quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 85




LXXXV

A VIAGEM




M
onte Cristo soltou uma exclamação de alegria ao ver os dois rapazes juntos.
— Ah, ah! — exclamou — Espero que esteja tudo terminado, esclarecido e arranjado.
— É verdade — respondeu Beauchamp — Boatos absurdos que caíram por si mesmos e que se agora se renovassem me teriam como primeiro antagonista. Portanto, não falemos mais disso.
— Albert lhe dirá — observou o Conde — Que foi esse o conselho que lhe dei. Mas reparem — acrescentou — Que estou acabando a manhã mais execrável que alguma vez passei, segundo creio.
— Que está fazendo? — perguntou Albert — Pondo em ordem os seus papéis, me parece.
— Os meus papéis, graças a Deus, não! Os meus papéis estão sempre numa ordem maravilhosa, atendendo a que não tenho papéis. Trata-se dos papéis do Sr. Cavalcanti.
— Do Sr. Cavalcanti? — perguntou Beauchamp.
— É verdade, não sabe que se trata de um rapaz lançado pelo Conde? — interveio Morcerf.
— Isso não! — protestou Monte Cristo — Entendamo-nos bem: eu não lanço ninguém, e o Sr. Cavalcanti menos do que qualquer outro.
— E que vai casar com Mademoiselle Danglars em meu lugar, o que — continuou Albert tentando sorrir e como se não tivesse ouvido o protesto do Conde — Como pode imaginar, meu caro Beauchamp, me afeta cruelmente.
— Como, Cavalcanti vai casar com Mademoiselle Danglars? — perguntou Beauchamp.
— Ora essa! Mas de que canto perdido do mundo vem o senhor? — observou Monte Cristo — O senhor é um jornalista, o marido da Fama! Em Paris não se fala de outra coisa.
— E foi o senhor, Conde, que fez esse casamento? — perguntou Beauchamp.
— Eu? Silêncio, senhor novelista, não diga semelhantes coisas! Eu, meu Deus, fazer um casamento! O senhor não me conhece. Pelo contrário, opus-me com todo o meu poder, recusei mesmo fazer o pedido.
— Ah, compreendo! — exclamou Beauchamp — Por causa do nosso amigo Albert?
— Por minha causa? — interveio este — Oh, não, palavra de honra! O Conde me fará a justiça de confirmar que sempre desejei, pelo contrário, romper esse projeto, que felizmente se rompeu. O Conde pretende que não é a ele que devo agradecer; seja, erguerei, como os Antigos, um altar ao Deo ignoto[1].

[1] Expressão latina de “Ao deus desconhecido”.

— Ouçam — pediu Monte Cristo — Fui tão pouco metido e achado nisso que tanto o sogro como o rapaz estão frios comigo. Só Mademoiselle Eugénie, que não me parece ter profunda vocação para o casamento, é que, vendo até que ponto estava pouco disposto a fazê-la renunciar à sua querida liberdade, me conservou a sua afeição.
— E diz que esse casamento está prestes a realizar-se?
— Meu Deus, sim, apesar de tudo o que tenho dito. Não conheço o rapaz; afirmam que é rico e de boa família, mas para mim essas coisas não passam de simples diz-se. Repeti tudo isto até à saciedade ao Sr. Danglars, mas ele está aterrado ao seu lucano. Fui ao ponto de informá-lo de uma circunstância que para mim era muito grave: o rapaz foi trocado na ama, raptado por ciganos ou perdido pelo seu preceptor, não sei bem. Mas o que sei é que o pai o perdeu de vista há mais de dez anos. O que fez durante esses dez anos de vida errante só Deus sabe. Pois bem, nada disto foi tido em consideração. Encarregaram-me de escrever ao major, de lhe pedir documentos. Ei-los. Vou entregá-los, mas, como Pilatos, lavo daí as minhas mãos.
— E Mademoiselle d’Armilly, que cara lhe mostrou por lhe roubar a sua aluna? — perguntou Beauchamp.
— Não faço idéia, mas parece que parte para Itália. A Sra. Danglars falou-me dela e pediu-me cartas de apresentação para os empresários. Dei-lhe uma para o diretor do Teatro Valle, que me deve alguns favores. Mas que tem, Albert? Acho-o triste... se dará o caso de, sem o suspeitar, estar apaixonado por Mademoiselle Danglars, por exemplo?
— Que eu saiba, não — respondeu Albert, sorrindo tristemente.
Beauchamp pôs-se a ver os quadros.
— Mas enfim — insistiu Monte Cristo — Não está com o seu ar habitual... vejamos, que tem? Ande, diga.
— Dói-me a cabeça — respondeu Albert.
— Nesse caso, meu caro visconde — disse Monte Cristo — Posso indicar-lhe um remédio infalível, remédio que me tem dado excelente resultado todas as vezes que tenho experimentado qualquer contrariedade.
— Qual? — perguntou o rapaz.
— Viajar.
— Sim?
— Sim. E olhe, como neste momento estou bastante contrariado, vou viajar. Quer vir comigo?
— O senhor, contrariado, Conde?... — duvidou Beauchamp — Mas por quê?
— Homessa! O senhor encara as coisas com muita despreocupação, pelo que vejo... gostaria de vê-lo com uma instrução judicial em sua casa!
— Uma instrução! Qual instrução?
— A que o Sr. de Villefort está fazendo contra o meu amável assassino, uma espécie de bandido fugido das galés, ao que parece.
— Ah, é verdade! — exclamou Beauchamp — Li qualquer coisa nos jornais. Quem era o tal Caderousse?
— Bom... parece que era um provençal. O Sr. de Villefort ouviu falar dele quando esteve em Marselha e o Sr. Danglars recorda-se de tê-lo visto. Resultado: o Sr. Procurador Régio tomou o caso tanto a peito que, ao que parece, despertou no mais alto grau o interesse do prefeito da Polícia, e graças a esse interesse, pelo qual não posso estar mais reconhecido, há quinze dias que me mandam aqui  todos os bandidos que existem em Paris e nos arredores, a pretexto de serem os assassinos do Sr. Caderousse. Assim, se isto continua, dentro de três meses não haverá um ladrão nem um assassino, neste belo reino de França, que não conheça a planta da minha casa na ponta da unha. Estou, pois resolvido a abandonar-lhe por completo e ir para tão longe quanto a Terra me permita. Venha comigo, visconde, quer?
— Com muito prazer.
— Então, está combinado?
— Está. Mas para onde vai?
— Já lhe disse: para onde o ar é puro, o ruído entorpece e, por mais orgulhoso que se seja, um homem se sente humilde e insignificante. Aprecio essa humildade, eu, que dizem senhor do universo, como Augusto.
— Mas para onde vai, finalmente?
— Para o mar, visconde, para o mar. Sou um marinheiro, fique sabendo. Logo em criança fui embalado nos braços do velho Oceano e no colo da bela Anfitrite. Brinquei com o manto verde de um e a túnica cerúlea da outra. Gosto do mar como se gosta de uma amante, e quando estou muito tempo sem o ver sinto a sua falta.
— Então vamos, Conde, vamos!
— Para o mar?
— Sim.
— Aceita?
— Aceito.
— Nesse caso, visconde, haverá esta tarde um brisca de viagem em que uma pessoa se pode deitar como na sua cama. Esse brisca estará atrelado a quatro cavalos de posta. Sr. Beauchamp, cabem lá quatro facilmente. Quer vir conosco? Eu levo-o!
— Obrigado, mas venho do mar.
— Como, o senhor vem do mar?!
— Sim, ou pouco mais ou menos. Acabo de fazer uma viagenzinha às ilhas Borroméias.
— Que tem isso? Venha — insistiu também Albert.
— Não, meu caro Morcerf. Deve compreender que desde o momento que recuso é porque é impossível. Aliás, é importante — acrescentou, baixando a voz — Que eu fique em Paris, quanto mais não seja para vigiar a caixa do jornal.
— Você é um bom e excelente amigo — disse Albert — Sim, tem razão, observe, vigie, Beauchamp, e procure descobrir o inimigo a quem se deve essa revelação.
Albert e Beauchamp separaram-se. O seu último aperto de mão encerrava todos os sentimentos que os seus lábios não podiam exprimir diante de um estranho.
— Excelente rapaz, esse Beauchamp! — exclamou Monte Cristo, depois de o jornalista sair — Não é verdade, Albert?
— Oh, sim, um homem de coração, garanto-lhe! Por isso o estimo com toda a minha alma. Mas agora que estamos sós, embora isso me seja quase indiferente aonde vamos?
— À Normandia, se está de acordo.
— Inteiramente. Mas ficaremos apenas no campo, não é verdade? Nada de sociedade, nada de vizinhos?
— O nosso único convívio será com cavalos para correr, cães para caçar e um barco para pescar, mais nada.
— É o que desejo. Vou prevenir a minha mãe e depois estou às suas ordens.
— Mas eles o permitirão?... — perguntou Monte Cristo.
— O quê?
— Ir à Normandia.
— A mim? Porventura não sou livre?
— De ir aonde quiser sozinho, sei bem que é, uma vez que o encontrei vagueando pela Itália...
— E então?
— Mas de vir com o homem que se chama Conde de Monte Cristo...
— Tem fraca memória, Conde.
— Que quer dizer?
— Não lhe disse já toda a simpatia que a minha mãe tinha pelo senhor?
— A mulher varia com freqüência, disse Francisco I; a mulher é como as ondas, disse Shakespeare: um era um grande rei e o outro um grande poeta, e ambos deviam conhecer a mulher.
— Sim, a mulher. Mas a minha mãe não é a mulher, é uma mulher.
— Permite a um pobre estrangeiro não compreender perfeitamente todas as sutilezas da sua língua?
— Quero dizer que a minha mãe é avara dos seus sentimentos, mas quando os concede é para sempre.
— Deveras? — perguntou, suspirando, Monte Cristo — E acha que ela me deu a honra de me conceder qualquer sentimento que não seja a mais completa indiferença?
— Ouça, já lhe disse uma vez e repito-lhe: é necessário que o senhor seja realmente um homem muito estranho e muito superior para...
— Sim?...
— Sim. Porque a minha mãe deixou-se prender, não direi pela curiosidade, mas sim pelo interesse que o senhor inspira. Quando estamos sós, apenas conversamos a seu respeito.
— E ela disse-lhe que desconfiasse deste Manfredo?
— Pelo contrário, disse-me: “Albert, creio o Conde um nobre caráter; procure se fazer estimar por ele”.
Monte Cristo virou os olhos e suspirou.
— Deveras?
— Portanto, como deve compreender — continuou Albert — Em vez de se opor à minha viagem, a aprovará de todo o seu coração, visto estar de acordo com as recomendações que me faz diariamente.
— Vá, então — disse Monte Cristo — Até logo. Esteja aqui às cinco horas. Chegaremos ao nosso destino por volta da meia-noite ou da uma hora.
— Como, a Tréport?!...
— A Tréport ou aos arredores.
— Só precisamos de oito horas para percorrer quarenta e oito léguas?
— E ainda é muito — respondeu Monte Cristo.
— Decididamente, o senhor é o homem dos prodígios, e consegue não só ultrapassar o comboio, o que não é muito difícil, sobretudo na França, mas também o próprio telégrafo.
— Entretanto, visconde, como precisaremos sempre de sete ou oito horas para chegar ao nosso destino, seja pontual.
— Fique tranqüilo, daqui até lá não tenho mais nada que fazer senão preparar-me.
— Até as cinco horas, então.
— Às cinco horas.
Albert saiu. Depois de lhe fazer, sorrindo, um aceno com a cabeça, Monte Cristo ficou um instante pensativo e como que absorto em profunda meditação. Por fim, passou a mão pela testa, como que para afastar o seu devaneio, aproximou-se da campainha e tocou duas vezes.
Mal acabaram de soar os dois toques de campainha, entrou Bertuccio.
— Mestre Bertuccio — disse-lhe Monte Cristo — Não é amanhã, nem depois de amanhã, como pensei primeiro, mas sim esta tarde que parto para a Normandia. Daqui até às cinco horas tem tempo mais do que suficiente para prevenir os cavalariços da primeira muda. O Sr. de Morcerf acompanha-me. Vá!
Bertuccio obedeceu e um moço de cavalariça correu a Pontoise anunciando que a carruagem de posta passaria às seis horas exatas. O cavalariço de Pontoise mandou à muda seguinte um próprio, dessa muda mandaram outro próprio à seguinte e assim sucessivamente, de forma que, decorridas seis horas, todas as mudas dispostas ao longo do caminho estavam prevenidas.
Antes de partir, o Conde subiu aos aposentos de Haydée, anunciou-lhe a sua partida, disse-lhe aonde ia e pôs toda a casa à sua disposição.
Albert foi pontual. A viagem, triste no começo, em breve se desanuviou graças ao efeito físico da rapidez. Morcerf não fazia idéia de que fosse possível semelhante velocidade.
— Com efeito — disse Monte Cristo — Com a sua posta percorrendo duas léguas por hora e com essa lei estúpida que proíbe um viajante de ultrapassar outro sem lhe pedir licença e que permite que um viajante doente ou casmurro tenha o direito de levar atrás de si os viajantes desinibidos e de boa saúde, não existe locomoção possível. Eu evito esse inconveniente viajando com o meu próprio postilhão e com os meus próprios cavalos, não é verdade, Ali?
E o Conde, deitando a cabeça fora da portinhola, soltava um gritinho de incitamento, que dava asas aos cavalos. Estes já não corriam, voavam. A carruagem rodava como um trovão no pavimento da estrada real e todas as pessoas se viravam para ver passar aquele meteoro chamejante. Ali, repetindo o grito, sorria mostrando os dentes brancos, apertando nas mãos robustas as rédeas cobertas de espuma e incitando os cavalos, cujas belas crinas esvoaçavam ao vento. Ali, o filho do deserto, encontrava-se no seu elemento, e com o seu rosto negro, os seus olhos ardentes e o seu albornoz cor de neve, parecia, no meio da poeira que levantava, o gênio do simum e o deus do furacão.
— Aí está uma volúpia que não conhecia, a volúpia da velocidade — declarou Morcerf.
E as últimas nuvens da sua fronte dissipavam-se, como se o ar que fendia levasse essas nuvens consigo.
— Mas onde diabo arranja o senhor semelhantes cavalos? — perguntou Albert — Manda-os fazer de encomenda?
— Exatamente — respondeu o Conde — Há seis anos, encontrei na Hungria um garanhão famoso pela sua velocidade. Comprei-o, já não me lembro por quanto; foi Bertuccio quem o pagou. No mesmo ano, ele teve trinta e dois filhos. É toda essa progenitura do mesmo pai que vamos passar em revista. São todos iguais: negros, sem uma única malha, exceto uma estrela na testa, porque por esse privilégio da coudelaria se escolheram as éguas, tal como para os paxás se escolhem as favoritas.
— É admirável! ... mas diga-me, Conde, que faz o senhor com todos esses cavalos?
— O que vê: viajo com eles.
— Mas decerto não viajará sempre...
— Quando me não forem mais necessários, Bertuccio os venderá e pretende ganhar trinta ou quarenta mil francos no negócio.
— Mas não haverá rei na Europa suficientemente rico para os comprar.
— Então, os venderá a qualquer simples vizir do Oriente, que esvaziar o seu tesouro para pagá-los e o voltar a encher vergustando as plantas dos pés dos seus súditos.
— Conde, posso comunicar-lhe uma idéia que me ocorreu?
— Diga.
— É que, depois do senhor, Bertuccio deve ser o mais rico particular da Europa.
— Engana-se, visconde. Tenho certeza de que se virar do avesso as algibeiras de Bertuccio não encontrar nelas nem um centavo.
— Por quê? — perguntou o jovem — É algum fenômeno o Sr. Bertuccio? Ah, meu caro Conde, não leve demasiado longe o maravilhoso ou deixarei de acreditar, previno-o!
— O maravilhoso nunca me acompanha, Albert; trata-se apenas de uma questão de números e de bom senso. Ora atente neste dilema: um intendente rouba; mas rouba por quê?
— Demônio, porque isso lhe está na massa do sangue, parece-me! — respondeu Albert — Rouba por roubar.
— Não, está enganado. Rouba porque tem uma mulher, filhos, desejos ambiciosos para ele e para a sua família; rouba sobretudo porque não tem certeza de nunca deixar o patrão e porque quer garantir o futuro. Pois bem, o Sr. Bertuccio está sozinho no mundo; serve-se da minha bolsa sem me dar satisfações e tem certeza de que nunca me deixará.
— Por quê?
— Porque eu não encontraria um melhor do que ele.
— O senhor gira num circulo vicioso, o das probabilidades.
— Oh, não! O meu círculo é o das certezas. Para mim, o bom servidor é aquele sobre o qual tenho direito de vida ou de morte.
— E tem direito de vida ou de morte sobre Bertuccio? — perguntou Albert.
— Tenho — respondeu friamente o Conde.
Há palavras que encerram um diálogo como uma porta de ferro. O “tenho” do Conde era uma dessas palavras. O resto da viagem decorreu com a mesma rapidez; os trinta e dois cavalos, divididos por oito mudas, percorreram as suas quarenta e oito léguas em oito horas.
Chegaram a meio da noite à porta de um belo parque. O porteiro estava de pé e tinha o portão aberto. Fora prevenido pelo cavalariço da última muda.
Eram duas e meia da manhã. Conduziram Morcerf ao seu quarto. Encontrou um banho e uma ceia prontos. O criado que fizera a viagem no banco de trás da carruagem estava às suas ordens; Baptistin, que viajara no banco da frente, estava às do Conde.
Albert tomou o seu banho, ceou e deitou-se. Durante toda a noite foi embalado pelo barulho melancólico das vagas. Quando se levantou foi direito à janela, abriu-a e encontrou-se num terraçozinho onde tinha diante de si o mar, isto é, a imensidão, e atrás de si um bonito parque, que dava para uma pequena floresta.
Numa enseada de certa grandeza balouçava uma corvetazinha de querena estreita e mastreação elegante, que arvorava na carangueja um pavilhão com as armas de Monte Cristo, armas que representavam uma montanha de ouro num mar azul, com uma cruz de goles no chefe, o que tanto podia ser uma alusão ao seu nome, que lembrava o Calvário, do qual a paixão de Nosso Senhor fez uma montanha mais preciosa do que o ouro, e à cruz infame que o seu sangue divino santificou, como a qualquer recordação pessoal de sofrimento e regeneração sepultada na noite do passado misterioso daquele homem. À volta da goleta encontravam-se vários barquitos de pesca costeira pertencentes aos pescadores das aldeias vizinhas e que pareciam humildes súditos à espera das ordens do seu rei.
Ali, como em todos os lugares onde Monte Cristo se detinha, nem que fosse para passar apenas dois dias, a vida estava organizada pelo termômetro do mais alto conforto e por isso se tornava imediatamente fácil.
Albert encontrou na sua antecâmara duas espingardas e lodos os utensílios necessários a um caçador; uma divisão mais alia, situada no térreo, estava reservada a todos os engenhosos apetrechos que os Ingleses, grandes pescadores, porque são pacientes e ociosos, ainda não conseguiram que fossem adotados pelos rotineiros pescadores franceses.
Passaram todo o dia entregues aos mais diversos exercícios, nos quais aliás Monte Cristo era excelente: mataram uma dúzia de faisões no parque, pescaram outras tantas trutas nos regatos, almoçaram num quiosque sobre o mar e serviram-lhes o chá na biblioteca.
Quase à noitinha do terceiro dia, Albert, quebrado de fadiga por aquela vida intensa, que parecia ser uma brincadeira para Monte Cristo, dormia junto da janela enquanto o Conde fazia com o seu arquiteto a planta de uma estufa que queria instalar em casa, quando o ruído de um cavalo nas pedras da estrada fez o rapaz erguer a cabeça. Olhou pela janela e, com uma surpresa das mais desagradáveis, viu no pátio o seu criado de quarto, de que não quisera fazer-se acompanhar para incomodar menos Monte Cristo.
— Florentin aqui! — exclamou, saltando da poltrona — Estará a minha mãe doente?
E precipitou-se para a porta do quarto.
Monte Cristo seguiu-o com os olhos e viu-o chegar junto do criado, que, ainda esbaforido, tirou da algibeira um pacotinho selado que continha um jornal e uma carta.
— De quem é esta carta? — perguntou vivamente Albert.
— Do Sr. Beauchamp — respondeu Florentin.
— Foi Beauchamp que te enviou, então?
— Foi, sim, senhor. Chamou-me a sua casa, deu-me o dinheiro necessário para a viagem, arranjou-me um cavalo de posta e obrigou-me a prometer que não pararia enquanto não encontrasse o senhor. Fiz a viagem em quinze horas.
Albert abriu a carta tremendo. Logo que leu as primeiras linhas, soltou um grito e pegou o jornal tremendo visivelmente. De súbito, os seus olhos nublaram-se, as pernas pareceram faltar-lhe, e, prestes a cair, apoiou-se em Florentin, que estendeu o braço para o amparar.
— Pobre rapaz! — murmurou Monte Cristo, tão baixo que ele próprio não conseguiu ouvir as palavras de compaixão que pronunciara — Mas Ele disse que os pecados dos pais recairão sobre os filhos até à terceira e quarta geração...
Entretanto, Albert recuperara forças e continuara a ler. Por fim, sacudiu os cabelos da testa coberta de suor, amarrotou a carta e o jornal e perguntou:
— Florentin, o teu cavalo está em condições de voltar a Paris?
— Além de ser um mau garrano de posta, está coxo.
— Oh, meu Deus! E como estava a casa quando a deixou?
— Bastante calma. Mas quando voltei de casa do Sr. Beauchamp encontrei a senhora chorando. Ela mandara-me chamar para saber quando o senhor voltaria. Então disse-lhe que ia procurá-lo da parte do Sr. Beauchamp. O seu primeiro movimento foi estender os braços, como que para me deter, mas, depois de um instante de reflexão, disse-me: “Está bem, Florentin, ele que volte”.
— Sim, minha mãe, sim — disse Albert — Volto, pode estar tranqüila, e ai do infame!... Mas antes de mais nada tenho de partir.
Regressou à sala onde deixara Monte Cristo. Já não era o mesmo homem; cinco minutos tinham bastado para operar em Albert uma triste metamorfose. Saíra no seu estado habitual e regressava com a voz alterada, o rosto sulcado por rugas febris, os olhos brilhantes sob as pálpebras arroxeadas e o passo cambaleante como o de um ébrio.
— Conde, obrigado pela sua boa hospitalidade, que gostaria de desfrutar mais tempo, mas tenho de regressar a Paris.
— Que aconteceu?
— Uma grande desgraça. Mas permita-me que parta; trata-se de uma coisa muito mais preciosa do que a minha vida. Nada de perguntas, Conde, suplico-lhe; arranje-me antes um cavalo!
— As minhas cavalariças estão ao seu dispor, visconde — respondeu Monte Cristo — Mas vai matar-se de fadiga fazendo a viagem a cavalo. Tome um coche, um cupé, qualquer carruagem.
— Não, isso demoraria muito tempo. Além disso, necessito dessa fadiga que receia por mim; me fará bem.
Albert deu alguns passos girando sobre si mesmo, e, homem atingido por uma bala, e foi cair numa cadeira junto da porta. Monte Cristo não viu esta segunda fraqueza. Estava à janela e gritava:
— Ali, um cavalo para o Sr. de Morcerf! Depressa! Ele tem de partir com urgência.
Estas palavras deram nova vida a Albert, que correu para fora da sala.
O Conde seguiu-o.
— Obrigado! — murmurou o rapaz depois de montar — Regresse o mais depressa que puder, Florentin. Há alguma senha combinada para que me dêem os cavalos?
— Basta apenas entregar o que monta e selam-lhe imediatamente outro.
Albert ia esporear a montada, mas deteve-se.
— Talvez ache a minha partida estranha, insensata — disse — Não imagina como umas linhas escritas num jornal podem causar o desespero de um homem... pois bem — acrescentou, atirando-lhe o jornal — Leia isto, mas só depois de eu partir, para não me ver corar.
E enquanto o Conde apanhava o jornal, cravou as esporas que acabava de colocar nas botas no ventre do cavalo, o qual, surpreendido que existisse um cavaleiro que julgasse necessitar em relação a ele de semelhante estímulo, partiu como um dardo de arbaleta.
O Conde seguiu o jovem com os olhos, dominado por um sentimento de infinita compaixão, e só quando ele desapareceu por completo olhou para o jornal e leu o que se segue:

O oficial francês ao serviço de Ali, Paxá de Janina, de que falava há três semanas o jornal Impartial, e que não só entregou os castelos de Janina, mas ainda vendeu o seu benfeitor aos Turcos, chamava-se com efeito nessa época Fernand, como disse o nosso respeitável colega; mas depois acrescentou ao seu nome de batismo um título de nobreza e o nome de uma terra.
Chama-se hoje Conde de Morcerf e faz parte da Câmara dos Pares.

Assim, o terrível segredo que Beauchamp ocultara com tanta generosidade reaparecia como um fantasma armado, e outro jornal, cruelmente informado, publicara dois dias depois da partida de Albert para a Normandia as poucas linhas que quase tinham enlouquecido o pobre rapaz.







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Lei de ComimAs pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.
Lei de Murphy

O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.

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