sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 71



LXXI

O PÃO E O SAL




A
 Sra. de Morcerf entrou debaixo da abóbada de folhagem com o companheiro. A abóbada era formada pelas árvores de uma alameda de tílias que conduzia a uma estufa.
— Fazia demasiado calor no salão, não é verdade, Sr. Conde?
— É, sim, minha senhora, e a sua idéia de mandar abrir as portas e as persianas foi uma excelente idéia.
Quando acabou de proferir estas palavras, o Conde notou que a mão de Mercedes tremia.
— Mas a senhora, com esse vestido leve e sem mais nada a agasalhar-lhe o pescoço do que essa echarpe de gaze, não irá talvez ter frio? — perguntou.
— Sabe aonde o levo? — inquiriu a condessa, sem responder à pergunta de Monte Cristo.
— Não, minha senhora — respondeu ele — Mas, como vê, não oponho resistência.
— À estufa que vê ali, ao fundo desta alameda.
O Conde olhou Mercedes como se a quisesse interrogar, mas ela continuou o seu caminho sem nada dizer e pela sua parte Monte Cristo também se manteve calado.
Chegaram à estufa, cheia de frutos magníficos, que desde o principio de Julho ali amadureciam debaixo de uma temperatura sempre regulada de forma a substituir o calor do sol, tantas vezes ausente entre nós. A condessa largou o braço de Monte Cristo e foi colher a uma cepa um cacho de uvas moscatéis.
— Tome, Sr. Conde — ofereceu com um sorriso tão triste que se lhe viram as lágrimas surgir à beira dos olhos — Tome. As nossas uvas da França não são comparáveis, bem sei, às uvas da Sicília e de Chipre, mas o senhor será indulgente com o nosso pobre sol do Norte.
O Conde inclinou-se e deu um passo atrás.
— Recusa o que lhe ofereço? — perguntou Mercedes, com voz trêmula.
— Minha senhora — respondeu Monte Cristo — Peço-lhe muito humildemente que me desculpe, mas nunca como uvas moscatéis.
Mercedes deixou cair o cacho, suspirando. Um pêssego magnífico pendia de uma espaldeira vizinha, aquecido, como a vide, pelo calor artificial da estufa.
Mercedes aproximou-se do fruto aveludado e colheu-o.
— Tome então este pêssego — ofereceu.
Mas o Conde fez o mesmo gesto de recusa.
— Oh, também?! — exclamou ela em tom tão magoado que se adivinhava conter um soluço — Na verdade, estou com pouca sorte.
A esta cena seguiu-se um longo silêncio.
O pêssego, como o cacho de uvas, jazia no saibro.
— Sr. Conde — prosseguiu finalmente Mercedes, pousando em Monte Cristo um olhar suplicante — Há um comovente costume árabe que torna amigos eternos aqueles que partilham o pão e o sal debaixo do mesmo teto...
— Conheço-o, minha senhora — respondeu o Conde — Mas estamos na França e não na Arábia, e na França não existe nem amizade eterna nem partilha do sal e do pão.
— Mas, enfim — disse a condessa, palpitante, sem tirar os olhos de Monte Cristo, cujo braço apertava convulsivamente com ambas as mãos — Nós somos amigos, não é verdade?
O sangue afluiu ao coração do Conde, que se tornou pálido como um morto, e depois subiu-lhe do coração à garganta e invadiu-lhe as faces, e os seus olhos vogaram no nada durante alguns segundos, como os de um homem fascinado.
— Claro que somos amigos, minha senhora — replicou — Aliás, porque não seríamos?
Este tom estava tão longe do que desejaria a Sra. de Morcerf que ela se virou para deixar escapar um suspiro, que mais parecia um gemido.
— Obrigada — disse, e recomeçou a andar.
Deram assim a volta ao jardim sem pronunciarem uma só palavra.
— Senhor — disse de súbito a condessa, depois de dez minutos de passeio silencioso — É verdade que tem visto muito, viajado muito e sofrido muito?
— Sim, minha senhora, é verdade que tenho sofrido muito — respondeu Monte Cristo.
— Mas agora é feliz?
— Sem dúvida, pois ninguém me ouve queixar — respondeu o Conde.
— E a sua felicidade presente adoça-lhe a alma?
— A minha felicidade presente iguala a minha miséria passada.
— Não casou? — perguntou a Condessa.
— Eu, casar? — respondeu Monte Cristo, estremecendo — Quem lhe disse isso?
— Ninguém me disse, mas têm-no visto acompanhar várias vezes à Ópera uma jovem muito bonita.
— É uma escrava que comprei em Constantinopla, minha senhora, a filha de um príncipe de quem fiz minha filha e que não tem outra afeição no mundo.
— Portanto vive só?
— Sim, vivo só.
— Não tem irmã... filho... pai?...
— Não tenho ninguém.
— Como pode viver assim, sem nada que o prenda à vida?
— A culpa não é minha, senhora. Em Malta, amei uma moça e ia casar com ela quando veio a guerra e me levou para longe dela como um turbilhão. Julgava que me amasse o suficiente para me esperar, para permanecer até fiel à minha sepultura, mas quando regressei estava casada. É a história de todo o homem que passou a idade dos vinte anos. Eu tinha talvez o coração mais fraco do que os outros e por isso sofri mais do que eles sofreriam no meu lugar, foi só isso.
A condessa parou um momento, como se necessitasse desse alto para respirar.
— Sim, e esse amor ficou-lhe no coração... — disse — Só se ama uma vez... e alguma vez tornou a ver essa mulher?
— Nunca.
— Nunca?
— Nunca mais voltei ao país onde ela vivia.
— A Malta?
— Sim, a Malta.
— Ela era então de Malta?
— Creio que sim.
— E perdoou-lhe o que ela o fez sofrer?
— A ela, sim.
— Mas só a ela. Continua a odiar aqueles que o separaram dela?
A condessa colocou-se diante de Monte Cristo. Tinha ainda na mão um bocadinho do cacho de uvas perfumado.
— Tome — pediu.
— Nunca como uvas moscatéis, minha senhora — respondeu Monte Cristo como se fosse a primeira vez que tocavam em tal assunto.
A condessa atirou o cacho para o maciço mais próximo com um gesto de desespero.
— Inflexível! — murmurou.
Monte Cristo ficou tão impassível como se a censura lhe não fosse dirigida.
Albert apareceu neste momento.
— Oh, minha mãe, que grande desgraça! — exclamou.
— Que foi? Que aconteceu? — perguntou a condessa, endireitando-se, como se depois do sonho acabasse de ser trazida à realidade — Uma desgraça, você disse? Com efeito, devem aproximar-se desgraças...
— O Sr. de Villefort está aqui.
— E então?
— Vem buscar a mulher e a filha.
— Por quê?
— Porque a Sra. Marquesa de Saint-Méran, chegou a Paris com a notícia de que o Sr. de Saint-Méran morreu depois de sair de Marselha, na primeira muda de cavalos. A Sra. de Villefort estava tão alegre que não era capaz de compreender nem de acreditar em semelhante desgraça. Mas Mademoiselle Valentine, mal ouviu as primeiras palavras, apesar das precauções que o pai tomou, adivinhou tudo. O golpe fulminou-a como um raio e caiu sem sentidos.
— Que é o Sr. de Saint-Méran a Mademoiselle de Villefort? — perguntou o Conde.
— Avô materno. Vinha para apressar o casamento de Franz com a neta.
— Ah, sim?!
— Lá tem o Franz de esperar mais um tempo! Porque não seria o Sr. de Saint-Méran também avô de Mademoiselle Danglars?...
— Albert! Albert! — interveio a Sra. de Morcerf em tom de meiga censura — Que está para dizer? Olhe, Sr. Conde, diga-lhe o senhor, por quem ele tem tão grande consideração, que não deve falar assim.
A condessa deu alguns passos em frente. Monte Cristo olhou-a tão estranhamente e com uma expressão ao mesmo tempo tão pensativa e tão cheia de afetuosa admiração que ela voltou atrás. Então, pegou-lhe na mão, ao mesmo tempo que apertava a do filho e juntava ambas, e perguntou:
— Somos amigos, não somos?
— Ser seu amigo, minha senhora, é pretensão que não tenho; mas de qualquer forma sou um seu respeitoso servidor.
A condessa retirou-se com inexprimível aperto no coração, e antes de dar dez passos o Conde viu-a levar o lenço aos olhos.
— Acaso não estão de acordo, minha mãe e o senhor? — perguntou Albert, surpreendido.
— Pelo contrário — respondeu o Conde — Acaba de me dizer diante do senhor que somos amigos.
Regressaram ao salão que acabavam de deixar Valentine e o Sr. e a Sra. de Villefort.




 continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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