quinta-feira, 19 de abril de 2012

Harry Potter e a Câmara Secreta - Capítulo 7







— CAPÍTULO SETE —
Sangue Ruim E Vozes Invisíveis



HARRY DEDICOU MUITO TEMPO, nos dias seguintes, a desaparecer de vista sempre que Gilderoy Lockhart aparecia andando por um corredor. Mais difícil foi evitar Colin Creevey, que parecia ter decorado o seu horário. Pelo visto nada dava maior alegria a Colin do que dizer: “Tudo bem, Harry?” seis ou sete vezes por dia e ouvir: “Oi, Colin”, em resposta, por maior irritação que Harry demonstrasse ao dizer isso.
Edwiges continuava aborrecida com Harry por causa da desastrada viagem de carro e a varinha de Rony continuava a funcionar mal, superando os próprios limites na Sexta-Feira na aula de Feitiços, ao se atirar da mão de Rony e atingir o Prof. Flitwick bem no meio dos olhos, produzindo um grande furúnculo verde e latejante no lugar em que bateu. Assim, entre uma coisa e outra, Harry ficou muito contente ao ver chegar o fim de semana. Ele, Rony e Mione estavam planejando visitar Hagrid no Sábado de manhã. Harry, porém, foi acordado muito antes da hora que pretendera pelas sacudidas de Olívio Wood, capitão do time de Quadribol da Grifinória.
— Que foi? — perguntou Harry tonto de sono.
— Prática de Quadribol! — disse Wood — Vamos!
Harry espiou pela janela apertando os olhos. Havia uma névoa rala cobrindo o céu rosa e dourado. Agora que acordara, ele não conseguia entender como podia estar dormindo com a algazarra que os passarinhos faziam.
— Olívio — disse ele com a voz rouca — O dia ainda está amanhecendo.
— Exato — respondeu Wood.
Ele era um sextanista alto e forte e, naquele instante, seus olhos brilhavam de fanático entusiasmo.
— Faz parte do nosso novo programa de treinamento. Ande, pegue a vassoura e vamos — disse Wood animado — Nenhum dos times começou a treinar ainda, vamos ser os primeiros a dar a partida este ano...
Aos bocejos e tremores, Harry saiu da cama e tentou encontrar as vestes de Quadribol.
— Muito bem — disse Wood — Te encontro no campo daqui a quinze minutos.
Depois de procurar o uniforme vermelho do time e vestir uma capa para se aquecer, Harry rabiscou um bilhete para Rony explicando onde fora e desceu a escada em caracol até a Sala Comunal, a Nimbus 2000 ao ombro. Acabara de chegar ao buraco do retrato quando ouviu um estardalhaço às suas costas, e Colin Creevey apareceu correndo escada abaixo, a máquina fotográfica balançando feito louca ao pescoço e alguma coisa segura na mão.
— Ouvi alguém dizer o seu nome na escada, Harry! Olhe só o que tenho aqui! Mandei revelar, queria lhe mostrar...
Harry examinou confuso a foto que Colin sacudia debaixo do seu nariz. Numa foto preto-e-branco, um Lockhart em movimento puxava com força um braço que Harry reconhecia como seu. Ficou satisfeito ao ver que o seu eu-fotográfico resistia bravamente e recusava a se deixar arrastar para dentro da foto. Enquanto Harry observava, Lockhart desistiu e se largou, ofegante, contra a margem branca da foto.
— Você autografa? — perguntou Colin, ansioso.
— Não — disse Harry sem rodeios, olhando para os lados para verificar se a sala estava realmente deserta — Desculpe, Colin, estou com pressa, prática de Quadribol...
E atravessou o buraco do retrato.
— Uau! Espere por mim! Nunca vi um jogo de Quadribol antes!
Colin subiu pelo buraco atrás de Harry.
— Vai ser bem chato — disse Harry depressa, mas o garoto não lhe deu atenção, seu rosto iluminava-se de excitação.
— Você foi o jogador da casa mais novo em cem anos, não foi, Harry? Não foi? — perguntou Colin, caminhando ao lado dele — Você deve ser genial. Eu nunca voei. É fácil? Esta vassoura é sua? É a melhor que existe?
Harry não sabia como se livrar do coleguinha. Era como ter uma sombra extremamente tagarela.
— Eu não entendo bem de Quadribol — disse Colin sem fôlego — É verdade que tem quatro bolas? E duas ficam voando em volta dos jogadores tentando tirá-los de cima das vassouras?
— É — disse Harry a contragosto, conformado em explicar as regras complicadas do Quadribol — Chamam-se balaços. Há dois batedores em cada time armados de bastões para rebater os balaços para longe do seu time. Fred e Jorge Weasley batem pela Grifinória.
— E para que servem as outras bolas? — perguntou Colin, derrapando dois degraus porque olhava boquiaberto para Harry.
— Bem, a goles, a bola vermelha meio grande, é a que faz os gols. Três apanhadores em cada time atiram a goles um para o outro e tentam metê-la entre as balizas na extremidade do campo, são três postes compridos com aros na ponta.
— E a quarta bola...
—... É o Pomo de Ouro — disse Harry — E é muito pequena, muito veloz e difícil de agarrar. Mas é isso que o apanhador tem que fazer, porque um jogo de Quadribol não termina até o Pomo ser capturado. E o apanhador que agarra o Pomo para o time ganha cento e cinqüenta pontos a mais.
— E você é o apanhador da Grifinória, não é? — perguntou Colin cheio de admiração e respeito.
— Sou — respondeu Harry enquanto deixavam o castelo e começavam a atravessar o gramado encharcado de orvalho — E tem o goleiro também. Ele guarda as balizas. É isso, em resumo.
Mas Colin não parou de interrogar Harry o tempo todo, desde o gramado ondulante até o campo de Quadribol, e Harry só conseguiu se desvencilhar dele quando chegou aos vestiários; Colin ainda gritou com sua voz fina quando ele se afastava.
— Vou pegar um bom lugar, Harry! — e correu para as arquibancadas.
Os outros jogadores do time da Grifinória já estavam no vestiário. Wood era o único que parecia realmente acordado. Fred e Jorge estavam sentados, os olhos inchados e os cabelos despenteados, ao lado de uma quartanista, Alicia Spinnet, que parecia estar cabeceando contra a parede em que se encostara. As outras artilheiras, suas companheiras, Cátia Bell e Angelina Johnson, bocejavam lado a lado de frente para eles.
— Até que enfim, Harry, por que demorou? — perguntou Wood eficiente — Agora, eu queria ter uma conversinha com vocês antes de irmos para o campo, porque passei o verão imaginando um programa de treinamento completamente novo, que acho que vai fazer toda a diferença...
Wood ergueu um grande diagrama de um campo de Quadribol, em que estavam desenhadas muitas linhas, setas e cruzes em tinta de cores diversas. Depois, puxou a varinha, deu uma batidinha no desenho, e as flechas começaram a se deslocar pelo diagrama como lagartas. Quando Wood deslanchou um discurso sobre as novas táticas, a cabeça de Fred Weasley despencou no ombro de Alicia Spinnet e ele começou a roncar.
O primeiro quadro levou quase vinte minutos para ser explicado, mas havia outro por baixo daquele, e um terceiro por baixo do segundo. Harry mergulhou num estupor durante a falação interminável de Wood.
— Então — disse Wood, finalmente, arrancando Harry de uma irrealizável fantasia sobre o que estaria comendo no café da manhã, naquele instante, no castelo — Ficou claro? Alguma pergunta?
— Tenho uma pergunta, Olívio — disse Jorge, que acordara assustado — Você não podia ter explicado tudo isso ontem quando a gente estava acordado?
Wood não gostou.
— Agora, ouçam aqui, vocês todos — disse, amarrando a cara — Nós devíamos ter ganho a Taça de Quadribol no ano passado. Somos sem favor nenhum o melhor time da escola. Mas, infelizmente, devido a circunstâncias fora do nosso controle...
Harry se mexeu cheio de culpa no banco. Estivera inconsciente na Ala Hospitalar no último jogo do ano anterior, o que significava que a Grifinória tivera um jogador a menos e sofrera sua pior derrota em trezentos anos. Wood esperou um instante para recuperar o próprio controle. A última derrota, visivelmente, continuava a torturá-lo.
— Então, este ano, vamos treinar mais do que jamais treinamos... muito bem, vamos colocar as nossas teorias em prática! — gritou Wood, agarrando a vassoura e saindo do vestiário.
As pernas dormentes e, ainda bocejando, o time o acompanhou. Tinham passado tanto tempo no vestiário que o sol já estava todo de fora, embora ainda se vissem restos de névoa sobre o gramado do estádio.
Quando Harry entrou em campo, viu Rony e Mione sentados nas arquibancadas.
— Vocês ainda não acabaram? — gritou Rony surpreso.
— Nem começamos — respondeu Harry, olhando com inveja a torrada com geléia que Rony e Mione tinham trazido do Salão — Wood esteve ensinando novas jogadas ao time.
Ele montou na vassoura, meteu o pé no chão para dar impulso e saiu voando. O ar frio da manhã bateu em seu rosto, acordando-o com muito mais eficiência do que a longa conversa de Wood. Era uma sensação maravilhosa estar de volta a um campo de Quadribol. Harry sobrevoou o estádio a toda velocidade, apostando corrida com Fred e Jorge.
— Que clique-clique esquisito é esse? — gritou Fred enquanto faziam uma volta rápida.
Harry olhou para as arquibancadas. Colin estava sentado em um dos lugares mais altos, a máquina fotográfica levantada, tirando fotos seguidas, o som estranhamente ampliado no estádio deserto.
— Olhe para cá, Harry! Para cá! — gritava se esganiçando.
— Quem é aquele? — perguntou Fred.
— Não faço a menor ideia — mentiu Harry dando uma bombeada na vassoura que o levou o mais longe possível de Colin.
— Que é que está acontecendo? — perguntou Wood, franzindo a testa, enquanto cortava o ar em direção a eles — Por que aquele aluninho de primeiro ano está tirando fotos? Não gosto disto. Pode ser um espião da Sonserina, tentando descobrir o nosso novo programa de treinamento.
— Ele é da Grifinória — informou Harry depressa.
— E o pessoal da Sonserina não precisa de espião, Olívio — acrescentou Jorge.
— Por que você está dizendo isso? — perguntou Wood irritado.
— Porque eles vieram pessoalmente — respondeu Jorge apontando.
Vários alunos de vestes verdes estavam entrando em campo, de vassouras na mão.
— Eu não acredito! — sibilou Wood indignado — Reservei o campo para hoje! Vamos cuidar disso.
Wood mergulhou até o chão, aterrissando em sua raiva, com muito mais força do que pretendia, e cambaleou um pouco ao desmontar. Harry, Fred e Jorge o acompanharam.
— Flint! — berrou Wood para o capitão da Sonserina — Está na hora do nosso treino! Levantamos especialmente para isso!
— Pode ir dando o fora!
Marcos Flint era ainda mais corpulento do que Wood. Tinha uma expressão de trasgo astucioso quando respondeu:
— Tem bastante espaço para todos nós, Wood.
Angelina, Alicia e Katie tinham se aproximado também. Não havia mulheres no time da Sonserina, para ficarem, ombro a ombro, com ar de desdém, encarando os jogadores da Grifinória.
— Mas eu reservei o campo! — disse Wood, praticamente cuspindo de raiva — Eu reservei!
— Ah, mas tenho um papel aqui assinado pelo Prof. Snape.

Eu, Prof. Snape, dei ao time da Sonserina permissão para praticar hoje no campo de Quadribol, face á necessidade de treinarem o seu novo apanhador.

— Vocês têm um novo apanhador? — perguntou Wood, distraído — Onde?
E por trás dos seis jogadores grandalhões surgiu diante deles um sétimo, menor, com um sorriso que se irradiava por todo o rosto pálido e fino.
Era Draco Malfoy.
— Você não é o filho do Lúcio Malfoy? — perguntou Fred, olhando Draco com ar de desagrado.
— Engraçado você mencionar o pai do Draco — disse Flint enquanto o time inteiro da Sonserina sorria com mais prazer — Deixe eu mostrar a vocês o presente generoso que ele deu ao time da Sonserina.
Os sete mostraram as vassouras. Sete cabos polidos, novos em folha, e sete conjuntos de letras douradas, formando as palavras Nimbus 2001, reluziam sob os narizes dos jogadores da Grifinória, ao sol do amanhecer.
— Último modelo. Saiu no mês passado — disse Flint displicente, tirando um grão de poeira da ponta de sua vassoura com um peteleco — Acho que bate de longe a série antiga das 2000. Quanto às velhas Cleansweep — e sorriu de modo desagradável para Fred e Jorge, que seguravam esse tipo de vassoura — Varrem o placar com elas.
Nenhum dos jogadores da Grifinória conseguiu pensar em nada para dizer naquele instante. Draco exibia um sorriso tão grande que seus olhos frios estavam reduzidos a fendas.
— Ah, olha ali — disse Flint — Uma invasão de campo.
Rony e Mione vinham atravessando o gramado para ver o que estava acontecendo.
— Que é que está havendo? — perguntou Rony a Harry — Por que vocês não estão jogando? E que é que ele está fazendo aqui?
Olhava para Draco, reparando nas vestes de Quadribol com as cores da Sonserina que o garoto usava.
— Sou o novo apanhador da Sonserina, Weasley — disse Draco, presunçoso — O pessoal aqui está admirando as vassouras que meu pai comprou para o nosso time.
Rony olhou, boquiaberto, as sete magníficas vassouras diante dele.
— Boas, não são? — disse Draco com a voz macia — Mas quem sabe o time da Grifinória pode levantar um ourinho e comprar vassouras novas, também. Você podia fazer uma rifa dessas Cleansweep 5, imagino que um museu talvez queira comprá-las.
O time da Sonserina dava gargalhadas.
— Pelo menos ninguém do time da Grifinória teve de pagar para entrar — disse Mione com aspereza — Entraram por puro talento.
O ar presunçoso de Draco pareceu oscilar.
— Ninguém pediu sua opinião, sua sujeitinha de Sangue Ruim. — xingou ele.
Harry percebeu na hora que Draco dissera uma coisa realmente ofensiva, porque houve um tumulto instantâneo em seguida às suas palavras. Flint teve que mergulhar na frente de Draco para impedir que Fred e Jorge se atirassem contra ele. Alicia gritou com voz aguda “Como é que você se atreve!”, e Rony mergulhou a mão nas vestes, puxou a varinha e gritou:
— Você vai me pagar! — e apontou a varinha, furioso, para a cara e Draco, por baixo do braço de Flint.
Um estrondo muito forte ecoou pelo estádio, e um jorro de luz verde saiu da ponta oposta da varinha de Rony, atingiu-o na barriga e o atirou de costas na grama.
— Rony! Rony! Você está bem? — gritou Mione.
Rony abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Em vez disso, ele soltou um poderoso arroto e várias lesmas caíram de sua boca para o colo. O time da Sonserina ficou paralisado de tanto rir. Flint, dobrado pela cintura, tentava se apoiar na vassoura nova. Draco caíra de quatro, dando murros no chão. Os alunos da Grifinória agrupavam-se em torno de Rony, que não parava de arrotar lesmas enormes. Ninguém parecia querer tocar nele.
— É melhor levarmos o Rony para a casa de Hagrid, é mais perto — disse Harry a Mione, que concordou cheia de coragem, e os dois levantaram o amigo pelos braços.
— Que aconteceu, Harry? Que aconteceu? Ele está doente? Mas você pode curá-lo, não pode? — Colin descera correndo das arquibancadas e agora dançava em volta dos meninos que saíam de campo.
Rony deu um enorme suspiro e mais lesmas rolaram pelo seu peito.
— Aaah — exclamou Colin, fascinado, erguendo a máquina fotográfica — Pode manter ele parado, Harry?
— Sai da frente, Colin! — disse Harry com raiva. Ele e Mione carregaram Rony para fora do estádio e atravessaram os jardins em direção à orla da floresta.
— Estamos quase lá, Rony — disse Mione quando a cabana do guarda-caça tornou-se visível — Você vai ficar bom num instante, estamos quase chegando...
Estavam a uns cinco metros da casa de Hagrid quando a porta de entrada se abriu, mas não foi Hagrid que apareceu. Gilderoy Lockhart, hoje com vestes lilás clarinho, vinha saindo.
— Depressa, aqui atrás — sibilou Harry, arrastando Rony para trás de uma moita próxima.
Mione seguiu-o, um tanto relutante.
— É muito simples se você sabe o que está fazendo! — Lockhart dizia em voz alta a Hagrid — Se precisar de ajuda, você sabe onde estou! Vou-lhe dar uma cópia do meu livro. Estou surpreso que ainda não o tenha comprado: vou autografar um exemplar hoje à noite e mandar para você. Bom, adeus.
E saiu em direção ao castelo.
Harry esperou até Lockhart desaparecer de vista, então puxou Rony da moita até a porta de Hagrid. Bateram apressados. Hagrid abriu na mesma hora, parecendo muito rabugento, mas seu rosto se iluminou quando viu quem era.
— Estive pensando quando é que vocês viriam me ver, entrem, entrem, achei que podia ser o Prof. Lockhart outra vez...
Harry e Mione ajudaram Rony a entrar na cabana sala e quarto, que tinha uma cama enorme em um canto, uma lareira com um fogo vivo no outro.
Hagrid não pareceu perturbado com o problema das lesmas de Rony, que Harry explicou em poucas palavras enquanto baixava o amigo em uma cadeira.
— Melhor para fora do que para dentro — disse Hagrid animado, baixando com ruído uma grande bacia de cobre na frente do menino — Ponha todas para fora, Rony.
— Acho que não há nada a fazer exceto esperar que a coisa passe — disse Mione ansiosa, observando Rony se debruçar na bacia — É um feitiço difícil de fazer em condições ideais, ainda mais com uma varinha quebrada...
Hagrid ocupou-se pela cabana preparando chá para os meninos. Seu cão de caçar javalis, Canino, fazia festas a Harry, sujando-o todo.
— Que é que Lockhart queria com você, Hagrid? — perguntou Harry, coçando as orelhas de Canino.
— Estava me dando conselhos para manter um poço livre de algas — rosnou Hagrid, tirando um galo meio depenado de cima da mesa bem esfregada e pousando nela o bule de chá — Como se eu não soubesse. E ainda fez farol sobre um espírito agourento que ele espantou. Se uma única palavra do que disse for verdade eu como a minha chaleira.
Não era hábito de Hagrid criticar professores de Hogwarts, e Harry olhou-o surpreso. Mione, porém, disse num tom mais alto do que de costume:
— Acho que você está sendo injusto. É óbvio que o Prof. Dumbledore achou que ele era o melhor candidato para a vaga...
— Ele era o único candidato — disse Hagrid, oferecendo-lhes um prato de quadradinhos de chocolate, enquanto Rony tossia e vomitava na bacia — E quero dizer o único mesmo. Está ficando muito difícil encontrar alguém para ensinar Defesa Contra as Artes das Trevas. As pessoas não andam muito animadas para assumir esta função. Estão começando a achar que esta enfeitiçada. Ultimamente ninguém demorou muito nela. Agora me contem — disse Hagrid, indicando Rony com a cabeça — Quem é que ele estava tentando enfeitiçar?
— Malfoy chamou Mione de alguma coisa, deve ter sido muito ruim porque ele ficou furioso.
— Foi ruim — disse Rony, rouco, erguendo-se, lívido e suado, até a superfície da mesa — Malfoy chamou Mione de Sangue Ruim, Hagrid...
Rony tornou a sumir debaixo da mesa e um novo jorro de lesmas caiu.
Hagrid pareceu indignado.
— Ele não fez isso!
— Fez sim — confirmou Mione — Mas eu não sei o que significa. Percebi que era uma grosseria muito grande, é claro...
— É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer — ofegou Rony, voltando — Sangue Ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam de Sangue Puro — ele deu um pequeno arroto, e uma única lesma caiu em sua mão estendida. Ele a atirou à bacia e continuou — Quero dizer, nós sabemos que isso não faz a menor diferença. Olha só o Neville Longbottom, ele tem Sangue Puro e sequer consegue pôr um caldeirão em pé do lado certo.
— E ainda não inventaram um feitiço que a nossa Mione não saiba fazer — disse Hagrid orgulhoso, fazendo Mione ficar púrpura de tão corada.
— É uma coisa revoltante chamar alguém de... — começou Rony, enxugando a testa suada com a mão trêmula — Sangue sujo, sabe. Sangue comum. É ridículo. A maioria dos bruxos hoje em dia é mestiça. Se não tivéssemos casado com trouxas teríamos desaparecido da Terra.
Ele teve uma ânsia de vômito e tornou a desaparecer de vista.
— Bem, não posso censurá-lo por querer enfeitiçar Draco — disse Hagrid alto para encobrir o barulho das lesmas que caíam na bacia — Mas talvez tenha sido bom a sua varinha ter errado. Acho que Lúcio Malfoy viria na mesma hora à escola se você tivesse enfeitiçado o filho dele. Pelo menos você não se meteu em apuros.
Harry teria gostado de lembrar que o apuro não podia ser pior do que ter lesmas saindo da boca, mas não pôde; os quadradinhos de chocolate de Hagrid tinham grudado seus maxilares.
— Harry — disse Hagrid abruptamente como se tivesse lhe ocorrido um pensamento repentino — Tenho uma reclamação sobre você. Ouvi falar que andou distribuindo fotos autografadas. Como é que não ganhei nenhuma?
Furioso, Harry desgrudou os dentes.
— Não andei distribuindo fotos autografadas — disse alterado — Se Lockhart continua a espalhar este boato...
Mas, então, ele viu que Hagrid estava rindo.
— Só estou brincando — disse, dando palmadinhas amigáveis nas costas de Harry, fazendo-o enfiar a cara na mesa — Eu sabia que não tinha dado. Eu disse a Lockhart que você não precisava fazer isso. Você é mais famoso do que ele sem fazer a menor força.
— Aposto como ele não gostou disso — comentou Harry erguendo a cabeça e esfregando o queixo.
— Acho que não — respondeu Hagrid, com os olhos cintilando — E então falei que nunca tinha lido um livro dele e ele resolveu ir embora. Quadradinhos de chocolate, Rony? — acrescentou, ao ver Rony reaparecer.
— Não, obrigado — disse o menino, fraco — É melhor não.
— Venham ver o que andei plantando — convidou Hagrid quando Harry e Mione terminaram de beber o chá.
Na pequena horta nos fundos da casa havia uma dúzia das maiores abóboras que Harry já vira. Cada uma tinha o tamanho de um pedregulho.
— Estão crescendo bem, não acha? — perguntou Hagrid alegre — Para a Festa das Bruxas... até lá já devem estar bem grandes.
— Que é que você está pondo na terra? — perguntou Harry.
Hagrid espiou por cima do ombro para ver se estavam sozinhos.
— Bom, tenho dado, sabe, uma ajudinha...
Harry reparou no guarda-chuva florido de Hagrid encostado na parede dos fundos da cabana. Harry sempre tivera razões para acreditar até aquele momento que aquele guarda-chuva não era bem o que parecia. Na verdade, tinha a forte impressão de que a velha varinha escolar de Hagrid se escondia dentro dele. O guarda-caça fora expulso de Hogwarts no terceiro ano, mas Harry nunca descobrira a razão. Era só mencionar o assunto, e ele pigarreava alto e se tornava misteriosamente surdo até que se mudasse de assunto.
— Um feitiço de engorda? — perguntou Mione, num tom de quem se diverte e desaprova — Bem, você fez um bom trabalho.
— Foi o que a sua irmãzinha disse — comentou Hagrid, fazendo sinal a Rony —Encontrei-a ainda ontem.
Hagrid olhou de esguelha para Harry, a barba mexendo.
— Ela me disse que estava só dando uma olhada pelos jardins, mas eu calculo que estava na esperança de encontrar alguém na minha casa — e piscou para Harry — Se alguém me perguntasse, ela é uma que não recusaria uma foto...
— Ah, cala a boca — disse Harry.
Rony deu uma risada abafada e o chão ficou cheio de lesmas.
— Cuidado! — rugiu Hagrid, puxando Rony para longe das suas preciosas abóboras.
Era quase hora do almoço e como Harry só comera uns quadradinhos de chocolate desde o amanhecer, estava doido para voltar à escola e almoçar. Eles se despediram de Hagrid e regressaram ao castelo. Rony tossia de vez em quando, mas só vomitou duas lesminhas. Mal tinham entrado no saguão quando ouviram uma voz.
— Aí estão vocês, Potter, Weasley.
A Profª. McGonagall veio em direção a eles, com a cara séria.
— Vocês dois vão cumprir suas detenções hoje à noite.
— O que nós faremos, professora? — perguntou Rony, contendo, nervoso, um arroto.
— Você vai polir as pratas na sala de troféus com o Sr. Filch. E nada de magia, Weasley, no muque.
Rony engoliu em seco. Argos Filch, o zelador, era detestado por todos os alunos da escola.
— E você, Potter, vai ajudar o Prof. Lockhart a responder as cartas dos fãs.
— Ah, não... professora, não posso ir também para a sala de troféus? — perguntou Harry desesperado.
— É claro que não — respondeu ela, erguendo as sobrancelhas — O Prof. Lockhart fez questão de que fosse você. Oito horas em ponto, os dois.
Harry e Rony entraram curvados no Salão Principal, no pior estado de ânimo possível, Hermione atrás deles, com aquela expressão Bom-Vocês-Desobedeceram-O-Regulamento. Harry nem apreciou o empadão tanto quanto pretendera. Os dois, ele e Rony, acharam que tinham se dado muito mal.
— Filch vai me prender lá a noite inteira — disse Rony, com a voz deprimida — Nada de magia! Deve ter umas cem taças naquela sala. Não entendo nada de limpeza de trouxas.
— Eu trocaria com você numa boa — disse Harry num tom calmo — Treinei um bocado com os Dursley. Responder as cartas dos fãs de Lockhart... ele vai ser um pesadelo...

* * *

À tarde de Sábado pareceu se evaporar no que pareceu um segundo, já eram cinco para as oito, e Harry já ia se arrastando pelo corredor do segundo andar em direção à sala de Lockhart. Cerrou os dentes e bateu na porta. A porta se escancarou na mesma hora.
Lockhart sorria para ele.
— Ah, aqui temos o bagunceiro! — exclamou — Entre, Harry.
Rebrilhando nas paredes, à luz das muitas velas, havia uma quantidade de fotografias emolduradas de Lockhart. Havia até algumas autografadas. Outra grande pilha aguardava sobre a mesa.
— Você pode endereçar os envelopes! — disse Lockhart a Harry como se isso fosse um prêmio — O primeiro vai para Gladys Gudgeon, que Deus a abençoe, uma grande fã minha...
Os minutos se arrastaram. Harry deixou a voz de Lockhart passar por ele, respondendo ocasionalmente “Hum” e “Certo” e “Sim”. Vez por outra, ele captava uma frase do tipo “A fama é uma amiga infiel, Harry” ou “A celebridade é o que ela faz, lembre-se disto”.
As velas foram se consumindo, fazendo a luz dançar sobre os muitos rostos de Lockhart que o observavam. Harry estendeu a mão dolorida para o que lhe pareceu ser o milésimo envelope, e escreveu o endereço de Verônica Smethley. Deve estar quase na hora de sair, pensou Harry infeliz, Por favor, tomara que esteja quase na hora...
Então ele ouviu uma coisa... uma coisa muito diferente do ruído das velas que espirravam já no finzinho e a tagarelice de Lockhart sobre os fãs. Foi uma voz, uma voz de congelar o tutano dos ossos, uma voz venenosa e gélida de tirar o fôlego.
— Venha... venha para mim... me deixe rasgá-lo... me deixe rompê-lo... me deixe matá-lo...
Harry deu um enorme pulo e, com isso, fez aparecer um enorme borrão na Rua de Verônica Smethley.
— Que! — exclamou em voz alta.
— Eu sei! — disse Lockhart — Seis meses inteiros encabeçando a lista dos livros mais vendidos! Bati todos os recordes!
— Não — disse Harry assustado — Essa voz!
— Perdão? — disse Lockhart, parecendo intrigado — Que voz?
— Aquela, a voz que disse... o senhor não ouviu?
Lockhart estava olhando para Harry muito surpreso.
— Do que é que você está falando, Harry? Talvez você esteja ficando com sono? Nossa, olhe só a hora! Estamos aqui há quase quatro horas! Eu nunca teria acreditado, o tempo voou, não acha?
Harry não respondeu. Apurava os ouvidos para captar novamente a voz, mas não havia som algum exceto Lockhart a lhe dizer que não devia esperar uma moleza como aquela todas as vezes que pegasse uma detenção. Sentindo-se atordoado, Harry foi-se embora.
Era tão tarde que a Sala Comunal da Grifinória estava quase vazia. Harry subiu direto ao dormitório. Rony ainda não voltara. Harry vestiu o pijama, meteu-se na cama e esperou. Meia hora depois, Rony apareceu, aconchegando o braço direito e trazendo um forte cheiro de liquido de polimento para o quarto escuro.
— Os meus músculos estão em cãibra — gemeu, afundando-se na cama — Catorze vezes ele me fez dar brilho naquela Taça de Quadribol antes de ficar satisfeito. E tive mais um acesso de lesmas em cima de um Prêmio Especial por Serviços Prestados à Escola. Levou séculos para retirar as lesmas... como foi com o Lockhart?
Em voz baixa para não acordar Neville, Dino e Simas, Harry contou a Rony exatamente o que ouvira.
— E Lockhart disse que não estava ouvindo nada? — perguntou Rony. Harry podia até vê-lo franzindo a testa ao luar — Você acha que ele estava mentindo? Mas não entendo, mesmo alguém invisível teria tido que abrir a porta.
— Eu sei — disse Harry, recostando-se na cama de colunas e fixando o olhar no dossel — Eu também não entendo.








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