quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Harry Potter e a Ordem da Fênix - Capítulo 37






— CAPÍTULO TRINTA E SETE —
A Profecia Perdida



OS PÉS DE HARRY BATERAM EM CHÃO FIRME; seus joelhos se dobraram ligeiramente e a cabeça dourada do bruxo caiu com um baque metálico no chão. Ele olhou ao redor e constatou que chegara ao escritório de Dumbledore.
Tudo parecia ter se consertado na ausência do Diretor. Os delicados instrumentos de prata se encontravam mais uma vez sobre as mesinhas de pernas finas, soprando e zunindo serenamente. Os retratos dos diretores e diretoras cochilavam em seus quadros, as cabeças caídas molemente no encosto das poltronas ou apoiadas nas molduras.
Harry espiou pela janela. Havia uma fria linha verde-clara no horizonte: o dia ia despontando. O silêncio e a imobilidade, interrompidos apenas por um raro grunhido ou fungada de um retrato adormecido, eram insuportáveis. Se o ambiente pudesse ter refletido os sentimentos que o dominavam, os quadros estariam gritando de dor. Ele andou pelo escritório silencioso e belo, respirando depressa, tentando não pensar. Mas precisava pensar... não tinha saída...
Era sua culpa que Sirius tivesse morrido, inteiramente sua culpa. Se ele, Harry, não tivesse sido burro de cair na esparrela de Voldemort, se não estivesse tão convencido de que o que vira em sonho era real, se ao menos tivesse aberto a mente à possibilidade de que Voldemort, conforme dissera Hermione, estivesse apostando no prazer de Harry de bancar o herói...
Era insuportável, ele não pensaria no assunto, não conseguiria suportar... havia um terrível vazio em seu peito que ele não queria sentir nem examinar, um buraco negro em que Sirius estivera, em que Sirius desaparecera, ele não queria ter de ficar sozinho com aquele enorme espaço silencioso, não conseguiria suportar...
Um quadro às suas costas soltou um ronco particularmente alto, e uma voz calma exclamou:
— Ah... Harry Potter...
Fineus Nigellus deu um longo bocejo, se espreguiçando enquanto observava Harry com seus olhos apertados e astutos.
— E o que o traz aqui nas primeiras horas da manhã? — perguntou o bruxo passado algum tempo — O escritório está interditado a todos, exceto ao seu legítimo diretor. Ou foi Dumbledore que o mandou aqui? Ah, não me diga nada... — ele deu outro bocejo estremecido — Mais uma mensagem para o meu indigno bisneto?
Harry não pôde responder. Fineus Nigellus não sabia que Sirius estava morto, mas Harry não poderia lhe contar. Dizê-lo em voz alta seria tornar a morte final, absoluta, irrecuperável.
Mais alguns retratos se mexiam agora. O terror de ser interrogado fez Harry atravessar a sala e segurar a maçaneta. Ela não girou. Ele estava trancado.
— Espero que isto signifique — disse um corpulento bruxo de nariz vermelho pendurado a uma parede atrás da escrivaninha do diretor — Que em breve Dumbledore estará entre nós?
Harry se virou. O bruxo o fitava com grande interesse. O garoto confirmou com a cabeça. E tornou a puxar a maçaneta com as mãos às costas, mas ela permaneceu imóvel.
— Ah, que bom — disse o bruxo — Tem sido muito monótono sem ele, muito monótono mesmo.
O bruxo se acomodou no cadeirão semelhante a um trono, no qual fora retratado, e sorriu bondosamente para Harry.
— Dumbledore tem uma opinião elogiosa sobre você, como estou certo de que sabe — disse satisfeito — Ah, sim. Tem você em alta estima.
A sensação de culpa que enchia o peito de Harry como um parasita monstruoso e pesado agora se torcia e virava. Harry não conseguia suportar isso, não conseguia mais suportar ser quem era... nunca se sentira tão encurralado dentro do próprio corpo, nunca desejara tão intensamente poder ser outra pessoa, qualquer pessoa, ou...
A lareira vazia irrompeu em chamas verde-esmeralda, fazendo Harry saltar para longe da porta, e olhar para o homem que girava no interior da grade. Quando a figura alta de Dumbledore deixou o fogo, os bruxos e bruxas, nas paredes, acordaram de repente, muitos deles soltando exclamações de boas vindas.
— Obrigado! — disse Dumbledore brandamente.
Ele não olhou imediatamente para Harry, mas encaminhou-se para o poleiro ao lado da porta e retirou, do bolso interno das vestes, a minúscula e feiosa Fawkes, que ele colocou com gentileza no borralho morno embaixo do suporte dourado em que a fênix adulta habitualmente ficava.
— Bom, Harry — disse Dumbledore, finalmente afastando-se do filhote de fênix — Você vai ficar contente em saber que nenhum dos seus colegas vai sofrer danos permanentes em decorrência dos acontecimentos desta noite.
Harry tentou dizer “Bom”, mas a voz não saiu. Pareceu-lhe que o diretor estava lembrando-o da extensão dos danos que causara, e embora Dumbledore, para variar, estivesse olhando para ele, e embora sua expressão fosse bondosa em vez de acusatória, Harry não conseguiu olhá-lo nos olhos.
— Madame Pomfrey está remendando todos. Ninfadora Tonks talvez precise passar algum tempo no St. Mungus, mas parece que irá se recuperar totalmente.
Harry se contentou em assentir para o tapete, que se tornava mais claro à medida que o céu lá fora empalidecia. Tinha certeza de que os quadros na sala estavam escutando ansiosamente cada palavra que Dumbledore dizia, perguntando-se onde o diretor e o garoto tinham estado e por que teria havido danos físicos.
— Sei como está se sentindo, Harry — disse Dumbledore mansamente.
— Não, o senhor não sabe, não — e sua voz saiu repentinamente alta e forte, uma raiva incandescente saltava dentro dele. Dumbledore não sabia nada a respeito dos seus sentimentos.
— Está vendo, Dumbledore? — disse Fineus Nigellus sonsamente — Nunca tente compreender os estudantes. Eles odeiam. Preferem muito mais ser tragicamente incompreendidos, chafurdar em autocomiseração, pagar seus próprios...
— Chega, Fineus — disse Dumbledore.
Harry deu as costas ao diretor e ficou olhando decidido pela janela. Via o campo de quadribol ao longe. Sirius aparecera ali uma vez, disfarçado de cachorro preto e peludo, para poder vê-lo jogar... provavelmente viera ver se o filho era tão bom quanto o pai fora... Harry nunca lhe perguntara...
— Não há vergonha no que você está sentindo, Harry — disse a voz de Dumbledore — Pelo contrário... o fato de ser capaz de sentir dor com tal intensidade é a sua maior força...
Harry sentiu a raiva incandescente lamber suas entranhas, transformar-se em labareda, no terrível vácuo, enchendo-o com o desejo de ferir Dumbledore por sua calma e suas palavras vazias.
— Minha grande força, é? — retorquiu Harry, sua voz trêmula, o olhar ainda fixo no estádio de quadribol, mas sem vê-lo — O senhor não faz a menor ideia... o senhor não sabe...
— Que é que eu não sei? — perguntou Dumbledore calmamente.
Era demais.
Harry se virou, tremendo de raiva.
— Não quero falar sobre o que estou sentindo, está bem?
— Harry, sofrer assim prova que você continua a ser homem! Esta dor faz parte da sua humanidade...
— ENTÃO EU NÃO QUERO SER HUMANO! — urrou Harry, e arrebatando um instrumento delicado de prata de cima de uma mesinha de pernas finas ao lado arremessou-o pela sala: o objeto se estilhaçou em mil pedacinhos contra a parede.
Vários quadros deixaram escapar gritos de raiva e susto, e o retrato de Armando Dippet exclamou “Francamente!”.
— NÃO QUERO MAIS SABER! — berrou Harry para eles, agarrando um lunascópio e atirando-o na lareira — PARA MIM CHEGA, JÁ VI O SUFICIENTE, QUERO SAIR, QUERO QUE ISTO ACABE, NÃO QUERO MAIS SABER...
E agarrando a mesa em que estivera o instrumento de prata, atirou-a também. Ela bateu no chão, e se partiu, suas pernas rolaram em várias direções.
— Você quer saber, sim — disse Dumbledore. Não piscara nem fizera um único movimento para impedir que Harry demolisse o seu escritório. Sua expressão era serena, quase indiferente — Você quer saber tanto que sente que irá morrer sangrando de dor.
— NÃO! — gritou Harry, tão alto que achou que sua garganta poderia rasgar, e por um segundo teve vontade de avançar em Dumbledore e quebrar o bruxo também, quebrar aquele rosto velho e calmo, sacudi-lo, machucá-lo, fazê-lo sentir um pedacinho do horror que carregava em seu íntimo.
— Ah, quer saber sim — disse o diretor, ainda mais tranquilo — Você agora já perdeu sua mãe, seu pai e a pessoa mais próxima de um parente que já conheceu. É claro que você quer saber.
— O SENHOR NÃO SABE COMO ESTOU ME SENTINDO! — urrou Harry — O SENHOR... FICA PARADO AÍ... SEU...
Mas as palavras já não eram suficientes, quebrar coisas já não adiantava, ele queria fugir, queria fugir sem parar, sem nunca olhar para trás, queria ir para algum lugar em que não visse aqueles olhos azul-claros encarando-o, aquele rosto velho odiosamente calmo. Ele correu para a porta, tornou a agarrar a maçaneta e puxou-a com força.
Mas a porta não abriu.
Harry tornou a se virar para Dumbledore.
— Me deixe sair — disse ele. Estava tremendo dos pés à cabeça.
— Não — disse Dumbledore com simplicidade.
Por alguns segundos eles se encararam.
— Me deixe sair — repetiu o garoto.
— Não — repetiu Dumbledore.
— Se o senhor não deixar... se o senhor me prender aqui... se o senhor não me deixar...
— Perfeitamente, continue a destruir os meus pertences — disse Dumbledore serenamente — Reconheço que os tenho em excesso.
Ele contornou a escrivaninha e se sentou, contemplando Harry.
— Me deixe sair — pediu o garoto ainda uma vez, numa voz fria e quase tão calma quanto a de Dumbledore.
— Não, até que eu tenha dito o que quero.
— O senhor... o senhor acha que eu quero... o senhor acha que eu dou a... NÃO ME INTERESSA O QUE O SENHOR TEM A DIZER! — urrou Harry — Não quero ouvir nada que o senhor tenha a dizer!
— Vai querer, sim — disse o diretor com firmeza — Porque você está longe de sentir a raiva de mim que deveria estar sentindo. Se você me atacar, como sei que está prestes a fazer, eu gostaria de ter merecido inteiramente.
— Do que é que o senhor está falando?
— Foi por minha culpa que Sirius morreu — disse o diretor claramente — Ou será que devo dizer, quase exclusivamente por minha culpa: não serei tão arrogante a ponto de assumir a responsabilidade por tudo. Sirius era um homem corajoso, inteligente e dinâmico, e homens assim em geral não se contentam em ficar escondidos em casa, sabendo que outros estão correndo perigo. Ainda assim, você nunca deveria ter acreditado por um instante que havia a menor necessidade de ter ido ao Departamento de Mistérios hoje à noite. Se eu tivesse sido franco com você, Harry, como deveria ter sido, você já saberia há muito tempo que Voldemort poderia tentar atraí-lo ao Departamento de Mistérios, e você nunca teria caído na esparrela de ir lá hoje à noite. E Sirius não teria tido de sair atrás de você. Esta culpa é minha, e somente minha.
Harry continuava parado com a mão na maçaneta, mas não tinha consciência disso. Olhava para Dumbledore, quase sem respirar, prestando atenção, mas quase sem entender o que estava ouvindo.
— Por favor, sente-se — disse Dumbledore.
Não era uma ordem, era um pedido.
Harry hesitou, então atravessou lentamente a sala, agora coalhada de pedacinhos de engrenagens de prata e fragmentos de madeira, e se sentou na cadeira diante da escrivaninha do diretor.
— Devo entender — disse Fineus Nigellus lentamente à esquerda de Harry — Que o meu bisneto, o último dos Black, morreu?
— Sim, Fineus — respondeu Dumbledore.
— Eu não acredito — disse Fineus bruscamente.
Harry virou a cabeça em tempo de ver o bruxo sair decidido do quadro, e entendeu que ele estava indo visitar seu outro retrato no Largo Grimmauld. Iria se deslocar talvez de quadro em quadro chamando por Sirius por toda a casa...
— Harry, eu lhe devo uma explicação. Uma explicação para os erros de um velho. Porque vejo agora que o que fiz e o que não fiz, com relação a você, tem todas as marcas de deslizes da velhice. Os jovens não podem saber como os idosos pensam e sentem. Mas os velhos são culpados quando se esquecem do que era ser jovem... e parece que ultimamente andei me esquecendo...
O sol estava realmente nascendo agora: havia uma linha laranja ofuscante acima das montanhas e para o alto o céu estava descolorido e pálido. A luz incidia sobre Dumbledore, sobre suas sobrancelhas e barbas prateadas, sobre as rugas profundas em seu rosto.
— Adivinhei, há quinze anos, quando vi a cicatriz em sua testa, o que poderia significar. Adivinhei que poderia ser o sinal de uma ligação entre você e Voldemort.
— O senhor já me disse isso, professor — interpôs Harry sem rodeios. Pouco se importava que estivesse sendo grosseiro. Pouco se importava com qualquer coisa que fosse.
— Eu sei — falou Dumbledore em tom de quem pede desculpas — Eu sei, mas entenda, preciso começar por sua cicatriz. Porque se tornou aparente, logo depois de você se reintegrar ao mundo mágico, que eu tinha razão, e que a cicatriz estava lhe dando avisos quando Voldemort se aproximava de você ou sentia alguma emoção forte.
— Eu sei — disse Harry, cansado.
— E esta sua habilidade, de perceber a presença de Voldemort, mesmo sob disfarce, e saber o que ele está sentindo quando suas emoções o comovem, tornou-se cada vez mais pronunciada desde que Voldemort retomou o próprio corpo e seus plenos poderes.
Harry não se deu o trabalho de assentir. Já sabia de tudo aquilo.
— Mais recentemente — continuou Dumbledore — Eu me preocupei que Voldemort pudesse perceber a existência desta ligação entre vocês. De fato, chegou um momento em que você penetrou tão fundo em sua mente que ele sentiu sua presença. Estou me referindo, é claro, à noite em que você testemunhou o ataque ao Sr. Weasley.
— Sei, o Snape me disse — murmurou Harry.
— Professor Snape, Harry — corrigiu-o Dumbledore em tom brando — Mas você não se perguntou por que não fui eu que lhe expliquei isso? Por que não lhe ensinei Oclumência? Por que nem sequer olhei para você durante meses?
Harry ergueu a cabeça. Via agora que Dumbledore parecia triste e cansado.
— Claro — murmurou — Claro que me perguntei.
— Sabe — continuou Dumbledore — Achei que não iria demorar muito para Voldemort forçar entrada em sua mente, manipular e desviar seus pensamentos, e eu não estava querendo lhe dar mais incentivos para isso. Eu tinha certeza que se percebesse que o nosso relacionamento era, ou sempre fora, mais íntimo do que o de diretor e aluno, ele aproveitaria a oportunidade para usá-lo como um meio para me espionar. Temi as maneiras com que ele poderia usá-lo, a possibilidade de que poderia tentar possuí-lo. Harry, creio que eu estava certo em pensar que Voldemort teria usado você assim. Nas raras ocasiões em que estivemos em contato, pensei ter visto a sombra dele se mover por trás dos seus olhos...
Harry se lembrou da sensação de que uma cobra adormecida despertara dentro dele, pronta para atacar, nos momentos em que ele e Dumbledore faziam contato visual.
— O objetivo de Voldemort em possuí-lo, conforme ficou demonstrado esta noite, não seria a minha destruição. Seria a sua. Ele esperou, quando o possuiu por breves momentos ainda há pouco, que eu sacrificaria você na esperança de matá-lo. Então, como vê, Harry, estive tentando me manter longe de você, para protegê-lo, Harry, um erro de um velho...
Ele suspirou profundamente. Harry estava deixando as palavras resvalarem por ele. Teria se interessado muito em saber dessas coisas há alguns meses, mas agora haviam perdido o sentido se comparadas ao imenso abismo em seu íntimo, representado pela perda de Sirius, nada tinha importância...
— Sirius me contou que você sentiu Voldemort despertar dentro de você na própria noite em que teve a visão do ataque a Arthur Weasley. Percebi na mesma hora que os meus piores temores se confirmavam: Voldemort sentira que poderia usá-lo. Na tentativa de armá-lo contra os assaltos de Voldemort à sua mente, eu combinei com o Prof. Snape para lhe dar aulas de Oclumência.
Ele fez uma pausa.
Harry contemplava o nascimento do sol, que veio deslizando vagarosamente pela superfície polida da escrivaninha de Dumbledore, iluminou um tinteiro de prata e uma bela pena vermelha. Harry sabia que os retratos nas paredes estavam acordados e escutavam arrebatados a explicação de Dumbledore, ele ouvia o farfalhar ocasional de vestes, um ligeiro pigarro. Fineus Nigellus ainda não regressara...
— O Prof. Snape descobriu — Dumbledore retomou a palavra — Que você andava sonhando com a porta do Departamento de Mistérios há meses. Voldemort, naturalmente, estivera obcecado com a possibilidade de ouvir a profecia desde que recuperara o corpo, e quando ele pensava na porta, você também o fazia, embora não soubesse o que significava. E então você viu Rookwood, que trabalhava no Departamento de Mistérios antes de ser preso, contando a Voldemort o que sempre soubéramos, que as profecias guardadas no Ministério da Magia são fortemente protegidas. Somente as pessoas a quem elas se referem podem tirá-las das prateleiras sem enlouquecerem: neste caso, ou Voldemort em pessoa teria de entrar no Ministério da Magia, e se arriscar a finalmente revelar sua presença, ou então você teria de fazer isso por ele. Tornou-se, então, uma questão de urgência ainda maior que você aprendesse Oclumência.
— Mas eu não aprendi — murmurou Harry. Disse isso em voz alta para tentar aliviar o contrapeso de culpa em seu íntimo: uma confissão com certeza reduziria um pouco da terrível pressão que apertava seu coração — Eu não pratiquei, não me esforcei, poderia ter parado com aqueles sonhos, Hermione me dizia o tempo todo para estudar, se eu tivesse atendido ele jamais poderia ter me mostrado aonde ir e... Sirius não estaria... Sirius não estaria...
Alguma coisa estava eclodindo na cabeça de Harry: uma necessidade de se justificar, de explicar...
— Eu tentei verificar se ele realmente prendera Sirius, fui à sala da Umbridge, falei com Monstro nas chamas do fogão e ele me disse que Sirius não estava em casa, que tinha saído!
— Monstro mentiu — disse Dumbledore calmamente — Você não é o dono dele, podia lhe mentir sem precisar se castigar. Monstro queria que você fosse ao Ministério da Magia.
— Ele... ele me mandou de propósito?
— Mandou. Monstro, receio dizer, estava servindo a dois senhores havia meses.
— Como? — perguntou Harry sem entender — Ele não sai do Largo Grimmauld há anos.
— Monstro aproveitou a oportunidade pouco antes do Natal — disse Dumbledore — Quando Sirius, pelo que soube, gritou-lhe que fosse embora. Ele tomou a ordem ao pé da letra e a interpretou como uma ordem para sair da casa. Procurou, então, a única pessoa da família Black por quem ainda tinha algum respeito... a prima de Black, Narcisa, irmã de Belatriz e esposa de Lúcio Malfoy.
— Como é que o senhor sabe de tudo isso? — perguntou Harry com o coração batendo muito depressa. Sentia-se mal. Lembrou-se de ter se preocupado com a estranha ausência de Monstro durante o Natal, lembrou-se do elfo ter reaparecido no sótão...
— Monstro me contou ontem à noite — disse Dumbledore — Sabe, quando você deu ao Prof. Snape aquele aviso enigmático, ele percebeu que você tivera uma visão de Sirius prisioneiro nas entranhas do Departamento de Mistérios. Ele, como você, tentou contatar Sirius imediatamente. Devo explicar que os membros da Ordem da Fênix têm métodos mais confiáveis de se comunicar do que a lareira na sala de Dolores Umbridge. O Prof. Snape descobriu que Sirius se encontrava são e salvo no Largo Grimmauld. Quando, porém, você não voltou da ida à Floresta Proibida com Dolores Umbridge, o Prof. Snape ficou preocupado que você talvez continuasse a achar que Sirius estava prisioneiro de Lorde Voldemort. E alertou outros membros da Ordem na mesma hora.
Dumbledore deu um grande suspiro e continuou:
— Alastor Moody, Ninfadora Tonks, Kingsley Shacklebolt e Remo Lupin estavam na sede quando ele entrou em contato. Todos concordaram prontamente em ir em seu auxílio. O Prof. Snape pediu a Sirius para não ir, porque precisava que alguém ficasse na sede para me contar o que acontecera, pois eu estava sendo esperado a qualquer momento. Nesse meio-tempo, o Prof. Snape pretendia procurar você na Floresta. Mas Sirius não quis ficar para trás quando os outros foram procurá-lo. Incumbiu o Monstro de me contar o que sucedera. Então, quando cheguei ao Largo Grimmauld pouco depois de todos terem saído para o Ministério, foi o elfo quem me contou, às gargalhadas, aonde Sirius fora.
— Ele estava às gargalhadas? — perguntou Harry com a voz cava.
— Ah, estava. Veja, Monstro não conseguiu nos trair inteiramente. Ele não é Fiel do Segredo da Ordem, não poderia informar aos Malfoy o nosso paradeiro, tampouco os planos confidenciais da Ordem que ele fora proibido de revelar. Estava impedido por encantamentos próprios a sua espécie, o que quer dizer que não podia desobedecer a uma ordem direta do seu dono, Sirius. Mas deu a Narcisa informações valiosas para Voldemort, do tipo que deve ter parecido a Sirius demasiado trivial para proibi-lo de repetir.
— Como o quê? — perguntou Harry.
— Como o fato de que a pessoa que Sirius mais gostava no mundo era você — disse Dumbledore em voz baixa — Como o fato de que você estava começando a encarar Sirius como uma espécie de pai e irmão. Voldemort já sabia, é claro, que Sirius fazia parte da Ordem, e que você sabia onde encontrá-lo, mas a informação de Monstro o fez perceber que a única pessoa que você não mediria esforços para salvar era Sirius Black.

Os lábios de Harry estavam frios e insensíveis.
— Então... quando perguntei ao Monstro se Sirius estava lá ontem à noite...
— Os Malfoy, sem dúvida por ordem de Voldemort, tinham dito a ele que precisava encontrar um meio de manter Sirius fora do caminho, quando você tivesse a visão de que ele estava sendo torturado. Então, se você resolvesse verificar se seu padrinho estava ou não em casa, Monstro poderia fingir que ele não estava. Monstro machucou o hipogrifo ontem à noite, e, no momento em que você apareceu nas chamas, Sirius estava no andar de cima cuidando do bicho.
Parecia haver pouco ar nos pulmões de Harry, sua respiração era rápida e superficial.
— E Monstro contou tudo isso ao senhor e... deu gargalhadas? — perguntou ele rouco.
— Ele não queria me contar. Mas sou suficientemente bom em Legilimência para saber quando estão mentindo para mim, e persuadi-o a me contar a história toda, antes de sair para o Departamento de Mistérios.
— E — sussurrou Harry, as mãos fechadas e frias sobre os joelhos — E Hermione vivia nos dizendo para sermos bonzinhos com ele...
— E estava certa, Harry. Alertei Sirius quando adotamos o Largo Grimmauld, doze, como nossa sede, que Monstro devia ser tratado com bondade e respeito. Disse-lhe também que Monstro poderia ser perigoso para nós. Acho que Sirius não me levou a sério, nem nunca encarou Monstro como um ser com sentimentos tão apurados quanto os de um humano...
— Não venha culpar... não venha... me falar de Sirius como se... — a respiração de Harry estava presa, não conseguia enunciar as palavras claramente; mas a raiva que diminuíra momentaneamente tornou a arrebatá-lo: não deixaria Dumbledore criticar Sirius — Monstro é um mentiroso... sujo... merecia...
— Monstro é o que os bruxos fizeram dele, Harry — disse Dumbledore — Ele merece compaixão. A vida dele tem sido tão infeliz quanto a do seu amigo Dobby. Foi forçado a obedecer a Sirius porque era o último da família de quem era escravo, mas não sentia a real lealdade pelo dono. E quaisquer que sejam os defeitos do Monstro, devemos admitir que Sirius não fez nada para amenizar a vida dele...
— NÃO FALE DE SIRIUS ASSIM! — berrou Harry.
Estava mais uma vez em pé, furioso, pronto para se atirar contra Dumbledore, que claramente não entendera nada de Sirius, como era corajoso, o quanto sofrera...
— E Snape? — atirou Harry — O senhor não fala dele, não é? Quando lhe contei que Voldemort tinha prendido Sirius, ele apenas me deu um sorriso desdenhoso como sempre...
— Harry, você sabe que o Prof. Snape não tinha opção senão fingir que não estava levando você a sério, na frente de Dolores Umbridge — disse Dumbledore com firmeza — Mas, conforme lhe expliquei, ele informou à Ordem o mais rápido que pôde o que você havia dito. Foi ele quem deduziu aonde você teria ido quando não o viu retornar da Floresta. Foi ele, também, que deu à Profª. Umbridge um Veritaserum adulterado quando ela quis forçá-lo a dizer o paradeiro de Sirius.
Harry fingiu não ouvir isso, sentia um prazer selvagem em culpar Snape, parecia aliviar sua horrível sensação de culpa, e queria ouvir Dumbledore concordar com ele.
— Snape... Snape at-atormentava Sirius por ficar em casa... fazia Sirius se sentir covarde...
— Sirius tinha maturidade e inteligência suficientes para não permitir que essas implicâncias tolas o atormentassem.
— Snape parou de me dar aulas de Oclumência! — vociferou Harry — Me expulsou da sala!
— Estou ciente disso — disse Dumbledore pesaroso — Já disse que foi um erro não ter me encarregado de ensiná-lo pessoalmente, embora tivesse certeza, à época, que nada poderia ser mais perigoso do que abrir mais sua mente a Voldemort na minha presença...
— Snape fez pior, minha cicatriz sempre doía mais depois das aulas dele... — Harry lembrou-se dos comentários de Rony sobre o assunto e prosseguiu — Como é que o senhor sabe se ele não estava tentando me amaciar para Voldemort, tornar mais fácil ele penetrar minha...
— Eu confio em Severo Snape — disse Dumbledore com simplicidade — Mas me esqueci, outro erro de velho... que algumas feridas são profundas demais para sarar. Pensei que o Prof. Snape pudesse superar os sentimentos por seu pai... estava enganado.
— Mas tudo bem, não é? — berrou Harry, ignorando as expressões escandalizadas e os murmúrios de desaprovação dos retratos nas paredes — Tudo bem, Snape odiar meu pai, mas nada bem Sirius odiar o Monstro?
— Sirius não odiava Monstro. Considerava-o um servo indigno de interesse ou atenção. A indiferença e o abandono muitas vezes causam mais danos do que a aversão direta... a fonte que destruímos esta noite representava uma mentira. Nós, bruxos, temos maltratado e abusado dos nossos companheiros por um tempo longo demais, e agora estamos colhendo o que semeamos.
— ENTÃO SIRIUS MERECEU O QUE RECEBEU, É ISSO? — berrou Harry.
— Eu não disse isso, nem nunca você me ouvirá dizer isso — respondeu Dumbledore calmamente — Sirius não era um homem cruel, era bondoso com elfos domésticos em geral. Não gostava de Monstro, porque ele era uma lembrança viva da casa que Sirius odiava.
— E como a odiava! — exclamou Harry, sua voz falhando, dando as costas a Dumbledore, e se afastando.
O sol iluminava a sala agora e os olhos de todos os retratos acompanharam o garoto se afastar, sem perceber o que estava fazendo nem ver o escritório.
— O senhor o obrigou a ficar trancado naquela casa e ele odiou, foi por isso que quis sair ontem à noite...
— Eu estava tentando manter Sirius vivo — respondeu Dumbledore brandamente.
— As pessoas não gostam de ficar trancafiadas! — disse Harry enfurecido, virando-se para ele — O senhor fez isso comigo no verão passado...
Dumbledore fechou os olhos e escondeu o rosto nas mãos de dedos longos.
Harry o observava, mas esse sinal pouco característico de exaustão, de tristeza, ou do que quer que fosse que Dumbledore sentia, não o enterneceu. Pelo contrário, o garoto sentiu ainda mais raiva que Dumbledore estivesse dando sinais de fraqueza. Não tinha nada de ser fraco quando Harry queria se enfurecer e esbravejar com ele.
Dumbledore baixou as mãos, estudou Harry através dos seus oclinhos de meia-lua, e falou:
— Está na hora de lhe dizer o que deveria ter-lhe dito há cinco anos, Harry. Sente-se, por favor. Vou lhe contar tudo. Peço que tenha um pouco de paciência. Você terá oportunidade de se enfurecer comigo, de fazer o que quiser, quando eu terminar. Não irei impedi-lo.
Harry encarou-o com ar feroz um momento, então atirou-se de volta à cadeira em frente ao Diretor e aguardou. Dumbledore contemplou por um momento os terrenos ensolarados do lado de fora da janela, depois voltou a olhar para Harry e disse:
— Há cinco anos, você chegou a Hogwarts, Harry, são e salvo, como eu planejara e queria que tivesse sido. Bom, não totalmente são. Você sofrera. Eu sabia que isso aconteceria quando o deixei à porta dos seus tios. Sabia que o estava condenando a dez anos sombrios e difíceis.
Ele fez uma pausa. Harry continuou calado.
— Você poderia perguntar, e com toda razão, por que tinha de ser assim. Por que uma família bruxa não poderia tê-lo criado? Muitos teriam feito isso mais do que satisfeitos, teriam se sentido honrados e encantados em criá-lo como filho. Minha resposta é que a prioridade era manter você vivo. Você corria muito mais perigo do que as pessoas, à exceção de mim, compreendiam. Voldemort fora vencido horas antes, mas seus seguidores, e muitos são quase tão terríveis quanto ele, continuavam soltos, enfurecidos, desesperados e violentos. E tive de me decidir, também, com relação aos anos futuros. Será que eu acreditava que Voldemort se fora para sempre? Não. Eu não sabia se levaria dez, vinte ou cinquenta anos para ele retornar, mas tinha certeza de que o faria, e tinha certeza também, conhecendo-o como conheço, de que ele não descansaria enquanto não matasse você. Eu sabia que o conhecimento que Voldemort tem de magia talvez seja mais amplo do que o de qualquer outro bruxo vivo. Eu sabia que os meus feitiços de proteção mais complexos e poderosos provavelmente não seriam invencíveis se ele algum dia recuperasse seus plenos poderes. Mas eu sabia, também, qual era o ponto fraco de Voldemort. Então, tomei minha decisão. Você seria protegido por uma magia antiga de que ele tem conhecimento, mas que despreza e, portanto, sempre subestimou, para seu prejuízo. Estou me referindo, naturalmente, ao fato de que sua mãe morreu para salvá-lo. Ela lhe conferiu uma proteção duradoura que ele jamais esperou, uma proteção que até hoje corre em suas veias. Confio, portanto, no sangue de sua mãe. Entreguei você à irmã dela, sua única parenta viva.
— Ela não me ama — disse Harry na mesma hora — Ela não liga a mínima...
— Mas ela o aceitou — interrompeu-o Dumbledore — Pode tê-lo aceitado de má vontade, enfurecida, contrariada, amargurada, mas, ainda assim, o aceitou, e, ao fazer isso, selou o feitiço que lancei sobre você. O sacrifício de sua mãe transformou o vínculo de sangue no escudo mais forte que eu poderia lhe dar.
— Mas continuo sem...
— Enquanto você ainda puder chamar de sua a casa em que vive o sangue de sua mãe, ali você não pode ser tocado nem ferido por Voldemort. Lílian derramou seu sangue, mas ele continua vivo em você e em sua tia. O sangue dela se tornou o seu refúgio. Você precisa voltar lá apenas uma vez por ano, mas enquanto puder chamar aquela casa de sua, enquanto estiver lá, ele não poderá atingi-lo. Sua tia sabe disso. Expliquei-lhe o que tinha feito na carta que deixei com você à porta dela. Ela sabe que ao acolher você ela talvez o tenha mantido vivo nos últimos quinze anos.
— Espere — disse Harry — Espere um momento.
Ele se endireitou na cadeira, encarando Dumbledore.
— Foi o senhor que mandou aquele berrador. O senhor disse a ela que se lembrasse... foi a sua voz...
— Pensei — disse Dumbledore, inclinando ligeiramente a cabeça — Que ela poderia precisar de um lembrete sobre o pacto que selara ao acolher você. Suspeitei que o ataque do Dementador pudesse tê-la despertado para os perigos de ter você como filho de criação.
— Despertou — disse Harry em voz baixa — Bom... o meu tio mais do que ela. Ele queria me mandar embora, mas depois que o Berrador chegou, ela... ela disse que eu tinha de ficar.
Harry contemplou o chão por um momento, então perguntou:
— Mas o que é que isso tem a ver com...
Ele não conseguia dizer o nome de Sirius.
— Há cinco anos, então — continuou Dumbledore, como se não tivesse feito pausa alguma em sua história — Você chegou em Hogwarts, talvez nem tão feliz nem tão bem nutrido como eu gostaria que estivesse, mas vivo e saudável. Não era um principezinho mimado, mas um menino tão normal quanto eu poderia esperar nas circunstâncias. Até ali o meu plano correra bem. Então... bom, você se lembra dos acontecimentos do seu primeiro ano em Hogwarts tão claramente quanto eu. Você enfrentou magnificamente o desafio que se apresentou e mais cedo, muito mais cedo do que eu previra, você se viu frente a frente com Voldemort. Mais uma vez você sobreviveu. E fez mais do que isso. Atrasou a recuperação dos poderes dele e de sua força. Você lutou como um homem adulto. Senti mais orgulho de você do que sou capaz de expressar. Contudo, havia uma falha nesse meu plano maravilhoso. Uma falha óbvia, que eu sabia, já então, que poderia pôr tudo a perder. No entanto, sabendo como era importante que o meu plano tivesse êxito, disse a mim mesmo que não permitiria que aquela falha o arruinasse. Somente eu poderia impedir isso, então somente eu precisava ser forte. E veio o meu primeiro teste, quando você estava deitado na Ala Hospitalar, enfraquecido pela luta com Voldemort.
— Não entendo o que o senhor está dizendo — falou Harry.
— Você não se lembra de ter me perguntado, quando estava na Ala Hospitalar, por que Voldemort tentara matá-lo ainda bebê?
Harry confirmou com a cabeça.
— Será que eu deveria ter lhe contado então?
Harry encarou os olhos azuis e não respondeu, mas seu coração disparou mais uma vez.
— Você ainda não está percebendo a falha do plano? Não... talvez não. Bom, como você sabe, eu preferi não lhe responder. Onze anos, disse a mim mesmo, era muito cedo para saber. Nunca pretendera lhe contar aos onze anos. O conhecimento seria uma carga pesada demais em uma idade tão tenra. Eu deveria ter reconhecido os sinais de perigo então. Deveria ter me perguntado por que não me sentia mais perturbado com o fato de você já ter feito a pergunta a que eu sabia que um dia precisava dar uma resposta terrível. Eu deveria ter reconhecido que estava me sentindo excessivamente feliz em pensar que não precisava respondê-la naquele dia... você era criança, criança demais. Então entramos no seu segundo ano em Hogwarts. E mais uma vez você enfrentou desafios que nem bruxos adultos tinham enfrentado, mais uma vez você se desincumbiu melhor do que no meu sonho mais ambicioso. Mas você não tornou a me perguntar por que Voldemort deixara aquela marca em você. Falamos sobre sua cicatriz, ah, sim... estivemos muitíssimo perto de tocar na questão principal. Por que não lhe contei tudo? Bom, me pareceu que doze anos eram, afinal, pouco mais que onze para receber uma informação dessas. Permiti que você deixasse a minha presença, sujo de sangue, exausto, mas eufórico, e senti um pequeno mal-estar porque talvez devesse ter lhe contado então, mas logo o mal-estar passou. Você ainda era tão jovem, entende, e não tive coragem de estragar aquela noite de triunfo... você está vendo, Harry? Está vendo agora a falha do meu brilhante plano? Eu caíra na armadilha que previra, que dissera a mim mesmo que poderia evitar, que precisava evitar.
— Eu não...
— Eu me preocupava demais com você — disse Dumbledore com simplicidade — Me preocupava mais com a sua felicidade do que com o seu conhecimento da verdade, mais com a sua paz de espírito do que com o meu plano, mais com a sua vida do que com as vidas que seriam perdidas se o plano fracassasse. Agi exatamente como Voldemort espera que nós, tolos, que amamos, façamos. Tenho defesa? Desafio qualquer um que tenha observado você como eu, e eu o tenho observado mais atentamente do que você pode ter imaginado, a não querer lhe poupar mais dor do que você já tem sofrido. Que me importavam as inúmeras pessoas e bichos sem nome nem rosto sacrificados em um futuro difuso, se no aqui e agora você estava vivo, bem e feliz? Nunca sonhei que seria responsável por alguém assim.
“Entramos no seu terceiro ano. Observei de longe você lutar para repelir Dementadores, quando encontrou Sirius, descobrir quem era ele e salvá-lo. Será que eu deveria ter lhe dito então, no momento em que triunfalmente arrebatara seu padrinho das garras do Ministério? Mas agora, aos treze anos, as minhas desculpas estavam se esgotando. Você poderia ser jovem, mas provara que era excepcional. Minha consciência se inquietou, Harry. Eu sabia que em breve a hora teria de chegar... Mas você saiu do labirinto no ano passado, depois de presenciar Cedrico Diggory morrer, de você mesmo ter escapado da morte por um triz... e eu não lhe contei, embora soubesse que agora que Voldemort retornara, precisava fazer isso sem demora. E hoje à noite, sei que está pronto há muito tempo para saber o que lhe escondi durante tanto tempo, porque você provou que eu já deveria ter colocado essa carga sobre seus ombros. Minha única defesa é que tenho observado você carregar mais pesos do que qualquer outro estudante que já passou por esta escola, e não tive coragem de acrescentar mais um: o maior de todos.
Harry esperou, mas Dumbledore não falou.
— Ainda não consigo entender.
— Voldemort tentou matá-lo quando você era criança por causa de uma profecia feita pouco antes do seu nascimento. Ele sabia da existência dessa profecia, embora não conhecesse todo o seu conteúdo. Dispôs-se a matá-lo ainda bebê, acreditando que estava cumprindo os dizeres da profecia. Descobriu, à própria custa, que estava enganado, quando a maldição que ele lançara para matá-lo saiu pela culatra. Então, desde que recuperou o corpo, e particularmente desde a sua extraordinária fuga de suas mãos no ano passado, ele decidiu ouvir aquela profecia inteira. Esta é a arma que ele tem buscado com tanta diligência desde o seu retorno: o conhecimento de como destruí-lo.
O sol acabara de nascer totalmente agora: o escritório de Dumbledore estava banhado em luz. A redoma de vidro em que a espada de Godrico Gryffindor era guardada brilhava esbranquiçada e opaca, os cacos dos instrumentos que Harry atirara no chão refulgiam como gotas de chuva e, às suas costas, a pequenina fênix chilreava em seu ninho de cinzas.
— A profecia quebrou — disse Harry confuso — Eu estava puxando Neville para cima naqueles degraus de pedra na... na sala onde fica o arco, rasguei as vestes dele e a profecia caiu...
— A coisa que quebrou foi apenas o registro da profecia guardada pelo Departamento de Mistérios. Mas ela foi feita para alguém, e essa pessoa tem meios de lembrá-la perfeitamente.
— Quem a ouviu? — perguntou Harry, embora já conhecesse a resposta.
— Eu — disse Dumbledore — Em uma noite fria e chuvosa, há dezesseis anos, em uma sala do primeiro andar no Cabeça de Javali. Eu tinha ido lá para ver uma candidata ao cargo de professora de Adivinhação, embora fosse contra o meu pensamento que se continuasse a ensinar essa disciplina. A candidata, porém, era trineta de uma Vidente muito famosa, muito talentosa, e achei que tinha o dever de cortesia de conhecê-la. Fiquei desapontado. Pareceu-me que a moça não tinha o menor vestígio daquele talento. Disse-lhe, gentilmente, espero, que não a achava qualificada para o cargo. E me virei para sair.
Dumbledore se levantou e passou por Harry em direção ao armário preto que ficava ao lado do poleiro de Fawkes. Curvou-se, correu um trinco e apanhou dentro do armário a bacia rasa de pedra, com as runas gravadas na borda, em que Harry vira seu pai atormentando Snape. O diretor voltou, colocou a Penseira em cima da escrivaninha e levou a varinha à têmpora. Dela, retirou fios sedosos, diáfanos e prateados de pensamentos e os depositou na bacia.
Acomodou-se outra vez à escrivaninha e observou seus pensamentos rodopiarem flutuando na Penseira por um momento. Então, com um suspiro, ergueu a varinha e tocou, com a ponta, a substância prateada.
Ergueu-se da Penseira uma figura envolta em xales, os olhos enormes por trás dos óculos que girou lentamente, os pés dentro da bacia. Mas quando Sibila Trelawney falou, não foi com sua voz normal, etérea e mística, mas no tom áspero e rouco que Harry a ouvira usar uma vez.

“Aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas se aproxima... nascido dos que o desafiaram três vezes, nascido ao terminar o sétimo mês... e o Lorde das Trevas o marcará como seu igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece... e um dos dois deverá morrer na mão do outro, pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver... aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas nascerá quando o sétimo mês terminar...”

A Profª. Trelawney girando lentamente tornou a afundar no líquido prateado e desapareceu. O silêncio no escritório era absoluto. Nem Dumbledore nem Harry, nem nenhum dos quadros, faziam o menor som. Até Fawkes silenciara.
— Prof. Dumbledore? — disse Harry baixinho, porque o diretor, ainda contemplando a Penseira, parecia completamente absorto em pensamentos —... Isso... isso significava... que significava isso?
— Significava que a pessoa que tem a única chance de vencer Lorde Voldemort para sempre, nasceu no fim de Julho, há quase dezesseis anos. Este menino nasceria de pais que já haviam desafiado Voldemort três vezes.
Harry sentiu como se alguma coisa se fechasse sobre ele. Sua respiração parecia outra vez penosa.
— Significa... eu?
Dumbledore respirou profundamente.
— O estranho, Harry — disse ele mansamente — É que talvez nem significasse você. A profecia de Sibila poderia se aplicar a dois meninos bruxos, ambos nascidos no mês de Julho daquele ano, os dois com pais na Ordem da Fênix, os pais de ambos tendo escapado por um triz de Voldemort três vezes. Um, é claro, era você. O outro era Neville Longbottom.
— Mas então... então, por que era o meu nome e não o de Neville que estava na profecia?
— O registro oficial foi rotulado de novo depois que Voldemort o atacou na infância. Pareceu claro para o encarregado da Sala da Profecia que Voldemort só poderia ter tentado matá-lo porque sabia que você era aquele a quem Sibila se referia.
— Então... talvez não fosse eu?
— Receio — disse Dumbledore lentamente, como se cada palavra lhe custasse um grande esforço — Não haver dúvidas de que seja você.
— Mas o senhor disse... Neville nasceu no fim de Julho também... e a mãe e o pai dele...
— Você está se esquecendo do resto da profecia, do sinal que identifica o menino capaz de vencer Voldemort... o próprio Voldemort o marcaria como seu igual. E ele fez isso, Harry. Ele escolheu você, e não Neville. Marcou-o com essa cicatriz que tem provado ser uma bênção e uma maldição.
— Mas ele pode ter escolhido errado! Pode ter marcado a pessoa errada!
— Ele escolheu o menino que considerou ter maior probabilidade de lhe oferecer perigo. E repare, Harry: ele não escolheu o puro-sangue, que, de acordo com o credo dele, é o único tipo de bruxo que vale a pena ser ou conhecer, mas o mestiço, como ele próprio. Viu-se em você antes mesmo de ter visto você, e, ao marcá-lo com essa cicatriz, ele não o matou conforme pretendia, mas lhe concedeu poderes e um futuro, que o equiparam para escapar dele, não uma, mas quatro vezes até o momento... algo que nem os seus pais nem os de Neville jamais conseguiram.
— Por que ele fez isso então? — perguntou Harry, que se sentia entorpecido e gelado — Por que tentou me matar ainda bebê? Ele deveria ter esperado para ver se Neville ou eu parecíamos mais perigosos quando estivéssemos mais velhos e tentado matar quem fosse então...
— Este teria sido, de fato, o caminho mais prático, exceto que a informação que Voldemort tinha sobre a profecia estava incompleta. O Cabeça de Javali, que Sibila escolheu por ser mais barato, há muito tempo atrai, digamos, uma clientela mais interessante do que o Três Vassouras. Como você e seus amigos descobriram às próprias custas, e eu à minha, àquela noite, é um lugar em que jamais é seguro supor que ninguém está nos ouvindo. Naturalmente, eu nem sonhava, quando saí para me encontrar com Sibila Trelawney, que fosse ouvir alguma coisa que valesse a pena. Minha... nossa... única sorte foi que a pessoa que nos ouvia foi descoberta, quando a profecia mal se iniciara, e expulsa do prédio.
— Então só ouviu...?
— Ele só ouviu o início, a parte que predizia o nascimento de um menino em Julho, cujos pais haviam desafiado Voldemort três vezes. Em consequência, ele não pôde avisar ao seu senhor que atacá-lo seria correr o risco de transferir poderes para você e marcá-lo como seu igual. Então Voldemort nunca soube que poderia ser perigoso atacá-lo, que poderia ser mais sensato esperar, saber mais. Ele não sabia que você teria o poder que o Lorde das Trevas desconhece...
— Mas eu não tenho — protestou Harry com a voz estrangulada — Não tenho nenhum poder que o lorde não tenha, eu não poderia lutar como ele lutou esta noite, não sou capaz de possuir pessoas nem... nem matá-las...
— Há uma sala no Departamento de Mistérios — interrompeu-o Dumbledore — Que está sempre trancada. Contém uma força mais maravilhosa e mais terrível do que a morte, do que a inteligência humana, do que as forças da natureza. E talvez seja também o mais misterioso dos muitos objetos de estudo que são guardados lá. E o poder guardado naquela sala que você possui em grande quantidade, e que Voldemort não possui. Esse poder o levou a tentar salvar Sirius hoje à noite. Esse poder também o salvou de ser possuído por Voldemort, porque ele não poderia suportar residir em um corpo tomado por uma força que ele detesta. No fim, não teve importância que você não pudesse fechar sua mente. Foi o seu coração que o salvou.
Harry fechou os olhos. Se não tivesse ido salvar Sirius, o padrinho não teria morrido... Mais para adiar o momento que teria de pensar nele outra vez, Harry perguntou, sem se preocupar muito com a resposta:
— O final da profecia... falava... nenhum poderá viver...
—... enquanto o outro sobreviver... — completou Dumbledore.
— Então — disse Harry, retirando do peito as palavras do que lhe parecia um poço de profundo desespero — Então isso significa que... que um de nós terá de matar o outro... no fim?
— Sim.
Durante muito tempo, nenhum dos dois falou. Em algum lugar muito distante das paredes do escritório, Harry ouviu o som de vozes, de estudantes descendo para o Salão Principal para tomar café cedo, talvez. Parecia impossível que houvesse gente no mundo que ainda desejasse comer, que risse, que não soubesse nem ligasse que Sirius Black tivesse partido para sempre. O padrinho parecia já estar a milhões de quilômetros, mesmo agora, uma parte de Harry ainda acreditava que se ao menos tivesse afastado aquele véu, teria encontrado Sirius olhando para ele, cumprimentando-o talvez, com aquela risada rouca feito um latido...
— Sinto que lhe devo mais uma explicação, Harry — disse Dumbledore hesitante — Você talvez tenha se perguntado por que nunca o escolhi para monitor? Devo confessar... que preferi... você já tinha responsabilidade suficiente.
Harry ergueu a cabeça para ele e viu uma lágrima escorrer pelo rosto de Dumbledore e desaparecer em suas longas barbas prateadas.







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