segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Conde de Monte Cristo - Capítulo 79




LXXIX

A LIMONADA




C
om efeito, Morrel estava felicíssimo. O Sr. Noirtier acabava de mandar chamá-lo, e tinha tanta pressa de saber o que lhe queria que não tomara nenhum cabriolé, fiara-se muito mais nas pernas do que nas de um cavalo de praça. Partira, portanto a correr da Rua Meslay e dirigia-se para o Arrabalde de Saint-Honoré.
Morrel caminhava a passo de ginástica e o pobre Barrois seguia-o conforme podia. Morrel tinha trinta e um anos, Barrois contava sessenta, Morrel estava ébrio de amor, Barrois suava por todos os poros devido ao calor. Os dois homens, assim separados por interesses e pela idade, pareciam as duas linhas que formam um triângulo: afastadas pela base, juntam-se no vértice.
O vértice era Noirtier, o qual mandara chamar Morrel, com a recomendação de vir depressa, recomendação que Morrel seguia à letra, com grande desespero de Barrois. Quando chegaram. Morrel nem sequer estava ofegante: o amor dá asas; mas Barrois, que havia muito tempo se não apaixonava, estava banhado em suor.
O velho criado fez entrar Morrel pela porta particular, fechou a porta do gabinete e em breve um “frutru” de vestido no parque anunciou a visita de Valentine. Valentine estava encantadora no seu vestido de luto. O sonho tornava-se tão delicioso que Morrel quase se esqueceu de que estava ali para conversar com Noirtier. Mas a cadeira do velho não tardou a rodar no parque e ele entrou.
Noirtier acolheu com um olhar indulgente os agradecimentos que Morrel lhe prodigalizava pela maravilhosa intervenção que os salvara, a Valentine e a ele, do desespero. Depois o olhar de Morrel foi pousar, utilizando o novo privilégio que lhe era concedido, na jovem, que, tímida e sentada longe dele, esperava que a obrigassem a falar.
Noirtier olhou-a por sua vez.
— Tenho mesmo de dizer aquilo de que me encarregou? — perguntou ela.
— Sim — respondeu Noirtier.
— Sr. Morrel — disse então Valentine ao jovem, que a devorava com a vista — O meu avô Noirtier tinha mil coisas a lhe dizer e me disse nos últimos três dias. Hoje mandou-o chamar para eu as repetisse. Farei o que ele deseja, portanto, uma vez que ele me escolheu para sua intérprete, sem alterar uma palavra às suas intenções.
— Oh, não imagina com que impaciência a escuto! — respondeu o rapaz — Fale, menina, fale.
Valentine baixou os olhos; foi um presságio que pareceu favorável a Morrel: Valentine só era fraca quando era infeliz.
— O meu avô quer deixar esta casa — prosseguiu a jovem — Barrois está procurando um apartamento conveniente.
— Mas menina — atalhou Morrel — A menina que é tão querida e necessária ao Sr. Noirtier?
— Eu — respondeu Valentine — Não deixarei o meu avô. É ponto assente entre nós. O meu quarto será junto do seu. Ou terei o consentimento do Sr. de Villefort para ir morar com o avô Noirtier ou não terei. No primeiro caso, sairei daqui em qualquer momento a partir de agora; no segundo, esperarei pela minha maioridade, que será daqui a dezoito meses. Então serei livre, terei uma fortuna independente e...
— E?... — perguntou Morrel.
— E, com a autorização do meu avô, cumprirei a promessa que lhe fiz, Sr. Morrel.
Valentine pronunciou as últimas palavras tão baixo que Morrel as não teria ouvido sem o interesse que tinha em as devorar.
— Exprimi o seu pensamento, avô? — acrescentou Valentine, dirigindo-se a Noirtier.
— Sim — respondeu o velho.
— Uma vez em casa do meu avô — prosseguiu Valentine — O Sr. Morrel poderá me ver na presença deste bom e digno protetor. Se os laços que os nossos corações, talvez ignorantes ou caprichosos, começaram a dar parecerem convenientes e oferecerem garantias de felicidade futura à nossa experiência, infelizmente, diz-se que os corações estimulados pelos obstáculos estriam na segurança!... então o Sr. Morrel poderá pedir-me a mim mesma e eu o esperarei.
— Oh! — exclamou Morrel, tentado a ajoelhar diante do velho como diante de Deus, diante de Valentine como diante de um anjo — Oh, que fiz eu de bem na minha vida para merecer tanta felicidade?!
— Até lá — continuou a jovem, na sua voz pura e severa — Respeitaremos as conveniências e a própria vontade das nossas famílias, desde que essa vontade não queira separar-nos para sempre. Numa palavra, e repito esta palavra porque ela diz tudo: esperaremos.
— E os sacrifícios que essa palavra impõe, senhor — disse Morrel — Juro-lhe que os cumprirei, não com resignação, mas sim com felicidade.
— Assim — continuou Valentine com um olhar muito doce ao coração de Maximilien — Nada de imprudências, meu amigo; não comprometa aquela que, a partir de hoje, se considera destinada a usar pura e dignamente o seu nome.
Morrel pôs a mão no coração. Entretanto, Noirtier olhava ambos com ternura.
Barrois, que ficara ao fundo como um homem a quem nada se oculta, sorria limpando as grossas gotas de suor que lhe molhavam a calva.
— Oh, meu Deus, como está com calor o nosso bom Barrois! — exclamou Valentine.
— Se soubesse o que corri, menina... — disse Barrois — Mas o Sr. Morrel, devo fazer-lhe essa justiça, corria ainda mais do que eu.
Noirtier indicou com a vista uma bandeja em que estavam uma garrafa de limonada e um copo. O que faltava na garrafa fora bebido meia-hora antes por Noirtier.
— Vamos, meu bom Barrois, beba, pois bem vejo que não tira os olhos da garrafa — disse a jovem.
— De fato — confessou Barrois — Morro de sede e beberei de boa vontade um copo de limonada à sua saúde...
— Bebe então e volta depressa — disse Valentine.
Barrois levou a bandeja e mal chegou ao corredor, viram-no, através da porta que se esquecera de fechar, inclinar a cabeça para trás e despejar o copo que Valentine enchera. Valentine e Morrel despediam-se na presença de Noirtier quando ouviram a campainha tocar na escada de Villefort.
Era o sinal de uma visita. Valentine olhou para o relógio.
— É meio-dia e hoje é Sábado — disse — É sem dúvida o médico.
Noirtier fez sinal de que, de fato, devia ser ele.
— Como vem aqui, é melhor que o Sr. Morrel saia, não é verdade, avô?
— Sim — respondeu o velho.
— Barrois! — chamou Valentine — Barrois, venha cá!
Ouviu-se a voz do velho criado responder.
— Vou já, menina.
— Barrois vai acompanhá-lo até à porta — disse Valentine a Morrel — E agora lembre-se de uma coisa, senhor oficial, que o meu avô lhe recomenda que não arrisque nenhum passo capaz de comprometer a nossa felicidade.
— Prometi esperar e esperarei — respondeu Morrel.
Neste momento, Barrois entrou.
— Quem tocou? — perguntou Valentine.
— O Sr. Dr. de Avrigny — respondeu Barrois, cambaleando.
— O que você tem, Barrois? — perguntou Valentine.
O velho não respondeu. Olhava o amo com olhos esgazeados, enquanto com a mão crispada procurava um apoio para permanecer de pé.
— Ele vai cair! — gritou Morrel.
Efetivamente, a tremura que se apoderara de Barrois aumentava de momento a momento, e o seu rosto, alterado pelos movimentos convulsivos dos músculos faciais, denotava um ataque nervoso dos mais intensos. Ao ver Barrois assim perturbado, Noirtier multiplicava os seus olhares, nos quais transpareciam, inteligíveis e palpitantes, todas as emoções que agitam o coração do homem. Barrois deu alguns passos para o amo.
— Meu Deus, meu Deus! Senhor, que tenho eu?... — disse — Sofro... não posso mais. Mil agulhas de fogo espicaçam-me o crânio... oh, não me toquem, não me toquem!
Com efeito, os olhos tornavam-se salientes e desvairados e a cabeça pendia-lhe para trás, enquanto o resto do corpo se retesava.
Apavorada, Valentine soltou um grito. Morrel tomou-a nos braços como que pára defende-la de qualquer perigo desconhecido.
— Sr. de Avrigny! Sr. de Avrigny! — gritou Valentine em voz sufocada — Venha! Socorro!
Barrois girou sobre si mesmo, deu três passos atrás, tropeçou e veio cair aos pés de Noirtier, no joelho do qual apoiou a mão, gritando:
— Meu amo! Meu bom amo!
Neste momento, atraído pelos gritos, o Sr. de Villefort apareceu no limiar do quarto.
Morrel largou Valentine meio desfalecida, recuou para o canto do quarto e quase desapareceu atrás de um reposteiro. Pálido, como se tivesse visto uma serpente erguer-se diante de si, não tirava os olhos do pobre agonizante.
Noirtier fervia de impaciência e terror. A sua alma corria em socorro do pobre velho, mais um amigo do que um criado. Via-se o combate terrível da vida e da morte transparecer-lhe na testa pela intumescência das veias e pela contração de alguns músculos ainda vivos à roda dos olhos.
Barrois, com o rosto agitado, os olhos injetados de sangue e a cabeça inclinada para trás, jazia no chão batendo no parque com as mãos, enquanto, pelo contrário, as suas pernas rígidas pareciam que mais depressa se quebrariam do que dobrariam.
Uma leve espuma vinha-lhe dos lábios e arquejava dolorosamente.
Estupefato, Villefort ficou um instante de olhos postos naquele quadro, que lhe atraíra a atenção logo que entrara no quarto. Não vira Morrel. Depois de um instante de contemplação muda, durante o qual se pode ver o seu rosto empalidecer e os seus cabelos eriçarem-se-lhe na cabeça, gritou correndo para a porta:
— Doutor! Doutor! Venha! Venha!
— Senhora! Senhora! — gritava por seu turno Valentine, chamando a madrasta e indo de encontro às paredes da escada — Venha! Venha depressa e traga o seu frasco de sais!
— Que aconteceu? — perguntou a voz metálica e contida da Sra. de Villefort.
— Oh, venha, venha!
— Mas onde está o doutor? — gritava Villefort — Onde se meteu ele?
A Sra. de Villefort desceu lentamente; ouviu-se estalar o soalho debaixo dos seus pés. Numa das mãos segurava o lenço com o qual limpava o rosto e na outra um frasco de sais ingleses. O seu primeiro olhar quando chegou à porta foi para Noirtier, cujo rosto, excetuando a emoção naturalíssima em semelhantes circunstâncias, denotava que a sua saúde não sofrera alteração. O seu segundo olhar foi para o moribundo.
Empalideceu e os seus olhos saltaram por assim dizer do criado para o amo.
— Mas, em nome do céu, senhora, onde está o doutor? Ele entrou nos seus aposentos. Trata-se de uma apoplexia, como vê, e com uma sangria o salvaremos.
— Ele comeu há pouco? — perguntou a Sra. de Villefort, esquivando-se à pergunta do marido.
— Senhora — respondeu Valentine — Não almoçou, mas correu muito esta manhã para ir fazer um recado de que o avô o encarregou. Só no regresso tomou um copo de limonada.
— Ah! — exclamou a Sra. de Villefort — E porque não de vinho? A limonada faz muito mal.
— A limonada estava ali, ao alcance da sua mão, na garrafa do avô. O pobre Barrois tinha sede e bebeu o que encontrou.
A Sra. de Villefort, estremeceu.
Noirtier envolveu-a no seu olhar profundo.
— Ele tem o pescoço tão curto!... — observou a Sra. de Villefort.
— Senhora — insistiu o marido — Perguntei-lhe onde estava o Sr. de Avrigny. Em nome do céu, responda!
— Está no quarto de Edouard, que se encontra um pouco indisposto — respondeu a Sra. de Villefort, na impossibilidade de se esquivar mais tempo à resposta.
Villefort correu para a escada, a fim de ir buscar o médico pessoalmente.
— Toma — disse a jovem senhora, dando o frasco de sais a Valentine — Com certeza que o vão sangrar. Vou para o meu quarto, porque não posso suportar ver sangue.
E seguiu o marido. Morrel saiu do canto escuro onde se escondera e ninguém o vira, tão grande era a preocupação.
— Vá embora depressa, Maximilien — disse-lhe Valentine — E espere que o chame. Vá.
Morrel consultou Noirtier por um gesto. Noirtier, que conservara todo o seu sangue-frio, fez-lhe sinal que sim. O rapaz apertou a mão de Valentine ao coração e saiu pelo corredor oculto.
Ao mesmo tempo, Villefort e o médico entravam pela porta oposta.
Barrois começava a voltar a si. A crise passara, as suas palavras voltavam a ser lamentosas e levantava-se apoiado num joelho. Avrigny e Villefort deitaram Barrois num canapé.
— Que manda, doutor? — perguntou Villefort.
— Tragam-me água e éter. Não o tem em casa?
— Tenho.
— Corram a buscar essência de terebentina e um vomitório.
— Vão! — ordenou Villefort.
— E agora saiam todos.
— Eu também? — perguntou timidamente Valentine.
— Sim, menina. Sobretudo a menina — respondeu rudemente o médico.
Valentine olhou o Sr. de Avrigny com estranheza, beijou o Sr. Noirtier na fronte e saiu. Atrás dela, o médico fechou a porta com ar sombrio.
— Veja, veja, doutor, ele está a voltando a si. Foi apenas um ataque sem importância.
O Sr. de Avrigny sorriu, sem no entanto perder a sua expressão carrancuda.
— Como se sente, Barrois? — perguntou o médico.
— Um pouco melhor, senhor.
— Pode beber este copo de água eterizada?
— Vou tentar, mas não me toquem.
— Por quê?
— Porque me parece que se me tocassem, nem que fosse só com a ponta do dedo, o acesso se repetiria.
— Beba.
Barrois pegou no copo, aproximou-o dos lábios roxos e bebeu cerca de metade do líquido.
— Onde lhe dói? — perguntou o médico.
— Por toda a parte. Sinto umas cãibras insuportáveis.
— Passam-lhe coisas pela vista?
— Passam.
— Sente zumbidos nos ouvidos?
— Horríveis.
— Quando lhe deu isso?
— Há pouco.
— Rapidamente?
— Como um raio.
— Não sentiu nada ontem? Nem anteontem?
— Nada.
— Sonolência? Fadiga?
— Não.
— Que comeu hoje?
— Não comi nada. Bebi apenas um copo da limonada do senhor.
E Barrois fez com a cabeça um sinal para designar Noirtier, que, imóvel na sua cadeira, contemplava aquela cena terrível sem perder um gesto, sem deixar escapar uma palavra.
— Onde está essa limonada? — perguntou vivamente o médico.
— Na garrafa, lá em baixo.
— Lá em baixo, onde?
— Na cozinha.
— Quer que a vá buscar, doutor? — perguntou Villefort.
— Não, fique aqui e procure que o doente beba o resto desse copo de água.
— Mas a limonada...
— Eu mesmo vou buscá-la.
Avrigny abriu a porta de um salto, correu para a escada de serviço e quase derrubou a Sra. de Villefort, que também descia para a cozinha. Ela deu um grito. Avrigny nem sequer lhe prestou atenção. Levado por uma única idéia, saltou os três ou quatro últimos degraus, precipitou-se na cozinha e viu a garrafa, três quartos vazia, numa bandeja.
Caiu sobre ela como uma águia sobre a presa.
Subiu arquejante ao térreo e reentrou no quarto. A Sra. de Villefort subia lentamente a escada que levava aos seus aposentos.
— Era esta a garrafa que estava aqui? — perguntou Avrigny.
— Era, sim, Sr. Doutor.
— Esta limonada é a mesma que bebeu?
— Creio que sim.
— Que gosto lhe achou?
— Um gosto amargo.
O médico deitou algumas gotas de limonada no côncavo da mão, aspirou-as com os lábios e, depois de bochechar como se faz com o vinho quando se quer provar, cuspiu o líquido para a chaminé.
— E de fato a mesma — disse — Também bebeu, Sr. Noirtier?
— Bebi — respondeu o velho.
— E encontrou-lhe o mesmo gosto amargo?
— Encontrei.
— Ah, Sr. Doutor! — gritou Barrois — Isto está voltando! Meu Deus, Senhor, tende piedade de mim!
O médico correu para o doente.
— O vomitório, Villefort. Veja se ele vem.
Villefort correu para fora, gritando:
— O vomitório! O vomitório! Já foram buscá-lo?
Ninguém respondeu. Reinava na casa o terror mais profundo.
— Se tivesse maneira de lhe insuflar ar nos pulmões — disse Avrigny olhando à sua volta — Talvez tivesse possibilidade de evitar a asfixia. Mas não, nada, nada!
— Oh, senhor, vai deixar-me morrer assim sem socorro?! — gritava Barrois — Oh, eu morro, meu Deus! Eu morro!
— Uma pena! Uma pena! — pediu o médico.
Viu uma em cima da mesa. Procurou introduzir a pena na boca do doente, que fazia, no meio das suas convulsões, esforços inúteis para vomitar. Mas os maxilares estavam de tal forma apertados que a pena não pôde passar.
Barrois passava por um ataque nervoso ainda mais intenso do que o primeiro. Escorregara do canapé para o chão e retesava-se no chão. O médico deixou-o entregue ao novo acesso, para o qual não dispunha de qualquer alívio, e aproximou-se de Noirtier.
— Como se sente? — perguntou-lhe precipitadamente e em voz baixa — Bem?
— Sim.
— Leve de estômago ou pesado? Leve?
— Sim.
— Como quando toma a pílula que lhe mando dar todos os Domingos?
— Sim.
— Foi Barrois quem fez a sua limonada?
— Foi.
— Foi o senhor que o convidou a bebê-la?
— Não.
— Foi o Sr. de Villefort?
— Não.
— A senhora?
— Não.
— Então foi Valentine?
— Foi.
Um suspiro de Barrois, um bocejo que lhe fez estalar os ossos do maxilar, chamaram a atenção de Avrigny, que deixou o Sr. Noirtier e correu para junto do doente.
— Barrois, pode falar? — perguntou-lhe o médico.
Barrois balbuciou algumas palavras ininteligíveis.
— Faça um esforço, meu amigo.
Barrois abriu os olhos injetados de sangue.
— Quem fez a limonada?
— Eu.
— Trouxe-a ao seu patrão assim que a fez?
— Não.
— Deixou-a em algum lugar, então?
— Na copa. Chamavam-me.
— Quem a trouxe para aqui?
— Mademoiselle Valentine.
Avrigny bateu na testa.
— Oh, meu Deus, meu Deus! — murmurou.
— Doutor! Doutor! — gritou Barrois, que sentia vir terceiro acesso.
— Mas nunca mais trazem esse vomitório?! — gritou o médico.
— Aqui está um copo preparado — disse Villefort entrando.
— Por quem?
— Pelo ajudante de farmacêutico, que veio comigo.
— Beba.
— Impossível, doutor, é demasiado tarde! Sinto a garganta apertada, sufoco! Ai o meu coração! Ai a minha cabeça! Oh, que inferno! Ainda terei de sofrer muito tempo assim?
— Não, não, meu amigo — tranqüilizou-o o médico — Em breve deixará de sofrer.
— Ah, compreendo! — gritou o infeliz — Meu Deus, tende piedade de mim.
E, soltando um grito, caiu para trás como que fulminado.
Avrigny pôs-lhe a mão no coração e aproximou-lhe um espelho dos lábios.
— Então? — perguntou Villefort.
— Vá dizer na cozinha que me tragam sem demora xarope de violetas.
Villefort desceu imediatamente.
— Não se assuste, Sr. Noirtier — disse Avrigny — Vou levar o doente para outro quarto a fim de sangrá-lo. Na verdade, este tipo de ataques são um espetáculo horrível de ver.
E segurando Barrois por baixo dos braços, arrastou-o para um quarto contíguo. Mas quase imediatamente regressou ao de Noirtier para se apoderar do resto da limonada. Noirtier fechava o olho direito.
— Valentine, não é? Quer Valentine? Vou dizer que a mandem.
Villefort subiu. Avrigny encontrou-o no corredor.
— Então? — perguntou o magistrado.
— Venha — convidou-o Avrigny.
E levou-o para o quarto.
— Continua sem sentidos? — perguntou o procurador régio.
— Está morto.
Villefort recuou três passos e juntou as mãos mais altas do que a cabeça, numa inequívoca prova de comiseração.
— Morreu tão rapidamente... — disse, olhando o cadáver.
— Sim, demasiado rapidamente, não é verdade? — confirmou Avrigny — Mas isso não o deve surpreender: o Sr. e a Sra. de Saint-Méran também morreram rapidamente. Oh, morre-se depressa na sua casa, Sr. de Villefort!...
— Que diz?! — exclamou o magistrado, com horror e consternação — Volta outra vez a essa idéia terrível?
— Sempre, senhor, sempre! — respondeu Avrigny solenemente — Porque ela não me deixa um instante. E para que fique bem convencido de que desta vez não me engano, escute com atenção, Sr. de Villefort.
Villefort, tremia convulsivamente.
— Há um veneno que mata quase sem deixar vestígios. Conheço bem esse veneno: estudei-o em todos os acidentes que ocasiona, em todos os fenômenos que produz. Esse veneno reconheci-o há pouco no pobre Barrois, como já o reconhecera na Sra. de Saint-Méran. Há uma maneira de reconhecer a presença desse veneno: restabelece a cor azul do papel-de-tornassol avermelhado por um ácido e tinge de verde o xarope de violetas. Não temos papel-de-tornassol, mas veja, trazem-me ai o xarope de violetas que pedi.
Com efeito, ouviam-se passos no corredor. O médico entreabriu a porta, pegou das mãos da criada de quarto um recipiente no fundo do qual havia duas ou três colheres de xarope e voltou a fechar a porta.
— Veja — disse ao Procurador Régio, cujo coração batia com tanta força que quase se podia ouvir — Temos nesta taça xarope de violetas e nesta garrafa o resto da limonada de que o Sr. Noirtier e Barrois beberam uma parte. Se a limonada for pura e inofensiva, o xarope conservará a sua cor; se a limonada estiver envenenada, o xarope se tornará verde. Veja!
O médico deitou lentamente algumas gotas de limonada da garrafa na taça, no fundo da qual se formou imediatamente uma nuvem. Essa nuvem tomou primeiro um tom azulado; depois, do safira passou à opala, e do opala ao esmeralda. Chegada a esta última cor, fixou-se nela, por assim dizer. A experiência não deixava nenhuma dúvida.
— O infeliz Barrois foi envenenado com falsa-angustura e noz-de-santo-inácio — declarou Avrigny — Agora, o juraria perante os homens e perante Deus.
Villefort não disse nada, mas ergueu os braços ao céu, abriu muito os olhos e caiu fulminado numa poltrona.




 continua...





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Primeira Lei de Murphy: "Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará".
Comentário de Churchill sobre o homem: "O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção".

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