— CAPÍTULO TRÊS —
Querer é Poder
HARRY POTTER RONCAVA SONORAMENTE.
Estivera sentado em uma poltrona à janela do seu quarto durante quase quatro
horas, contemplando a rua que escurecia, e acabara adormecendo com um lado do
rosto encostado na vidraça fria, os óculos tortos e a boca aberta. O bafo que
ele exalava refulgia à claridade alaranjada do lampião da rua, e a luz
artificial absorvia todo o colorido do seu rosto, fazendo-o parecer
fantasmagórico sob seus cabelos pretos e rebeldes.
O
quarto estava juncado com seus pertences e uma boa quantidade de lixo. Penas de
coruja, miolos de maçãs e papéis de bala amontoavam-se pelo soalho, vários
livros de feitiços estavam embolados com as vestes sobre sua cama, e havia uma
confusão de jornais no círculo iluminado sobre sua escrivaninha.
A
manchete de um deles indagava:
HARRY POTTER: SERÁ ELE O ELEITO?
Continua a boataria sobre
acontecimentos recentes e misteriosos no Ministério da Magia, durante os quais
Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado foi mais uma vez avistado.
— Não podemos comentar, não me
pergunte nada — disse um agitado obliviador que se recusou a informar o seu
nome quando saía ontem à noite do Ministério.
Ainda assim, fontes ministeriais
confirmam que o foco do distúrbio foi a famosa Sala da Profecia. Embora os
porta-vozes oficiais continuem a se recusar sequer a confirmar a existência de
tal sala, um número cada vez maior de pessoas na comunidade bruxa acredita que
os Comensais da Morte, ora cumprindo pena em Azkaban por invasão e tentativa de
roubo, tentaram se apoderar da profecia, cujo teor é desconhecido.
Especula-se abertamente, no entanto,
que deve dizer respeito a Harry Potter, a única pessoa que sabidamente
sobreviveu a Maldição da Morte, e dizem ter estado no Ministério na noite em
questão. Há quem se aventure a chamar Potter de “O Eleito”, acreditando que a
profecia o nomeie como o único que poderá nos livrar de
Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Não se conhece o atual paradeiro da profecia,
se é que de fato existe, embora... (cont. p. 2, coluna 5)
Havia
um segundo jornal ao lado do primeiro. A manchete era:
SCRIMGEOUR SUBSTITUI FUDGE
A
maior parte da primeira página estava tomada por uma grande foto em preto e
branco de um homem com uma juba leonina e um rosto maltratado. A foto era
comovente, ele estava acenando para o teto.
Rufo Scrimgeour, ex-chefe da Seção de
Aurores, no Departamento de Execução das Leis da Magia, substitui Cornélio
Fudge no Ministério da Magia. A nomeação foi recebida com entusiasmo pela
maioria na comunidade bruxa, embora corram boatos de um sério desentendimento
entre o novo ministro e Alvo Dumbledore, reconduzido ao cargo de
bruxo-presidente da Suprema Corte dos Bruxos, ocorrido algumas horas depois de
Scrimgeour ter assumido o Ministério.
Os representantes de Scrimgeour
admitem que o Ministro se encontrou com Dumbledore logo depois de sua posse no
mais alto cargo da comunidade, mas recusaram-se a comentar a pauta da reunião.
Sabe-se que Alvo Dumbledore... (cont. p. 3, coluna 2)
Mais
à esquerda deste jornal, havia outro, dobrado de modo a deixar visível o título
da notícia:
MINISTRO
GARANTE
A SEGURANÇA
DOS ESTUDANTES
O
recém-nomeado Ministro da Magia, Rufo Scrimgeour, falou hoje sobre as rigorosas
medidas tomadas pelo seu Ministério para garantir a segurança dos estudantes
que retornam agora, no Outono, à Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
— Por razões
óbvias, o Ministério não poderá entrar em detalhes sobre seu rigoroso projeto
de segurança — disse o Ministro, embora um funcionário bem informado confirme
que as medidas incluem feitiços e encantamentos defensivos, um complexo
conjunto de contrafeitiços e uma pequena força-tarefa de aurores, dedicados
unicamente à proteção da Escola de Hogwarts.
A maioria
dos cidadãos parece tranquilizada pela firme atitude do Ministro com relação à
segurança estudantil.
Comentou a
Sra. Augusta Longbottom:
— Meu neto
Neville, por sinal um grande amigo de Harry Potter, que lutou ao lado dele em
Junho no Ministério contra os Comensais da Morte e...
Mas o
resto desta história ficou sombreada por uma enorme gaiola deixada em cima do
jornal, dentro da qual havia uma magnífica coruja de penas muito brancas. Seus
olhos cor de âmbar examinavam o quarto autoritariamente, a cabeça virando de
vez em quando para olhar o dono que roncava. Uma ou duas vezes, ela abriu e
fechou o bico com estalos, impaciente, mas Harry estava dormindo profundamente
demais para ouvi-la.
Havia,
ainda, um malão bem no meio do quarto, com a tampa aberta, parecendo aguardar
alguma coisa. Estava quase vazio, exceto por umas cuecas velhas, balas,
tinteiros vazios e penas quebradas que forravam o seu fundo. No chão, à pequena
distância, via-se caído um folheto roxo com um brasão em que se lia: POR ORDEM
DO MINISTÉRIO DA MAGIA.
PARA PROTEGER SUA CASA E SUA FAMÍLIA
DAS FORÇAS DAS TREVAS
Atualmente a comunidade bruxa está
sendo ameaçada por uma organização que se autodenomina Comensais da Morte.
Observando simples diretrizes de segurança, você poderá proteger a si mesmo, a
sua família e a sua casa de qualquer ataque.
1. Recomendamos que você não saia de
casa sozinho.
2. Tome especial cuidado durante a
noite. Sempre que possível, programe suas viagens para começarem e terminarem
antes do anoitecer.
3. Repasse as medidas de segurança
que cercam a sua casa, cuidando para que todos os membros de sua família
conheçam os procedimentos de emergência, tais como os feitiços Escudo e da
Desilusão e, em caso de familiares de menor idade, a Aparatação Acompanhada.
4. Combine senhas com seus familiares
e amigos íntimos para detectar Comensais da Morte que se façam passar por
outras pessoas após a ingestão da Poção Polissuco (veja p. 2).
5. Se você sentir que um familiar,
colega, amigo ou vizinho está agindo de modo estranho, entre imediatamente em
contato com o Esquadrão de Execução das Leis da Magia. Ele ou ela talvez esteja
dominado/a pela Maldição Imperius (veja p. 4).
6. Se a Marca Negra aparecer pairando
sobre qualquer prédio, NÃO ENTRE. Contate imediatamente a Seção dos Aurores.
7. A visão de objetos não
identificados sugere que os Comensais da Morte talvez estejam usando Inferi
(veja p. 10). Se avistar ou encontrar algum, reporte ao Ministério
IMEDIATAMENTE.
Harry
resmungou enquanto dormia, e seu rosto escorregou uns centímetros pela vidraça,
deixando os óculos ainda mais tortos, mas nem assim ele acordou. Um
despertador, consertado por ele mesmo, há tempos, tiquetaqueava sonoramente no
parapeito da janela, indicando que faltava um minuto para as onze horas.
Ao
lado do despertador, segura na mão frouxa de Harry, havia uma folha de
pergaminho escrita com uma caligrafia fina e inclinada.
Harry
lera esta carta tantas vezes desde que chegara havia três dias que, embora
fosse um pergaminho bem enrolado, ficara completamente esticado.
Caro Harry,
Se for conveniente para você, farei
uma visita à Rua dos Alfeneiros, número 4, na próxima Sexta-Feira, as onze
horas da noite, para acompanhá-lo à Toca, onde você está convidado a passar o
resto de suas férias escolares. Se concordar, eu gostaria também de poder
contar com sua ajuda em um assunto que espero tratar a caminho d’A Toca.
Explicarei melhor quando nos virmos. Por favor, mande sua resposta pela mesma
coruja.
Espero vê-lo na Sexta-Feira.
Muito atenciosamente,
Alvo Dumbledore
Embora
já a soubesse de cor, Harry não parava de relancear a carta desde as sete horas
daquela noite, quando se instalara junto à janela do quarto, porque esta lhe
oferecia uma visão razoável dos dois lados da Rua dos Alfeneiros. Ele sabia que
não adiantava ficar relendo as palavras de Dumbledore, mandara o seu “sim” pela
coruja, conforme pedido, e agora só lhe restava esperar: ou ele viria ou não.
Mas
Harry ainda não aprontara as malas. Parecia-lhe bom demais para ser verdade que
fossem tirá-lo da casa dos Dursley após quinze dias em companhia da família.
Não conseguia se livrar da sensação de que alguma coisa ia desandar: a resposta
à carta de Dumbledore poderia ter se extraviado, o bruxo poderia ser impedido
de vir buscá-lo, a carta poderia não ser de Dumbledore e não passar de um
truque, uma piada ou uma arapuca. Harry não teve coragem de aprontar as malas e
depois ficar na mão e precisar desfazer tudo. A única concessão que fizera à
possibilidade de viajar fora fechar Edwiges na gaiola.
O
ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o
lampião da rua apagou.
Harry
acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou,
apressado, os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar,
encostar o nariz, apertou os olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com
uma longa capa esvoaçante estava entrando pelo jardim.
Harry
levantou-se de um pulo como se tivesse levado um choque elétrico, derrubou a
cadeira e começou a pegar todas as coisas ao seu alcance e jogá-las no malão.
Na hora em que arremessava as vestes, dois livros de feitiços e uma embalagem
de salgadinhos para o outro lado do quarto, a campainha tocou.
Lá
embaixo, na sala de estar, seu Tio Válter exclamou com impaciência:
—
Quem será que está tocando a uma hora dessas?
Harry
congelou, com um telescópio de latão em uma das mãos e um par de tênis na
outra. Esquecera-se completamente de avisar os Dursley de que Dumbledore talvez
viesse. Sentindo ao mesmo tempo pânico e vontade de rir, saltou por cima do
malão e escancarou a porta do quarto, em tempo de ouvir uma voz grave
cumprimentar:
— Boa
noite. O senhor deve ser o Sr. Dursley. Será que Harry não o preveniu que eu
viria buscá-lo?
Harry
desceu a escada de dois em dois degraus e parou abruptamente a alguns passos do
hall, pois a longa experiência o ensinara a ficar longe do alcance do Tio
sempre que possível. Parado à porta, estava um homem alto e magro, com barbas e
cabelos prateados até a cintura. Usava oclinhos de meia-lua encarrapitados no
nariz torto, uma longa capa de viagem e um chapéu cônico. Vestido com um roupão
cor de vinho, Válter Dursley, cujo bigode era preto mas tão farto quanto o de
Dumbledore, encarava o visitante como se não pudesse acreditar nos seus
olhinhos miúdos.
— A
julgar pelo seu ar aturdido e descrente, Harry não o avisou da minha vinda —
disse Dumbledore em tom amável — Mas vamos presumir que o senhor tenha me
convidado, cordialmente, a entrar. Não é sensato demorar demais à soleira das
portas nestes tempos perturbados.
O
bruxo cruzou o portal com elegância e fechou a porta ao passar.
— Faz
muito tempo desde a minha última visita — falou Dumbledore, olhando por cima
dos óculos para o Tio Válter — Devo dizer que os seus agapantos estão bem
floridos.
Válter
continuou calado. Harry não duvidou que o tio logo recuperasse a fala, a veia
que latejava em sua têmpora estava quase explodindo. Mas alguma coisa em
Dumbledore parecia ter-lhe roubado temporariamente o fôlego. Talvez fosse a sua
inegável aparência bruxa ou o fato de que mesmo o Tio Válter podia perceber que
ali estava um homem muito difícil de intimidar.
— Ah,
boa noite, Harry — cumprimentou Dumbledore, erguendo a cabeça para olhá-lo
através dos óculos com ar de satisfação — Ótimo, ótimo.
Tais
palavras pareceram despertar o Tio Válter. Em sua opinião, era óbvio que
qualquer homem que pudesse olhar para Harry e dizer “ótimo” era alguém com quem
ele jamais concordaria.
— Não
quero ser grosseiro... — começou ele, em um tom que ameaçava se tornar
grosseiro a cada sílaba.
—...
contudo, a grosseria acidental ocorre com alarmante freqüência — Dumbledore
terminou a frase sério — É melhor não dizer nada, meu caro. Ah, e esta deve ser
Petúnia.
A
porta da cozinha se abrira, revelando a tia de Harry, de luvas de borracha e um
robe por cima da camisola, visivelmente interrompendo sua costumeira limpeza
das superfícies da cozinha antes de ir se deitar. Seu rosto cavalar expressava
apenas choque.
—
Alvo Dumbledore — informou o bruxo, já que o Tio Válter não o apresentara —
Temos nos correspondido, é claro.
Harry
achou que era um modo esquisito do diretor lembrar à Tia Petúnia que certa vez
lhe enviara uma carta explosiva, mas ela não protestou.
— E
esse deve ser o seu filho Duda, não?
Naquele
instante, Duda espiara à porta da sala de estar. Sua cabeça grande e loura,
emergindo da gola listrada do pijama, parecia estranhamente separada do corpo,
a boca aberta de espanto e medo. Dumbledore esperou um momento, aparentemente
para ver se os Dursley iam dizer alguma coisa, mas, como o silêncio se
prolongasse, ele sorriu.
—
Posso presumir que os senhores tenham me convidado a sentar em sua sala de
estar?
Duda
afastou-se depressa do caminho quando Dumbledore passou.
Harry,
ainda segurando o telescópio e os tênis, saltou os últimos degraus e acompanhou
Dumbledore, que se acomodou na poltrona mais próxima da lareira e se deteve a
reconhecer o ambiente com uma expressão de educado interesse. Parecia
extraordinariamente deslocado.
— Não
vamos embora, professor? — perguntou Harry ansioso.
—
Certamente, mas primeiro há umas questões que precisamos discutir. E preferia
não fazer isto ao ar livre. Por isso, vamos abusar da hospitalidade do seus
tios por mais uns minutinhos.
— E
como vão!
Válter
Dursley entrara na sala, Petúnia ao seu lado e Duda, mal-humorado, atrás deles.
— É —
disse Dumbledore com simplicidade — Abusaremos.
E
sacou a varinha com tanta rapidez que Harry mal chegou a vê-la, a um gesto
displicente, o sofá arremessou-se para a frente, atingiu os joelhos dos Dursley
e os fez perder o equilíbrio e desmontar nele. A um segundo gesto com a
varinha, o sofá voltou rapidamente à posição inicial.
— E é
melhor fazermos isso com conforto — disse o bruxo cordialmente.
Quando
Dumbledore guardou a varinha no bolso, Harry notou que sua mão estava escura
enrugada, a pele parecia ter sido destruída por uma queimadura.
—
Professor... que aconteceu com sua...?
—
Mais tarde, Harry. Sente-se, por favor.
O
garoto ocupou a poltrona que sobrara, fazendo questão de não olhar para os
Dursley, todos mudos de espanto.
—
Presumi que fossem me oferecer uma bebida — disse Dumbledore ao Tio Válter —
Mas, pelo visto, tanto otimismo seria tolice.
Um
terceiro gesto com a varinha fez aparecer no ar uma garrafa empoeirada e cinco
copos. A garrafa se inclinou e serviu uma generosa dose de um líquido cor de
mel em cada copo, que, então, flutuou até cada uma das pessoas na sala.
— É o
melhor hidromel envelhecido em barris de carvalho por Madame Rosmerta —
explicou Dumbledore, fazendo um brinde a Harry, que apanhou o copo e bebeu.
Nunca
provara nada parecido antes, mas gostou imensamente.
Os
Dursley, depois de trocarem olhares rápidos e apavorados, tentaram fingir que
não viam seus copos, o que era difícil porque eles davam pancadinhas em suas
cabeças.
Harry
não conseguiu afastar a suspeita de que Dumbledore estava se divertindo.
—
Bom, Harry — disse o bruxo dirigindo-se a ele — Surgiu uma dificuldade que
espero que você possa resolver para nós. Por nós, eu me refiro à Ordem da
Fênix. Antes de mais nada, porém, preciso lhe dizer que encontraram o
testamento de Sirius há uma semana, e ele deixou todos os seus bens para você.
No
sofá, Tio Válter se virara, mas Harry não olhou para ele nem conseguiu pensar
em nada para dizer, exceto:
—
Certo.
— No
geral, é um testamento bem simples. Você acrescenta uma boa quantidade de ouro
à sua conta no Gringotes e herda todos os bens pessoais de Sirius. A parte
ligeiramente problemática do documento...
— O
padrinho dele morreu? — perguntou Tio Válter, em voz alta, lá do sofá.
Dumbledore
e Harry se viraram para olhá-lo. O copo de hidromel agora batia insistentemente
em sua cabeça; ele tentava afastá-lo.
—
Morreu? O padrinho dele?
—
Morreu — confirmou Dumbledore, sem perguntar a Harry por que não contara aos
tios — Nosso problema — continuou falando com Harry, como se não tivesse havido
interrupção — É que Sirius também deixou para você a casa número doze do Largo
Grimmauld.
—
Deixou uma casa para ele? — perguntou Tio Válter, ganancioso, apertando os
olhos miúdos, mas ninguém lhe respondeu.
—
Podem continuar a usar a casa como quartel-general — disse Harry — Não me
importo. Podem ficar com ela. Não a quero.
Se
dependesse dele, não queria nunca mais pisar na casa do Largo Grimmauld. Achava
que a lembrança de Sirius, vagando solitário pelos aposentos escuros e mofados,
prisioneiro de um lugar que tinha tentado desesperadamente abandonar, o
atormentaria para sempre.
— É
um gesto generoso. Mas desocupamos o imóvel temporariamente.
— Por
quê?
— Bem
— respondeu Dumbledore, não dando atenção aos resmungos do Tio Válter, que
agora levava na cabeça batidas dolorosas do insistente copo de hidromel —
Segundo a tradição da família Black, a casa passa ao descendente masculino mais
próximo, em linha direta que tenha o nome Black. Sirius foi o último da
linhagem, porque seu irmão mais novo, Regulo, faleceu antes, e nenhum dos dois
teve filhos. Embora o testamento deixe perfeitamente claro que Sirius desejava
que a casa fosse sua, é possível que tenham lançado nela algum encantamento ou
feitiço para garantir que não pertença a alguém de sangue impuro.
A
imagem nítida do quadro da mãe de Sirius berrando e cuspindo, no corredor da
casa número doze no Largo Grimmauld, passou pela cabeça de Harry.
—
Aposto que lançaram.
— Sem
dúvida — disse Dumbledore — E, se tal encantamento existir, é muito provável
que a propriedade da casa passe ao parente vivo mais velho de Sirius, ou seja,
sua prima Belatriz Lestrange.
Sem
perceber o que fazia, Harry levantou-se de um pulo, o telescópio e os tênis em
seu colo rolaram pelo chão. Belatriz Lestrange, a assassina de Sirius, herdar a
casa dele?
— Não
— protestou ele.
—
Bem, é óbvio que também preferimos que ela não herde — respondeu Dumbledore
calmamente — A situação é bem complicada. Por exemplo, não sabemos se os
encantamentos que nós mesmos lançamos sobre a casa, para impossibilitar sua
localização, persistirão, agora que deixou de pertencer a Sirius. Belatriz pode
aparecer à porta a qualquer momento. É claro que fomos obrigados a nos mudar
até termos esclarecido a nossa posição.
— Mas
como é que vamos descobrir se tenho direito a casa?
—
Felizmente há um teste bem simples — Dumbledore depositou o copo em cima de uma
mesinha ao lado de sua poltrona, mas, antes que pudesse fazer qualquer outra
coisa, o Tio Válter berrou:
—
Quer tirar essas porcarias de cima da gente?
Harry
se virou, os três Dursley estavam encolhidos com os braços para o alto enquanto
os copos batiam em suas cabeças, fazendo voar hidromel para todo lado.
— Ah,
sinto muito — disse Dumbledore, atencioso, e tornou a erguer sua varinha. Os
três copos desapareceram — Mas, sabem, teria sido mais educado aceitarem a
bebida.
Pelo
jeito, Tio Válter estava explodindo de vontade de dar várias respostas
malcriadas, mas apenas voltou a se afundar nas almofadas com Tia Petúnia e
Duda, sem dizer nada, nem tirar seus olhinhos de porco da varinha de
Dumbledore.
—
Entende — continuou Dumbledore, voltando sua atenção para Harry, como se o Tio
Válter não tivesse se manifestado — Se você tiver de fato herdado a casa,
também terá herdado...
Ele
acenou com a varinha pela quinta vez. Ouviu-se um forte estalo e apareceu,
agachado no tapete peludo dos Dursley, um elfo doméstico, com um nariz focinhudo,
grandes orelhas de morcego e enormes olhos avermelhados, vestido de trapos
encardidos.
Tia
Petúnia soltou um urro de arrepiar os cabelos: não havia lembrança de nada
imundo assim ter algum dia entrado em sua casa, Duda tirou do chão os enormes
pés rosados e descalços e levantou-os quase acima da cabeça, como se imaginasse
que a criatura pudesse subir pelas calças do seu pijama, e Tio Válter berrou:
— Que
diabo é isso?
—...
o Monstro — apresentou Dumbledore.
—
Monstro não quer, Monstro não quer. Monstro não quer — grasnou o elfo
doméstico, berrando quase tão alto quanto o Tio Válter, batendo no chão os pés
nodosos e puxando as orelhas — Monstro é da senhorita Belatriz, ah, sim,
Monstro é dos Black. Monstro quer sua nova dona, Monstro não quer o pirralho
Potter, Monstro não quer, não quer, não quer...
—
Como você está vendo, Harry — disse Dumbledore alteando a voz acima dos
grasnidos ininterruptos do Monstro de “não quer, não quer, não quer” — Monstro
está demonstrando uma certa relutância em passar às suas mãos.
— Eu
não me importo — repetiu Harry, olhando enojado para o elfo, que se contorcia e
batia os pés — Eu não o quero.
— Não
quer, não quer, não quer...
—
Você prefere que passe às mãos de Belatriz Lestrange? Mesmo lembrando que ele
morou todo o último ano no quartel-general da Ordem da Fênix?
— Não
quer, não quer, não quer...
Harry
encarou Dumbledore. Sabia que não poderia deixar o Monstro ir morar com
Belatriz Lestrange, mas a idéia de ser dono dele, de assumir responsabilidade
pela criatura que traíra Sirius, era repugnante.
—
Dê-lhe uma ordem — disse Dumbledore — Se ele for seu, terá de obedecer. Se não,
teremos de pensar em outros meios de mantê-lo longe de sua legítima dona.
— Não
quer, não quer, não quer, NÃO QUER!
Monstro
agora urrava.
Harry
não conseguiu pensar no que dizer, exceto:
—
Monstro, cala a boca!
Por
um instante pareceu que o Monstro fosse engasgar. Levou as mãos à garganta, a
boca ainda mexendo furiosamente, os olhos saltando das órbitas. Passados alguns
segundos de engolidas em seco, ele se atirou de cara no tapete (Tia Petúnia
gemeu) e bateu no chão com as mãos e os pés, entregando-se a um violento, mas
silencioso, acesso de raiva.
—
Bem, isto simplifica a questão — disse Dumbledore animado — Parece que Sirius
sabia o que estava fazendo. Você é o legítimo proprietário da casa número doze
no Largo Grimmauld e de Monstro.
—
Será que tenho de... de ficar com ele? — perguntou Harry, horrorizado, enquanto
Monstro continuava a se debater a seus pés.
—
Não, se não quiser — disse Dumbledore — Se aceita uma sugestão, você poderia
mandá-lo trabalhar na cozinha de Hogwarts. Desta maneira, os outros elfos
domésticos poderiam vigiá-lo.
— É —
exclamou Harry aliviado — É o que vou fazer. Ãa... Monstro... quero que vá para
as cozinhas de Hogwarts trabalhar com os outros elfos.
Monstro,
que agora estava com as costas achatadas contra o chão, e os pés e as pernas no
ar, lançou a Harry, de baixo para cima, um olhar do mais profundo desprezo e,
com outro forte estalo, desapareceu.
— Bom
— disse Dumbledore.— Temos também o problema do hipogrifo. Hagrid tem cuidado
dele desde que Sirius morreu, mas o Bicuço agora é seu, por isso, se preferir
tomar outras providências...
— Não
— respondeu Harry imediatamente — Ele pode continuar com Hagrid. Bicuço
gostaria mais assim.
—
Hagrid vai adorar — disse Dumbledore sorrindo — Ficou contente de rever Bicuço.
Por falar nisso, para garantir a segurança dele, decidimos, por ora,
rebatizá-lo de Asafugaz, embora eu duvide que o Ministério possa concluir que é
o mesmo hipogrifo condenado à morte. Agora, Harry, suas malas estão prontas?
—Ããã...
—
Duvidou que eu apareceria? — insinuou Dumbledore astutamente.
— Num
minuto... eh... eu termino — apressou-se Harry a dizer, catando o telescópio e
os tênis que tinham caído.
Ele
gastou pouco mais de dez minutos para encontrar tudo de que precisava, por fim,
conseguiu tirar a Capa da Invisibilidade de baixo da cama, vedou o frasco de
Tinta Muda-Cor e forçou a tampa do malão a fechar sobre seu caldeirão. Depois,
arrastando o malão com uma das mãos e segurando a gaiola de Edwiges com a
outra, desceu.
Harry
ficou desapontado ao descobrir que Dumbledore não o esperava no hall, o que
significava que teria de voltar à sala de estar.
Ninguém
conversava. Dumbledore cantarolava de boca fechada, aparentemente muito à
vontade, mas a atmosfera estava densa e gelada, e Harry não se atreveu a olhar
para os Dursley quando anunciou:
—
Professor... estou pronto.
— Bom
— disse Dumbledore — Uma última coisa, então.
E se
virou para falar com os Dursley.
— Como
os senhores sem dúvida sabem, dentro de um ano Harry atinge a maioridade...
— Não
— interrompeu-o a Tia Petúnia, falando pela primeira vez desde a chegada de
Dumbledore.
—
Perdão? — disse o bruxo, educadamente.
—
Não. Ele é um mês mais novo que o Duda, e meu filho só vai fazer dezoito anos
daqui a dois anos.
— Ah
— exclamou Dumbledore cordialmente — Mas, no mundo dos bruxos, atingimos a
maioridade aos dezessete.
Tio
Válter resmungou “que absurdo”, mas Dumbledore não lhe deu atenção.
—
Então, como os senhores sabem, o bruxo chamado Lorde Voldemort voltou ao país.
Atualmente a nossa comunidade está em guerra declarada. Harry, a quem Lorde
Voldemort já tentou matar em várias ocasiões, está passando por um perigo muito
maior do que no dia em que o deixei à sua porta, há quinze anos, com uma carta
explicando que seus pais tinham sido assassinados e manifestando a esperança de
que os senhores cuidassem dele como se fosse um filho.
Dumbledore
fez uma pausa, e, embora sua voz continuasse leve e calma, e não deixasse
transparecer sua raiva, Harry sentiu que emanava uma certa frieza. Notou também
que os Dursley se aconchegaram uns aos outros quase imperceptivelmente.
— Os
senhores não fizeram o que pedi. Nunca trataram Harry como um filho. Nas suas
mãos, ele só conheceu o descaso e muitas vezes a crueldade. O máximo que se
pode dizer a seu favor é que ele escapou do enorme dano que os senhores
causaram a esse pobre menino sentado entre os dois.
Tio
Válter e Tia Petúnia se viraram instintivamente, como se esperassem ver mais
alguém além de Duda espremido entre eles.
—
Nós... tratamos mal o Dudoca? Que conversa...? — começou Tio Válter furioso,
mas Dumbledore ergueu um dedo mandando-o silenciar, e o silêncio sobreveio como
se o bruxo o tivesse emudecido.
— A
mágica que invoquei há quinze anos significa que Harry contará com uma forte
proteção enquanto puder considerar esta casa dele. Por mais infeliz que tenha
sido aqui, por mais mal recebido, por mais destratado, os senhores lhe
concederam pelo menos abrigo, ainda que de má vontade. A mágica cessará no
momento em que Harry fizer dezessete anos, em outras palavras, no momento em
que se tornar homem. Então só peço uma coisa: que os senhores deixem Harry
voltar mais uma vez a esta casa, antes do seu aniversário de dezessete anos, o
que garantirá que a proteção se manterá em vigor até aquela data.
Nenhum
dos Dursley disse coisa alguma. Duda tinha a testa ligeiramente enrugada, como
se ainda tentasse entender quando fora maltratado.
Tio
Válter parecia ter alguma coisa entalada na garganta.
Tia
Petúnia, no entanto, parecia estranhamente corada.
—
Bem, Harry... está na hora de irmos andando — disse, por fim, Dumbledore,
levantando-se e acertando a longa capa preta — Até a próxima — disse aos
Dursley, que, pelo jeito, pareciam desejar que a próxima não chegasse nunca.
E,
cumprimentando-os com um aceno do chapéu, saiu teatralmente da sala.
—
Tchau — despediu-se Harry, apressado, e acompanhou Dumbledore, que parou junto
ao malão com a gaiola em cima.
— Não
queremos nos sobrecarregar com isso agora — disse, puxando mais uma vez a
varinha — Vou despachar esta bagagem para A Toca. Mas gostaria que você levasse
sua Capa da Invisibilidade... caso precise.
A
muito custo, Harry tirou a capa do malão, tentando esconder do diretor a
bagunça que havia lá dentro. Depois que a enfiou de qualquer jeito em um bolso
interno do blusão, Dumbledore acenou com a varinha, e o malão, a gaiola e
Edwiges desapareceram. Fez um novo aceno, e a porta da casa se abriu para a
escuridão fresca e enevoada.
— E
agora, Harry, vamos sair para a noite em busca dessa sedutora volúvel, a aventura.
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