quinta-feira, 30 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 7


VII

O INTERROGATÓRIO




A
ssim que Villefort se viu fora da sala de jantar tirou a máscara de felicidade e tomou o ar grave de um homem chamado à suprema função de se pronunciar sobre a vida do seu semelhante. Ora, apesar da mobilidade da sua fisionomia — mobilidade que o substituto, como deve fazer um bom ator, por mais de uma vez estudara diante do espelho — desta vez teve dificuldade em franzir o sobrolho e carregar o semblante.
Com efeito, excetuando a recordação da linha política seguida pelo pai e que podia, se dela não se afastasse completamente, prejudicar-lhe o futuro, Gérard de Villefort era naquele momento tão feliz quanto um homem poderia ambicionar. Rico por si mesmo, ocupava aos vinte e sete anos um lugar elevado na magistratura e ia casar com uma linda moça que amava não apaixonadamente, mas sim com a razão, como um Substituto do Procurador Régio pode amar, e além da sua beleza, que era notável, Mademoiselle de Saint-Méran, sua noiva, pertencia a uma das famílias mais cotadas da época. Por outro lado, sem contar com a influência do pai e da mãe, que como não tinham outro filho podiam reservar toda inteira ao genro, a jovem levaria ainda ao marido um dote de cinqüenta mil escudos que graças às “esperanças”, essa palavra atroz inventada pelos casamenteiros, poderia ser completado um dia com uma herança de meio milhão.
Todos estes elementos reunidos constituíam, portanto para Villefort um total de felicidade deslumbrante, a ponto de lhe parecer ver manchas no Sol quando olhara demoradamente a sua vida interior com os olhos da alma.
Encontrou à porta o comissário de polícia que o esperava. A presença do funcionário policial fê-lo cair imediatamente das alturas do terceiro céu na terra material em que nos movemos. Compôs a expressão como dissemos e declarou aproximando-se do oficial de justiça:
— Aqui estou, senhor. Li a carta e fez bem em prender esse homem. Agora dê-me acerca dele e da conspiração todos os pormenores que obteve.
— Acerca da conspiração, senhor, ainda não sabemos nada, todos os papéis que encontramos com o preso foram fechados num único maço e entregues, selados, no gabinete de V. Exª. Quanto ao arguido, V. Exª deve ter visto pela própria carta que o denunciado é um tal Edmond Dantés, imediato do três mastros Pharaon que se dedica ao comércio de algodão com Alexandria e Esmirna e pertence à Casa Morrel & Filhos, de Marselha.
— Antes de servir na marinha mercante serviu na marinha de guerra?
— Oh, não, senhor? É ainda muito novo.
— De que idade?
— Dezenove ou vinte anos, no máximo.
Neste momento, e como Villefort, seguindo a Grand-Rue, tivesse chegado à esquina da Rua dos Conseils, um homem que parecia esperar a sua passagem abordou-o.
Era o Sr. Morrel.
— Ah, Sr. de Villefort! — exclamou o excelente homem ao ver o substituto — Ainda bem que o encontrei! Imagine que acaba de se cometer o equívoco mais estranho, mais inaudito: prenderam o imediato do meu navio, Edmond Dantés.
— Bem sei — respondeu Villefort — E vou interrogá-lo.
— Oh, senhor — continuou Morrel, levado pela sua amizade para com o jovem — Não conhece o acusado como eu conheço! Imagine o homem mais afável, o mais probo, e quase me atrevo a dizer o homem que melhor sabe do seu oficio de toda a marinha mercante... oh, Sr. de Villefort, recomendo-lhe muito sinceramente e de todo o meu coração!
Como pudemos ver, Villefort pertencia à classe nobre da cidade e Morrel à classe plebéia. O primeiro era um ultra-monárquico e o segundo suspeito de secreto bonapartismo. Villefort olhou desdenhosamente para Morrel e respondeu-lhe com frieza:
— Como sabe, senhor, pode-se ser afável na vida privada, probo nas relações comerciais e sabedor da sua profissão e nem por isso ser menos um grande culpado, politicamente falando. Sabe-o, não é verdade, senhor?
E o magistrado sublinhou as últimas palavras, como se quisesse aplicá-las ao próprio armador, enquanto o seu olhar perscrutador parecia querer penetrar até ao fundo do coração daquele homem que ousava interceder por outro quando devia saber que ele próprio necessitava de indulgência.
Morrel corou, pois não se sentia com a consciência muito tranqüila a respeito das suas opiniões políticas. Além disso, a confidência que lhe fizera Dantés acerca da sua conversa com o grande marechal e das poucas palavras que lhe dirigira o imperador ainda lhe perturbava um pouco o espírito. No entanto, acrescentou, em tom do mais profundo interesse:
— Suplico-lhe, Sr. de Villefort, seja justo como deve ser, bom como sempre foi e “restitua-nos” depressa o pobre Dantés!
O “restitua-nos” soou revolucionariamente ao ouvido do Substituto do Procurador Régio.
— Eh, eh, restitua-nos!... — disse baixinho — Esse Dantés será filiado em alguma seita de carbonários para que o seu protetor empregue assim sem pensar a fórmula coletiva? Prenderam-no numa taberna, disse-me, segundo creio, o comissário. Em numerosa companhia, acrescentou. Deve ser alguma loja.
Depois, em voz alta, respondeu:
— Senhor, pode estar absolutamente tranquilo que não terá recorrido inutilmente à minha justiça se o acusado estiver inocente. Mas se, pelo contrário, for culpado... vivemos numa época difícil, senhor, em que a impunidade seria um exemplo fatal. Nesse caso, serei obrigado a cumprir o meu dever.
E em seguida, como tivesse chegado à porta de sua casa, contígua ao Palácio da Justiça, entrou majestosamente, depois de cumprimentar com uma polidez gelada o pobre armador, que ficou como que petrificado no lugar onde o deixara Villefort.
A antecâmara estava cheia de guardas e agentes de polícia. No meio deles, guardado à vista e envolto em olhares chamejantes de ódio, via-se de pé, calmo e imóvel, o prisioneiro.
Villefort atravessou a antecâmara, deitou um olhar oblíquo a Dantés e, depois de receber um maço de papéis que lhe entregou um agente, desapareceu dizendo:
— Tragam o prisioneiro.
Por mais rápido que tivesse sido esse olhar, bastara a Villefort para fazer uma idéia do homem que ia interrogar. Reconhecera a inteligência naquela testa ampla e franca, a coragem naquele olhar fixo e naquele sobrolho franzido e a sinceridade naqueles lábios carnudos e entreabertos que deixavam ver uma dupla fileira de dentes brancos como o marfim.
A primeira impressão fora favorável a Dantés, mas Villefort ouvira dizer tantas vezes, como uma frase de profundo sentido político que se devia desconfiar do primeiro impulso, visto ser o mais prudente, que aplicou a máxima à impressão sem ter em conta a diferença que havia entre as duas palavras.
Sufocou, portanto os bons instintos que lhe queriam invadir o coração para dai lhe tomarem de assalto o espírito, compôs diante do espelho o seu rosto dos grandes dias e sentou-se, sombrio e ameaçador, à secretária.
Um instante depois dele entrou Dantés.
O jovem continuava pálido, mas calmo e sorridente. Cumprimentou o seu juiz com natural delicadeza e em seguida procurou com os olhos uma cadeira, como se estivesse na sala do armador Morrel. Só então encontrou o olhar inexpressivo de Villefort, esse olhar característico dos magistrados, que não querem que lhes leiam o pensamento e que por isso transformam os olhos num vidro despolido. Aquele olhar revelou-lhe que se encontrava diante da justiça, figura de maneiras sombrias.
— Quem é e como se chama? — perguntou Villefort, folheando os apontamentos que o agente lhe entregara ao entrar e que no espaço de uma hora se tinham tornado volumosos, de tal modo a corrupção da espionagem se apodera depressa do corpo dos infelizes chamados arguidos.
— Chamo-me Edmond Dantés, senhor — respondeu o jovem, em voz calma e sonora — E sou imediato a bordo do navio Pharaon pertencente à firma Morrel & Filhos.
— A sua idade? — continuou Villefort.
— Dezenove anos — respondeu Dantés.
— Que fazia quando foi preso?
— Assistia ao banquete do meu próprio noivado, senhor — respondeu Dantés em voz ligeiramente comovida, de tal forma era doloroso o contraste entre esses momentos de alegria e aquela cerimônia lúgubre, de tal forma o rosto sombrio do Sr. de Villefort fazia brilhar em todo o seu esplendor o rosto radiante de Mercedes.
— Assistia ao seu banquete de noivado — repetiu o substituto, estremecendo a seu pesar.
— Sim, senhor, estou prestes a casar com uma mulher que amo há três anos.
Villefort, apesar de se mostrar habitualmente impassível, ficou impressionado com a confidência, com a voz comovida de Dantés, surpreendido no meio da sua felicidade, e essa voz fez-lhe vibrar uma fibra simpática no fundo da alma. Também ele se ia casar, também ele era feliz, e acabavam de perturbar a sua felicidade a fim de o levarem a contribuir para a destruição da alegria de um homem que, como ele, tocava já a felicidade.
Este paralelismo filosófico, pensou, produziria grande efeito no seu regresso ao salão do Sr. de Saint-Méran. E compôs antecipadamente no espírito, enquanto Dantés esperava novas perguntas, as palavras antitáticas com o auxílio das quais os oradores constroem essas frases sedentas de aplausos que por vezes fazem crer numa verdadeira eloqüência. Composto o seu pequeno speech interior, Villefort sorriu do efeito e disse, dirigindo-se a Dantés:
— Continue, senhor.
— Que deseja que continue?
— A esclarecer a justiça.
— A justiça que me diga em que ponto deseja ser esclarecida e lhe direi tudo o que sei. Simplesmente — acrescentou também com um sorriso — Previno-a de que não sei grande coisa.
— Serviu no tempo do usurpador?
— Ia ser incorporado na marinha de guerra quando ele caiu.
— São conhecidas as suas opiniões políticas extremistas — insinuou Villefort, a quem ninguém dissera nada a tal respeito, mas que não achava despropositado afirmá-lo como quem formula uma acusação.
— As minhas opiniões políticas, senhor? Bom, é quase vergonhoso dizê-lo, mas nunca tive o que se chama uma opinião. Tenho apenas dezenove anos, como já tive a honra de lhe dizer; não sei nada, não estou destinado a desempenhar qualquer papel, o pouco que sou e que serei, se me derem o lugar que ambiciono, devê-lo-ei ao Sr. Morrel. Por isso, todas as minhas opiniões, não direi políticas, mas pessoais, limitam-se a estes três sentimentos: amo o meu pai, respeito o Sr. Morrel e adoro Mercedes. Aqui tem, senhor, tudo o que posso dizer à justiça, como vê, é pouco interessante para ela.
À medida que Dantés falava, Villefort observava-lhe o rosto, ao mesmo tempo tão afável e tão franco, e sentia acudirem-lhe à memória as palavras de Renée que sem o conhecer lhe pedira indulgência para com o arguido. Com a prática que o substituto já possuía do crime e dos criminosos, via em cada palavra de Dantés surgir a prova da sua inocência. Com efeito, aquele rapaz, quase se poderia dizer aquela criança, simples, natural e eloquente, com essa eloquência do coração que nunca se encontra quando se procura, cheio de afeição para todos porque era feliz e porque a felicidade torna bons os próprios maus, derramava até sobre o seu juiz a suave afabilidade que lhe  transbordava do coração. Edmond não tinha no olhar, na voz e nos gestos, por mais rude e severo que Villefort tivesse sido para com ele, a não ser atenções e bondade para com aquele que o interrogava.
“Por Deus”, disse Villefort para consigo, “Aqui está um rapaz encantador que talvez me permita sem grande dificuldade, assim espero, ser agradável a Renée e satisfazer a primeira recomendação que me fez, o que me poderá valer um bom aperto de mão diante de toda a gente e um beijo terno num canto”.
E com esta doce esperança o rosto de Villefort desanuviou-se. E assim, quando abandonou o fio do seu pensamento e olhou para Dantés, este, que seguia todos os movimentos da fisionomia do seu juiz, sorria como o próprio pensamento de Villefort.
— Tem algum inimigo? — perguntou o substituto.
— Inimigos, eu? — perguntou Dantés — Tenho a sorte de ser demasiado insignificante para que a minha posição os arranje. Quanto ao meu temperamento, talvez um pouco vivo, sempre tentei suavizá-lo no trato com os meus subordinados. Tenho dez ou doze marinheiros sob as minhas ordens, interrogue-os, senhor, e lhe dirão que me estimam e respeitam, não como um pai, sou demasiado novo para isso, mas sim como um irmão mais velho.
— Mas, à falta de inimigos, talvez tenha invejosos. Ia ser nomeado comandante aos dezenove anos, o que é um cargo elevado na sua idade, e ia casar com uma linda mulher que o ama, o que é uma felicidade rara em qualquer parte deste mundo. Estas duas preferências do destino podem ter-lhe granjeado invejosos.
— Sim, tem razão. Deve conhecer os homens melhor do que eu, é possível. Mas se esses invejosos se encontram entre os meus amigos, confesso-lhe que prefiro não os conhecer para não ser obrigado a odiá-los.
— Engana-se. Tanto quanto possível, devemos ver sempre claramente à nossa volta. E na verdade o senhor parece-me um jovem tão digno que vou me desviar em seu benefício das regras habituais da justiça e ajudá-lo a fazer brotar a luz dando-lhe conhecimento da denúncia que o trouxe à minha presença. Aqui está o papel acusador. Reconhece a letra?
E Villefort tirou a carta da algibeira e apresentou-a a Dantés, que a olhou e leu. Passou-lhe uma sombra pela testa e respondeu:
— Não, senhor, não conheço esta letra; está disfarçada, embora seja bastante firme. De qualquer modo, foi traçada por mão experiente. Sinto-me feliz — acrescentou, olhando com reconhecimento para Villefort — Por tratar com um homem como o senhor, pois, com efeito o meu invejoso é um autêntico inimigo.
E o relâmpago que passou pelos olhos do jovem ao pronunciar estas palavras permitiu a Villefort distinguir tudo o que havia de violenta energia debaixo da afabilidade inicial.
— E agora — disse o substituto — Responda-me francamente, senhor, não como um arguido ao seu juiz, mas sim como um homem numa posição falsa responde a outro homem que se interessa por ele: que há de verdade nesta acusação anônima?
E Villefort atirou com repugnância para cima da mesa a carta que Dantés acabava de lhe restituir.
— Tudo e nada, senhor. Eis a verdade pura, pela minha honra de marinheiro, pelo meu amor por Mercedes e pela vida do meu pai.
— Fale, senhor — disse em voz alta Villefort.
Depois, baixinho, acrescentou:
— Se Renée me pudesse ver, sem dúvida ficaria contente comigo e nunca mais me chamaria cortador de cabeças!
— Bom, o Comandante Leclére adoeceu com uma febre cerebral ao sairmos de Nápoles. Como não tínhamos um médico a bordo e não quis escalar nenhum porto da costa, pois tinha pressa de chegar à Ilha de Elba, a doença agravou-se e ele chamou-me a sua presença.
“— Meu caro Dantés — disse-me — Jure-me pela sua honra fazer o que lhe vou dizer. Estão em jogo altos interesses.
“— Juro-lhe, comandante — respondi-lhe.
“— Muito bem! Como depois da minha morte lhe pertence o comando do navio, na qualidade de imediato, assuma-o, aproe à Ilha de Elba, desembarque em Porto Ferraio, procure o grande marechal e lhe entregue esta carta. É possível que lhe entreguem outra carta e o encarreguem de qualquer missão. Essa missão me estava reservada, Dantés, cumpra-a em meu lugar e toda a honra disso será sua.
“— Assim farei, comandante, mas talvez não consiga chegar tão facilmente como pensa junto do grande marechal.
“— Aqui tem um anel que lhe mandará entregar — disse o comandante — E que removerá todas as dificuldades.
— E ao dizer estas palavras entregou-me um anel. Era tempo: duas horas mais tarde o delírio apoderou-se dele e no dia seguinte morreu.
— Que fez então?
— O que devia fazer, senhor, o que qualquer outro faria no meu lugar. Custe o que custar, as súplicas de um moribundo são sagradas, mas entre os marinheiros os pedidos de um superior são ordens que se devem cumprir. Fiz-me, portanto de vela para a Ilha de Elba, onde cheguei no dia seguinte, proibi a saída de toda a tripulação e desci sozinho a terra. Como previra, levantaram-me algumas dificuldades para me introduzir junto do grande marechal, mas mandei-lhe o anel que devia servir-me de sinal de reconhecimento e todas as portas se abriram diante de mim. Recebeu-me, interrogou-me acerca das últimas circunstâncias da morte do infeliz Leclére e, como este previra, entregou-me uma carta que me encarregou de levar pessoalmente a Paris. Prometi-lho, porque isso equivalia a cumprir as últimas vontades do meu comandante. Desembarquei e regularizei rapidamente todos os assuntos de bordo, depois, corri a ver a minha noiva, que encontrei mais bonita e apaixonada do que nunca. Graças ao Sr. Morrel, passamos por cima de todas as dificuldades eclesiásticas. Enfim, senhor, assistia como lhe disse ao banquete do meu noivado, ia casar-me dentro de uma hora e contava partir amanhã para Paris quando por via dessa denúncia, que o senhor parece desprezar agora tanto como eu, fui preso.
— Sim, sim — murmurou Villefort — Tudo isso me parece ser verdade, e se o senhor é culpado, é de imprudência, embora essa imprudência seja legítima devido às ordens do seu comandante. Entregue-me essa carta que lhe deram na Ilha de Elba, dê-me a sua palavra de que se apresentar  à primeira convocação e volte para junto dos seus amigos.
— Quer dizer que estou livre, senhor?! — exclamou Dantés, no cúmulo da alegria.
— Está, mas primeiro dê-me essa carta.
— Deve estar diante de si, senhor, pois apreenderam-na com os meus outros papéis e reconheço alguns deles nesse maço.
— Espere — disse o substituto a Dantés, que pegava as luvas e o chapéu — Espere. A quem é dirigida?
— Ao Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, em Paris.
Um raio que caísse sobre Villefort não o fulminaria mais rápida e imprevistamente. Deixou-se cair na poltrona, de onde se só erguera para chegar ao maço de papéis apreendidos a Dantés, remexeu-o precipitadamente e tirou dele a carta fatal, à qual deitou um olhar cheio de indizível terror.
Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, nº. 13 — murmurou, empalidecendo cada vez mais.
— Sim, senhor — confirmou Dantés, atônito — Conhece-o?
— Não — respondeu vivamente Villefort — Um fiel servidor do rei não conhece conspiradores.
— Trata-se portanto de uma conspiração? — perguntou Dantés, que começava, por se julgar livre, a sentir-se novamente dominado por um terror maior do que ao princípio — Seja como for, senhor, como já lhe disse ignoro completamente o conteúdo da correspondência de que fui portador.
— Pois sim, mas sabe o nome daquele a quem era dirigida! — disse Villefort, com voz abafada.
— Para lha entregar pessoalmente, senhor, era indispensável que o soubesse.
— Não mostrou esta carta a ninguém? — perguntou Villefort, lendo-a e empalidecendo à medida que a lia.
— A ninguém senhor, dou-lhe a minha palavra de honra!
— Todos ignoram que era portador de uma carta vinda da Ilha de Elba e endereçada ao Sr. Noirtier?
— Toda gente, senhor, exceto quem me entregou.
— É demasiado, é ainda demasiado! — murmurou Villefort.
A fronte de Villefort nublava-se cada vez mais à medida que se aproximava do fim: os seus lábios brancos, as suas mãos trêmulas e os seus olhos ardentes faziam passar pelo espírito de Dantés as mais dolorosas apreensões. Terminada a leitura, Villefort deixou cair a cabeça nas mãos e ficou um instante acabrunhado.
— Oh, meu Deus! Que se passa senhor? — perguntou timidamente Dantés.
Villefort não respondeu. Mas passados alguns instantes levantou o rosto pálido e descomposto e releu segunda vez a carta.
— E diz que não sabe o que contém esta carta? — insistiu Villefort.
— Dou-lhe a minha palavra de honra, repito, senhor, de que o ignoro — respondeu Dantés — Mas que tem o senhor, meu Deus? Sente-se mal, quer que toque, quer que chame?
— Não, senhor — respondeu Villefort, levantando-se vivamente — Não se mexa, não diga nada, é a mim que compete dar ordens aqui e não ao senhor.
— Era apenas para o ajudá-lo, senhor — protestou Dantés, magoado.
— Não preciso de nada, foi apenas uma indisposição passageira. Ocupe-se de si e não de mim, responda.
Dantés esperou o interrogatório anunciado por estas palavras, mas inutilmente: Villefort voltou a deixar-se cair na poltrona, passou a mão gelada pela testa coberta de suor e releu a carta pela terceira vez.
— Oh, se ele soubesse o que contém esta carta? — murmurou — Se soubesse alguma vez que Noirtier é o pai de Villefort, seria eu quem estaria perdido, perdido para sempre!
E de vez em quando olhava para Edmond, como se o seu olhar pudesse quebrar a barreira invisível que encerra no coração os segredos que a boca guarda.
— Oh, deixemo-nos de hesitações! — exclamou de súbito.
— Mas, em nome do Céu, senhor — pediu o pobre rapaz — Se desconfia de mim, se tem suspeitas a meu respeito, interrogue-me, estou pronto a responder-lhe.
Villefort fez um esforço violento sobre si mesmo e disse num tom que pretendia tornar firme:
— Senhor, as acusações mais graves resultam para si do seu interrogatório e não está, portanto na minha mão, como de início esperei, pô-lo imediatamente em liberdade, antes de tomar semelhante medida devo consultar o juiz de instrução. Entretanto, já viu de que forma o tenho tratado...
— Oh, sim, senhor, e agradeço-lhe, pois tem sido para mim muito mais amigo do que um juiz! — declarou Dantés.
— Pois bem, senhor, vou conservá-lo mais algum tempo preso, mas o menos que puder. A principal acusação que existe contra si é esta carta, e como vê...
Villefort aproximou-se da chaminé, lançou-a ao fogo e deixou-se estar até a carta ficar reduzida a cinzas.
— E como vê — continuou — Destruo-a.
— Oh, o senhor é mais do que justiça, é a bondade! — exclamou Dantés.
— Mas escute-me — prosseguiu Villefort — Depois de semelhante ato, decerto compreende que pode confiar em mim, não é verdade?
— Oh, senhor, ordene e cumprirei as suas ordens!
— Não — disse Villefort aproximando-se do rapaz — Não são ordens o que lhe quero dar, são conselhos, compreende?
— Diga-os e me conformarei com eles como se fossem ordens.
— Vou conservá-lo aqui, no Palácio da Justiça, até à noite. Talvez mais alguém o venha interrogar: diga tudo o que me disse, mas nem uma palavra acerca da carta.
— Prometo-lhe, senhor.
Agora era Villefort que parecia suplicar, era o arguido que tranqüilizava o juiz.
— Compreende — disse, deitando um olhar às cinzas, que ainda conservavam a forma do papel e que esvoaçavam por cima das chamas — Agora a carta desapareceu, só o senhor e eu sabemos que ela existiu. Ninguém tornará a apresentá-la. Negue-a, pois, se lhe falarem dela, negue decididamente e estará salvo.
— Negarei, senhor esteja tranquilo — prometeu Dantés.
— Muito bem, muito bem — aprovou Villefort, levando a mão ao cordão de uma campainha.
Depois, detendo-se um momento de tocar:
— Era a única carta que tinha? — perguntou.
— A única.
— Jure.
Dantés estendeu a mão.
— Juro — disse.
Villefort tocou.
O comissário da polícia entrou. Villefort aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido a que o comissário respondeu com um simples aceno de cabeça.
— Vá senhor — disse Villefort a Dantés.
Dantés inclinou-se, deitou um último olhar de reconhecimento a Villefort e saiu.
Assim que a porta se fechou atrás dele, as forças faltaram a Villefort, que caiu quase sem sentidos numa poltrona. Passado um instante, murmurou:
— Oh, meu Deus, de que dependem a vida e a fortuna!... Se o Procurador Régio estivesse em Marselha, se o juiz de instrução tivesse sido chamado em meu lugar, estaria perdido: aquele papel, aquele papel maldito me precipitaria no abismo. Ah, meu pai, meu pai! Será sempre um obstáculo à minha felicidade neste mundo e deverei lutar eternamente com o seu passado?
Depois, de súbito, um clarão inesperado pareceu passar-lhe pelo espírito e iluminou-lhe o rosto, desenhou-se-lhe um sorriso na boca ainda crispada e os seus olhos assustados tornaram-se fixos e pareceram deter-se num pensamento.
— É isso — disse — Sim, essa carta que me devia perder talvez faça a minha fortuna. Vamos, Villefort, mãos à obra.
E depois de se assegurar de que o arguido já não estava na antecâmara, o Substituto do Procurador Régio saiu por seu turno e dirigiu-se rapidamente para casa da noiva.




continua...




___________________________________

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capitulo 6


VI

O SUBSTITUTO DO PROCURADOR RÉGIO




N
a Rua do Grand-Cours, defronte da Fonte das Medusas, numa dessas velhas casas de arquitetura aristocrática edificadas por Puget, celebrava-se também no mesmo dia e à mesma hora, um banquete de noivado. Simplesmente, em vez dos atores desta outra cena serem gente do povo, marinheiros e soldados, pertenciam à alta sociedade marselhesa.
Eram antigos magistrados que se tinham demitido dos seus cargos durante a usurpação, velhos oficiais que tinham desertado das fileiras para se alistarem nas do exército de Condé‚ e jovens educados pela família ainda mal tranquilizada acerca da sua existência, apesar dos quatro ou cinco substitutos que pagara, no ódio a esse homem de que cinco anos de exílio fariam um mártir e quinze anos de restauração um deus.
Estava-se à mesa e a conversa seguia o seu curso, animada por todas as paixões, as paixões da época, paixões tanto mais terríveis, vivas e encarniçadas no Meio-Dia quanto é certo que havia quinhentos anos os ódios religiosos alimentavam os ódios políticos.
O Imperador, rei da ilha de Elba depois de ter sido soberano de parte do mundo, reinando sobre uma população de cinco a seis mil almas depois de ter ouvido gritar “Viva Napoleão!” por cento e vinte milhões de súditos e em dez línguas diferentes, era tratado ali como um homem perdido para sempre para a França e para o trono. Os magistrados salientavam os erros políticos, os militares falavam de Moscou e Leipzig e as mulheres do seu divórcio de Josefina. Parecia àquela sociedade monárquica alegre e triunfante, não pela queda do homem, mas sim pelo aniquilamento do príncipe, que a vida recomeçava para ela e que saía de um sonho desagradável.
Um velho, condecorado com a cruz de S. Luís, levantou-se e propôs aos convivas um brinde à saúde do Rei Luís XVIII. Era o Marquês de Saint-Méran.
Por via desse brinde, que recordava ao mesmo tempo o exilado de Hartwell e o rei pacificador da França, estabeleceu-se grande rumor, os copos ergueram-se à moda inglesa e as mulheres desmancharam os seus ramalhetes e juncaram com eles a toalha. Foi um entusiasmo quase poético.
— Eles teriam de admitir, se estivessem aqui — disse a Marquesa de Saint-Méran, mulher de olhar severo, lábios finos e aspecto aristocrático e ainda elegante, apesar dos seus cinqüenta anos — Teriam de admitir, todos esses revolucionários que nos expulsaram e que por nossa vez deixamos conspirar tranquilamente nos nossos velhos castelos que compraram por uma cãdea no tempo do Terror, que a verdadeira dedicação esteve no nosso lado, pois nós ligamos o nosso destino ao da monarquia que se desmoronava, ao passo que eles, pelo contrário, saudaram o sol nascente e fizeram a sua fortuna enquanto nós perdíamos a nossa. E também teriam de admitir que para nós o nosso rei era unicamente Luís, o Bem-Amado, enquanto para eles o seu usurpador nunca passou de Napoleão, o maldito. Não é verdade, Villefort?
— Que diz, Sra. Marquesa?... Perdoai-me, mas não estava seguindo a conversa.
— Então, deixe essas crianças, marquesa — interveio o velho que fizera o brinde — Essas crianças vão se casar e muito naturalmente têm mais de que falar do que de política.
— Peço-lhe perdão, minha mãe — disse uma linda moça de cabelo louro e olhos de veludo nadando num fluido nacarado — Restituo-lhe o Sr. de Villefort, que monopolizei por um instante. Sr. de Villefort, a minha mãe está  falando consigo.
— Estou pronto a responder-lhe, minha senhora, se se dignar repetir a sua pergunta, que mal ouvi — disse o Sr. de Villefort.
— Está perdoada, Renée — declarou a marquesa, com um sorriso terno que se não esperaria ver florir naquele rosto severo.
Mas o coração da mulher é assim: por mais árido que o bafo dos preconceitos e as exigências da etiqueta o tornem, possui sempre um recanto fértil e ridente, aquele que Deus consagrou ao amor materno.
— Estão perdoados... pois eu dizia, Villefort, que os bonapartistas não tinham nem a nossa convicção, nem o nosso entusiasmo, nem a nossa dedicação.
— Mas, minha senhora, têm pelo menos uma coisa que substitui tudo isso: o fanatismo. Napoleão é o Maomé do Ocidente, é para todos esses homens vulgares, mas de ambições supremas, não só um legislador e um mestre, mas também um modelo, o modelo da igualdade.
— Da igualdade! — exclamou a marquesa — Napoleão o modelo da igualdade! E que reserva então para o Sr. de Robespierre? Parece-me que lhe rouba o lugar para o dar ao corso, de qualquer modo, parece-me que se trata pelo menos de uma usurpação.
— Não, minha senhora — respondeu Villefort — Deixo cada um no seu pedestal: Robespierre coloca Luís XVI no seu cadafalso, Napoleão coloca Vedame na sua coluna, simplesmente, um praticou a igualdade que rebaixa e o outro a igualdade que eleva. Um rebaixou os reis ao nível da guilhotina, o outro o povo ao nível do trono... mas isso não significa — acrescentou Villefort, rindo — Que ambos não sejam infames revolucionários e que o 9 do Termidor e o 4 de Abril de 1814 não constituam dois dias felizes para a França e dignos de ser igualmente festejados pelos amigos da ordem e da monarquia. E explica também por que motivo, apesar de ter caído para nunca mais se levantar, assim espero, Napoleão conservou os seus fanáticos. Que quer, marquesa? Cromwell, que não era mais de metade de tudo o que foi Napoleão, também tinha os seus!
— Sabe que tudo isso que acaba de dizer, Villefort, cheira a revolução à distância? Mas perdôo-lhe: não se pode ser filho de girondino sem se conservar alguns dos seus gostos.
A fronte de Villefort cobriu-se de vivo rubor.
— Meu pai era girondino, minha senhora, é verdade — perguntou — Mas foi proscrito por esse mesmo Terror que vos proscrevia, e pouco faltou para não lhe colocarem a cabeça no mesmo cadafalso que viu cair a do pai da Sra. Marquesa.
— É verdade — admitiu a marquesa, sem que tão sangrenta recordação provocasse a menor alteração no seu rosto — Em todo o caso, seria por motivos diametralmente opostos que ambos subiriam ao cadafalso, e a prova é que toda a minha família permaneceu fiel aos príncipes exilados, enquanto o seu pai se apressou a aderir ao novo governo e depois de o cidadão Noirtier ser girondino o Conde Noirtier tornou-se senador.
— Minha mãe — interveio Renée — Bem sabe que se combinou não voltar a falar dessas más recordações.
— Minha senhora — prosseguiu Villefort — Junto-me a Mademoiselle de Saint-Méran para lhe pedir muito humildemente o esquecimento do passado. Que adianta estarmos com recriminações a respeito de coisas em que a própria vontade de Deus é importante? Deus pode modificar o futuro, mas não pode modificar o passado. Nós, homens, o que podemos‚ senão renegá-lo, pelo menos deitar-lhe um véu por cima. Pela minha parte afastei-me não só da opinião, mas também do nome do meu pai. Meu pai foi ou até talvez ainda seja bonapartista e chama-se Noirtier, eu sou monárquico e chamo-me Villefort. Deixe morrer no velho tronco um resto de seiva revolucionária e veja apenas, minha senhora, o rebento que se afasta desse tronco, sem poder, e quase direi sem querer, separar-se dele por completo.
— Bravo, Villefort! — exclamou o Marquês — Bravo, bem respondido! Também eu tenho pregado constantemente à marquesa o esquecimento do passado sem nunca o conseguir. Espero que seja mais feliz do que eu.
— Sim, está bem — condescendeu a marquesa — Esqueçamos o passado. Não desejo outra coisa e foi, de fato, o que se combinou. Mas que pelo menos Villefort seja inflexível no futuro. Não se esqueça, Villefort, de que respondemos por si perante Sua Majestade, de que também Sua Majestade se dignou esquecer, a nosso pedido, e estender-lhe a mão, tal como eu esqueço a seu pedido. Simplesmente, se lhe cair algum conspirador nas mãos, lembre-se que tem tantos mais olhos postos em si quanto se sabe pertencer a uma família que talvez esteja relacionada com esses conspiradores.
— Infelizmente, minha senhora — respondeu Villefort — A minha profissão e sobretudo o tempo em que vivemos ordenam-me que seja severo. E eu o serei. Tenho já algumas acusações políticas a sustentar a esse respeito tenho dado as minhas provas. Desgraçadamente estamos longe do fim.
— Acha? — perguntou a marquesa.
— Muito o receio. Napoleão, na Ilha de Elba, está pertíssimo da França. A sua presença quase à vista das nossas costas alimenta a esperança dos seus partidários. Marselha está cheia de oficiais a meio soldo que todos os dias, sob qualquer pretexto fútil, procuram questões com os monárquicos. Daí duelos entre pessoas de classes elevadas, dai assassínios entre o povo.
— Pois sim — disse o Conde de Salvieux, velho amigo do Sr. de Saint-Méran e camareiro do Sr. Conde de Artois — Pois sim, mas como sabem a Santa Aliança pensa transferi-lo.
— Sim, falava-se disso quando da nossa partida de Paris — declarou o Sr. de Saint-Méran — Mas para onde?
— Para Santa Helena.
— Santa Helena? Que é isso? — perguntou a marquesa.
— Uma ilha situada a duas mil léguas daqui, para lá do equador — respondeu o conde.
— Ainda bem. Como disse Villefort, foi uma grande imprudência deixar semelhante homem entre a Córsega, onde nasceu, e Nápoles, onde ainda reina o cunhado, e diante da Itália, de que queria fazer um reino para o filho.
— Infelizmente — observou Villefort — Temos os tratados de 1814 e não é possível tocar em Napoleão sem desrespeitar esses tratados.
— Pois vamos desrespeitá-los! — replicou o Sr. de Salvieux — Acaso ele esteve com tantas contemplações quando se tratou de fuzilar o infeliz Duque de Enghien?
— Pronto, está combinado — interveio a marquesa — A Santa Aliança desembaraça a Europa de Napoleão e Villefort desembaraça Marselha dos seus partidários. O rei reina ou não reina, se reina, o seu governo deve ser forte e os seus agentes inflexíveis. É o único meio de prevenir o mal.
— Infelizmente, minha senhora — observou, sorrindo, Villefort — Um substituto do procurador régio chega sempre quando o mal já está feito.
— Nesse caso, compete-lhe repará-lo.
— Poderia dizer-lhe também, minha senhora, que não reparamos o mal, apenas o vingamos.
— Oh, Sr. de Villefort — exclamou uma jovem e bonita conviva, filha do Conde de Salvieux e amiga de Mademoiselle de Saint-Méran — Veja se consegue arranjar um bom julgamento enquanto estivermos em Marselha! Nunca entrei num tribunal e dizem que é muito curioso.
— É de fato muito curioso, mademoiselle — concordou o substituto — Porque em vez de uma tragédia fictícia, se trata de um drama autêntico, em vez de dores fingidas, trata-se de dores reais. O homem que se lá vê, em lugar de, uma vez o pano descido, regressar a casa, jantar em família e deitar-se tranquilamente para recomeçar no dia seguinte, regressa à prisão onde se encontra o carrasco. Como sabe, para as pessoas nervosas, que procuram emoções, não existe espetáculo que se lhe compare. Fique descansada, mademoiselle, se as circunstâncias o permitirem, proporcionar-lho-ei.
— O senhor brinca, mas esse espetáculo causa calafrios! — exclamou Renée, empalidecendo.
— Que quer... trata-se de um duelo... já pedi cinco ou seis vezes a pena de morte para réus políticos ou outros... pois bem, quem sabe quantos punhais se preparam a esta hora na sombra ou estão já apontados contra mim?
— Oh, meu Deus! — exclamou de novo Renée, empalidecendo cada vez mais — Fala sério, Sr. de Villefort?
— O mais seriamente possível, mademoiselle — respondeu o jovem magistrado, de sorriso nos lábios — E com os bons julgamentos que Mademoiselle de Salvieux deseja para satisfazer a sua curiosidade e que eu desejo para satisfazer a minha ambição, a situação só se agravará. Julga que todos esses soldados de Napoleão, habituados a enfrentar cegamente o inimigo, refletem quando queimam um cartucho ou quando atacam à baioneta? Porventura refletirão mais para matar um homem que julgam seu inimigo pessoal do que para matar um russo, um austríaco ou um húngaro que nunca viram? Aliás, assim é preciso, pois de contrário a nossa profissão não se justificaria. Eu próprio, quando vejo brilhar nos olhos do réu o relâmpago da raiva, sinto-me animadíssimo, exalto-me. Já se não trata de um julgamento, trata-se de um combate, luto contra ele, ele responde, insisto, e o combate termina, como todos os combates, por uma vitória ou uma derrota. Aqui tem o que é pleitear! É o perigo que dá a eloqüência. Um acusado que me sorrisse depois da minha réplica me levaria a supor que falara mal, que o que dissera fora frouxo, sem vigor, insuficiente. Pense, pois, na sensação de orgulho que experimenta um procurador régio convencido da culpabilidade do réu quando vê empalidecer e inclinar-se o seu culpado sob o peso das provas e os raios da sua eloqüência... essa cabeça que se baixa, cairá.
Renée soltou um gritinho.
— Assim é que é falar — disse um dos convivas.
— Eis o homem que é preciso em tempos como os nossos! — observou um segundo.
— Por isso — disse um terceiro — No seu último julgamento foi soberbo, meu caro Villefort. Lembra-se, retiro-lhe aquele homem que assassinara o pai... pois o caso é que você o matou literalmente antes de o carrasco lhe tocar.
— Oh, quando se trata de parricidas pouco me importo! — exclamou Renée — Não há suplício suficientemente grande para semelhantes homens. Mas para os pobres acusados políticos!...
— Isso é ainda pior, Renée, porque o rei é o pai da nação e querer derrubar ou matar o rei é querer matar o pai de trinta e dois milhões de homens.
— Oh, é a mesma coisa, Sr. de Villefort! — perguntou Renée — Prometa-me ser indulgente com aqueles que lhe recomendar?
— Fique descansada — respondeu Villefort com o seu sorriso mais encantador — Faremos juntos os meus requisitórios.
— Minha querida — interveio a marquesa — Cuide dos seus colibris, dos seus cães e dos seus trapos e deixe o seu futuro marido cumprir o seu dever. Hoje as armas descansam e é a vez da toga. A este respeito existe uma frase latina de grande profundidade...
“Cedant arma togoe[1]” — disse Villefort, inclinando-se.

[1] Submetam-se os exércitos à toga.

— Não me atrevo a falar latim — declarou a marquesa.
— Creio que preferiria que fosse médico — prosseguiu Renée — O anjo exterminador, por mais anjo que seja, sempre me meteu muito medo.
— Querida Renée! — murmurou Villefort, envolvendo a jovem num olhar apaixonado.
— Minha filha — disse o Marquês — O Sr. de Villefort, será o médico moral e político desta província. Acredite que é um papel digno de ser representado.
— E será uma maneira de fazer esquecer o que desempenhou o pai — acrescentou a incorrigível marquesa.
— Minha senhora — perguntou Villefort com um sorriso triste — Tive a honra de lhe dizer que o meu pai abjurara, pelo menos assim o espero, os erros do seu passado, que se tornara um amigo zeloso da religião e da ordem, melhor monárquico do que eu, talvez, pois ele o faz com arrependimento e eu sou apenas com paixão.
E depois desta frase torneada, Villefort, para apreciar o efeito da sua facúndia, olhou os convivas como depois de uma frase equivalente olharia o auditório no tribunal.
— Bom, meu caro Villefort — interveio o Conde de Salvieux — Foi precisamente isso que respondi anteontem nas Tulherias ao ministro da Casa Real, que me levantava algumas objeções acerca da singular aliança entre o filho de um girondino e a filha de um oficial do exército de Condé. E o ministro compreendeu perfeitamente. Aliás, tal união é do agrado de Luís XVIII, pois o rei, que sem que suspeitássemos escutava a nossa conversa, interrompeu-nos dizendo: “Villefort”, notem que o rei não pronunciou o nome de Noirtier e pelo contrário sublinhou o de Villefort, “Villefort”, disse o rei, “Fará uma boa carreira. Trata-se de um rapaz já amadurecido e da minha confiança. Vi com prazer o Marquês e a Marquesa de Saint-Méran tomarem-no como genro e lhes teria aconselhado essa aliança se não tivessem sido os primeiros a pedir-me licença para a contrair”.
— O rei disse isso, conde? — exclamou Villefort, extasiado.
— Foram as suas próprias palavras, e se o Marquês quiser ser franco confessará que o que acabo de dizer se harmoniza perfeitamente com o que o rei lhe disse a ele próprio quando lhe falou, há seis meses, de um projeto de casamento entre a filha e você.
— É verdade — confirmou o Marquês.
— Oh, deverei tudo a esse digno príncipe! Por isso, que não farei para o servir!
— Ora até que enfim! — disse a marquesa — É assim que gosto de o ver. Se neste momento aparecesse um conspirador, seria bem-vindo.
— Pois eu, minha mãe — atalhou Renée — Peço a Deus que não a escute e envie ao Sr. de Villefort apenas uns ladrõezecos, modestos falidos e tímidos vigaristas. Se assim acontecer, dormirei tranqüila.
— É como se desejasse ao médico enxaquecas, sarampos e picadas de vespas, tudo coisas que afetam apenas a epiderme — observou Villefort, rindo — Ora se, pelo contrário, me quiser ver procurador régio deseje-me dessas doenças terríveis cuja cura honra o médico.
Neste momento, e como se o acaso nada mais tivesse esperado do que a formulação do desejo de Villefort para o satisfazer, entrou um criado que lhe disse algumas palavras ao ouvido. Villefort pediu licença para deixar a mesa e voltou pouco depois de rosto aberto e lábios sorridentes.
Renée olhou-o com amor. Porque visto assim, com os seus olhos azuis, a sua tez mate e as suas suíças pretas, que lhe emolduravam o rosto, era realmente um elegante e bonito jovem. Por isso, todo o espírito da jovem pareceu ficar suspenso dos seus lábios enquanto esperava que ele explicasse a causa do seu desaparecimento momentâneo.
— Bom — disse Villefort — Há pouco ambicionava, mademoiselle, ter por marido um médico. Ora eu tenho com os discípulos de Esculápio (ainda se falava assim em 1815) pelo menos esta semelhança: nunca me pertence o momento que passa, vêm incomodar-me mesmo junto de si, mesmo no meu banquete de noivado.
— E por que motivo o incomodaram, senhor? — perguntou a linda jovem, com uma ligeira inquietação.
— Oh, por causa de um doente que, a crer no que me disseram, se deve encontrar em estado desesperado! Desta vez trata-se de um caso grave e a doença anda perto do cadafalso!
— Oh, meu Deus! — exclamou Renée, empalidecendo.
— Sim?! — disseram em uníssono os convivas.
— Parece que se acaba de descobrir, muito simplesmente, uma conspiraçãozinha bonapartista...
— Será possível? — perguntou a marquesa.
— Aqui está a carta denunciadora.
E Villefort leu:


“O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris. Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon”.


— Mas — disse Renée — Essa carta, que aliás não passa de uma carta anônima, é dirigida ao Sr. Procurador Régio e não a si.
— Sim, mas o procurador régio está ausente. Na sua ausência, a epístola foi entregue ao seu secretário, a quem compete abrir as cartas. Abriu, portanto esta, mandou-me procurar e, como se não encontrasse, ordenou a prisão.
— Assim, o culpado está preso? — perguntou a marquesa.
— Quer dizer, o acusado — corrigiu Renée.
— Está, sim, minha senhora — respondeu Villefort — E como tive a honra de dizer há pouco a Mademoiselle Renée, se se encontrar a carta em questão o doente está muito doente.
— E onde se encontra esse infeliz? — perguntou Renée.
— Em minha casa.
— Vá, meu amigo — disse o Marquês — Não falte aos seus deveres por nossa causa, quando o serviço do rei o espera do outro lado. Vá, pois onde o espera o serviço do rei.
— Oh, Sr. de Villefort, seja indulgente, lembre-se de que é o dia do seu noivado! — exclamou Renée, juntando as mãos.
Villefort contornou a mesa e, aproximando-se da cadeira da jovem, no espaldar da qual se apoiou, respondeu:
— Para lhe poupar uma preocupação, farei tudo o que puder, querida Renée. Mas se os indícios forem seguros e a acusação verdadeira, terá de se cortar essa erva daninha bonapartista.
Renée estremeceu ao ouvir a palavra “cortar”, porque a erva que se tratava de cortar era uma cabeça.
— Ora, ora! — interveio a marquesa — Não dê ouvidos a essa menina: ela tem de se ir habituando.
E a marquesa estendeu a Villefort a mão seca, que ele beijou sem desfitar Renée e dizendo-lhe com os olhos: “É a sua mão que beijo, ou pelo menos que desejaria beijar neste momento”.
— Tristes auspícios! — murmurou Renée.
— Na verdade, menina — disse a marquesa — É de uma infantilidade desesperante. Muito gostaria de saber que tem o destino do Estado a ver com as fantasias sentimentais e as suas pieguices de coração.
— Oh, minha mãe! — murmurou Renée.
— Piedade para a má monárquica, Sra. Marquesa — pediu Villefort — Prometo-lhe desempenhar-me conscienciosamente da minha missão de substituto do procurador régio, isto é, ser horrivelmente severo.
Mas ao mesmo tempo que o magistrado dirigia estas palavras à marquesa o noivo olhava de soslaio para a noiva e o seu olhar dizia; “Esteja tranqüila, Renée, em atenção ao seu amor serei indulgente”.
Renée correspondeu a esse olhar com o seu mais terno sorriso e Villefort saiu com o paraíso no coração.






continua...




___________________________________