terça-feira, 6 de março de 2012

O PODEROSO CHEFÃO - CAPÍTULO 23



CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 14 ANOS

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LIVRO
VI



CAPÍTULO
23


D
EPOIS DE CINCO MESES de exílio na Sicília, Michael Corleone começou finalmente a compreender o caráter do pai e o seu destino. Começou a compreender homens como Luca Brasi, o implacável caporegime Clemenza, a resignação da mãe e a aceitação do papel dela. Pois na Sicília viu o que eles teriam sido se tivessem resolvido não lutar contra o destino. Compreendeu por que Don Corleone sempre dizia: “O homem tem apenas um destino”.
Começou a compreender o desprezo pela autoridade e pelo governo legal, o ódio por qualquer homem que infringisse a omertà, a lei do silêncio.
Vestido em roupas velhas e usando um gorro de bico, Michael fora transportado do navio atracado em Palermo para o interior da Sicília, para o próprio centro da província controlada pela Máfia, onde o capo-mafioso local tinha uma grande dívida para com o seu pai por algum serviço feito no passado. A província continha a cidade de Corleone, cujo nome o pai adotara quando emigrara para a América há bastante tempo. Mas não havia mais nenhum parente vivo de Don Corleone. As mulheres tinham morrido de velhice. Todos os homens haviam sido assassinados em vendettas ou então tinham emigrado para a América, para o Brasil ou para qualquer outra província da Itália. Ele aprenderia mais tarde que essa pequena cidade tão pobre tinha o índice de homicídio mais alto do que qualquer outro lugar do mundo.
Michael foi instalado como hóspede na casa de um tio solteiro do capo-mafioso. O tio, nos seus setenta anos de idade, era também o médico do bairro. O capo-mafioso era um homem já beirando os sessenta anos de idade chamado Don Tommasino e exercia a atividade de gabbellotto de uma grande propriedade pertencente a uma das famílias mais nobres da Sicília. O gabbellotto, uma espécie de administrador das propriedades dos ricos, também garantia que os pobres não tentariam reclamar a terra que não estava sendo cultivada, não tentariam invadir de qualquer maneira a propriedade, instalando-se sorrateiramente ali como posseiros. Em suma, o gabbellotto era um mafioso que por uma certa soma de dinheiro protegia os bens imóveis dos ricos contra qualquer reivindicação, legal ou ilegal, feita pelos pobres. Quando qualquer camponês pobre tentava executar a lei que lhe permitia comprar a terra não-cultivada, o gabbellotto intimidava-o com ameaças de dano físico ou morte. A coisa era assim bem simples.
Don Tommasino também controlava os direitos da água da região e vetava a construção local de qualquer represa nova pelo governo de Roma. Tais represas arruinariam o negócio lucrativo de vender a água dos poços artesianos que ele controlava, tornariam a água muito barata, arruinariam a importantíssima economia da água tão laboriosamente construída durante centenas de anos. Contudo, Don Tommasino era um chefe antiquado da Máfia e nada teria a ver com o tráfico de entorpecentes ou prostituição. Nisso Don Tommasino estava em desavença com a nova geração de líderes da Máfia que surgiam nas grandes cidades como Palermo, homens novos que, influenciados pelos gangsters americanos deportados para a Itália, não tinham tais escrúpulos.
O chefe da Máfia era um homem extremamente imponente, um “homem de tutano”, literalmente como também no sentido figurado isso significava: um homem capaz de inspirar medo nos seus semelhantes. Sob a sua proteção, Michael nada podia recear, contudo era considerado necessário manter em segredo a identidade do fugitivo. E assim Michael vivia confinado na propriedade murada do Dr. Taza, o tio de Don Tommasino.
O Dr. Taza era um homem alto para um siciliano, mais de 1,80m, e tinha faces rosadas e cabelo branco. Embora nos seus setenta anos de idade, ia toda semana a Palermo prestar sua homenagem às mais jovens prostitutas daquela cidade, quanto mais jovens, melhor. O outro vício do Dr. Taza era a leitura. Ele lia tudo e falava sobre o que lia aos seus concidadãos, camponeses analfabetos, que trabalhavam como pastores da propriedade, e isso lhe dava uma reputação local de tolo. Que tinham os livros a ver com eles?
À noite, o Dr. Taza, Don Tommasino e Michael sentavam-se no imenso jardim povoado daquelas estátuas de mármore que nessa ilha pareciam emergir do chão de modo tão mágico quanto as uvas obstinadamente pretas. O Dr. Taza gostava de contar histórias sobre a Máfia e as suas explorações através dos séculos, e Michael Corleone era um ouvinte fascinado. Havia vezes em que mesmo Don Tommasino se deixava levar pelo ar refrescante, pelo vinho embriagador e feito puramente de uva, pelo elegante e tranqüilo conforto do jardim, e contava uma história baseada em sua própria experiência prática. O doutor era a lenda, o Don era a realidade.
Em seu antigo jardim, Michael Corleone descobriu as raízes de onde proviera seu pai. Que a palavra “Máfia” originalmente significava lugar de refúgio. Depois tornou-se o nome de uma organização secreta que surgiu para lutar contra os diligentes que haviam esmagado o país e seu povo durante séculos. A Sicília era uma terra que havia sido mais cruelmente martirizada do que qualquer outra na história. A Inquisição torturara igualmente pobres e ricos. Os barões proprietários de terras e os príncipes da Igreja Católica exerciam o poder absoluto sobre os pastores e agricultores. A polícia era o instrumento do seu poder e se achava tão identificada com eles que chamar alguém de policial é o maior insulto que um siciliano pode pronunciar contra outro.
Ante a selvageria desse poder absoluto, o povo sofredor aprendeu a nunca trair sua raiva e seu ódio com medo de ser esmagado. Aprendeu a nunca se tornar vulnerável pronunciando qualquer sorte de ameaça, já que dar tal aviso era garantir uma represália rápida. Aprendeu que a sociedade era inimiga dele e assim quando alguém queria vingar agravos ia ao subterrâneo rebelde, a Máfia. E a Máfia consolidou o seu poder dando origem à lei do silêncio, a omertà. Na zona rural da Sicília, um forasteiro pedindo informação sobre a cidade mais próxima não receberá nem a cortesia de uma resposta. E o maior crime que qualquer membro da Máfia podia cometer era dizer à polícia o nome do homem que o baleou ou lhe fez qualquer espécie de dano. A omertà se tornou a religião do povo. A mulher cujo marido foi assassinado não dirá à polícia o nome do assassino do marido, nem mesmo o do assassino do seu filho, o do violentador de sua filha.
A justiça nunca vinha por parte das autoridades e assim o povo sempre recorrera à Máfia de Robin Hood. E até certo ponto, a Máfia ainda cumprira esse papel. O povo se voltava para o seu capo-mafioso local em busca de auxílio, em qualquer emergência. Ele era o seu assistente social, o seu delegado de distrito que estava à sua disposição mediante uma cesta de comida e um emprego, o seu protetor.
Mas o que o Dr. Taza não acrescentou, o que Michael aprendeu por sua própria conta, nos meses que se seguiram, foi que a Máfia na Sicília se tornara a arma ilegal dos ricos e até a polícia auxiliar da estrutura política e jurídica. Tornara-se uma estrutura capitalista degenerada, anticomunista, antiliberal, cobrando os seus próprios tributos de toda forma de esforço comercial, por menor que fosse.
Michael Corleone compreendeu pela primeira vez por que homens como o seu pai haviam optado por serem ladrões e assassinos em lugar de membros da sociedade legal. A pobreza, o medo e a degradação eram tão grandes que não podiam ser aceitos por alguém de consciência. E na América muitos imigrantes sicilianos acreditavam que lá a autoridade seria igualmente cruel.
O Dr. Taza ofereceu-se para levar Michael a Palermo em sua visita semanal ao bordel, mas Michael recusou. A sua fuga para a Sicília o impedira de fazer o tratamento médico adequado para a sua fratura do rosto e ele agora trazia uma lembrança do Capitão McCluskey na face esquerda. Os ossos uniram-se defeituosamente, lançando o seu perfil obliquamente, dando-lhe a aparência de depravação quando se olhava desse lado. Ele sempre fora vaidoso a respeito de sua aparência e isso o atormentava mais do que podia imaginar. A dor que ia e vinha não o preocupava absolutamente, o Dr. Taza dera-lhe algumas pílulas que a amorteciam. Taza ofereceu-se para tratar-lhe o rosto, mas Michael recusou. Ele já estava ali há bastante tempo para saber que o Dr. Taza era talvez o pior médico da Sicília. O Dr. Taza lia tudo, menos literatura médica, que ele admitia não conseguir entender. Passara nos exames da faculdade graças aos bons ofícios do mais importante chefe da Máfia na Sicília que fizera uma viagem especial a Palermo para conferenciar com os professores de Taza sobre as notas que deviam dar a ele. E isso também mostrava como a Máfia na Sicília era grandemente prejudicial à sociedade que ali habitava. O mérito nada significava. O talento nada significava. O trabalho nada significava. O Padrinho da Máfia outorgava à pessoa uma profissão como um presente.
Michael teve bastante tempo para pensar. Durante o dia, dava um passeio pelo campo, sempre acompanhado de dois dos pastores ligados às propriedades de Don Tommasino. Os pastores da ilha eram ás vezes recrutados para agir como assassinos contratados pela Máfia e faziam isso simplesmente para ganhar dinheiro para viver. Michael pensou na organização do pai. Se ela continuasse a progredir, acabaria tornando-se no que ocorrera ali naquela ilha, acabaria tornando-se grandemente prejudicial que destruiria todo o país. A Sicília já era uma terra de fantasmas, seus homens emigrando para muitos outros países, a fim de poder ganhar o pão, ou simplesmente para escaparem de ser assassinados por exercerem suas liberdades política e econômica.
Em suas longas caminhadas, a coisa que mais o impressionava era a beleza magnífica daquela terra; ele andava pelos laranjais que formavam profundas cavernas sombreadas através do campo com os seus condutos despejando água pelas bocas providas de presas das pedras de grandes cobras escavadas antes de Cristo. Casas construídas como antigas villas romanas, com enormes portais de mármore e grandes salas abobadadas, caindo em ruínas ou habitadas por ovelhas extraviadas. No horizonte, as colinas nuas brilhavam como ossos branqueados escolhidos e empilhados em posição vertical. Jardins e campos, cintilantemente verdes, adornavam a paisagem deserta como brilhantes colares de esmeraldas. E às vezes ele ia caminhando até a cidade de Corleone, com seus 18.000 habitantes enfileirados em moradias nas faldas da montanha mais próxima, casas miseráveis construídas com a pedra preta arrancada daquela montanha. No último ano, tinha havido mais de 60 assassinatos em Corleone e parecia que a morte toldava a cidade. Mais adiante, a floresta de Ficuzza quebrava a selvagem monotonia da planície arável.
Os dois pastores guarda-costas sempre levavam consigo suas luparas quando acompanhavam Michael em seus passeios. A mortífera espingarda siciliana era a arma favorita da Máfia. Na verdade, o chefe de polícia enviado por Mussolini para limpar a Sicília da Máfia tinha, como uma de suas primeiras medidas, ordenado que todos os muros de pedra da Sicília fossem reduzidos a uma altura não superior a um metro para que os assassinos com suas luparas não pudessem usar tais muros como pontos de emboscadas para os seus crimes. Isso não ajudou muito e o ministro da polícia resolveu o problema prendendo e deportando para as colônias penais todo indivíduo suspeito de ser mafioso.
Quando a ilha da Sicília foi libertada pelos exércitos aliados, os funcionários do governo militar americano acreditavam que toda pessoa aprisionada pelo regime fascista era um democrata e muitos desses mafiosos foram nomeados prefeitos de aldeias ou intérpretes do governo militar. Essa boa sorte contribuiu para que a Máfia se reconstituísse e se tornasse mais poderosa ainda do que fora antes.
As longas caminhadas, uma garrafa de vinho forte, de noite, com um bom prato de massas e carne, faziam Michael dormir bem. Havia livros em italiano na biblioteca do Dr. Taza, e embora Michael falasse dialeto italiano e tivesse feito alguns cursos de italiano, a leitura desses livros custava-lhe bastante esforço e tempo. A sua fala ficou quase sem sotaque, e embora ele nunca pudesse passar como natural daquele lugar, podia-se acreditar que fosse um desses estranhos italianos do extremo norte do país, que faz fronteira com a Suíça e Alemanha.
A distorção do lado esquerdo do rosto tornou-o ainda mais parecido com os naturais da terra. Era o tipo da desfiguração comum na Sicília devido à falta de assistência médica ou, simplesmente, à carência de dinheiro. Muitas crianças e muitos homens traziam desfigurações que na América seriam corrigidas por uma pequena operação ou por tratamentos médicos especializados.
Michael, às vezes, pensava em Kay, no seu sorriso, no seu corpo, e sempre sentia um pouco de remorso por tê-la deixado tão brutalmente sem uma palavra de despedida. Bastante estranho é que a sua consciência jamais doera por ter matado aqueles dois homens; Sollozzo tentara matar-lhe o pai, o Capitão McCluskey o desfigurara para toda a vida.
O Dr. Taza sempre insistia com ele para que fizesse uma operação no seu rosto torto, especialmente quando Michael lhe pedia remédios para aliviar a dor, que se tornava cada vez pior e mais freqüente à medida que o tempo passava. Taza explicou que havia um nervo facial por baixo do olho do qual se irradiava um complexo de nervos. Na verdade, este era o ponto preferido pelos torturadores da Máfia, que o procuravam atingir nas faces de suas vítimas com um furador de gelo de ponta bem fina. Esse nervo no rosto de Michael tinha sido atingido ou talvez houvesse um fragmento de osso perfurado nele. Uma operação num hospital de Palermo aliviaria definitivamente a dor.
Michael recusou. Quando o médico perguntou por que, Michael arreganhou os dentes e respondeu:
— É uma coisa que trago comigo de casa.
Ele não se importava com a dor, que era de fato uma dor contínua, um pequeno latejo em seu crânio, como um aparelho a motor funcionando com um líquido para purificá-lo.
Já fazia quase sete meses que Michael levava aquela vida ocasionalmente rústica quando começou realmente a se aborrecer, a sentir tédio. Por essa época, Don Tommasino andava muito ocupado e raramente era visto na villa. Estava tendo suas complicações com a “nova Máfia” que surgia em Palermo, rapazes que faziam fortuna com a febre de construção após a guerra, naquela cidade. Com essa riqueza, eles procuravam invadir os feudos rurais dos antigos chefes da Máfia a quem desprezivelmente chamavam de Pedro Bigodudo. Don Tommasino vivia ocupado, defendendo seu domínio. E assim Michael ficou privado da companhia do velho e teve de se contentar com as histórias do Dr Taza, que já começavam a se tomar enfadonhas.
Certa manhã, Michael resolveu dar uma longa caminhada até as montanhas além de Corleone, acompanhado, naturalmente, dos dois pastores guarda-costas. Isso não era realmente uma proteção contra os inimigos da Família Corleone. Era simplesmente muito perigoso para qualquer pessoa de fora andar passeando sozinha por ali. Era bastante perigoso mesmo para um natural do lugar. A região vivia cheia de bandidos, com partidários da Máfia lutando uns contra os outros e pondo em perigo todo mundo. Ele podia também ser confundido com um ladrão de pagliaio.
Um pagliaio é uma cabana coberta de palha erguida nos campos onde se guardam os implementos agrícolas ali deixados pelos trabalhadores rurais para que não tenham de carregá-los consigo na longa caminhada desde suas casas na aldeia. Na Sicília, o camponês não vive na terra que cultiva. Isso é muito perigoso, e qualquer terra arável, se ele a possui, é muito preciosa. O camponês mora na aldeia, e ao nascer do sol, começa a sua jornada para ir trabalhar nos campos, percorrendo grandes distâncias a pé. Um trabalhador que chegasse no seu pagliaio e o encontrasse saqueado seria um homem na verdade prejudicado. Ficaria sem o seu sustento naquele dia. A Máfia, ante a impotência da lei, tomou esse interesse pelos camponeses sob a sua proteção e resolveu o problema à sua maneira. Encurralava e massacrava todos os ladrões de pagliaio. Era inevitável que alguns inocentes sofressem. Era possível que se Michael passasse perto de um pagliaio saqueado e fosse considerado como o criminoso, a menos que tivesse alguém para se responsabilizar por ele.
Assim, numa manhã ensolarada, ele se pôs a caminhar através dos campos seguido de seus dois fiéis pastores. Um deles era simplório, quase débil mental, calado como um morto e com o semblante tão impassível como um índio. Tinha a constituição pequena, franzina e resistente do siciliano típico antes de atingir a gordura da meia-idade. Seu nome era Calo.
O outro pastor era mais despachado, mais novo, e tinha visto alguma coisa no mundo. Principalmente oceanos, já que servira na Marinha italiana durante a guerra e tivera apenas tempo bastante para fazer uma tatuagem antes que o navio afundasse e ele fosse aprisionado pelos ingleses. Mas a tatuagem o tornou famoso na aldeia. Os sicilianos não se deixam tatuar com freqüência, não têm oportunidade nem inclinação para isso (o pastor, Fabrizzio, fizera isso principalmente para cobrir uma marca de nascença que consistia numa mancha vermelha na barriga). Contudo, as carroças de mercado da Máfia tinham cenas alegremente pintadas nos lados, pinturas de beleza primitiva feitas com capricho. Em todo caso, Fabrizzio, de volta à aldeia natal, não se sentia muito orgulhoso dessa tatuagem em seu peito, embora ela mostrasse um assunto caro à honra siciliana: um marido apunhalando um homem e uma mulher completamente nus, enlaçados na sua barriga cabeluda. Fabrizzio brincava com Michael e fazia perguntas sobre a América, pois naturalmente era impossível mantê-los na ignorância de sua verdadeira nacionalidade. Contudo, não sabiam exatamente quem era ele, exceto que estava escondido e que não se podia dar com a língua nos dentes a respeito dele. Fabrizzio, às vezes, trazia para Michacl um queijo fresco ainda transudando o leite com que fora feito.
Caminharam ao longo de estradas campestres empoeiradas, passando por carroças puxadas a burro alegremente pintadas. O campo estava cheio de flores rosadas, laranjeiras, amendoeiras e oliveiras, em pleno florescimento. Isso constituíra uma das surpresas. Michael tinha esperado encontrar uma terra árida devido à lendária pobreza dos sicilianos. Contudo, verificou ser ela uma terra de fartura arrebatadora, atapetada de flores trescalando a essência de limão. Era tão bonita que ele não podia conceber como o seu povo se conformava em abandoná-la. Como o homem havia sido terrível para o seu semelhante podia ser avaliado pelo êxodo do que parecia ser um jardim do eden.
Michael planejara ir caminhando até a aldeia litorânea de Mazara, depois tomar um ônibus de volta para Corleone à noite, e assim cansar-se tanto que pudesse dormir bem. Os dois pastores levavam mochilas cheias de pão e queijo, para comerem durante a viagem. Levavam também as suas luparas tão abertamente como se partissem para uma caçada.
Era uma manhã muito bonita. Michael sentia-se tal qual quando criança saía de casa de manhã cedinho nos dias de verão para ir jogar bola. Então, cada dia parecia apresentar uma lavagem fresca, uma pintura nova. E assim acontecia agora. A Sicília estava atapetada de flores vistosas, o cheiro de flores de laranja e limão era tão acentuado que, mesmo com a sua deformação facial que lhe comprimia as fossas nasais, ele conseguia senti-lo.
O ferimento do lado esquerdo do seu rosto ficara completamente curado, mas o osso se soldara defeituosamente e a pressão sobre suas fossas nasais fazia o seu olho esquerdo doer. Também fazia-lhe o nariz escorrer continuamente, ele enchia lenços e mais lenços de muco e às vezes assoava o nariz na terra como faziam os camponeses locais, um hábito que o desagradara quando era menino e via os italianos velhos, desdenhando os lenços como afetação inglesa, assoarem o nariz nos esgotos da rua.
O seu rosto também se sentia “pesado”. O Dr. Taza dissera-lhe que isso era devido à pressão exercida sobre as fossas nasais causada pela fratura defeituosamente curada. O Dr. Taza chamava-a de fratura delicada do zigoma; dizia que se fosse tratada antes que os ossos se unissem poderia ter sido facilmente remediada por meio de uma pequena operação e usando-se um instrumento semelhante a uma colher para forçar o osso a tomar a sua forma apropriada. Agora, porém, dizia o médico, ele teria de ir a um hospital de Palermo submeter-se a uma operação mais complicada chamada cirurgia maxilofacial em que o osso teria de ser quebrado novamente. Isso era demais para Michael. Ele recusou. Contudo, mais do que a dor, mais do que o corrimento do nariz, era a sensação de peso no rosto que de fato o incomodava.
Não conseguiu chegar à costa naquele dia. Depois de percorrerem cerca de 25 quilômetros, ele e os dois pastores pararam à sombra fresca e verde de um laranjal para comer alguma coisa e beber vinho. Fabrizzio estava tagarelando sobre como algum dia iria para a América. Depois de comer e beber, eles se refestelaram na sombra, e Fabrizzio desabotoou a camisa e contraiu os músculos do estômago para dar vida à tatuagem. O casal nu pintado no seu peito contorcia-se numa agonia amorosa e o punhal empunhado pelo marido tremia na carne transfixada dos dois amantes. Isso os divertia. Foi nesse instante que Michael foi atingido pelo que os sicilianos chamam de “o raio”.
Um pouco além do laranjal, encontravam-se os campos de listras verdes de uma propriedade baronial. No fim da estrada do laranjal, havia uma villa tão romana que parecia ter sido escavada das ruínas de Pompéia. Era um pequeno palácio com um enorme pórtico de mármore e colunas gregas estriadas, através das quais vinha um bando de moças flanqueado por duas senhoras robustas vestidas de preto. Eram da aldeia e obviamente tinham cumprido o seu antigo dever ao barão local limpando-lhe a vila e preparando-a para a temporada de inverno do proprietário. Agora elas iam aos campos colher as flores com as quais encheriam as salas e quartos da villa. Estavam colhendo a sulla cor-de-rosa, a glicínia roxa, misturando-as com florescências de limão e laranja. As moças, não vendo os homens descansando no laranjal, foram-se aproximando cada vez mais
Usavam vestidos baratos de desenhos alegres colados ao corpo. Eram ainda adolescentes, mas com a sua carne suada, de plena feminilidade, amadurecendo rapidamente. Três ou quatro delas começaram a perseguir uma companheira, fazendo-a correr na direção do laranjal. A garota perseguida segurava um cacho de enormes uvas roxas na mão esquerda e com a direita arrancava uvas do cacho e atirava-as nas suas perseguidoras. Tinha uma coroa de cabelos cacheados tão escuros como as uvas que segurava, e seu corpo parecia irromper de sua pele.
Já perto do laranjal ela se equilibrou, espantada, quando os seus olhos divisaram a cor estranha das camisas dos homens. Permaneceu ali na ponta dos pés, equilibrada como um veado pronto para correr. Agora ela estava bem perto, tão perto que os homens puderam ver todos os traços do seu rosto.
Ela era toda oval — olhos ovais, ossos do rosto ovais, o contorno de sua sobrancelha também oval. A sua pele era de uma esquisita cor creme-escura e os seus olhos, enormes, cor violeta ou castanhos-escuros, com pestanas compridas e cerradas sombreando o seu rosto encantador. A sua boca era fascinante sem ser grossa, meiga sem ser fraca e estava manchada de vermelho-escuro com o suco das uvas. Ela era tão incrivelmente encantadora que Fabrizzio murmurou: “Jesus Crísto, leve a minha alma, estou morrendo”, de brincadeira, mas as palavras saíram um pouco altas. Quando o ouviu, a garota saiu da posição de equilíbrio na ponta dos pés, rodopiou rapidamente e voltou correndo na direção de suas perseguidoras. Suas ancas moviam-se como as de um animal por baixo do pano apertado de seu vestido; de modo bem pagão e inocentemente voluptuoso. Quando chegou junto das amigas, ela rodopiou novamente e o seu rosto era como que uma depressão escura no campo de flores cintilantes. Ela estendeu o braço, a mão cheia de uvas apontando na direção do laranjal. As garotas fugiram gargalhando, com as senhoras robustas, vestidas de preto, repreendendo-as.
Quanto a Michael Corleone, ele se viu de repente em pé, com o coração batendo-lhe no peito; sentiu uma pequena tonteira. O sangue circulava aceleradamente através de seu corpo, através de todas as suas extremidades, e se chocava nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Todos os perfumes da ilha vieram precipitadamente com o vento, das florescências de limão e laranja, das uvas, das flores. Parecia que o seu próprio corpo tinha saltado para fora dele mesmo. E então ele ouviu os dois pastores rirem.
— Você foi atingido pelo raio, hem? — perguntou Fabrizzio, batendo- lhe no ombro.
Até Calo se mostrou amável, tocando-lhe no braço e dizendo carinhosamente:
— Calma, homem, calma.
Era como se Michael tivesse sido atropelado por um carro. Fabrizzio passou-lhe uma garrafa de vinho e Michael bebeu um longo trago. Isso clareou-lhe a cabeça.
— Que diabo vocês, seus malditos apaixonados de ovelhas, estão dizendo? — perguntou ele.
Os dois pastores riram. Calo, com seu rosto honesto denotando a maior seriedade, respondeu:
— Você não pode esconder o raio. Quando ele atinge uma pessoa, todo mundo vê. Por Deus, homem, não se envergonhe disso, alguns homens rezam pelo raio. Você é um sujeito de sorte.
Michael não gostou muito de ter as suas emoções lidas com tamanha facilidade. Mas era a primeira vez na vida que tal coisa lhe acontecia. Não era nada semelhante a suas paixões de adolescente, nada semelhante ao amor que tinha por Kay, um amor baseado na meiguice e inteligência dela, na polaridade do louro e moreno. Isso era um desejo esmagador de posse, era uma impressão indelével do rosto da garota no seu cérebro e ele sabia que ela lhe perseguiria a memória cada dia de sua vida se ele não a possuísse. A sua vida se simplificara, se focalizara num ponto, tudo o mais não merecia nem sequer um momento de atenção. Durante o seu exílio, ele sempre pensara em Kay, embora sentisse que jamais poderiam amar-se novamente ou pelo menos ser amigos. Ele era, afinal de contas, um assassino, um mafioso que cometera o seu crime. Mas agora Kay estava completamente eliminada de sua consciência.
Fabrizzio disse espertamente:
— Vou até a aldeia, a gente vai descobrir quem é ela. Quem sabe, talvez ela seja mais fácil do que a gente pensa. Só há uma cura para o raio, hem, Calo?
O outro pastor acenou com a cabeça seriamente. Michael nada disse. Seguiu os dois homens quando eles começaram a descer a estrada para a aldeia próxima na qual o bando de garotas desaparecera.
A aldeia se agrupava em torno da usual praça central com sua fonte. Mas ficava numa estrada principal, de modo que havia ali algumas lojas, casas de vinho e um pequeno café com três mesas do lado de fora num pequeno terraço. Os pastores sentaram-se numa das mesas e Michael reuniu-se a eles. Não havia o menor vestígio das garotas. A aldeia parecia deserta, havia, apenas, à vista uns meninos e um burro que vagava por perto.
O proprietário do café veio atendê-los. Era um homem baixo, troncudo, quase um anão, mas o recebeu alegremente e pós um prato de grão-de-bico na mesa deles.
— Vocês são estranhos aqui — disse ele — Portanto quero aconselhar vocês. Provem meu vinho. As uvas vêm da minha própria fazenda e é feito pelos meus próprios filhos. Eles o misturam com laranjas e limão. É o melhor vinho da Itália.
Deixaram-no trazer o vinho numa jarra e era até melhor do que ele dizia, roxo-escuro e forte como conhaque. Fabrizzio disse ao proprietário do café:
— Você conhece todas as moças aqui, garanto. A gente viu algumas garotas bonitas descendo a estrada, sendo que uma delas fez o nosso amigo aqui ser atingido pelo raio.
Fabrizzio apontou para Michael.
O dono do café olhou para Michael com novo interesse. A cara quebrada lhe parecera muito comum antes, não valendo uma segunda olhada. Mas um homem atingido pelo raio era outra coisa.
— É melhor você levar algumas garrafas para casa, meu amigo — disse ele — Você vai precisar de ajuda para pegar no sono esta noite.
— Você conhece uma garota com o cabelo todo cacheado? — perguntou Michael ao homem — Pele cremosa, olhos muito grandes, muito escuros. Você conhece uma garota como essa na aldeia?
O dono do café respondeu prontamente:
— Não. Não conheço nenhuma garota assim
Os três homens beberam o vinho vagarosamente, terminaram a jarra e pediram mais. O dono não reapareceu. Fabrizzio entrou no café à procura dele. Quando Fabrizzio saiu, fez uma careta e disse para Michael.
— Tal como eu pensei, era da filha dele que a gente estava falando e agora o homem está nos fundos com o sangue fervendo para fazer algum mal à gente. Penso que é melhor a gente começar a andar para Corleone.
Apesar dos meses que já passara na ilha, Michael ainda não se acostumara à sensibilidade de seus habitantes em matéria de sexo, e isso era uma coisa extrema mesmo para um siciliano. Porém os dois pastores parece que encararam a situação com naturalidade. Estavam esperando por Michael para partir. Fabrizzio disse:
— O velho salafrário falou que tem dois filhos, dois rapazes grandes e fortes, e que para chamá-los basta assoviar. Vamos embora.
Michael lançou-lhe um olhar frio. Até então ele fora um jovem tranqüilo, gentil, um americano típico, embora pensassem que desde que estava escondido na Sicília devia ter alguma coisa máscula. Esta foi a primeira vez que os pastores viram o olhar de um Corleone. Don Tommasino, conhecendo a verdadeira identidade de Michael e sabendo o que ele tinha feito, sempre era muito cauteloso com o rapaz tratando-o como um “homem de respeito” igual a si próprio. Mas esses simples pastores de ovelhas tinham chegado a uma opinião própria sobre Michael, e não era muito boa. O olhar frio, o rosto branco rígido de Michael. a raiva que se desprendia dele como fumaça fria saindo do gelo abafaram a risada deles e fizeram desaparecer a amabilidade dos dois homens.
Quando viu que conseguira a atenção apropriada e respeitosa deles, Michael disse para os pastores:
— Tragam este homem aqui fora para mim.
Eles não hesitaram. Puseram no ombro as luparas e entraram na fria penumbra do café. Alguns segundos depois, reapareceram com o dono do café entre eles. O homem atarracado não parecia de modo algum assustado, mas a sua raiva denotava certa cautela.
Michael recostou-se na cadeira e estudou o homem por um momento. Depois falou com muita tranqüilidade:
— Compreendo que o ofendi por ter falado de sua filha. Apresento-lhe minhas desculpas, sou um estrangeiro nesta terra, não conheço bem os costumes daqui. Preciso dizer isto. Não tive a intenção de desrespeitar o senhor ou a moça.
Os pastores guarda-costas ficaram impressionados. A voz de Michael nunca soara daquele modo quando falava com eles. Havia imposição e autoridade nela, embora ele estivesse pedindo desculpas. O dono do café deu de ombros, mais cauteloso ainda, sabendo que não estava lidando com um simples trabalhador do campo.
— Quem é o senhor e o que deseja de minha filha?
Michael, sem qualquer hesitação, respondeu:
— Sou um americano escondido na Sicília da polícia de meu país. Meu nome é Michael. O senhor pode informar à polícia e ficar rico, mas então a sua filha perderia o pai em lugar de ganhar um marido. De qualquer modo, quero ver a sua filha. Com a sua permissão e sob a fiscalização de sua família. Com todo o decoro. Com todo o respeito. Sou um homem honrado e não penso em desonrar a sua filha. Quero vê-la, falar com ela, e então se o raio nos atingir os dois, nós nos casaremos. Se não, o senhor nunca mais me verá. Ela pode achar-me antipático, afinal de contas, e ninguém poderá remediar isso. Mas quando chegar a hora apropriada eu lhe contarei tudo a meu respeito que o pai de uma esposa deve saber.
Todos os três homens olhavam para ele admirados. Fabrizzio murmurou com temor respeitoso:
— É o verdadeiro raio.
O dono do café, pela primeira vez, não parecia tão confiante, ou desdenhoso; a sua raiva não era tão convincente. Finalmente, perguntou:
— O senhor é amigo dos amigos?
Como a palavra Máfia nunca podia ser pronunciada em voz alta por qualquer siciliano, isso foi a maneira mais aproximada que o dono do café pôde encontrar para perguntar se Michael era membro da Máfia. Era a maneira habitual de se perguntar se alguém pertencia à Máfia, mas geralmente não se perguntava assim diretamente à pessoa em questão.
— Não — respondeu Michael — Sou um estrangeiro neste país.
O dono do café olhou novamente para Michael, o lado esquerdo amassado do seu rosto, as pernas compridas, coisa rara na Sicília. Deu uma olhada para os dois pastores armados de luparas bem abertamente sem medo e lembrou-se como haviam entrado no seu café e dito que o padrone queria falar com ele. O dono do café rosnara que queria o filho da puta fora do seu terraço e um dos pastores dissera:
— Acredite na minha palavra, é melhor o senhor sair e falar com ele.
E alguma coisa o fizera sair. Agora alguma coisa o fazia compreender que seria melhor se mostrar cortês a esse estrangeiro. Ele respondeu de má vontade:
— Venha domingo à tarde. Meu nome é Vitelli e minha casa é ali no morro, acima da aldeia. Mas venha aqui ao café e eu o levarei lá em cima.
Fabrizzio iniciou um palavreado, mas Michael lançou-lhe um olhar que fez a língua do pastor gelar na boca. Isso não escapou a Vitelli. Assim, quando Michael se levantou e estendeu a mão, o dono do café apertou-a e sorriu. Ele faria algumas investigações, e se as respostas fossem desfavoráveis, podia sempre receber Michael com os dois filhos armados de espingardas. O dono do café tinha também os seus contatos entre os “amigos dos amigos”. Mas alguma coisa lhe dizia que isso era um desses golpes formidáveis da boa sorte nos quais os sicilianos sempre acreditavam, algo lhe dizia que a beleza de sua filha traria a fortuna dela e a segurança da família. E havia outra vantagem. Alguns dos rapazes locais já estavam começando a passear de carro por ali e aquele estrangeiro de cara quebrada poderia se encarregar de afugentá-los. Vitelli, para mostrar sua boa vontade, despedira-se do estrangeiro oferecendo-lhe uma garrafa de seu melhor e mais fino vinho. Ele percebeu que foi um dos pastores que pagou a conta. Isso o impressionou ainda mais, tornando claro que Michael era o superior dos dois homens que o acompanhavam.
Michael não estava mais interessado no passeio. Encontraram uma garagem e alugaram um carro com motorista para levá-los de volta a Corleone, e pouco depois da ceia o Dr. Taza era informado pelos pastores do que acontecera. Naquela noite, sentado no jardim, o Dr. Taza disse a Don Tommasino:
— Nosso amigo foi atingido pelo raio hoje.
Don Tommasino pareceu não se surpreender. Apenas resmungou:
— Eu queria que alguns desses rapazes de Palermo fossem atingidos pelo raio, talvez assim eu pudesse ter algum sossego.
Ele estava falando dos chefes da Máfia da nova geração que surgiam nas grandes cidades como Palermo e que desafiavam o poder dos esteios do velho regime como ele.
Michael disse a Tommasino:
— Quero que o senhor diga a esses dois pastores de ovelhas que me deixem sozinho no domingo. Vou jantar com a família daquela moça e não os quero rondando por lá.
Don Tommasino balançou a cabeça.
— Sou responsável por você junto a seu pai, não me peça isso. Outra coisa, ouvi dizer que você até falou em casamento. Não posso permitir isso até mandar alguém falar com seu pai.
Michael Corleone foi muito cauteloso, pois afinal de contas sabia que estava falando com um homem de respeito.
— Dom Tommasino, o senhor conhece meu pai. Ele é um homem que fica surdo quando alguém pronuncia a palavra “não”. E só volta a ouvir novamente quando lhe respondem com um “sim”. Bem, ele já ouviu meu “não” muitas vezes. Compreendo o motivo dos dois guardas, não quero causar complicações ao senhor, eles podem vir comigo no domingo, mas se eu quiser casar eu caso. Certamente como não permito que meu próprio pai se meta na minha vida particular, seria um insulto a ele deixar que o senhor o faça.
O capo-mafioso deu um suspiro.
— Bem, então, haverá casamento. Conheço a sua “paixão”. Ela é uma boa garota de uma família respeitável. Você não pode desonrá-la sem que o pai tente matá-lo, e depois você terá de derramar sangue. Além disso, conheço a família bem, não posso permitir que tal coisa aconteça.
— Talvez — retrucou Michael — Ela não suporte olhar para mim como estou agora, e é uma garota muito nova, vai achar-me velho — ele viu os dois homens rirem para ele e acrescentou — Preciso de algum dinheiro para presentes e penso que preciso também de um carro.
Don Tommasino acenou com a cabeça.
— Fabrizzio cuidará de tudo, é um rapaz esperto, aprendeu mecânica na Marinha. Vou dar algum dinheiro a você pela manhã e informarei ao seu pai sobre o que está acontecendo. Isso tenho de fazer.
Michael perguntou ao Dr. Taza:
— O senhor tem alguma coisa que faça secar esse corrimento do meu nariz? Não quero que a garota me veja assoar o nariz a todo momento.
— Vou cobri-lo com um remédio antes de você ir vê-la — respondeu o Dr. Taza — Fará a sua carne ficar um pouco dormente, mas não se preocupe, você por enquanto não a beijará.
Tanto o médico como Don Tommasino riram da piada.
No domingo, Michael recebeu um Alfa Romeo, amassado, mas ainda em condições razoáveis. Ele fizera também uma viagem de ônibus a Palermo para comprar presentes para a garota e a família dela. Soubera que o nome da jovem era Apollonia e toda noite ele pensava em seu rosto encantador e em seu nome adorável. Tinha de beber um bocado de vinho para dormir, por isso foram dadas ordens às criadas velhas da casa que deixassem uma garrafa de vinho à sua cabeceira. Ele esvaziava-a toda noite.
No domingo, ao repicar dos sinos das igrejas que se espalhavam por toda a Sicília, Michael dirigiu o Alfa Romeo para a aldeia e estacionou.o diante do café. Calo e Fabrizzio estavam no assento traseiro com suas luparas e Michael disse-lhes que deviam esperar no café, que não deviam ir até a casa. O café estava fechado, mas Vitelli os aguardava lá, encostado no parapeito de seu terraço vazio.
Trocaram apertos de mão, e Michael apanhou os três embrulhos de presentes. Em seguida, começou a subir penosamente o morro com Vitelli até à casa deste, a qual era maior do que a choupana comum da aldeia; os Vitelli não eram pobres.
No interior da casa, viam-se imagens da Madonna sepultada em vidro, luzes votivas vermelhas piscando a seus pés. Os dois filhos estavam esperando, também vestidos em sua roupa preta domingueira. Eram dois rapazes fortes com vinte e poucos anos de idade, mas parecendo mais velhos devido ao trabalho duro que executavam na fazenda. A mãe era uma mulher vigorosa, tão robusta quanto o marido. Não havia sinal da garota.
Depois das apresentações, que Michael nem sequer ouviu, sentaram-se no que possivelmente seria uma sala de estar ou talvez, também, sala de jantar de cerimônia. Estava atravancada de móveis de toda espécie e não era muito grande, mas para a Sicília era o esplendor da classe média.
Michael deu os presentes ao Signor e Signora Vitelli. Para o pai foi um cortador de charuto, de ouro, para a mãe um corte do tecido mais fino que se poderia comprar em Palermo. Ele ainda tinha um embrulho para Apollonia. Os presentes foram recebidos com agradecimentos reservados. Foram um tanto prematuros, não deveria ter dado nada até a segunda visita.
O pai disse a Michael falando de homem para homem à maneira do campo:
— Não pense que somos assim tão sem importância para receber estrangeiros em nossa casa com tanta facilidade. Mas Don Tommasino se responsabilizou pessoalmente pelo senhor e ninguém nesta província poderia jamais duvidar da palavra desse bom homem. E assim resolvemos receber o senhor. Mas devo dizer-lhe que, se as suas intenções a respeito de minha filha são sérias, teremos de saber um pouco mais sobre o senhor e a sua família. O senhor compreende, a sua família é daqui?
Michael acenou com a cabeça e respondeu delicadamente:
— Contarei ao senhor tudo o que quiser saber a qualquer tempo.
O Signor Vitelli levantou a mão.
— Não sou um homem curioso. Vamos ver primeiro se é necessário. Neste momento, o senhor é bem-vindo em minha casa por ser amigo de Don Tommasino.
Apesar do remédio pincelado no interior de seu nariz, Michael conseguiu sentir realmente o cheiro da presença da garota na sala. Virou-se e viu-a postada na porta em arco que dava para os fundos da casa. O cheiro era de flores frescas e florescência de limão, mas ela não usava nada em seus cabelos de cachos bem pretos, nada em seu vestido preto, liso e sério, obviamente sua melhor roupa domingueira. Ela lançou-lhe um olhar rápido e deu-lhe um riso insignificante antes de baixar os olhos recatadamente e sentar-se perto da mãe.
Outra vez Michael sentiu aquela falta de ar, aquela invasão de seu corpo por uma coisa que era não somente desejo como uma posse louca. Ele compreendeu pela primeira vez o ciúme clássico do homem italiano. Estava naquele momento disposto a matar qualquer pessoa que tocasse naquela garota, que tentasse reclamá-la, arrebatá-la dele. Queria possuí-la tão selvagemente como um avarento quer possuir moedas de ouro, tão famintamente como um meeiro quer possuir a sua própria terra. Nada iria impedi-lo de ter aquela garota, possuí-la, trancá-la numa casa e mantê-la aprisionada somente para ele. Não queria que ninguém nem sequer a visse. Quando Apollonia se virou para sorrir para um de seus irmãos, Michael lançou ao rapaz um olhar homicida sem mesmo perceber. A família compreendeu logo que era um caso clássico do “raio” e se sentiu tranqüilizada. Esse rapaz seria uma massa maleável nas mãos da filha até casarem. Depois, naturalmente, as coisas poderiam mudar, mas isso não tinha importância.
Michael comprara algumas roupas novas para ele em Palermo, não sendo mais o camponês rusticamente vestido, e era óbvio para a família que ele era um Don qualquer. Sua cara amassada não lhe dava tão má aparência como ele acreditava; como o seu outro perfil era tão bonito tornava a desfiguração até interessante. E de qualquer forma isso era uma terra em que para ser chamado de desfigurado, o indivíduo tinha de competir com um bocado de homens que haviam sofrido desgraças físicas extremas.
Michael olhou diretamente para a garota, as adoráveis formas ovais de seu rosto. Os seus lábios, agora ele podia ver, eram quase azuis, tão escuro era o sangue que circulava neles. Ele disse, não ousando pronunciar o nome dela:
— Vi você no laranjal outro dia. Quando você saiu correndo. Espero que eu não a tenha assustado.
A moça levantou os olhos para ele por apenas uma fração de segundo e balançou a cabeça. Mas o encanto desses olhos fez Michael olhar para longe. A mãe disse mordazmente:
— Apollonia, fale com o pobre rapaz, ele veio de quilômetros de distância para ver você.
As longas pestanas pretas da moça, porém, continuavam fechadas como asas sobre os seus olhos. Michael entregou-lhe o presente embrulhado em papel dourado, e a moça o pôs no colo. O pai então falou:
— Abra-o, garota.
Suas mãos, porém, não se mexeram. Eram mãos pequenas e morenas, mãos de menina. A mãe esticou o braço e apanhou o presente, abrindo o embrulho impacientemente, embora com cuidado para não rasgar o precioso papel. O estojo de veludo vermelho fê-la hesitar, ela nunca segurara tal coisa nas mãos e não sabia como manobrar o seu fecho. Mas conseguiu abri-lo por puro instinto e depois tirou de dentro o presente.
Era uma pesada corrente de ouro para ser usada como colar, e causou-lhes boa impressão não somente devido ao seu óbvio valor, como também por que um presente de ouro naquela sociedade significava uma afirmação das mais sérias intenções. Não era menos do que uma proposta de casamento, ou antes o sinal de que havia a intenção de propor casamento. Não podiam mais duvidar da seriedade do estrangeiro. E não podiam duvidar de sua riqueza.
Apollonia ainda não tocara no presente. A mãe segurara-o para que ela visse e a moça levantou as suas longas pestanas por um momento e depois olhou diretamente para Michael, com os seus olhos castanhos de corça sérios, e disse:
Grazia.
Era a primeira vez que ele ouvia a voz dela.
Tinha toda a meiguice aveludada da juventude e timidez e fez os ouvidos de Michael zunirem. Ele continuou a olhar para longe e a falar com o pai e a mãe simplesmente porque olhar para ela o confundia bastante. Mas percebeu que, apesar da largura conservadora do seu vestido, o seu corpo esplendia através de sua roupa com sensualidade. E percebeu também que a sua pele escura ficava vermelha, a pele cremosa escura, tornando-se mais escura à medida que o sangue lhe afluía ao rosto.
Finalmente Michael ergueu-se para ir embora e a família levantou-se também. Despediram-se formalmente, a garota afinal enfrentando-o quando se apertaram as mãos, e ele sentiu o choque da pele dela contra a sua, a pele dela era quente e áspera, pele de camponesa. O pai desceu o morro com ele até o carro e convidou-o para jantar no domingo seguinte. Michael acenou com a cabeça, mas sabia que não podia esperar uma semana para ver a garota novamente.
Não esperou. No dia seguinte, sem os seus pastores, ele foi no seu carro até a aldeia e sentou-se no terraço ajardinado do café para bater um papo com o pai da moça. O Signor Vitelli teve pena dele e mandou um recado para que a mulher e a filha descessem até o café a fim de se unirem a eles. Essa reunião foi menos embaraçosa. Apollonia estava menos tímida e falou mais. Trajava o seu vestido estampado diário que assentava muito mais com a sua cor.
No dia seguinte, ocorreu a mesma coisa. Só que desta vez Apollonia usava a corrente de ouro que ele lhe dera. Michael sorriu para ela então, sabendo que isso era um sinal para ele. Subiu o morro com ela, a mãe bem de perto atrás deles. Mas era impossível que os dois jovens evitassem que os seus corpos se roçassem um no outro e certa vez Apollonia tropeçou e caiu em cima dele de forma que Michael teve de segurá-la, e o seu corpo tão quente e vivo em suas mãos despertou uma onda profunda de sangue no corpo dele. Não podiam ver a mãe atrás deles sorrindo, porque ela sabia que a filha era uma cabra montesa e não tropeçara nesse caminho desde que era um bebê de fraldas. Sorrindo porque esse era o único meio que o rapaz ia ter para pôr as mãos em sua filha até o casamento.
Isso continuou por duas semanas. Michael levava presentes toda vez que ia vê-la, e Apollonia se tornava cada vez menos tímida. Mas nunca podiam encontrar-se sem a presença de uma chaperone. Ela era uma garota de aldeia, quase analfabeta, sem idéia do mundo, mas dotada de uma vivacidade, de uma ânsia de viver que, com o auxílio da barreira da linguagem, fazia-a parecer interessante. Tudo foi muito rápido a pedido de Michael. E como a moça não somente estava fascinada por ele, mas sabia que ele devia ser rico, a data do casamento foi marcada para duas semanas depois, num domingo.
Agora Don Tommasino estava senhor da situação. Recebera informação da América de que Michael não estava sujeito a ordens, mas que todas as precauções elementares deviam ser tomadas. Assim Don Tommasino arrogou-se o título de pai do noivo para garantir a presença dos seus próprios guarda-costas. Calo e Fabrizzio também foram membros do grupo de casamento dos Corleone como o foi também o Dr. Taza. A noiva e o noivo viveriam na villa do Dr. Taza cercada por seu muro de pedra.
O casamento foi tipicamente camponês. Os aldeões postaram-se nas ruas e atiraram flores quando os noivos, padrinhos, familiares e convidados se dirigiram a pé da igreja até à casa da noiva. O cortejo nupcial brindou os vizinhos com amêndoas açucaradas, os tradicionais confeitos de casamento, e com os confeitos que sobraram fizeram montanhas brancas açucaradas no leito nupcial da noiva, nesse caso apenas um leito simbólico, já que a primeira noite seria passada na villa fora de Corleone. A festa de casamento prosseguiu até meia-noite, mas a noiva e o noivo deveriam partir antes disso no Alfa Romeo. Quando chegou esse momento, Michael se surpreendeu ao verificar que a mãe estava vindo com eles para a villa de Corleone a pedido da noiva. O pai explicou: a garota era nova, virgem, e estava um pouco atemorizada, precisaria de alguém com quem conversar na manhã seguinte à noite nupcial; para instruí-la se as coisas não corressem bem. Tal situação às vezes se tornava muito difícil. Michael percebeu Apollonia olhar para ele com certa dúvida em seus enormes olhos castanhos de corça. Ele sorriu para ela e acenou com a cabeça.
E assim aconteceu que voltaram para a villa fora de Corleone com a sogra no carro. Mas a mãe da moça imediatamente consultou as criadas do Dr. Taza, deu um abraço e um beijo na filha e desapareceu da cena. Michael e a noiva puderam ir sozinhos para o espaçoso quarto de dormir.
Apollonia estava ainda usando o seu vestido de noiva com um casaco sobre ele. As suas malas e objetos de uso tinham sido trazidos do carro para o quarto. Numa mesinha havia uma garrafa de vinho e um prato de pequenos doces de casamento. A enorme cama de dossel nunca lhes saía da vista. A moça no centro do quarto esperava que Michael fizesse o primeiro movimento.
E agora que ele a tinha sozinha, agora que ele a possuía legalmente, agora que não havia obstáculo para que ele gozasse o corpo e o rosto com que sonhava toda noite, Michael não conseguiu aproximar-se dela. Ele a viu tirar o véu de noiva e pô-lo cuidadosamente numa cadeira e colocar a grinalda num pequeno toucador, onde se achava uma coleção de perfumes e cremes que Michael encomendara em Palermo. A moça contemplou tudo isso por um momento.
Michael apagou as luzes, pensando que Apollonia estivesse esperando a escuridão para proteger o corpo enquanto se despia. Mas a lua siciliana penetrou no quarto através das janelas, brilhante como ouro, e Michael procurou fechar as venezianas, mas não totalmente, pois o quarto ficaria muito abafado. A moça estava ainda postada junto à mesa, de modo que Michael saiu do quarto e atravessou o corredor indo até o banheiro. Ele, o Dr. Taza e Don Tommasino haviam tomado um copo de vinho juntos no jardim enquanto as mulheres se preparavam para dormir. Esperava encontrar Apollonia de camisola quando voltasse, já entre as cobertas. Ficou surpreso ao ver que a mãe não fizera esse serviço para a filha. Talvez Apollonia quisesse que ele a ajudasse a despir-se. Mas tinha certeza de que a moça era muito tímida, muito inocente para um comportamento tão avançado.
Voltando ao quarto, encontrou-o completamente às escutas, alguém fechara totalmente as venezianas. Foi andando às apalpadelas até a cama e pôde divisar as formas de Apollonia sob as cobertas, de costas para ele, o corpo curvado e encolhido. Michael se despiu e se enfiou completamente nu por baixo do lençol. Estendeu a mão e tocou a pele nua sedosa da moça. Ela não pusera a camisola e essa ousadia o agradou. Vagarosamente, cuidadosamente, ele pôs a mão no ombro dela e apertou-lhe o corpo delicadamente de forma que ela se virasse para ele. A jovem se virou lentamente, e a mão dele tocou-lhe o seio, macio, cheio, e então ela caiu em seus braços tão rapidamente que os seus corpos se uniram numa linha de eletricidade voluptuosa e ele finalmente pôs os braços em volta dela, beijando-lhe profundamente a boca ardente, comprimindo-lhe o corpo e os seios contra ele e depois rolando o seu corpo para cima do corpo dela.
A carne e o cabelo dela eram tão sedosos e agora ela era toda ânsia, arfando selvagemente junto a ele num frenesi erótico virginal. Quando Michael penetrou nela, Apollonia deu um pequeno suspiro e permaneceu quieta por um segundo, depois num impulso poderoso para a frente de sua pélvis, trançou as suas pernas acetinadas em torno das ancas dele. Quando chegaram ao fim, estavam tão firmemente entrelaçados, tão violentamente agarrados um ao outro, que separar-se um do outro era como o tremor perante a morte.
Naquela noite e nas semanas que se seguiram, Michael Corleone passou a compreender a importância atribuída à virgindade pelos povos socialmente primitivos. Foi um período de sensualidade como ele jamais experimentara antes, uma sensualidade aliada a um sentimento de poder masculino. Apollonia naqueles primeiros dias se tornou quase sua escrava. Dando-lhe a sua confiança, o seu amor, uma jovem vigorosa despertando da virgindade para um estado erótico era tão delicioso como uma fruta no ponto exato de amadurecimento.
Ela, por sua parte, alegrou a atmosfera sombriamente masculina da villa. Mandou embora a mãe logo no dia seguinte à noite nupcial e presidiu à mesa comunal com um brilhante encanto juvenil. Don Tommasino jantava com eles toda a noite e o Dr. Taza contava todas as suas velhas histórias, enquanto bebiam vinho no jardim cheio de estátuas adornadas de flores bem vermelhas, e assim as noites transcorriam prazerosamente. Mais tarde, em seu quarto, os recém-casados passavam horas de amor febril. Michael não se cansava de contemplar o corpo lindamente esculturado de Apollonia, sua pele cor de mel, seus enormes olhos castanhos cintilando de paixão. Ela exalava um cheiro maravilhosamente fresco, um cheiro de carne perfumada pelo sexo. A paixão virginal dela se equiparava à lascívia nupcial dele e freqüentemente já era quase manhã quando eles caíam no sono completamente esgotados. Às vezes, cansado mas ainda indisposto para dormir, Michael sentava-se no peitoril da janela e contemplava o corpo nu da esposa enquanto ela dormia. O rosto dela também era adorável quando em repouso, um rosto perfeito que ele vira antes somente em livros de arte de Madonnas italianas pintadas, as quais, sem qualquer esforço quanto à capacidade do artista, podiam ser consideradas virginais.
Na primeira semana do casamento, fizeram piqueniques e pequenas viagens no Alfa Romeo. Mas então Don Tommasino levou Michael para um canto e explicou que o casamento tornara sua presença e identidade conhecidas de todos naquela parte da ilha e deviam ser tomadas precauções contra os inimigos da Família Corleone, cujos longos braços também se estendiam ao refúgio daquela ilha. Dom Tommasino pôs guardas armados em torno da vila, enquanto os dois pastores, Calo e Fabrizzio, eram os vigias dentro dos muros. Assim, Michael e esposa tinham de ficar no terreno da villa. Michael passava o tempo ensinando Apollonia a ler e escrever inglês e a dirigir o carro ao longo dos muros internos da villa. Por essa época, Don Tommasino parecia andar preocupado e não era boa companhia, estava ainda tendo dificuldades com a nova Máfia na cidade de Palermo, explicara o Dr. Taza.
Uma noite, no jardim, uma velha aldeã que trabalhava na casa como criada trouxe um prato de azeitonas frescas; depois virou-se para Michael e perguntou:
— É verdade o que todo mundo anda dizendo, que o senhor é filho de Don Corleone de Nova York, o Padrinho?
Michael viu Don Tommasino balançar a cabeça contrariado com o conhecimento geral do seu segredo. Mas a velha estava olhando para ele de maneira tão interessada, como se fosse importante que ela soubesse a verdade, que Michael acenou com a cabeça afirmativamente.
— Você conhece o meu pai? — perguntou ele.
O nome da mulher era Filomena e o seu rosto era tão enrugado e castanho como uma noz, os dentes cobertos de sarro despontavam na boca semi-cerrada. Pela primeira vez, desde que Michael estava na villa, ela sorriu para ele.
— O Padrinho salvou a minha vida uma vez — disse ela — E meus miolos também — e fez um gesto apontando a cabeça.
Ela obviamente queria alguma coisa mais, assim Michael riu para encorajá-la.
A velha perguntou quase com medo:
— É verdade que Luca Brasi está morto?
Michael acenou com a cabeça novamente e ficou surpreso com o olhar de alívio no rosto da velha. Filomena persignou-se e disse:
— Deus me perdoe, mas que a alma dele queime no inferno eternamente.
Michael lembrou-se de sua antiga curiosidade sobre Brasi, e teve a repentina intuição de que essa mulher sabia a história que Hagen e Sonny se recusaram a contar-lhe. Ele serviu um copo de vinho à mulher e fê-la sentar-se.
— Conte-me o que você sabe sobre meu pai e Luca Brasi — pediu ele gentilmente — Sei um pouco, mas como eles se tornaram amigos e por que Brasi era tão dedicado ao meu pai? Não tenha medo, vamos, conte-me.
O rosto enrugado de Filomena, seus olhos pretos voltaram-se para Don Tommasino, que de algum modo fez sinal dando-lhe permissão. E assim Filomena passou uma parte da noite contando-lhes a sua história.
Há cerca de trinta anos, Filomena era parteira em Nova York, na Nona Avenida, servindo à colônia italiana. As mulheres estavam sempre grávidas e ela prosperava. Ensinava aos médicos algumas coisas quando eles tentavam intervir num parto difícil. O marido dela era um próspero dono de mercearia; agora falecido o pobre coitado, ela o abençoava, embora ele tivesse sido um jogador de cartas e um mulherengo que nunca pensou em pôr algum dinheiro de lado para os tempos difíceis. De qualquer modo, numa maldita noite, quando as pessoas honestas já estavam há muito tempo na cama, alguém bateu na porta de Filomena. Ela não estava de maneira alguma assustada, era a hora sossegada que os bebês prudentemente escolhiam para entrar com segurança neste mundo pecador, e assim ela se vestiu e abriu a porta. Lá fora se encontrava Luca Brasi, cuja reputação, mesmo então, era terrível. Sabia-se também que ele era solteiro. E assim Filomena ficou logo assustada. Ela pensava que ele tivesse vindo para fazer algum mal a seu marido, que talvez seu marido tivesse insensatamente se recusado a fazer algum pequeno favor a Brasi.
Mas Brasi viera numa missão especial. Disse a Filomena que havia uma mulher prestes a dar à luz, que a casa era um pouco afastada dali e que ela devia ir com ele. Filomena imediatamente sentiu que havia alguma coisa errada. A cara brutal de Brasi denotava um ar de loucura naquela noite, ele estava obviamente sob o poder de algum demônio. Ela tentou protestar, alegando que só atendia às mulheres cuja história conhecesse, mas ele enfiou-lhe na mão um punhado de dólares verdes e ordenou-lhe asperamente que o acompanhasse. Ela estava muito apavorada para recusar.
Na rua havia um Ford com um motorista da mesma laia de Luca Brasi. A viagem não durou mais de trinta minutos e chegaram a uma casa de vigamento de madeira na cidade de Long lsland bem em cima da ponte. Uma casa para duas famílias, mas agora ocupada exclusivamente por Brasi e sua quadrilha. Pois havia alguns bandidos na cozinha jogando cartas e bebendo. Brasi levou Filomena escada acima para um quarto. Na cama achava-se uma linda moça que parecia irlandesa, com o rosto pintado, o cabelo vermelho e com a barriga inchada como uma porca. A pobre moça estava tão amedrontada! Quando avistou Brasi, virou a cabeça para o outro lado aterrorizada, sim, aterrorizada, e na verdade o olhar de ódio no rosto perverso de Brasi era a coisa mais aterradora que ela já vira na vida.
Aqui Filomena persignou-se novamente.
Para resumir a história, Brasi saiu do quarto. Dois dos seus homens ajudaram a parteira, e a criança nasceu, a mãe estava esgotada e caiu num sono profundo. Brasi foi chamado a vir ao quarto, e Filomena, que tinha enrolado a criança recém-nascida num cobertor que encontrara, estendeu a trouxa para ele e disse:
— Se você é o pai, tome a criança. Meu trabalho está terminado.
Brasi fixou os olhos nela, maldosamente, a loucura estampada em seu rosto.
— Sim, eu sou o pai — retrucou ele — Mas não quero que viva ninguém dessa raça. Leve a criança para o porão e atire-a no forno.
Por um momento, Filomena pensou que não tivesse entendido direito. Ficou embaraçada com o uso da palavra “raça”. Queria ele dizer isso porque a moça não era italiana? Ou queria dizer porque a moça era obviamente do tipo mais baixo; uma prostituta, em resumo? Ou queria dizer que proibia que qualquer coisa provinda dele mesmo vivesse? E então ela teve a certeza de que aquele homem estava fazendo uma brincadeira cruel. Ela disse em poucas pa lavras.
— A criança é sua, faça o que você quiser.
E tentou entregar a trouxa a ele.
Nessa altura, a mãe esgotada acordou e virou-se para o lado deles, justamente no momento em que Brasi empurrou violentamente a trouxa, apertando a criança recém-nascida no peito de Filomena. A moça gritou fracamente:
— Luc, Luc, eu lamento...
E Luca virou-se para ela.
Foi terrível, dizia agora Filomena. Tão terrível. Eram como dois animais enfurecidos. Não eram humanos. O ódio que um nutria contra o outro irrompeu no quarto. Nada mais, nem mesmo a criança recém-nascida, existia para eles naquele momento. Contudo, havia ali uma estranha paixão. Uma voluptuosidade sanguinária, demoníaca, que se percebia que ambos estavam amaldiçoados para sempre. Em seguida, Luca Brasi voltou-se para Filomena e falou asperamente:
— Faça o que eu lhe disse, eu a farei rica.
Filomena não pôde falar, tamanho era o seu terror. Balançou a cabeça. Finalmente, conseguiu murmurar:
— Faça você, você é o pai, faça se você quiser.
Mas Brasi não respondeu. Em lugar disso, puxou uma faca de dentro da camisa.
— Eu lhe corto a garganta — ameaçou ele.
Filomena deve ter entrado em choque então, porque o que ela se lembrava a seguir era de que todos eles estavam no porão da casa em frente de um forno de ferro quadrado. Filomena ainda segurava a criança no cobertor, que não soltara um som sequer (talvez se ela tivesse chorado, talvez se eu tivesse sido astuta demais para beliscá-la, disse Filomena, aquele monstro tivesse revelado misericórdia).
Um dos homens deve ter aberto a porta do forno, o fogo agora era visível. E então ela viu-se sozinha com Brasi naquele porão com seus canos transpirantes, seu cheiro de rato. Brasi estava com a faca na mão novamente. E não podia haver dúvida de que ele a mataria. Havia as chamas, havia os olhos de Brasi. O rosto dele era a gárgula do diabo, não era humano, não era normal. Ele a empurrou na direção da porta aberta do forno.
Nesse ponto, Filomena calou-se. Cruzou as mãos ósseas no colo e olhou diretamente para Michael. Ele sabia o que ela queria dizer, sem usar a voz. Ele perguntou gentilmente:
— Você fez aquilo?
Ela acenou com a cabeça.
Foi somente após outro copo de vinho e depois de persignar-se e murmurar uma prece que a velha continuou a contar a história. Deram-lhe um maço de dinheiro e levaram-na para casa. Ela sabia que se pronunciasse alguma palavra sobre o que acontecera seria assassinada. Mas, dois dias depois, Brasi matou a moça irlandesa, a mãe da criança, e foi preso pela polícia. Filomena, assustada e fora de si, foi ao Padrinho e contou o que ocorrera. Ele mandou que ela se calasse, que ele resolveria tudo. Nessa época, Brasi não trabalhava para Don Corleone.
Antes que Don Corleone pudesse acertar as coisas, Luca Brasi tentou o suicídio em sua cela, cortando a garganta com um pedaço de vidro. Foi transferido para o hospital da prisão e quando se restabeleceu Don Corleone já havia arranjado tudo. A polícia não pôde provar nada, a respeito do caso, no tribunal e Luca Brasi foi solto.
Embora Don Corleone tivesse assegurado a Filomena que nada tinha a recear de Luca ou da polícia, ela não tinha sossego. Seus nervos estavam em pandarecos e ela não podia mais trabalhar em sua profissão. Finalmente, convenceu o marido a vender a mercearia e eles retornaram à Itália. O marido era um homem bom, contaram-lhe tudo e ele compreendeu. Mas era um homem fraco e na Itália esbanjou a fortuna que ambos fizeram na América trabalhando arduamente. E, desse modo, depois que ele morreu ela se tornara criada.
Assim Filomena terminou a sua história. Tomou outro copo de vinho e disse a Michael:
— Abençôo o nome de seu pai. Ele sempre me mandava dinheiro quando eu pedia, ele me salvou de Brasi. Diga a ele que eu rezo uma prece pela alma dele toda noite e que ele não deve ter medo de morrer.
Depois que ela partiu, Michael perguntou a Don Tommasino:
— A história dela é verdadeira?
O capo-mafioso confirmou com a cabeça. E Michael pensou, não era de admirar que ninguém quisesse contar-lhe a história. Que história. Que Luca.
Na manhã seguinte, Michael queria discutir a coisa toda com Don Tommasino, mas soube que o velho fora chamado a Palermo por um recado urgente trazido por um mensageiro. Naquela noite, Don Tommasino voltou e levou Michael para um canto. Tinham chegado notícias da América, disse ele. Notícias que lamentava ter de contar.
Santino Corleone tinha sido assassinado.




 Continua...




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Frase Curiosa"Há apenas duas maneiras de obter sucesso neste mundo: pelas próprias habilidades ou pela incompetência alheia." Jean de La Bruyère

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