quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Capítulo 33





— CAPÍTULO TRINTA E TRÊS —
A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE



HARRY PERMANECEU AJOELHADO ao lado de Snape, simplesmente contemplando-o, até que, de súbito, uma voz aguda e fria falou tão perto que ele se pôs de pé com um salto, o frasco bem seguro na mão, pensando que Voldemort tivesse voltado à sala.
A voz do Lorde das Trevas ressoou nas paredes e no chão, e Harry percebeu que o bruxo estava se dirigindo a Hogwarts e a toda a área vizinha, para que os residentes de Hogsmeade e todos que ainda lutavam no castelo o ouvissem tão claramente como se estivesse ao lado deles, bafejando-lhes na nuca, à distância de um golpe mortal.
Vocês lutaram — disse a voz — Valorosamente. Lord Voldemort sabe valorizar a bravura. Vocês sofreram pesadas baixas. Se continuarem a resistir a mim, todos morrerão, um a um. Não quero que isto aconteça. Cada gota de sangue mágico derramado é uma perda e um desperdício. Lord Voldemort é misericordioso. Ordeno que as minhas forças se retirem imediatamente. Vocês têm uma hora. Deem um destino digno aos seus mortos. Cuidem dos seus feridos. Eu me dirijo agora diretamente a você, Harry Potter. Você permitiu que os seus amigos morressem por você em lugar de me enfrentar pessoalmente. Esperarei uma hora na Floresta Proibida. Se ao fim desse prazo, você não tiver vindo ao meu encontro, não tiver se entregado, então a batalha recomeçará. Desta vez eu participarei da luta, Harry Potter, e o encontrarei, e castigarei até o último homem, mulher e criança que tentou escondê-lo de mim. Uma hora.
Ambos, Rony e Hermione, sacudiram a cabeça freneticamente, olhando para Harry.
— Não dê ouvidos a ele — disse Rony.
— Tudo dará certo — acrescentou Hermione, irrefletidamente — Vamos voltar ao castelo, se ele foi para a Floresta precisaremos pensar em um novo plano...
Ela olhou para o corpo de Snape e voltou correndo ao túnel. Rony seguiu-a. Harry recolheu a Capa da Invisibilidade tornou a lançar um olhar a Snape. Não sabia o que sentir, exceto choque pela maneira como fora morto, e a razão alegada...
Eles voltaram engatinhando pelo túnel, calados, e Harry ficou em dúvida se Rony e Hermione ainda conseguiam ouvir o eco das palavras de Voldemort em sua cabeça, como ele.
Você permitiu que os seus amigos morressem por você em lugar de me enfrentar pessoalmente. Esperarei uma hora na Floresta Proibida... uma hora...
Pequenos embrulhos pareciam coalhar o gramado em frente ao castelo. Devia faltar pouco mais de uma hora para amanhecer, mas estava um breu. Os três se apressaram em direção aos degraus de pedra da entrada. Um tamanco solitário, do tamanho de um pequeno barco, se achava abandonado ali. Não havia sinal de Grope nem do seu atacante.
O castelo estava anormalmente silencioso. Não havia clarões agora, nem estampidos, nem gritaria. As lajes do deserto Saguão de Entrada estavam manchadas de sangue. As esmeraldas continuavam espalhadas pelo piso ao lado de pedaços de mármore e lascas de madeira. Parte do balaústre fora destruído.
— Onde estão todos? — sussurrou Hermione.
Rony saiu à frente para o Salão Principal.
Harry parou à porta.
As mesas das Casas tinham sido retiradas, e o salão estava lotado. Os sobreviventes formavam grupos, abraçando uns aos outros. Na plataforma, os feridos recebiam atendimento de Madame Pomfrey e seus auxiliares. Firenze estava entre os feridos, seu flanco sangrava e ele se agitava deitado, incapaz de se levantar.
Os mortos estavam enfileirados no meio do salão.
Harry não viu o corpo de Fred, porque a família o rodeava. Jorge estava ajoelhado à cabeça do irmão gêmeo, a Sra. Weasley se deitara sobre o seu peito, o corpo sacudindo, o Sr. Weasley acariciava os cabelos dela e as lágrimas desciam em cascata pelo seu rosto. Sem dizer palavra a Harry, Rony e Hermione se afastaram. Harry viu Hermione se aproximar de Gina, cujo rosto estava inchado e borrado, e abraçou-a. Rony se juntou a Gui, Fleur e Percy, que passou o braço pelos ombros do irmão.
Quando Gina e Hermione se aproximaram do resto da família, Harry pôde ver com clareza os corpos ao lado de Fred: Remo e Tonks, pálidos e imóveis, a fisionomia plácida, aparentemente dormindo sob o escuro teto encantado.
O Salão Principal pareceu fugir, se tornar menor, encolher, quando Harry recuou tonto do portal. Não conseguia respirar. Não conseguia suportar a visão dos outros corpos, saber quem mais morrera por ele. Não conseguia suportar a ideia de se reunir aos Weasley, não conseguia olhar em seus olhos, pois se ele tivesse se sacrificado em primeiro lugar, Fred talvez não tivesse morrido...
Ele deu as costas e subiu, rápido, a escadaria de mármore.
Lupin, Tonks... ele ansiava por não sentir... desejava poder arrancar seu coração, suas entranhas, tudo que estava gritando dentro dele...
O castelo estava completamente vazio, até os fantasmas pareciam ter se reunido ao funeral coletivo no Salão Principal. Harry correu sem parar, apertando o frasco de cristal contendo as últimas lembranças de Snape, e não desacelerou até alcançar a gárgula de pedra que guardava o gabinete do diretor.
— Senha?
— Dumbledore! — disse, sem pensar, porque era quem ele ansiava por ver, e, para sua surpresa, a gárgula se afastou revelando a escada circular que protegia.
Quando, porém, Harry irrompeu pelo gabinete, encontrou-o mudado. Os retratos pendurados a toda volta estavam vazios. Nem um único diretor ou diretora ficara para vê-lo: pelo visto, todos tinham saído voando, atravessado os quadros que se alinhavam pelo castelo, para poder ter uma boa visão dos acontecimentos.
Harry olhou desesperado para o quadro deserto de Dumbledore, diretamente atrás da cadeira do diretor, e lhe deu as costas. A Penseira de pedra estava no armário onde sempre estivera: Harry carregou-a para cima da escrivaninha e despejou as lembranças de Snape na grande bacia com a borda de runas. Fugir para a cabeça de outro era um alívio abençoado... nada que mesmo alguém como Snape tivesse lhe deixado poderia ser pior do que os seus próprios pensamentos. As lembranças giraram, branco-prateadas e estranhas, e, sem hesitar, possuído de um sentimento de irrefletido abandono, como se isso pudesse aliviar a tortura do seu pesar, Harry mergulhou.
Caiu de cabeça em um lugar ensolarado e seus pés encontraram um chão morno. Quando se endireitou, viu que estava em um parquinho infantil quase deserto.
Uma enorme chaminé solitária dominava o horizonte distante. Duas meninas se balançavam para frente e para trás, e um menino magricela as observava, de trás de uma moita de arbustos. Seus cabelos negros eram demasiado longos e suas roupas tão díspares que isso até parecia intencional: jeans excessivamente curto, um casaco enxovalhado e tão largo que poderia ter pertencido a um adulto, uma camisa estranha, com aspecto de bata.
Harry se acercou do garoto. Snape não parecia ter mais de nove ou dez anos, macilento, pequeno, rijo. Havia uma indisfarçável cobiça em seu rosto magro ao espiar a mais jovem das meninas que se balançava mais alto do que a irmã.
— Lílian, não faz isso! — gritava a mais velha.
A garota, porém, soltava o balanço na altura máxima do arco que descrevia e voava no ar, literalmente voava, atirava-se para o céu com uma grande gargalhada e, em vez de cair no asfalto do parquinho, pairava no ar como uma artista de trapézio, permanecendo no alto tempo demais, aterrissando leve demais.
— Mamãe disse para você não fazer!
Petúnia parou o próprio balanço arrastando os calcanhares das sandálias no chão, produzindo um forte atrito, depois saltou, com as mãos nos quadris.
— Mamãe disse que você não podia, Lílian!
— Mas eu estou ótima — respondeu Lílian, ainda rindo — Túnia, dá uma olhada. Veja o que eu sei fazer.
Petúnia relanceou a sua volta. O parquinho estava deserto exceto pelas duas e, embora as garotas ignorassem, Snape. Lílian apanhara uma flor caída na moita em que o garoto espreitava. Petúnia se aproximou, evidentemente dividida entre a curiosidade e a desaprovação. Lílian esperou a irmã chegar suficientemente perto para poder ver bem, então estendeu a palma da mão. A flor estava ali, abrindo e fechando as pétalas, como uma bizarra ostra com muitos lábios.
— Para com isso! — guinchou Petúnia.
— Não estou machucando ninguém — respondeu Lílian, mas fechou a flor na mão e atirou-a no chão.
— Não é direito — reclamou Petúnia, mas seus olhos tinham acompanhado o voo da flor até o chão e se detiveram nela — Como é que você faz isso? — acrescentou, e havia um claro desejo em sua voz.
— É óbvio, não é? — Snape não conseguira mais se conter e saltara de trás da moita.
Petúnia gritou e voltou correndo para os balanços, mas Lílian, embora visivelmente assustada, não arredou pé. Snape pareceu se arrepender de ter se mostrado. Um colorido baço subiu às suas bochechas pálidas quando olhou para Lílian.
— O que é óbvio? — perguntou ela.
Snape tinha um ar de nervosa excitação. Com um olhar rápido à distante Petúnia, agora parada ao lado dos balanços, ele baixou a voz e disse:
— Sei o que você é.
— Como assim?
— Você é... você é uma bruxa — sussurrou Snape.
Ela se ofendeu.
— Não é bonito dizer isso a uma pessoa!
Ela deu as costas, empinou o nariz e se afastou com firmeza em direção à irmã.
— Não! — chamou Snape. Estava agora muito vermelho, e Harry se perguntou por que não tirava aquele casaco ridiculamente grande, a não ser que quisesse esconder a bata que usava por baixo. Ele saiu atrás das garotas abanando o casaco, já parecendo o absurdo morcego que veio a se tornar em adulto.
As irmãs o avaliaram, unidas em sua desaprovação, ambas se segurando na armação do balanço como se fosse um pique.
— Você é — disse Snape a Lílian — Você é uma bruxa. Estive observando um tempo. Mas não é uma coisa ruim. Minha mãe é, eu sou um bruxo.
A risada de Petúnia foi um balde de água fria.
— Bruxo! — guinchou ela, retomando a coragem, agora que se refizera do choque de sua inesperada aparição — Eu sei quem você é. Você é aquele garoto Snape! Mora na Rua da Fiação, na beira do rio — disse Petúnia à irmã, deixando evidente, pelo seu tom, que considerava o endereço uma fraca recomendação — Por que estava nos espionando?
— Não estava espionando — respondeu Snape, vermelho e constrangido, os cabelos sujos à claridade do sol — Não espionaria você, pode ter certeza — acrescentou vingativo — Você é uma trouxa.
Embora Petúnia não entendesse a palavra, o tom não deixava dúvida.
— Lílian, anda, vamos embora! — disse esganiçada.
Lílian obedeceu imediatamente à irmã, fazendo cara feia para Snape ao se afastar. Ele ficou parado observando-as se dirigirem ao portão do parquinho, e Harry, o único que restara ali, reconheceu o amargo desapontamento de Snape e compreendeu que o bruxo planejara aquele momento há muito tempo e que tudo saíra errado...
A cena se dissolveu e, antes que Harry tomasse consciência, uma nova se formara ao seu redor. Achava-se agora em um arvoredo. Via o rio banhado de sol cintilando entre os troncos. As sombras projetadas pelas árvores produziam um círculo de sombra verde e fresca. Snape agora despira o casaco; sua bata esquisita causava menos estranheza à meia-luz.
—... e o Ministério pode punir você se usar magia fora da escola, você recebe cartas.
— Mas eu usei magia fora da escola!
— Não é o nosso caso. Ainda não temos varinhas. Não castigam quando a gente é criança e não consegue se controlar. Mas quando se faz onze anos — ele acenou a cabeça com autoridade — E começam a nos ensinar, então temos que maneirar.
Houve um breve silêncio. Lílian apanhara um gravetinho no chão e girou-o no ar, e Harry percebeu que ela estava imaginando faíscas saindo de sua ponta. Ela largou o graveto, se inclinou para o garoto e perguntou:
— Isso é verdade, não é? Não é uma brincadeira? Petúnia diz que você está mentindo. Petúnia diz que Hogwarts não existe. É verdade, não é?
— É verdade para nós — respondeu Snape — Não para ela. Mas nós receberemos a carta, você e eu.
— Sério? — sussurrou Lílian.
— Sem a menor dúvida — e mesmo com os seus cabelos mal cortados e suas roupas descombinadas, ele era uma figura estranhamente impressionante, esparramado à sua frente, esbanjando confiança no próprio destino.
— E realmente vai ser entregue por uma coruja? — sussurrou Lílian.
— Normalmente é. Mas você é nascida trouxa, então alguém da escola terá de vir explicar aos seus pais.
— Faz diferença ser nascida trouxa?
Snape hesitou. Seus olhos negros, ansiosos à sombra esverdeada, percorreram o rosto pálido e os cabelos acaju da garota.
— Não — garantiu ele — Não faz a menor diferença.
— Que bom — disse Lílian, se descontraindo: era evidente que andara preocupada.
— Você tem muita magia. Eu vi. Todas as vezes que estive espiando você.
Sua voz foi se distanciando; ela não estava mais ouvindo, deitara-se no chão coberto de folhas e contemplava a abóbada de folhas no alto. Ele a observava tão avidamente quanto o fizera no parquinho.
— Como vão as coisas em sua casa? — perguntou Lílian.
Um pequeno vinco apareceu entre os olhos dele.
— Ótimas.
— Eles não estão mais brigando?
— Ah, sim, continuam brigando — ele apanhou um punhado de folhas e começou a rasgá-las, aparentemente sem notar o que estava fazendo — Mas não vai demorar muito e logo terei ido embora.
— O seu pai não gosta de magia?
— Ele não gosta muito de nada.
— Severo?
Um pequeno sorriso curvou os cantos da boca de Snape ao ouvi-la pronunciar o seu nome.
— Quê?
— Me fale outra vez dos dementadores.
— Para que quer saber sobre eles?
— Se eu usar magia fora da escola...
— Não entregariam você aos dementadores só por isso! São para as pessoas que fazem coisas realmente ruins. Os dementadores guardam a prisão dos bruxos, Azkaban. Você não vai para Azkaban, você é muito...
Ele corou novamente e rasgou mais folhas. Então, um leve farfalhar atrás de Harry o fez se virar: Petúnia, escondida atrás de uma árvore, se desequilibrara.
— Túnia! — exclamou Lílian, havia surpresa e boas-vindas em sua voz, mas Snape saltara em pé.
— Quem está espionando agora? — gritou — Que é que você quer?
Petúnia ficou ofegante, assustada por ter sido descoberta. Harry viu que se concentrava à procura de alguma coisa para dizer que o magoasse.
— Afinal, o que é isso que você está vestindo? — perguntou ela, apontando para o peito de Snape — A blusa da sua mãe?
Ouviram um estalo: caíra um galho na cabeça de Petúnia. Lílian gritou; o galho bateu no ombro da irmã, que cambaleou e caiu no choro.
— Túnia!
Petúnia, porém, estava fugindo.
Lílian virou-se para Snape.
— Você fez isso acontecer?
— Não — em seu rosto havia desafio e medo.
— Fez! — ela foi se afastando dele — Fez, sim! Você a machucou!
— Não... não fiz!
A mentira, no entanto, não convenceu Lílian, lançando-lhe um último olhar fulminante, ela saiu correndo do arvoredo atrás da irmã, deixando Snape com um ar infeliz e confuso...
A cena se reformulou.
Harry olhou para os lados: estava na plataforma nove e meia com Snape ao seu lado, ligeiramente curvo, ao lado de uma mulher magra de rosto pálido e azedo, parecidíssima com ele.
O garoto observava uma família de quatro pessoas não muito longe. As duas garotas um pouco separadas dos pais. Lílian parecia estar justificando alguma coisa para a irmã; Harry aproximou-se para ouvir.
—... desculpe, Túnia, me desculpe! Escute... — ela segurou a mão da irmã e apertou-a, embora Petúnia tentasse se desvencilhar — Talvez quando eu estiver lá... não, escute, Túnia! Talvez quando eu estiver lá, eu possa procurar o Prof. Dumbledore e convencê-lo a mudar de ideia!
— Eu não... quero... ir! — disse Petúnia, ela puxou com força a mão do aperto da irmã — Você acha que eu quero ir para um castelo idiota e aprender a ser... ser...
O seu olhar percorreu a plataforma, passou pelos gatos que miavam no colo dos seus donos, pelas corujas que esvoaçavam piando umas para as outras nas gaiolas, pelos estudantes, alguns já usando longas vestes pretas, embarcando os malões no trem de locomotiva vermelha ou então se cumprimentando com gritos de alegria, depois de um verão separados.
—... você acha que quero ser um... um bicho estranho?
Os olhos de Lílian se encheram de lágrimas quando Petúnia conseguiu largar a mão dela.
— Não sou um bicho estranho — respondeu Lílian — Que coisa horrível para dizer.
— É para onde você vai — insistiu Petúnia, com gosto — Uma escola especial para bichos estranhos. Você e aquele garoto Snape... bizarros, é o que vocês são. É bom que sejam isolados das pessoas normais. É para a nossa segurança.
Lílian olhou em direção aos seus pais, que examinavam a plataforma com um ar de entusiástico prazer, absorvendo o cenário. Então, ela voltou o olhar para a irmã e sua voz era suave e cruel.
— Você não achou que era uma escola para anormais quando escreveu ao diretor suplicando que a aceitasse.
Petúnia ficou escarlate.
— Suplicando? Não supliquei!
— Eu vi a resposta dele. Foi muito bondosa.
— Você não devia ter lido... — sussurrou Petúnia — Era minha e particular... como pôde...?
Lílian se traiu ao dar uma olhada em Snape parado ali perto. Petúnia ofegou.
— Foi aquele garoto que descobriu! Você e aquele garoto andaram espionando o meu quarto!
— Não... não espionando... — agora Lílian estava na defensiva — Severo viu o envelope, e não pôde acreditar que uma trouxa tivesse escrito para Hogwarts, foi isso! Ele diz que deve haver bruxos infiltrados nos correios que se encarregam de...
— Pelo visto, os bruxos metem o nariz em tudo! — replicou Petúnia, agora tão pálida quanto estivera corada — Anormal! — ela cuspiu na irmã e voltou acintosamente para o lado dos pais...
A cena se dissolveu mais uma vez.
Snape estava andando apressado pelo corredor do Expresso de Hogwarts enquanto o veículo sacudia pelos campos. Já trocara as vestes da escola, talvez aproveitando a primeira oportunidade para despir suas horríveis roupas de trouxa. Finalmente, parou à porta de um compartimento onde um grupo de garotos barulhentos conversava. Encolhida no canto ao lado da janela, estava sentada Lílian, o rosto colado na vidraça.
Snape abriu a porta do compartimento e se sentou em frente à garota. Ela lhe lançou um breve olhar e tornou a voltar sua atenção para a janela. Estivera chorando.
— Não quero falar com você — disse, em tom crispado.
— Por que não?
— Túnia me od... odeia. Porque vimos aquela carta do Dumbledore.
— E daí?
Ela lhe lançou um olhar de profundo desagrado.
— E daí que ela é minha irmã!
— Ela é só uma... — Ele se refreou depressa; Lílian, ocupada demais em secar os olhos discretamente, não o ouviu — Mas nós vamos! — exclamou ele, incapaz de conter a exaltação na voz — Isso é o que conta! Estamos viajando para Hogwarts!
Ela concordou, enxugando os olhos, e, apesar de não querer, deu um meio sorriso.
— É melhor você entrar para a Sonserina — disse Snape, animado ao vê-la menos triste.
— Sonserina?
Um dos garotos que dividia com eles o compartimento, e até aquele momento não mostrara o menor interesse em Lílian e Snape, olhou para o lado ao ouvir aquele nome, e Harry, cuja atenção estivera totalmente concentrada nos dois ao lado da janela, viu seu pai: magro, cabelos negros como os de Snape, mas com aquele ar indefinível de alguém que foi bem cuidado, até adorado, que visivelmente faltava a Snape.
— Quem quer ir para a Sonserina? Acho que eu desistiria da escola, você não? — Tiago perguntou a um garoto esparramado nos assentos defronte a ele, e, com um sobressalto, Harry percebeu que era Sirius. Sirius não riu.
— Toda a minha família foi da Sonserina.
— Caramba — replicou Tiago — E eu que pensei que você fosse legal!
Sirius riu.
— Talvez eu quebre a tradição. Para qual você iria se pudesse escolher?
Tiago ergueu uma espada invisível.
— “Grifinória, a morada dos destemidos!”. Como o meu pai.
Snape deu um muxoxo de descaso.
Tiago se virou para ele.
— Algum problema?
— Não — retrucou Snape, embora seu sorrisinho de deboche dissesse o contrário — Se você prefere ter mais músculo do que cérebro...
— E para onde está esperando ir, uma vez que não tem nenhum dos dois? — interpôs Sirius.
Tiago deu gostosas gargalhadas. Lílian se empertigou, ruborizada, e olhou de Tiago para Sirius com ar de desagrado.
— Vamos, Severo, vamos procurar outro compartimento.
— Oooo...
Tiago e Sirius imitaram o seu tom de superioridade, Tiago tentou fazer Snape tropeçar quando ele passou.
— A gente se vê, Ranhoso! — uma voz gritou quando a porta do compartimento bateu...
Mais uma vez a cena se dissolveu...
Harry estava atrás de Snape, ambos observando as mesas iluminadas a velas, repletas de rostos extasiados. Então, a Profª. McGonagall chamou:
— Evans, Lílian!
Ele observou a mãe se adiantar de pernas trêmulas e se sentar no banquinho bambo. A professora deixou cair o Chapéu Seletor sobre sua cabeça, e, mal se passara um segundo após tocar seus cabelos acaju, o chapéu anunciou: “Grifinória!”.
Harry ouviu Snape soltar um pequeno gemido. Lílian tirou o chapéu, devolveu-o à Profª. McGonagall, e correu ao encontro dos alunos da Grifinória que a aplaudiam, mas a caminho se virou para olhar Snape, e havia um sorriso triste no rosto dela. Harry viu Sirius escorregar no banco para dar espaço a Lílian. Ela deu uma olhada e pareceu reconhecê-lo do trem, cruzou os braços e, com firmeza, virou-lhe as costas. A chamada continuou. Harry observou Lupin, Pettigrew e seu pai se reunirem a Lílian e Sirius à mesa da Grifinória. Por fim, quando restavam apenas dez estudantes a serem selecionados, a Profª. McGonagall chamou Snape.
Harry acompanhou-o ao banquinho, viu-o colocar o chapéu na cabeça. “Sonserina!”, anunciou o Chapéu Seletor. E Severo Snape andou para o lado oposto do salão, longe de Lílian, onde os alunos da Casa o aplaudiam e Lúcio Malfoy, com um crachá de monitor brilhando no peito, deu-lhe uma palmadinha nas costas quando Snape se sentou ao seu lado...
E a cena mudou...
Lílian e Snape atravessavam o pátio do castelo, discutindo abertamente. Harry se apressou a alcançá-los e escutar. Quando chegou perto, percebeu o quanto ambos haviam crescido: alguns anos pareciam ter transcorrido desde a seleção.
—... pensei que fôssemos amigos? — reclamava Snape — Grandes amigos?
— Somos, Sev, mas não gosto de um pessoal com quem você anda! Desculpe, mas detesto Avery e Mulciber! Mulciber! O que vê nele, Sev? Me dá arrepios! Você sabe o que ele tentou fazer com a Maria Macdonald outro dia?
Lílian chegou a uma pilastra e se encostou, com os olhos erguidos para o rosto magro e macilento.
— Aquilo não foi nada. Foi uma brincadeira, só isso...
— Foi Magia das Trevas, e se você acha que isso é brincadeira...
— E aquelas coisas que Potter e os amigos dele aprontam? — retrucou Snape. Seu rosto corou ao dizer isso, aparentemente incapaz de refrear o seu rancor.
— E onde é que o Potter entra nisso? — perguntou Lílian.
— Eles saem escondidos à noite. Tem alguma coisa esquisita naquele Lupin. Aonde é que ele sempre vai?
— Ele é doente. Dizem que é doente.
— Todo mês na lua cheia?
— Conheço a sua teoria — replicou Lílian, e seu tom era frio — Afinal, por que você é tão obcecado por eles? Por que se importa com o que eles fazem à noite?
— Só estou tentando lhe mostrar que eles não são tão maravilhosos quanto todo o mundo parece pensar.
A intensidade do seu olhar a fez corar.
— Mas eles não usam Magia das Trevas. — Lílian baixou a voz — E você está sendo realmente ingrato. Me contaram o que aconteceu outra noite. Você estava bisbilhotando naquele túnel do Salgueiro Lutador e Tiago Potter salvou você de sei lá o que tem lá embaixo...
O rosto de Snape se contorceu e ele engrolou:
— Salvou? Salvou? Você acha que ele estava bancando o herói? Ele estava salvando o próprio pescoço e o dos amigos também! Você não vai... eu não vou deixar você...
— Me deixar? Me deixar?
Os vivos olhos verdes de Lílian se estreitaram.
Snape retrocedeu na mesma hora.
— Eu não quis dizer... só não quero ver você fazer papel de boba... ele gosta de você, Tiago Potter gosta de você! — as palavras davam a impressão de serem arrancadas dele contra sua vontade — E ele não é... todo o mundo acha... grande herói de quadribol...
A amargura e a antipatia que Snape sentia deixavam-no incoerente, e as sobrancelhas de Lílian subiam sem parar em sua testa.
— Eu sei que Tiago Potter é um biltre arrogante — disse ela, cortando Snape — Não preciso que você me diga. Mas a ideia que Mulciber e Avery fazem do que seja brincadeira é simplesmente maligna. Maligna, Sev. Não entendo como você pode ser amigo deles.
Harry duvidava que Snape tivesse sequer escutado as críticas de Lílian a Mulciber e Avery. No momento em que ela insultara Tiago Potter, todo o seu corpo se descontraiu, e, quando se separaram, havia uma nova leveza no andar de Snape...
E a cena se dissolveu...
De novo, Harry observou Snape deixar o salão principal, após prestar o exame de Defesa Contra as Artes das Trevas para obtenção do N.O.M., sair do castelo sem destino e, distraído, parar perto da bétula onde Tiago, Sirius, Lupin e Pettigrew estavam sentados juntos. Desta vez, porém, Harry guardou distância, porque sabia o que tinha acontecido depois que Tiago pendurou Severo no ar para atormentá-lo; sabia o que tinha sido feito e dito, e não lhe daria prazer algum tornar a assistir. Ele viu quando Lílian se reuniu ao grupo e saiu em defesa de Snape. A distância, ouviu o grito de Snape para ela em sua fúria e humilhação, a palavra imperdoável: “Sangue-Ruim”.
A cena mudou...
— Me desculpe.
— Não estou interessada.
— Me desculpe!
— Poupe seu fôlego.
Era noite. Lílian, de robe, estava parada de braços cruzados diante do retrato da Mulher Gorda, à entrada da Torre de Grifinória.
— Eu só saí porque Maria me disse que você estava ameaçando dormir aqui.
— Estava. Teria feito isso. Nunca quis chamar você de Sangue-Ruim, simplesmente me...
— Escapou? — não havia piedade na voz de Lílian — É tarde demais. Há anos dou desculpas para o que você faz. Nenhum dos meus amigos consegue entender sequer por que falo com você. Você e seus preciosos amiguinhos Comensais da Morte: está vendo, você nem nega! Nem nega que é isso que vocês pretendem ser! Você mal pode esperar para se reunir a Você-Sabe-Quem, não é?
Ele abriu a boca, mas tornou a fechá-la sem falar.
— Não posso mais fingir. Você escolheu o seu caminho, eu escolhi o meu.
— Não... escute, eu não quis...
—... me chamar de Sangue-Ruim? Mas você chama de Sangue-Ruim todos que nasceram como eu, Severo. Por que eu seria diferente?
Ele se debateu, prestes a responder, mas, com um olhar de desprezo, Lílian lhe deu as costas e atravessou o buraco do retrato...
O corredor se dissolveu, e a cena seguinte demorou um pouquinho a se formar: Harry teve a impressão de estar sobrevoando formas e cores mutantes até que o cenário se solidificou e ele se viu parado no escuro, no cume de um morro, abandonado e frio, o vento assoviando entre os galhos de umas poucas árvores desfolhadas.
O Snape adulto arfava, virava-se no mesmo lugar, a mão apertando com força a varinha, esperando alguma coisa ou alguém... seu medo contagiou Harry, embora o garoto soubesse que não podia ser atingido, e ele espiou por cima do ombro, imaginando o que Snape estaria aguardando...
Então, um feixe denteado de ofuscante luz branca cortou o ar: Harry pensou em raio, mas Snape caíra de joelhos e sua varinha voara da mão.
— Não me mate!
— Não era a minha intenção.
Qualquer aviso da aparatação de Dumbledore fora abafado pelo ruído do vento passando pelos galhos. Ele surgiu diante de Snape com as vestes drapejando contra o corpo e o rosto iluminado de baixo para cima pela varinha.
— Então, Severo? Qual é a mensagem que Lord Voldemort tem para mim?
— Não... nenhuma mensagem, estou aqui por conta própria!
Snape torcia as mãos: parecia meio demente, com os cabelos negros desgrenhados voando em torno da cabeça.
— Eu... eu venho com um alerta... não, um pedido... por favor...
Dumbledore fez um gesto com a varinha. Embora as folhas e ramos ainda se agitassem no ar da noite ao redor, fez-se silêncio no lugar em que ele e Snape se defrontavam.
— Que pedido poderia um Comensal da Morte fazer a mim?
— A... a profecia... o vaticínio... Trelawney...
— Ah, sim. Quanto daquilo você relatou a Lord Voldemort?
— Tudo... tudo que ouvi! — respondeu Snape — É por isso... é por esta razão... que ele julga que se refere a Lílian Evans!
— A profecia não se referia a uma mulher. Mencionava um menino nascido no fim de Julho...
— O senhor sabe o que quero dizer! Ele acha que se refere ao filho dela, ele vai matá-la... matar a todos...
— Se ela significa tanto para você — disse Dumbledore — Certamente Lord Voldemort irá poupá-la, não? Você não poderia pedir a ele misericórdia para a mãe em troca do filho?
— Pedi... pedi a ele...
— Você me dá nojo — disse Dumbledore, e Harry nunca ouvira tanto desprezo em sua voz.
Snape pareceu se encolher um pouco.
— Você não se importa, então, com as mortes do marido e do filho dela? Eles podem morrer desde que você tenha o que quer?
Snape não disse nada, apenas ergueu os olhos para Dumbledore.
— Esconda-os todos, então — falou rouco — Mantenha ela... eles... em segurança. Por favor.
— E o que me dará em troca, Severo?
— Em... troca? — Snape olhou boquiaberto para Dumbledore, e Harry esperou que ele protestasse, mas, passado um longo momento, ele respondeu — O que quiser.
O cume do morro desapareceu e Harry se viu parado no gabinete de Dumbledore, e alguma coisa produzia um ruído terrível como o de um animal ferido. Snape estava dobrado para frente em uma cadeira e Dumbledore contemplava-o do alto, com um ar inflexível. Após alguns momentos, Snape ergueu o rosto, e parecia um homem que tivesse vivido cem anos de privações desde que deixara o cume do morro.
— Pensei... que o senhor fosse... mantê-la... segura...
— Ela e Tiago depositaram sua fé na pessoa errada — disse Dumbledore — Muito semelhante a você, Severo. Você não tinha a esperança de que Lord Voldemort fosse poupá-la?
A respiração de Snape era ansiosa.
— O filho dela sobreviveu — ressalvou Dumbledore.
Com um brusco e quase imperceptível aceno da cabeça, Snape pareceu espantar uma mosca irritante.
— O filho sobreviveu. Tem os olhos dela, exatamente os mesmos. Você certamente se lembra da forma e da cor dos olhos de Lílian Evans, não?
— NÃO! — berrou Snape — Se foi... Morreu...
— Isto é remorso, Severo?
— Eu gostaria... gostaria que eu é que estivesse morto...
— E que utilidade isso teria para alguém? — perguntou Dumbledore, friamente — Se você amou Lílian Evans, se você a amou verdadeiramente, então o seu caminho futuro é cristalino.
Snape parecia espiar através de uma névoa de dor, e as palavras de Dumbledore levaram um longo tempo para alcançá-lo.
— Como... como assim?
— Você sabe como e por que ela morreu. Empenhe-se para que não tenha sido em vão. Ajude-me a proteger o filho de Lílian.
— Ele não precisa de proteção. O Lorde das Trevas se foi...
—... o Lorde das Trevas retornará, e Harry correrá um perigo terrível quando isso ocorrer.
Fez-se uma longa pausa e lentamente Snape recuperou o controle, normalizou sua respiração. Por fim, disse:
— Muito bem. Muito bem. Mas jamais, jamais revele isso, Dumbledore! Isto deve ficar entre nós! Jure! Não posso suportar... particularmente o filho de Potter... quero sua palavra!
— Dou a minha palavra, Severo, de que jamais revelarei o que você tem de melhor — Dumbledore suspirou, olhando para o rosto feroz e angustiado de Snape — Se você insiste...
O gabinete se dissolveu, mas reapareceu instantaneamente. Snape andava de um lado para outro diante de Dumbledore.
—... medíocre, arrogante como o pai, deliberadamente indisciplinado, encantado com a fama, exibido e impertinente...
— Você vê o que espera ver, Severo — disse Dumbledore, sem erguer os olhos do exemplar de Transfiguração Hoje — Outros professores me informam que o garoto é modesto, amável e tem algum talento. Pessoalmente, eu o acho uma criança cativante.
Dumbledore virou uma página e disse sem erguer os olhos:
— Vigie Quirrell, por favor.
Um redemoinho de cor, e em seguida tudo escureceu, e Snape e Dumbledore estavam parados a certa distância no Saguão de Entrada, enquanto os retardatários do baile de Natal passavam a caminho do dormitório.
— Então? — murmurou Dumbledore.
— A Marca de Karkaroff está escurecendo também. Ele está em pânico, receia uma retaliação, você sabe o quanto ele ajudou o Ministério depois da queda do Lorde das Trevas — Snape olhou de esguelha para o perfil de nariz-torto de Dumbledore — Karkaroff pretende fugir se a Marca arder.
— É mesmo? — exclamou Dumbledore em voz baixa, no momento em que Fleur Delacour e Roger Davies entravam do jardim às risadinhas — E você está tentado se juntar a ele?
— Não — disse Snape, seus olhos negros acompanhando os dois alunos que se retiravam — Não sou tão covarde.
— Não — concordou Dumbledore — Você é um homem bem mais corajoso do que Karkaroff. Sabe, às vezes penso que fazemos a Seleção cedo demais...
Dumbledore se afastou, deixando Snape com um ar espantado...
E, mais uma vez, Harry se viu no gabinete do diretor. Era noite e Dumbledore estava sentado em sua cadeira-trono, à escrivaninha, com o corpo meio caído para um lado, aparentemente semiconsciente. Sua mão direita pendia do braço, escura e queimada. Snape murmurava encantamentos, apontando a varinha para o seu pulso, ao mesmo tempo em que, com a mão esquerda, inclinava uma taça cheia com uma densa poção dourada para a garganta de Dumbledore. Passados alguns momentos, as pálpebras dele mexeram e se abriram.
— Por quê? — perguntou Snape, sem preâmbulo — Por que você pôs esse anel no dedo? Ele tem um feitiço, certamente você percebeu isso. Por que tocou nele?
O anel de Servolo Gaunt estava sobre a mesa diante de Dumbledore. Estava rachado, e, a Espada de Gryffindor, ao lado da joia. Dumbledore fez uma careta.
— Fui... um tolo. Aflitivamente tentado...
— Tentado pelo quê?
Dumbledore não respondeu.
— É um milagre que tenha conseguido voltar a Hogwarts!
Havia fúria no tom de Snape.
— Esse anel carregava um feitiço de extraordinário poder, paralisá-lo é o máximo que podemos ter esperança de conseguir, por ora, restringi o feitiço a uma das mãos...
Dumbledore ergueu a mão enegrecida e inútil, examinou-a com a expressão de uma pessoa a quem mostrassem uma interessante curiosidade.
— Você cuidou muito bem de mim, Severo. Quanto tempo acha que me resta?
O tom de Dumbledore era coloquial, poderia estar perguntando qual era a previsão da meteorologia. Snape hesitou e então respondeu:
— Não sei dizer. Talvez um ano. Não há como paralisar um feitiço desses definitivamente. No fim, ele irá se espalhar, é o tipo de feitiço que se fortalece com o tempo.
Dumbledore sorriu. A notícia de que tinha menos de um ano de vida lhe pareceu de pequena ou nenhuma consequência.
— Tenho a sorte, a extrema sorte, de contar com você, Severo.
— Se tivesse mandado me chamar um pouco mais cedo, eu talvez tivesse podido fazer mais, ganhar mais tempo para você! — disse Snape, indignado. Ele olhou para o anel partido e a espada — Você achou que partindo o anel pudesse romper o feitiço?
— Algo parecido... sem dúvida eu estava delirando... — respondeu Dumbledore. Com esforço ele se aprumou na cadeira — Bem, realmente isso torna as questões mais objetivas.
Snape pareceu extremamente espantado.
Dumbledore sorriu.
— Estou me referindo ao plano que Lord Voldemort está tecendo a meu respeito. O plano de mandar o coitado do menino Malfoy me liquidar.
Snape sentou-se na cadeira que Harry tantas vezes ocupara em frente à mesa de Dumbledore. O garoto percebeu que ele queria acrescentar mais alguma coisa a respeito da mão amaldiçoada de Dumbledore, mas o diretor ergueu-a em uma cortês recusa de continuar a discutir o assunto. Amarrando a cara, Snape comentou:
— O Lorde das Trevas não espera que Draco seja bem-sucedido. Isto é apenas um castigo pelos recentes malogros de Lúcio. Uma tortura lenta para os pais de Draco, que o observam fracassar e pagar o preço.
— Em suma, o menino foi sentenciado à morte com tanta certeza quanto eu — disse Dumbledore — Agora, eu diria que o sucessor natural para esse serviço, se Draco não tiver êxito, será você, não?
Houve uma breve pausa.
— Esse, acho, é o plano do Lorde das Trevas.
— Lord Voldemort prevê um momento em futuro próximo em que não precisará ter um espião em Hogwarts?
— Ele acredita que a escola logo estará nas mãos dele, sim.
— E se realmente cair nas mãos dele — disse Dumbledore, quase como um aparte — Tenho a sua palavra de que fará tudo em seu poder para proteger os estudantes de Hogwarts?
Snape assentiu formalmente.
— Ótimo. Agora então, sua prioridade será descobrir o que Draco está fazendo. Um adolescente amedrontado é um perigo para os outros e para si mesmo. Ofereça-se para ajudá-lo e orientá-lo, ele deve aceitar, ele gosta de você...
—... menos, desde que o pai caiu em desgraça. Draco me culpa, acha que usurpei a posição de Lúcio.
— Ainda assim, tente. Estou menos preocupado comigo do que com as vítimas acidentais dos planos que possam ocorrer ao menino. Em última hipótese, é claro, há apenas uma coisa a fazer se você quiser salvá-lo da ira de Lord Voldemort.
Snape ergueu as sobrancelhas e seu tom foi sardônico quando perguntou:
— Você está pretendendo deixar que Draco o mate?
— Certamente que não. Você deverá me matar.
Houve um longo silêncio, quebrado apenas por estranhos cliques. Fawkes, a fênix, estava roendo um pedaço de osso de siba.
— Quer que eu faça isso agora? — perguntou Snape, a voz carregada de ironia — Ou gostaria de ter alguns momentos para compor um epitáfio?
— Ah, ainda não — respondeu Dumbledore sorrindo — Acho que a oportunidade se apresentará no devido tempo. Considerando o que aconteceu esta noite — ele indicou a mão murcha — Podemos ter certeza de que isso ocorrerá dentro de um ano.
— Se você não se importa de morrer — disse Snape, com aspereza — Então por que não deixa Draco fazer isso?
— A alma daquele menino ainda não está totalmente comprometida — contestou Dumbledore — Eu não permitiria que se rompesse por minha causa.
— E a minha alma, Dumbledore? A minha?
— Somente você é capaz de saber se prejudicará sua alma ajudar um velho a evitar a dor e a humilhação — replicou Dumbledore — Peço a você um único e grande favor, Severo, porque a morte está vindo me buscar tão certo quanto os Chudley Cannons terminarão este ano em último lugar. Confesso que prefiro uma saída rápida e indolor à opção demorada e suja que terei se, por exemplo, Greyback estiver envolvido, ouvi dizer que Voldemort o recrutou. Ou se for a cara Belatriz, que gosta de brincar com a comida antes de comê-la.
Seu tom era leve, mas seus olhos azuis perfuravam Snape como tão frequentemente perfuravam Harry, como se ele pudesse ver a alma que discutiam. Por fim, Snape fez um breve aceno com a cabeça.
Dumbledore pareceu satisfeito.
— Obrigado, Severo...
O gabinete desapareceu, e agora Snape e Dumbledore estavam caminhando juntos nos jardins desertos do castelo ao crepúsculo.
— Que é que você está fazendo com Potter, todas essas noites em que se trancam no gabinete? — perguntou Snape, abruptamente.
Dumbledore tinha o ar abatido.
— Por quê? Você está tentando lhe dar mais detenções, Severo? Logo o menino passará mais tempo em detenções do que fora delas.
— Ele é o pai sem tirar nem pôr...
— Na aparência, talvez, mas, em sua natureza profunda, ele parece muito mais com a mãe. Gasto tempo com Harry porque tenho coisas a conversar com ele, informações que preciso lhe passar antes que seja tarde demais.
— Informações — respondeu Snape — Você as confia a ele... não as confia a mim.
— Não é uma questão de confiança. Tenho, como ambos sabemos, um tempo limitado. É essencial que eu dê ao menino informações suficientes para ele fazer o que precisa ser feito.
— E não posso receber as mesmas informações?
— Prefiro não guardar todos os meus segredos em uma única cesta, particularmente uma cesta que passa tanto tempo pendurada no braço de Lord Voldemort.
— O que faço cumprindo suas ordens!
— E faz isso extremamente bem. Não pense que subestimo o constante perigo em que se coloca, Severo. Dar a Voldemort informações que pareçam valiosas, negando-lhe o essencial, é um serviço que eu não confiaria a ninguém exceto você.
— Contudo, você faz muito mais confidências a um garoto que é incapaz de Oclumência, cuja magia é medíocre e que tem uma ligação direta com a mente do Lorde das Trevas!
— Voldemort teme essa ligação. Não faz muito tempo, ele provou um pouquinho do que realmente significa partilhar a mente de Harry. Foi uma dor que ele jamais experimentara na vida. Não tentará possuir Harry outra vez, tenho certeza. Não da mesma forma.
— Não estou entendendo.
— A alma de Lord Voldemort, mutilada como está, não suporta o contato com uma mente como a de Harry. É como o contato de uma língua com o aço congelado, como a carne do corpo em chamas...
— Almas? Estamos falando de mentes!
— No caso de Harry e Lord Voldemort, falar em uma é falar da outra.
Dumbledore olhou ao redor para se certificar de que se encontravam realmente sozinhos. Agora estavam muito próximos da Floresta Proibida, mas não havia sinal de ninguém na vizinhança.
— Depois que me matar, Severo...
— Você se recusa a me contar tudo, no entanto espera de mim esse pequeno serviço! — rosnou Snape, e uma fúria real inflamou o seu rosto magro — Você presume muita coisa, Dumbledore! Talvez eu tenha mudado de ideia!
— Você me deu a sua palavra, Severo. E, já que estamos falando em serviços, você está em falta comigo, pensei que tivesse concordado em vigiar o nosso jovem amigo da Sonserina?
Snape não escondia a raiva, a rebeldia. Dumbledore suspirou.
— Venha ao meu gabinete hoje à noite, Severo, às onze, e você não se queixará de que não tenho confiança em você.
Tinham voltado ao gabinete de Dumbledore, as janelas escuras, e Fawkes estava tão silenciosa quanto Snape imóvel na cadeira, e o diretor andava em volta dele, falando.
— Harry não pode saber, não até o último momento, não até que seja necessário, do contrário como poderia ter a força para fazer o que deve ser feito?
— Mas o que deve fazer?
— Isto é entre mim e Harry. Agora escute bem, Severo. Virá um tempo... depois da minha morte... não discuta, não interrompa! Virá um tempo em que Lord Voldemort temerá pela vida da cobra dele.
— Por Nagini? — Snape pareceu admirado.
— Exatamente. Quando chegar o momento em que Lord Voldemort parar de mandar a cobra cumprir os seus mandados, e a mantiver segura ao seu lado, sob proteção mágica, então, acho, não haverá perigo em contar a Harry.
— Contar o quê?
Dumbledore inspirou profundamente e fechou os olhos.
— Conte-lhe que na noite em que Lord Voldemort tentou matá-lo, quando Lílian pôs a própria vida entre os dois como um escudo, a Maldição da Morte ricocheteou em Lord Voldemort, e um fragmento da alma dele irrompeu do todo e se prendeu à única alma sobrevivente na casa que desabava. Parte de Lord Voldemort vive em Harry, e é esta parte que lhe dá tanto a capacidade de falar com cobras quanto uma ligação com a mente de Lord Voldemort que ele jamais entendeu. E enquanto esse fragmento de alma, de que Voldemort não sentiu falta, permanecer preso e protegido por Harry, Lord Voldemort não poderá morrer.
Harry teve a sensação de estar observando os dois homens do fim de um longo túnel, tão distantes estavam dele, as vozes ecoando estranhamente em seus ouvidos.
— Então o garoto... o garoto deve morrer? — perguntou Snape, muito calmo.
— E é Voldemort quem deve matá-lo, Severo. Isto é essencial.
Seguiu-se outro longo silêncio. Então Snape falou:
— Pensei... todos esses anos... que nós o protegíamos por causa dela. De Lílian.
— Nós o protegíamos porque era essencial que fosse ensinado, criado e pudesse experimentar a própria força — explicou Dumbledore, com os olhos ainda fechados — Nesse meio tempo, a ligação entre os dois foi crescendo, um crescimento parasitário: às vezes penso que Harry suspeita disso. Se bem o conheço, tomará providências para que, ao sair ao encontro da morte, isto represente, verdadeiramente, o fim de Voldemort.
Dumbledore reabriu os olhos.
Snape estava horrorizado.
— Você o manteve vivo para que pudesse morrer na hora certa?
— Não fique chocado, Severo. Quantos homens e mulheres você viu morrer?
— Ultimamente apenas os que não pude salvar.
Ele se levantou.
— Você me usou.
— Em que sentido?
— Espionei por você, menti por você, corri risco mortal por você. Supostamente tudo para manter o filho de Lílian Potter vivo. Agora você me diz que o esteve criando como um porco para o abate...
— Ora, isso é comovente, Severo — exclamou Dumbledore, sério — Você acabou se afeiçoando ao menino, afinal?
— A ele? — gritou Snape — Expecto Patronum!
Da ponta de sua varinha irrompeu a corça prateada: ela pousou, correu pelo soalho do gabinete e saiu voando pela janela. Dumbledore observou-a se afastando pelos ares e, quando seu brilho prateado se dissipou, ele se dirigiu a Snape e seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Depois de todo esse tempo?
— Sempre — respondeu Snape.
E a cena mudou.
Agora Harry via Snape conversando com o retrato de Dumbledore atrás da escrivaninha.
— Você terá de informar a Voldemort a data certa da partida de Harry da casa dos tios — recomendou Dumbledore — Se não fizer isso, levantará suspeitas, uma vez que Voldemort o julga bem informado. Entretanto, você precisa plantar a ideia dos chamarizes: acho que isso deverá garantir a segurança de Harry. Tente confundir Mundungo Fletcher. E, Severo, se você for obrigado a tomar parte na perseguição, assegure-se de representar a sua parte convincentemente... estou contando com você para continuar nas boas graças de Lord Voldemort o maior tempo possível, ou Hogwarts ficará à mercê dos Carrow...
Agora Snape estava face a face com Mundungo em uma taberna desconhecida, o rosto deste parecendo curiosamente inexpressivo, Snape franzindo a testa concentrado.
— Você irá sugerir à Ordem da Fênix — murmurou Snape — Que use chamarizes. Poção Polissuco. Potters idênticos. É a única coisa que poderia dar resultado. Você esquecerá que lhe sugeri isso. Apresentará a ideia como sua. Entendeu?
— Entendi — murmurou Mundungo, seus olhos desfocados...
Agora Harry estava voando emparelhado com a vassoura de Snape, através da noite escura e desanuviada: o professor ia acompanhado por outros Comensais da Morte encapuzados, e à sua frente estavam Lupin e Harry que era na realidade Jorge... um Comensal passou a frente de Snape e apontou a varinha diretamente para as costas de Lupin...
— Sectumsempra! — gritou Snape.
O feitiço que visava a mão do Comensal da Morte, no entanto, errou o alvo e atingiu Jorge...
No momento seguinte, Snape se achava ajoelhado no antigo quarto de Sirius. As lágrimas escorriam da ponta do seu nariz curvo ao ler a carta de Lílian. A segunda página tinha apenas algumas palavras:

... pudesse ter sido amigo de Gerardo Grindelwald. Pessoalmente, acho que ela está começando a caducar!

Afetuosamente,
Lílian

Snape removeu a página que continha a assinatura de Lílian e o seu afeto e guardou-a no bolso interno das vestes. Em seguida, rasgou ao meio a foto que segurava, para poder guardar a metade em que Lílian ria, e atirou a outra com Tiago e Harry no chão, sob a cômoda...
E agora Snape estava mais uma vez no gabinete do diretor e Fineus Nigellus voltava correndo para o seu quadro.
— Diretor! Eles estão acampando na Floresta do Deão! A Sangue-Ruim...
— Não use essa palavra!
—... que seja, a garota Granger mencionou o lugar quando abriu a bolsa e eu a ouvi!
— Muito bom. Ótimo! — exclamou o retrato de Dumbledore atrás da cadeira do diretor — Agora, Severo, a espada! Não esqueça que deve ser apanhada sob condições de necessidade e coragem, e ele não pode saber quem a está entregando! Se Voldemort puder ler a mente de Harry e vir você ajudando-o...
— Eu sei — respondeu Snape, secamente.
Aproximou-se, então, do retrato de Dumbledore e afastou-o para um lado. O quadro girou para frente, revelando uma cavidade oculta, da qual ele tirou a Espada de Gryffindor.
— E você vai continuar a não explicar por que é tão importante dar a Potter a espada? — indagou Snape, vestindo uma capa de viagem por cima das vestes.
— Vou, acho que vou — respondeu o retrato de Dumbledore — Ele saberá o que fazer com ela. E, Severo, tenha muito cuidado, os garotos podem não reagir bem à sua presença depois do acidente com Jorge Weasley...
A porta, Snape se virou.
— Não se preocupe, Dumbledore — disse tranquilo — Tenho um plano...
E, dizendo isso, saiu do gabinete.
Harry ergueu a cabeça da Penseira, e momentos depois estava deitado no piso acarpetado exatamente na mesma sala: Snape poderia ter acabado de fechar a porta.







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