino voltara a si novamente. Johnny levantou-se e foi sentar-se na cama. Jules e Lucy foram até lá também. Nino deu-lhe um riso pálido.
— Está bem, vou deixar de ser um sujeito esperto. Sinto-me realmente repugnante. Johnny, lembra-se, há um ano atrás, o que aconteceu quando a gente estava com aquelas zinhas lá em Palm Springs? Juro que não tive ciúme do que aconteceu. Eu estava contente. Você acredita em mim, Johnny?
Johnny respondeu tranqüilizadoramente:
— Certamente, Nino, acredito em você.
Lucy e Jules olharam um para o outro. Por tudo o que tinham ouvido a respeito de Johnny Fontane parecia impossível que ele tomasse uma garota de um amigo íntimo como Nino. E por que Nino dizia que não tinha ciúme um ano depois de haver acontecido? O mesmo pensamento passou-lhe pela mente, que Nino estava bebendo para morrer romanticamente porque uma garota o deixara para ir com Johnny Fontane.
Jules experimentou Nino novamente.
— Vou arranjar uma enfermeira para passar a noite aqui com você — disse Jules — Você tem realmente de ficar alguns dias na cama. Não estou brincando.
Nino sorriu.
— Está bem, doutor, apenas não arranje uma enfermeira bonita.
Jules telefonou para a enfermeira e depois ele e Lucy se retiraram. Johnny sentou-se numa cadeira perto da cama para esperar a enfermeira. Nino estava adormecendo novamente, com um ar de cansaço no rosto. Johnny pensou no que ele dissera, em não ter ciúme do que acontecera há mais de um ano com aquelas duas zinhas lá em Paim Springs. Nunca lhe passara pela cabeça a idéia de que Nino pudesse ter ficado com ciúme.

* * *

Há cerca de um ano, Johnny Fontane estava sentado no luxuoso escritório da companhia cinematográfica que dirigia, e se sentia entediado como nunca se sentira na vida.
O que era de admirar, pois o primeiro filme que produzira, tendo ele próprio como galã e Nino num papel destacado, estava fazendo montanhas de dinheiro. Tudo funcionara bem. Todos desempenharam bem sua tarefa. O filme fora produzido abaixo do orçamento prefixado. Todo mundo ia ganhar uma fortuna com ele, e Jack Woltz estava perdendo dez anos de sua vida. Agora Johnny tinha mais dois filmes em produção, sendo que ele teria o principal papel num deles e Nino no outro. Nino era grande na tela como um desses jovens galãs encantadores, fascinantes, que as mulheres gostavam de acariciar entre os seios. Pobre menino perdido! Tudo o que tocava transformava-se em dinheiro, que entrava a rodo. O Padrinho ganhava a sua percentagem através do banco, e isso fazia Johnny sentir-se bem. Ele justificara a fé do Padrinho. Mas no momento aquilo não estava ajudando muito.
E agora. que ele era um vitorioso produtor cinematográfico independente, tinha tanto poder, talvez mais do que tivera como cantor. Mulheres bonitas caíam em cima dele tal como antes, embora por um motivo mais comercial. Ele possuía o seu próprio avião, vivia até mais perdulariamente, com os rendimentos especiais que um homem de negócios tem que os artistas não possuem. Então, que diabo o estava aborrecendo?
Johnny sabia o que era. A parte frontal da cabeça lhe doía, as passagens nasais lhe doíam, a sua garganta comichava. O único meio pelo qual ele podia coçar e aliviar essa comichão era cantando, e ele tinha medo até de cantar. Telefonara para Jules Segal a respeito, perguntando quando poderia tentar cantar, e Jules respondera que a qualquer momento que tivesse vontade. Assim, ele tentara, e a voz soara tão áspera e horrorosa que desistira. E a sua garganta doeria como o diabo no dia seguinte, doeria de modo diferente daquele como antes de serem tiradas as verrugas. Doeria mais, queimaria. Johnny tinha medo de continuar a cantar, medo de perder a voz para sempre ou de arruiná-la.
E se ele não podia cantar, que diabo valia o resto? O resto era merda. Cantar era a única coisa que ele sabia. Talvez soubesse mais sobre canto e seu tipo de música do que qualquer outra pessoa no mundo. Ele era muito bom, agora compreendia isso. Todos esses anos fizeram dele um verdadeiro profissional. Ninguém precisava dizer-lhe o que era certo ou errado, ele não tinha de perguntar a ninguém. Ele sabia. Que desperdício, que maldito desperdício.
Era sexta-feira, e resolvera passar o fim de semana com Virginia e as meninas. Telefonara para ela, como sempre fazia, para preveni-la de sua visita. Na verdade, para dar-lhe a oportunidade de dizer “não”. Ela nunca dizia “não”. Nem uma só vez em todos esses anos em que estavam divorciados. Por que ela jamais diria “não” a um encontro das suas filhas com o pai.
Que mulher!, pensava Johnny. Ele dera sorte com Virginia. E embora soubesse que gostava mais dela do que de outra mulher, sabia que era impossível, para eles, viverem sexualmente juntos. Talvez quando tivessem 65 anos de idade, quando as pessoas geralmente se aposentam, eles se aposentassem juntos.
Mas a realidade destruiu esses belos pensamentos, quando ele chegou na casa da ex-esposa e verificou que Virginia estava um pouco rabugenta e as duas meninas não se sentiam loucas para vê-lo, porque tinham prometido passar o fim de semana com algumas amigas numa fazenda da Califórnia onde poderiam andar a cavalo.
Ele disse a Virginia que mandasse as meninas para a fazenda e deu-lhes um beijo de despedida com um sorriso de satisfação. Johnny as compreendia bem. Que criança não gostaria mais de andar a cavalo numa fazenda do que ficar junto de um pai rabugento que escolhia seus próprios momentos de ser pai? Ele falou para Virginia:
— Vou tomar uns tragos e depois me arranco também.
— Está bem — respondeu ela.
Ela estava num daqueles seus maus dias, raros, mas que ocorriam de vez em quando. Não era fácil, para ela, levar aquele tipo de vida.
Ela o viu tomar uma dose extraordinariamente grande de bebida.
— De que é que você está procurando se consolar? — perguntou Virginia — Tudo está correndo tão maravilhosamente para você. Nunca sonhei que você fosse um homem de negócios tão eficiente.
Johnny sorriu para ela.
— Não é tão difícil assim — retrucou ele.
Ao mesmo tempo ele estava pensando, então isso era o que estava errado. Ele compreendia as mulheres e sabia agora que Virginia estava desolada porque pensava que ele possuía tudo à sua moda. As mulheres realmente detestavam ver seus homens indo muito bem. Isso as irritava. Tornava-as menos seguras a respeito do domínio que exerciam sobre eles através da afeição, do hábito sexual ou dos laços matrimoniais. Assim, mais para consolá-la do que para externar as suas próprias queixas, ele disse:
— Que diabo de diferença faz se eu não posso cantar?
Virginia respondeu um tanto aborrecida:
— Oh, Johnny, você não é mais criança. Está com mais de trinta e cinco anos de idade. Por que continua a se preocupar com essa bobagem de querer cantar? Você faz muito mais dinheiro como produtor, não é mesmo?
Johnny olhou para ela curiosamente e respondeu:
— Eu sou cantor. Gosto de cantar. Que é que a idade tem a ver com isso?
Virginia estava impaciente.
— Na verdade, jamais gostei que você cantasse. Agora que você mostrou que pode fazer filmes, sinto-me contente porque você não pode cantar mais.
Os dois se surpreenderam quando Johnny retrucou furioso:
— Ë uma indecência de sua parte dizer uma coisa dessas.
Ele estava abalado. Como podia Virginia sentir-se assim, como podia ela detestá-lo tanto?
Virginia sorriu por ele ter-se magoado e porque era tão insultuoso que ele se tivesse zangado com ela e retrucou:
— Como pensa você que eu me sentia quando todas aquelas garotas vinham correndo atrás de você devido ao seu modo de cantar? Como você se sentiria se eu andasse com a bunda de fora pela rua para que os homens viessem correndo atrás de mim? Assim é que eu considerava o seu canto, e eu sempre desejei que você perdesse a voz e nunca mais pudesse voltar a cantar. Mas isso foi antes de nos divorciarmos.
Johnny terminou a bebida.
— Você não entende nada. Absolutamente nada.
Ele foi até a cozinha e discou o número de Nino. Combinou encontrar-se com ele em Palm Springs para passar o fim de semana e deu a Nino o número de uma garota para quem ele devia telefonar, uma garota verdadeiramente bonita e encantadora com quem ele pretendia encontrar-se.
— Ela arranjará uma amiga para você — disse Johnny — Estarei em sua casa dentro de uma hora.
Virginia despediu-se friamente quando, Johnny partiu. Ele pouco se incomodou, era uma das raras vezes em que estava zangado com ela. O diabo com tudo aquilo, ele iria farrear no fim de semana e curar aquela chateação.
De fato, tudo correu muito bem em Palm Springs. Johnny foi para a casa que possuía lá e que estava sempre aberta e com empregados naquela época do ano. As duas garotas eram novas demais para proporcionarem grande diversão e não estavam muito interessadas em conceder certo tipo de favor. Algumas pessoas vieram fazer-lhes companhia na piscina até a hora da ceia. Nino foi para o quarto com a garota, a fim de se aprontar para a ceia e dar uma rápida trepada, enquanto estava ainda quente do sol. Johnny não se sentia disposto, então mandou a sua garota, uma loura baixinha e bem recortada chamada Tina, tomar banho de chuveiro sozinha. Ele jamais poderia fazer amor com outra mulher depois de ter brigado com Virginia.
Johnny entrou na sala de estar com paredes de vidro onde se encontrava um piano. Quando cantava com a banda, ele brincava com o piano apenas para se divertir, assim podia escolher uma canção num estilo de balada meio romântica. Sentou-se e começou a cantarolar um pouco, acompanhando-se ao piano, muito suavemente, murmurando algumas palavras, mas não cantando realmente. Antes que ele percebesse, Tina entrou na sala de estar preparando-lhe uma bebida e sentando-se ao seu lado ao piano. Johnny tocou algumas melodias e ela cantarolou com ele. Ele a deixou no piano e subiu para tomar o seu banho de chuveiro. No banheiro, ele cantou algumas frases curtas, quase que falando. Vestiu-se e depois desceu. Tina estava ainda sozinha; Nino estava realmente “castigando” a sua garota ou embriagando-se.
Johnny sentou-se ao piano novamente, enquanto Tina dava uma voltinha lá fora para ver a piscina. Ele começou a cantar uma de suas velhas canções. Não havia ardência em sua garganta. Os tons saíam abafados, mas na intensidade correta. Ele olhou para o pátio. Tina ainda estava lá, a porta de vidro estava fechada, ela não o ouviria. Por algum motivo, ele não queria que ninguém ouvisse. Começou a cantar uma velha balada de sua preferência. Cantou bem alto como se cantasse em público, deixando a voz correr normalmente, esperando que a ardência habitual começasse a irritar-lhe a garganta, mas não sentiu nada. Prestou atenção à sua voz, estava um pouco diferente, mas ele gostou. Era mais grave, era a voz de um homem, não de uma criança, rica, pensou ele, embora mais gutural. Terminou a canção de modo cada vez mais lento e sentou-se ao piano pensando no assunto.
Atrás dele Nino gritou:
— Você não se saiu mal, companheiro, realmente, não se saiu mal.
Johnny virou o corpo. Nino estava postado no vão da porta, sozinho. A sua garota não estava com ele. Johnny sentiu um alívio. Ele não se incomodava que Nino o ouvisse.
— Sim — disse Johnny — Vamo-nos livrar dessas duas zinhas. Mande-as para casa.
— Você é quem deve mandá-las embora — retrucou Nino — São boas garotas, não quero melindrá-las. Além disso, trepei duas vezes com a minha. Como é que posso mandá-la embora sem ao menos dar-lhe de jantar?
O diabo com aquilo, pensou Johnny. Que as garotas ouvissem mesmo que ele cantasse horrorosamente. Ele telefonou para o diretor de uma banda que conhecia em Palm Springs e pediu-lhe que mandasse um bandolim para Nino. O diretor da banda protestou:
— Diabo, ninguém toca bandolim aqui na Califórnia.
— Quero que você arranje um! — berrou Johnny.
A casa estava cheia de equipamento de gravação, e Johnny fez as duas garotas manobrarem o botão de ligar e desligar e o do volume. Depois do jantar, Johnny foi trabalhar. Fez Nino tocar o bandolim como acompanhamento e cantou todas as suas velhas canções. Cantou todas elas do começo ao fim, não poupando absolutamente a voz. A sua garganta estava ótima, ele sentia que podia cantar toda a vida. Nos meses em que não pudera cantar, ele às vezes pensava como deveria cantar, como deveria pronunciar a letra da canção de um modo diferente, agora que não era mais criança. Cantara as canções em sua cabeça com variações de ênfase mais complicadas. Agora ele estava fazendo realmente aquilo. As vezes, saia errado no canto real, uma coisa que parecia boa quando ele a ouvia em sua cabeça; não saía bem quando procurava cantar em voz alta. Bem alto, pensava ele. Johnny não ouvia a si mesmo agora, ele se concentrava em cantar. Atrapalhava-se um pouco com o ritmo, mas isso estava bem, apenas a voz era um pouco gutural. Ele tinha um metrônomo na cabeça que nunca falhava. Precisava apenas de um pouco de prática.
Finalmente parou de cantar. Tina veio em sua direção com os olhos brilhando e deu-lhe um beijo demorado.
— Agora sei por que mamãe vai assistir a todos os seus filmes — disse ela.
Era uma coisa errada para se dizer em qualquer momento, menos naquele.
Johnny e Nino deram uma gargalhada.
Tocaram a fita de gravação e agora Johnny pôde ouvir realmente a si mesmo. A sua voz tinha mudado bastante, mas era ainda indiscutivelmente a voz de Johnny Fontane. Tinha-se tornado mais rica e mais grave, como ele notara antes, mas havia também a qualidade de um homem cantando e não um rapaz. A voz tinha mais emoção verdadeira, mais dignidade. E a parte técnica do seu canto era bem superior a qualquer coisa que ele já tivesse feito.
Era nada menos que magistral. E se estava tão boa agora, gutural como o diabo, como não ficaria boa quando ele estivesse em forma novamente? Johnny arreganhou os dentes para Nino e perguntou:
— Está tão boa quanto eu acho?
Nino olhou pensativamente para o seu rosto feliz.
— Está extraordinariamente boa — respondeu — Mas vamos ver como você vai se sair amanhã.
Johnny ficou magoado por Nino se mostrar tão pessimista.
— Seu filho da puta, você sabe que posso cantar assim. Não se preocupe com o dia de amanhã. Eu me sinto otimamente bem.
Mas não cantou mais naquela noite. Ele e Nino levaram as garotas para uma festa, e Tina passou a noite na cama dele, mas Johnny não foi tão bom no amor. A garota ficou um pouco decepcionada. Mas que diabo, a gente não pode fazer tudo bem num só dia, pensou Johnny.
Acordou de manhã com certa apreensão, com um vago terror de que sonhara que a sua voz tinha voltado. Então quando teve certeza de que não fora um sonho, receou que a sua voz sumisse novamente. Foi até a janela e cantarolou um pouco, depois desceu para a sala de estar ainda de pijama. Escolheu uma melodia no piano e depois de algum tempo tentou cantar com ela. Cantou abafadamente, mas não havia dor, nem aspereza em sua garganta, e continuou a cantar. As cordas eram verdadeiras e ricas, ele não precisava forçá-las absolutamente. Ela fluía fácil, fácil, escorria naturalmente. Johnny pensou que os maus tempos tinham passado, a sua voz voltara totalmente agora. E não se incomodava nem um pouco se fracassasse com os filmes, não se incomodava que não tivesse conseguido levantar o pau com Tina na noite anterior, não se incomodava que Virginia o detestasse porque ele era capaz de cantar novamente. Por um momento só teve uma coisa a lamentar. Se a sua voz tivesse voltado quando ele tentava cantar para as filhas, como teria sido formidável. Isso teria sido realmente formidável.

* * *

A enfermeira do hotel entrara no quarto empurrando um carrinho carregado de remédios. Johnny levantou-se e olhou fixamente para Nino, que estava dormindo ou talvez morrendo. Sabia que Nino não sentia ciúme por ele ter recuperado a voz. Compreendia que Nino apenas tinha ciúme porque ele se sentia muito feliz por ter recuperado a voz, porque gostava imensamente de cantar. Pois o que era óbvio agora era que Nino não gostava bastante de coisa alguma que o fizesse querer continuar a viver.




Continua...







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Frase Curiosa"Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère

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