— CAPÍTULO TRINTA E CINCO —
KING’S CROSS
ELE ESTAVA DE BRUÇOS, escutando o silêncio. Absolutamente sozinho. Ninguém o observava. Ninguém mais estava ali. Nem tinha absoluta certeza de que ele próprio estivesse ali.
Muito tempo depois, ou talvez tempo algum, ocorreu-lhe que devia existir, devia ser mais do que pensamento incorpóreo, porque estava deitado, decididamente deitado, sobre alguma superfície. Portanto, possuía tato, e a coisa sobre a qual deitava também existia. Quase no instante em que chegou a esta conclusão, Harry tomou consciência de que estava nu. Convencido de sua total solidão, isso não o preocupou, mas deixou-o ligeiramente intrigado. Perguntou-se se, uma vez que podia sentir, também seria capaz de ver. Ao abrir os olhos, descobriu que os possuía.
Estava deitado em meio a uma névoa brilhante, embora não se parecesse com névoa alguma que já tivesse visto. O espaço que o rodeava não estava toldado, pelo contrário, a névoa vaporosa ainda não se formara ao seu redor. O chão em que estava deitado parecia ser branco, nem quente nem frio, existia apenas, algo plano, vazio sobre o qual estar. Ele se sentou. Seu corpo parecia ileso. Apalpou o rosto. Não estava mais usando óculos.
Então, do nada informe que o cercava, chegou-lhe aos ouvidos um barulho: as batidinhas suaves de algo que adejava, se açoitava e se debatia. Era um barulho que inspirava piedade, mas também era ligeiramente obsceno. Teve a desconfortável sensação de que estava bisbilhotando alguma coisa furtiva, vergonhosa.
Pela primeira vez, desejou estar vestido.
Mal acabara de formular mentalmente esse desejo, apareceram vestes a uma pequena distância. Apanhou-as e vestiu-as: eram macias, limpas e quentes. Era extraordinário como tinham aparecido, instantaneamente, no momento em que as desejara...
Ele se levantou e relanceou ao redor. Estaria em alguma ampla Sala Precisa? Quanto mais olhava, mais havia para ver. Um enorme domo de vidro faiscava ao sol, lá no alto. Talvez fosse um palácio. Tudo era imóvel e silencioso, exceto por aquelas estranhas lamúrias e pancadas surdas que vinham dali perto em meio à névoa...
Harry se virou lentamente no mesmo lugar, e o ambiente pareceu se reinventar diante de seus olhos. Um grande vão, claro e limpo, um salão muito maior do que o Salão Principal com aquele teto abobadado de vidro. Vazio. Ele era a única pessoa ali, exceto por...
Encolheu-se. Localizara a coisa que estava produzindo os ruídos. Tinha a forma de uma criancinha nua, enroscada no chão, a pele em carne viva e grossa, parecendo açoitada, e tremia embaixo de uma cadeira onde fora deixada, indesejável, posta fora de vista, tentando respirar. Teve medo. Pequena, frágil e ferida como estava, Harry não quis se aproximar dela.
Contudo, ele foi se acercando devagar, pronto para saltar para trás a qualquer momento. Logo estava perto o suficiente para tocá-la, ainda que não conseguisse se obrigar a isso. Sentiu-se um covarde. Devia consolá-la, mas ela lhe causava repugnância.
— Não há nada que você possa fazer.
Ele virou-se depressa. Alvo Dumbledore vinha ao seu encontro, animado e aprumado, trajando amplas vestes azul-escuras.
— Harry — ele abriu bem os braços, e suas mãos estavam, ambas, inteiras, brancas e ilesas — Garoto maravilhoso! Homem corajoso, muito corajoso. Vamos caminhar.
Aturdido, Harry acompanhou-o. Dumbledore se afastou da criança flagelada que choramingava, e o conduziu a duas cadeiras em que Harry não reparara antes, dispostas a alguma distância sob aquele teto alto e cintilante. Dumbledore sentou-se em uma delas e Harry se largou na outra, fitando o seu antigo diretor. Os longos cabelos e barbas prateadas de Dumbledore, os olhos azuis penetrantes por trás dos oclinhos de meia-lua, o nariz torto: exatamente como ele lembrava. Contudo...
— Mas você está morto — disse Harry.
— Ah, sim — respondeu Dumbledore, sem rodeios.
— Então... eu estou morto também?
— Ah — disse o diretor com um sorriso ainda maior — Essa é a dúvida, não é? De modo geral, meu caro rapaz, acho que não.
Eles se encararam, o velho ainda sorrindo.
— Não? — repetiu Harry.
—Não.
— Mas... — Harry levou instintivamente a mão à cicatriz em forma de raio. Aparentemente sumira — Mas eu deveria ter morrido... não me defendi! Deliberadamente deixei que me matasse!
— E isso, acho eu, terá feito toda a diferença.
A felicidade parecia se irradiar de Dumbledore como luz, como fogo: Harry jamais vira um homem tão absoluta e palpavelmente satisfeito.
— Explique — pediu Harry.
— Mas você já sabe.
E Dumbledore girou os polegares.
— Eu deixei que me matasse. Não foi?
— Foi — assentiu Dumbledore — Continue!
— Então a parte da alma dele que estava comigo...
Dumbledore assentiu ainda mais entusiasticamente, instando Harry a prosseguir, um amplo sorriso de incentivo no rosto.
—... se foi?
— Ah, sim! Ele a destruiu. A sua alma é inteira e totalmente sua, Harry.
— Mas então...
Harry espiou por cima do ombro, para onde a pequena criatura mutilada tremia embaixo da cadeira.
— Que é aquilo, professor?
— Uma coisa além da nossa possibilidade de ajudar.
— Mas se Voldemort usou aquela Maldição da Morte — recomeçou Harry — E desta vez ninguém morreu por mim... como posso estar vivo?
— Acho que você sabe. Faça uma retrospectiva. Lembre o que ele fez em sua ignorância, cobiça e crueldade.
Harry pensou. Deixou o seu olhar vaguear pelo ambiente. Se de fato fosse um palácio o lugar em que estavam, era estranho, com cadeiras em pequenas fileiras e gradis aqui e ali, e Dumbledore e a criatura atrofiada embaixo da cadeira eram os únicos seres presentes.
Então a resposta aflorou aos seus lábios facilmente, sem esforço.
— Ele tirou o meu sangue — respondeu Harry.
— Exato! — exclamou Dumbledore — Ele tirou o seu sangue e usou-o para reconstruir o próprio corpo vivente! O seu sangue nas veias dele, Harry, a proteção de Lílian nos dois! Ele prendeu você à vida enquanto ele viver!
— Eu vivo... enquanto ele viver? Mas pensei... pensei que fosse o contrário! Pensei que nós dois tínhamos que morrer? Ou dá no mesmo?
Harry foi distraído pelo choro e as batidas da criatura angustiada às suas costas, e tornou a se virar para vê-la.
— Tem certeza de que não podemos fazer nada?
— Não há ajuda possível.
— Então me explique... melhor — pediu Harry, e Dumbledore sorriu.
— Você foi a sétima Horcrux, Harry, a Horcrux que ele nunca pretendeu criar. Voldemort deixou a alma tão instável que ela se fragmentou quando ele cometeu aqueles atos de indizível maldade, o assassinato dos seus pais, a tentativa de matar uma criança. Mas o que escapou daquele quarto foi ainda menos do que ele percebeu. Voldemort deixou ali mais do que o seu corpo. Deixou uma parte de si mesmo presa a você, a pretensa vítima que sobrevivera. E o conhecimento dele permaneceu lamentavelmente incompleto, Harry! Aquilo a que Voldemort não dá valor ele não se dá sequer o trabalho de compreender. De elfos domésticos e contos infantis, amor, lealdade e inocência, Voldemort não entende nada. Nadinha. Que todos tenham um poder que supere o dele, um poder que supere o alcance da magia, é uma verdade que ele jamais compreendeu. Ele tirou o seu sangue acreditando que isto o fortaleceria. Integrou ao próprio corpo uma parte mínima do encantamento com que sua mãe o recobriu quando morreu para salvá-lo. O corpo dele guarda vivo o sacrifício de Lílian, e enquanto esse encantamento sobreviver, você também sobreviverá, assim como a última esperança de Voldemort.
Dumbledore sorriu para Harry, e o garoto o encarou.
— E o senhor sabia disso? Sabia... o tempo todo?
— Tive um palpite. Mas os meus palpites normalmente têm sido muito bons — respondeu ele, feliz, e os dois ficaram sentados em silêncio por um tempo que pareceu muito longo, enquanto a criatura continuava a choramingar e tremer.
— Tem mais — disse Harry — Tem mais coisas. Por que a minha varinha partiu a que ele pediu emprestada?
— Quanto a isso, não tenho muita certeza.
— Dê um palpite, então — pediu Harry, fazendo Dumbledore rir.
— O que você precisa entender, Harry, é que você e Lord Voldemort empreenderam juntos uma jornada ao reino de uma magia até agora desconhecida e não comprovada. Imagino, porém, que tenha acontecido o seguinte, e não há precedentes, nem fabricante de varinha algum, acho eu, que pudesse jamais ter predito ou explicado isso a Voldemort. Sem querer, como você agora sabe, Lord Voldemort duplicou o vínculo entre vocês quando retomou a forma humana. Uma parte de sua alma já estava presa a você, e, pensando em se fortalecer, ele incorporou uma parte do sacrifício de sua mãe. Se pudesse ter compreendido o poder exato e terrível daquele sacrifício, talvez não tivesse ousado tocar no seu sangue... mas se ele fosse capaz de compreender, não seria Lord Voldemort, e, talvez, nunca tivesse matado ninguém. Tendo garantido essa dupla vinculação, tendo amarrado os seus destinos juntos, mais seguramente do que dois bruxos jamais fizeram em toda a História, Voldemort atacou você com uma varinha que possuía o mesmo núcleo que a sua. Então, ocorreu algo muito estranho, como sabemos. Os núcleos reagiram de uma forma que Lord Voldemort, que nunca soube que a sua varinha era gêmea da dele, não poderia prever. Ele sentiu mais medo do que você naquela noite, Harry. Você tinha aceitado, e até considerado bem-vinda, a ideia da morte, coisa que Lord Voldemort jamais foi capaz de fazer. Sua coragem venceu, sua varinha dominou a dele. E ao fazer isso, aconteceu entre as duas varinhas uma coisa que refletiu a relação entre os seus donos. Acredito que a sua varinha tenha absorvido parte do poder e das qualidades da varinha de Voldemort naquela noite, ou seja, o objeto captou um pouco do próprio Voldemort. Então, a sua varinha o reconheceu enquanto ele o perseguia, reconheceu um homem que era, ao mesmo tempo, parente e inimigo mortal, e regurgitou contra Voldemort um pouco de sua própria magia, magia muito mais poderosa do que qualquer coisa que a varinha de Lúcio pudesse realizar. Sua varinha passou a conter simultaneamente o poder de sua enorme coragem e da perícia letal de Voldemort: que chance teria aquela mísera varinha de Lúcio Malfoy?
— Mas, se a minha varinha ficou tão poderosa, como Hermione pôde quebrá-la? — perguntou Harry.
— Meu caro rapaz, seus efeitos excepcionais eram dirigidos apenas a Voldemort, que mexeu de forma tão imprudente com as mais profundas leis da magia. Apenas contra ele aquela varinha era anormalmente poderosa. Nos demais casos, era uma varinha como outra qualquer... embora, sem dúvida, fosse boa — concluiu Dumbledore bondosamente.
Harry parou refletindo um longo tempo, ou talvez segundos. Ali, era muito difícil ter certeza de dimensões.
— Ele me matou com a sua varinha.
— Ele não conseguiu matar você com a minha varinha — corrigiu-o Dumbledore — Acho que podemos concordar que você não está morto... embora, é claro — acrescentou ele, como se receasse ser indelicado — Eu não esteja minimizando os seus sofrimentos que, seguramente, foram rigorosos.
— Mas estou me sentindo ótimo no momento — replicou Harry, olhando para suas mãos limpas e intactas — Exatamente onde estamos?
— Bem, eu ia lhe perguntar isso — disse Dumbledore, olhando ao redor — Onde você diria que estamos?
Até Dumbledore perguntar, Harry não fazia ideia. Então, descobriu que tinha uma resposta pronta para lhe dar.
— Parece — disse, lentamente — A estação de King’s Cross. Exceto que muito mais limpa e vazia, e, pelo visto, não há trens.
— A estação de King’s Cross! — Dumbledore estava dando gargalhadas — Valha-me Deus, sério?
— Bem, onde o senhor acha que estamos? — perguntou Harry, um pouco na defensiva.
— Meu caro rapaz, não faço a menor ideia. Como costumam dizer, a festa é sua.
Harry não entendeu o que isso queria dizer. Dumbledore estava aborrecendo-o. Olhou carrancudo para o diretor, então se lembrou de uma pergunta muito mais urgente do que a presente localização.
— As Relíquias da Morte — disse, e ficou satisfeito ao ver que as palavras tinham apagado o sorriso do rosto de Dumbledore.
— Ah, sim — disse ele, parecendo até um pouco preocupado.
— Então?
Pela primeira vez desde que Harry conhecera Dumbledore, ele pareceu menos que um homem idoso, muito menos. Pareceu, por um momento fugaz, um garoto apanhado em uma travessura.
— Será que pode me perdoar? Será que pode me perdoar por não ter confiado em você? Por não ter lhe dito? Harry, eu só receei que você fracassasse como eu. Só temi que repetisse os meus erros. Imploro o seu perdão, Harry. Já faz algum tempo que sei que você é um homem melhor do que eu.
— Do que está falando? — perguntou o garoto, assustado com o tom de Dumbledore, com as lágrimas repentinas em seus olhos.
— As Relíquias, as Relíquias — murmurou Dumbledore — O sonho de um homem desesperado!
— Mas elas são reais!
— Reais e perigosas, além de uma sedução para os tolos. E eu próprio fui um tolo. Mas você sabe disso, não é? Não tenho mais segredos para você. Você sabe.
— Que é que eu sei?
Dumbledore virou-se de frente para Harry e as lágrimas ainda cintilavam em seus olhos muito azuis.
— Senhor da Morte, Harry, Senhor da Morte! Em última análise, terei sido melhor que Voldemort?
— Claro que foi. Claro... como pode fazer essa pergunta? O senhor nunca matou quando pôde evitar!
— Verdade, verdade — e ele parecia uma criança precisando de reafirmação — Contudo, eu, também, busquei um modo de vencer a morte, Harry.
— Não como ele — depois de toda a sua raiva por Dumbledore, era estranho sentar ali, sob aquele teto abobadado, e defendê-lo de si mesmo — Relíquias, não Horcruxes.
— Relíquias — murmurou Dumbledore — Não Horcruxes. Exatamente.
Houve uma pausa. A criatura choramingou, mas Harry não se virou.
— Grindelwald as estava procurando também? — perguntou ele.
Dumbledore fechou os olhos por um momento e assentiu.
— Foi isso, acima de tudo, que nos aproximou — disse ele, em voz baixa — Dois rapazes inteligentes e arrogantes com uma obsessão em comum. Ele quis ir a Godric’s Hollow, como você certamente adivinhou, por causa do túmulo de Ignoto Peverell. Queria explorar o local em que o terceiro irmão falecera.
— Então, é verdade? A história toda? Os irmãos Peverell...
—... eram os três irmãos do conto — confirmou Dumbledore — Ah, sim, acho que sim. Agora, se encontraram a Morte em uma estrada deserta... acho mais provável que os irmãos Peverell fossem simplesmente bruxos talentosos e temerários que conseguiram criar esses objetos poderosos. A história de que seriam as próprias Relíquias da Morte me parece o tipo de lenda que pode ter surgido em torno de suas criações. A capa, como você agora sabe, passou durante séculos de pai para filho, de mãe para filha, até o último descendente vivo de Ignoto, que nasceu na aldeia de Godric’s Hollow.
Dumbledore sorriu para Harry.
—Eu?
— Você. Você conjecturou, eu sei, por que a capa estava em meu poder na noite em que seus pais morreram. Tiago a mostrara a mim poucos dias antes. Ela explicava muitos dos seus malfeitos, na escola, que passavam despercebidos! Mal consegui acreditar no que via. Pedi a capa emprestada para examiná-la. Havia muito tempo que desistira do meu sonho de juntar as Relíquias, mas não pude resistir, não pude deixar de vê-la de perto... era uma capa como eu jamais vira, imensamente velha, perfeita sob todos os aspectos... então seu pai morreu, e eu tinha finalmente duas Relíquias só para mim!
Seu tom era insuportavelmente amargurado.
— A capa não teria ajudado meus pais a sobreviver — apressou-se Harry a dizer — Voldemort sabia onde meu pai e minha mãe estavam. A capa não os tornaria à prova de maldição.
— Verdade — suspirou Dumbledore — Verdade.
Harry aguardou, mas o diretor não disse mais nada, então, ele o instigou.
— Então, desistiu de procurar as Relíquias quando viu a capa?
— Ah, sim — respondeu Dumbledore, com a voz fraca. Ele parecia fazer força para fitar Harry — Você sabe o que aconteceu. Você sabe. Você não pode me desprezar mais do que eu me desprezo.
— Mas eu não o desprezo...
— Então deveria — Dumbledore inspirou profundamente — Você conhece o segredo da precária saúde da minha irmã, o que aqueles trouxas fizeram, no que a transformaram. Você sabe como o meu pobre pai buscou vingança e pagou por isso, morrendo em Azkaban. Você sabe como minha mãe abriu mão da própria vida para cuidar de Ariana. Tive raiva disso, Harry.
Dumbledore confessou abertamente, friamente. Olhava agora por cima da cabeça de Harry, para longe.
— Eu era talentoso, era brilhante. Queria fugir. Queria brilhar. Queria a glória. Não me entenda mal — disse ele, e a dor perpassou o seu semblante, fazendo-o parecer novamente muito idoso — Eu os amava. Amava meus pais. Amava meu irmão e minha irmã, mas era egoísta, Harry, mais egoísta do que você, que é uma pessoa extraordinariamente generosa, poderia imaginar. Então, quando minha mãe morreu, e me deixou a responsabilidade de uma irmã incapacitada e um irmão rebelde, voltei para minha aldeia enraivecido e amargurado. Preso e desperdiçado, pensei! Então, naturalmente, ele chegou...
Dumbledore tornou a fitar Harry nos olhos.
— Grindelwald. Você não pode imaginar como as suas ideias me contagiaram, Harry, me inflamaram. Trouxas forçados à submissão. Nós, bruxos, vitoriosos. Grindelwald e eu, os jovens líderes gloriosos da revolução. Ah, eu tinha alguns escrúpulos. Aliviava a minha consciência com palavras vãs. Tudo seria para o Bem Maior, e qualquer dano causado seria compensado cem vezes em benefícios para os bruxos. Se eu sabia, no fundo do meu coração, quem era Gerardo Grindelwald? Acho que sim, mas fechei os olhos. Se os planos que estávamos fazendo viessem a frutificar, todos os meus sonhos se concretizariam. E, no cerne dos nossos projetos, as Relíquias da Morte! Como elas o fascinavam, como fascinavam a nós dois! A varinha invencível, a arma que nos conduziria ao poder! A Pedra da Ressurreição significava para ele, embora eu fingisse não saber, um exército de Inferi! Para mim, confesso, significava o retorno dos meus pais e a remoção de toda a responsabilidade dos meus ombros. E a Capa da Invisibilidade... por alguma razão, nunca a discutimos muito, Harry. Nós dois éramos capazes de nos ocultar muito bem sem a capa, cuja magia, naturalmente, é poder ser usada para proteger e escudar outros, além do seu dono. Pensei que, se algum dia a encontrássemos, ela poderia ser útil para ocultar Ariana, mas o nosso interesse na capa era apenas completar o trio, porque, dizia a lenda, o homem que reunisse os três objetos seria verdadeiramente o Senhor da Morte, e, para nós, invencível. Senhores invencíveis da Morte, Grindelwald e Dumbledore! Dois meses de insanidade, de sonhos cruéis e descaso com os dois únicos membros da família que me restavam. Então... você sabe o que aconteceu. A realidade retornou, na forma do meu irmão rude, iletrado e infinitamente mais admirável. Eu não quis ouvir as verdades que ele atirou na minha cara. Não quis ouvir que não poderia partir em busca das Relíquias levando comigo uma irmã frágil e instável. A discussão virou uma briga. Grindelwald se descontrolou. Aquilo que eu sempre percebera nele, embora fingisse não existir, revelou-se de um modo terrível. E Ariana... depois de todo o cuidado e a cautela de minha mãe... jazia morta no chão.
Dumbledore ofegou e começou a chorar profusamente. Harry estendeu a mão, e ficou contente de constatar que podia tocá-lo: apertou seu braço com força, e Dumbledore gradualmente recobrou o controle.
— Bem, Grindelwald fugiu, como todo o mundo, exceto eu, poderia ter previsto. Sumiu com os seus planos de tomar o poder e seus projetos de torturar trouxas, e seus sonhos com as Relíquias da Morte, sonhos em que eu o encorajara e ajudara. Ele fugiu, me deixando sozinho para enterrar minha irmã e aprender a viver com a minha culpa e o meu terrível pesar, o preço da minha vergonha. Os anos passaram. Correram boatos a respeito dele. Diziam que obtivera uma varinha de imenso poder. Entrementes, me ofereceram o posto de Ministro da Magia, não uma, mas várias vezes. Naturalmente, recusei. Aprendera que não seria confiável se tivesse o poder em minhas mãos.
— Mas o senhor teria sido melhor, muito melhor do que o Fudge ou o Scrimgeour! — exclamou Harry.
— Teria? — perguntou Dumbledore, abatido — Não estou muito seguro. Na adolescência, eu tinha comprovado que o poder era a minha fraqueza e a minha tentação. É uma coisa curiosa, Harry, mas talvez os que têm maior talento para o poder sejam os que nunca o buscaram. Pessoas, como você, a quem empurram a liderança e que aceitam o manto do poder porque devem, e descobrem, para sua surpresa, que lhes cai bem. Eu estava mais seguro em Hogwarts. Acho que fui um bom professor...
— O senhor foi o melhor...
— É muita bondade sua, Harry. Mas, enquanto eu me ocupava com o ensino de jovens bruxos, Grindelwald estava reunindo um exército. Diziam que tinha medo de mim, e talvez fosse verdade, mas teria menos do que eu tinha dele... Ah, não de morrer — explicou Dumbledore em resposta ao olhar indagador de Harry — Não do que ele pudesse me fazer usando a magia. Eu sabia que nos equiparávamos, talvez eu fosse até um tantinho mais talentoso. Eu temia a verdade. Entende, eu nunca soube qual de nós, naquela última luta horrenda, havia realmente lançado o feitiço que matara minha irmã. Você pode me chamar de covarde: e teria razão. Harry, eu temia mais que tudo o conhecimento de que fora eu o causador de sua morte, não apenas por causa da minha arrogância e estupidez, mas que eu, de fato, tivesse dado o golpe que lhe tirara a vida. Acho que ele sabia disso, acho que sabia o que me apavorava. Adiei o confronto com ele até que finalmente fosse demasiado vergonhoso resistir por mais tempo. As pessoas estavam morrendo, e ele parecia irrefreável, e tive que fazer o que pude. Bem, você sabe o que aconteceu a seguir. Ganhei o duelo. Ganhei a varinha.
Novo silêncio. Harry não perguntou se algum dia Dumbledore havia descoberto quem matara Ariana. Não queria saber, e menos ainda que o diretor se visse obrigado a lhe dizer. E, finalmente, ele soube o que Dumbledore teria visto no Espelho de Ojesed, e por que compreendera tão bem a fascinação que o objeto exercia sobre Harry.
Eles se sentaram em silêncio por muito tempo, e o choro da criatura às suas costas praticamente deixou de incomodar Harry.
Por fim, o garoto disse:
— Grindelwald tentou impedir que Voldemort fosse atrás da varinha. Mentiu, sabe, fingindo que nunca a tivera em seu poder.
Dumbledore assentiu, olhando para o colo, as lágrimas brilhando em seu nariz torto.
— Dizem que ele demonstrou remorso nos últimos anos, sozinho em sua cela em Nurmengard. Espero que seja verdade. Gostaria de pensar que ele percebeu o horror e a vergonha do que tinha feito. Talvez aquela mentira a Voldemort fosse a sua tentativa de compensar... de impedir que Voldemort se apossasse da Relíquia...
—... ou violasse o seu túmulo, talvez? — arriscou Harry, e Dumbledore secou as lágrimas.
Após mais um breve intervalo, Harry disse:
— O senhor tentou usar a Pedra da Ressurreição.
Dumbledore fez que sim.
— Quando a descobri, depois de tantos anos, enterrada na casa abandonada dos Gaunt, a Relíquia mais desejável de todas, embora na minha juventude eu a quisesse possuir por razões muito diversas, perdi a cabeça, Harry. Esqueci que fora transformada em Horcrux, que o anel certamente carregaria um feitiço. Apanhei-o e coloquei-o no dedo, e, por um segundo, imaginei que estava prestes a ver Ariana, minha mãe e meu pai e lhes dizer o muito que eu lamentava... fui muito tolo, Harry. Depois de tantos anos, eu não aprendera nada. Eu era indigno de unir as Relíquias da Morte, evidenciara isso repetidamente, e ali estava a prova final.
— Por quê? Era natural! Queria rever sua família. Que há de errado nisso?
— Talvez um homem em um milhão possa unir as Relíquias, Harry. Eu só merecia possuir a mais mesquinha delas, a menos extraordinária. Eu merecia possuir a Varinha das Varinhas, e não me gabar disso, e não usá-la para matar. Tinha permissão de domar e usar a varinha, porque a conquistara, não para meu ganho pessoal, mas para salvar outros do seu poder. Mas a capa, eu a tomei por mera curiosidade, por isso nunca poderia ter funcionado para mim como funciona para você, seu verdadeiro dono. A pedra, eu a teria usado na tentativa de trazer de volta aqueles que estão em paz, e não para permitir o sacrifício da minha vida, como você fez. Você é o digno possuidor das Relíquias.
Dumbledore deu uma palmadinha afetuosa na mão de Harry, e o garoto ergueu os olhos para o velho e sorriu, não pôde se conter. Como poderia continuar zangado com Dumbledore, agora?
— Por que precisou dificultar tanto as coisas?
O sorriso de Dumbledore foi trêmulo.
— Receio que tenha contado com a Srta. Granger para refreá-lo, Harry. Tive medo que sua cabeça quente pudesse dominar o seu bom coração. Senti pavor que, se lhe apresentasse logo os fatos sobre esses objetos tentadores, você pudesse se apoderar das Relíquias, como fiz, no momento errado, pelos motivos errados. Se pusesse as mãos nelas, eu queria que fossem suas sem perigo. Você é o verdadeiro Senhor da Morte, porque o verdadeiro senhor não busca fugir da morte. Ele aceita que deve morrer, e compreende que há coisas piores, muito piores do que a morte no mundo dos viventes.
— E Voldemort nunca ouviu falar nas Relíquias?
— Acho que não, porque ele não reconheceu a Pedra da Ressurreição quando a transformou em Horcrux. Mas, mesmo que tivesse ouvido falar, Harry, duvido que se interessasse por qualquer delas, exceto a primeira. Não iria achar que precisasse da capa e, quanto à pedra, quem ele iria querer ressuscitar? Ele teme os mortos. Ele não ama.
— Mas o senhor esperava que ele saísse em busca da varinha?
— Tive certeza de que tentaria, desde que a sua varinha derrotou Voldemort no cemitério de Little Hangleton. A princípio, ele receou que você o tivesse vencido por possuir maior perícia. Uma vez que sequestrou Olivaras, porém, ele descobriu a existência dos núcleos gêmeos. Achou que isso explicava tudo. Entretanto, a varinha emprestada não apresentou melhor resultado contra a sua! Então, Voldemort, em vez de se perguntar que qualidade havia em você que tornava sua varinha tão forte, que dom você possuía que lhe faltava, naturalmente saiu à procura da única varinha que, diziam, derrotaria qualquer outra. Para ele, a Varinha das Varinhas se tornara uma obsessão que rivalizava à que tinha por você. Ele acredita que a Varinha das Varinhas elimina sua última fraqueza e o torna verdadeiramente invencível. Coitado do Severo...
— Se o senhor planejou morrer nas mãos de Snape, pretendia que ele acabasse dono da varinha, não?
— Admito que tive essa intenção, mas não se realizou como eu pretendi, não é?
— Não. Essa parte saiu diferente.
A criatura às costas deles estremeceu e gemeu, e Harry e Dumbledore continuaram sentados, sem falar, fazendo a pausa mais demorada até aquele momento. A compreensão do que aconteceria a seguir foi pouco a pouco se consolidando em Harry, nesses longos minutos, como a neve caindo suavemente.
— Tenho que voltar, não é?
— Isto depende de você.
— Tenho opção?
— Ah, sim — Dumbledore sorriu — Estamos em King’s Cross, não foi o que você disse? Acho que, se decidir não voltar, você poderia... digamos... tomar um trem.
— E aonde ele me levaria?
— Em frente — respondeu Dumbledore, com simplicidade.
Novo silêncio.
— Voldemort tem a Varinha das Varinhas.
— Verdade. Voldemort tem a Varinha das Varinhas.
— Mas o senhor quer que eu volte?
— Acho que se você escolher voltar, há uma chance de que ele seja liquidado para sempre. Não posso prometer. Mas de uma coisa eu sei, Harry, você tem menos a temer do que ele ao retornarem para cá.
Harry tornou a relancear a coisa em carne viva que tremia e engasgava na sombra, sob a cadeira distante.
— Não tenha piedade dos mortos, Harry. Tenha piedade dos vivos e, acima de tudo, dos que vivem sem amor. Ao regressar, você poderá assegurar que menos almas serão mutiladas, menos famílias serão destroçadas. Se isso lhe parecer um objetivo meritório, então, por ora, diremos adeus.
Harry assentiu e suspirou. Deixar esse lugar não seria tão difícil quanto fora entrar na Floresta, mas ali era quente, claro e tranquilo, e ele sabia que estaria voltando à dor e ao temor de outras perdas. Ele se ergueu, Dumbledore o acompanhou, e os dois se fitaram demoradamente.
— Me diga uma última coisa — disse Harry — Isso é real? Ou esteve acontecendo apenas em minha mente?
Dumbledore lhe deu um grande sorriso, e sua voz pareceu alta e forte aos ouvidos de Harry, embora a névoa clara estivesse baixando e ocultando seu vulto.
— Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não é real?
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